SUMÁRIO:
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As despesas não documentadas traduzem-se em saídas de meios financeiros do património da empresa, por movimentação da conta caixa ou de contas bancárias (onde esses meios financeiros estavam registados), desprovidas de suporte documental.
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Nos casos de despesas não documentadas é sobre o sujeito passivo que recai o ónus da prova do direito que se arroga a deduzir os custos ao lucro tributável, não reconhecido pela AT pelo facto da inexistência de suporte documental a quem basta provar a factualidade que a levou a não aceitar esses custos.
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A AF não está obrigada, por força da existência do direito de audição, a atender aos argumentos vertidos pelo sujeito, caso não se demonstre, sem margem para dúvidas, que efectivamente os pressupostos de base das correcções não existiam.
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
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A..., UNIPESSOAL, LDA.”, pessoa colectiva nº ..., com sede na Rua ..., ...-... ... - ..., apresentou, em 07-12-2021, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).
2. A Requerente pretende, com o seu pedido, a anulação do acto tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC) com o n.º 2021..., referente ao ano de 2018, no montante de €108.556,95, o qual compreende juros compensatórios de €7.425,82, pretendendo, com o seu pedido, a anulação do mesmo.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 09-12-2021.
3.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.
3.2. Em 24-01-2022 as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 11-02-2022.
3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
3.5. Uma vez que a Requerente, após ter sido designada data para a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, veio a prescindir da produção de prova testemunhal requerida no pedido de pronúncia arbitral, veio a ser proferido, em 22-05-2022, despacho em que se dispensou a realização da mesma.
3.6. A Requerida suscitou, na Resposta, matéria de excepção, invocando que o acto de liquidação impugnado compreende quer tributações autónomas devidas por despesas não documentadas, a que corresponde imposto quantificado de € 100.000,00, quer uma correcção relativa a benefício fiscal relativo a DLRR, no montante de € 1.131,13, concluindo que, não tendo a Requerente impugnado este último, deverá o valor do processo ser alterado em conformidade.
3.7. Tendo a Requerente sido convidada a pronunciar-se relativamente à excepção invocada pela Requerida veio a concordar com a tese por esta defendida e pronunciou-se, ainda, relativamente à matéria de impugnação, o que, por despacho de 22-05-2022, se considerou constituir abuso de pronúncia e, em conformidade, foi ordenado se considerasse como não escrito e de nenhum efeito o teor do contraditório junto pelo Requerente, com excepção ao que se refere ao valor da causa (pontos 1 e 2).
3.8. Em 29-07-2022, foi proferido despacho de prorrogação da decisão, ao abrigo do disposto no artigo 21º, n.º 2 do RJTA
4. A Requerente fundamenta, em síntese, o seu pedido, nos seguintes termos:
No que concerne aos factos mencionados no RIT, a AT começa por referir que identificou na contabilidade o registo de aquisição de imobilizado em curso, lançamento a débito da conta SNC “453 – Ativos Fixos Tangíveis em Curso” por contrapartida de saídas de meios financeiros da conta de bancos SNC “1201 –B...”, no montante de €200.000,00.
Numa primeira fase, impelido pela relevação contabilística que havia sido efetuada, isto é, aquisição de imobilizado, ainda que em curso, o Requerente adiantou, através do seu sócio-gerente, a possibilidade dos valores em causa, €200.000,00 no seu total, terem sido canalizados para o então promitente vendedor de terreno como adiantamento de tal negócio.
Sendo que, posteriormente, quando instado a apresentar as suas justificações por escrito e a juntar documentos comprovativos do que viesse a alegar ter sucedido, inteirou-se da situação e comunicou não existir qualquer suporte documental para que os movimentos contabilísticos em questão tivessem sido efetuados. Mais tendo adiantado o Requerente que, perante a documentação disponível, “…os saldos correspondentes deveriam estar refletidos na conta de caixa”.
Como ilação a retirar da análise desenvolvida, vem a AT afirmar que fica comprovado que, em 2018, ocorreram saídas de numerário a favor de beneficiário não identificado no montante de €211.336,33. Perante um quadro que evidencia, por um lado, a contabilização sem suporte de pagamentos através das contas bancárias no valor de €200.000,00 e, por outro, uma divergência nas movimentações em numerário no montante de €211.336,33, a AT entende valorizar a primeira das situações enunciadas e, daí, admitir que as despesas, que foram efetivamente suportadas e das quais não existe documento, importaram nos exatos €200.000,00.
A AT, face à possibilidade veiculada dos referidos €200.000,00 terem sido canalizados para o proprietário do terreno adquirido pelo Requerente em 2019, como valor complementar ao preço de aquisição constante da respetiva escritura, apressa-se a recusar a mesma, alegando, fundamentalmente, que não existe prova documental dessa situação e que, dado o falecimento do vendedor, não está em condições de realizar diligências suplementares de apuramento dos factos que poderão ter presidido a tal negócio.
Não é apresentada pela AT qualquer prova de que tais pagamentos tenham existido realmente, quedando-se a AT pela admissão de que os lançamentos contabilísticos que referem 5 saídas da conta de bancos “1201 –B...” no valor de €40.000,00 cada, correspondem à realidade. Só que esses mesmos lançamentos tiveram como contrapartida a conta “453 – Ativos Fixos Tangíveis em Curso” e, como antes se referiu, a AT desvalorizou-os nesta vertente.
O tipo de tributação que veio a ser concretizada, tributação autónoma sobre despesas não documentadas, não se compadece com presunções ou estimativas, antes exigindo a efetiva comprovação de que tais despesas foram realizadas.
A AT, perante a fragilidade da análise por ela desenvolvida aos fluxos financeiros estritamente contabilísticos, desprezou a tributação sobre o hipotético desvio de numerário que a mesma revelou (€211.336,33) e limitou-se a servir-se da mesma como elemento adicional de sustentação da conclusão que faz prevalecer como fundamento do ato tributário em crise, isto é, as saídas da conta de bancos “1201 –B...”, 5 pagamentos a totalizar €200.000,00.
Ora, para que se possa concretizar a tributação autónoma relativa a despesas não documentadas, impunha-se que se comprovasse a efetiva movimentação de meios financeiros a favor de alguém cuja identidade se desconhece (e não um mero erro de lançamento passível de correcção).
É intrínseco ao conceito de despesa confidencial ou não documentada que seja efetivamente realizada uma despesa, logo, que existisse uma saída efetiva de valores monetários existentes em caixa (numerário) ou em bancos. No caso em apreço, a AT deveria ter-se inteirado se estava perante um mero lançamento contabilístico, que, comprovadamente, não estava documentado, ou se, pelo contrário, tal lançamento estava acompanhado duma efetiva despesa; esse apuramento era-lhe exigível para que fundamentado pudesse estar o RIT que dá respaldo à Liquidação em crise.
A AT não pode sustentar-se, sem mais, nas declarações do Requerente para converter uma operação contabilística que considera artificiosa e imaterial para concretizar uma tributação que só poderia incidir sobre uma operação efetiva e substancial, principalmente depois de o Requerente lhe ter esclarecido a existência do dito erro contabilístico de que se veio a inteirar ainda durante a ação inspectiva.
Perante erros na contabilidade, como é o caso de lançamentos efetuados, a AT, ou recorria à aplicação de métodos indiretos (artºs 87º e 88º da LGT), ou procedia a investigação dos movimentos contabilísticos que estavam relacionados com tais erros, designadamente dos que permitiram gerar entradas em bancos suficientes e necessárias para que aquela conta continuasse a evidenciar um saldo compatível com o revelado pelos extratos bancários.
Nada disto a AT fez, ie, nem aplicou métodos indiretos, nem investigou, em cumprimento dos princípios da verdade material e do inquisitório, preferindo, num processo redutor, dar relevância a este erro contabilístico e proceder, sem mais, à tributação autónoma deste lançamento contabilístico como despesa não documentada.
Do próprio RIT resulta que o contribuinte alegou o erro contabilístico e que em conformidade exerceu o direito de audição o qual foi no sentido do aqui expendido quanto ao erro contabilístico e à falta de fundamento para a Liquidação adicional então projetada e agora em crise, sendo que o próprio RIT atesta que foi produzida prova testemunhal nesse mesmo sentido.
Todavia, houve preterição do direito de audição prévia, uma vez que o Requerente invocou a realidade do erro na contabilidade, demonstrável pelo confronto com aos extratos da conta Bancária.
É igualmente evidente que a AT não cumpriu com o princípio da verdade material do art. 6º do RCPITA e princípio da investigação, que a lei designa pela expressão tradicional de princípio do inquisitório, no dizer do art.º 58º da LGT, que exige que a administração tributária deva realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material.
Conclui, peticionando a procedência total do pedido com a anulação da liquidação impugnada.
5. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, invocando em síntese:
O montante do ato de Liquidação Adicional impugnado corresponde ao quantitativo total das correções efetuadas ascenderam a EUR 101.131,13 e, por outro lado, porque face aos argumentos da Requerente apenas estão em causa as correções relativas a TA devida por despesas não documentadas no valor de EUR 200.000,00, a que corresponde imposto quantificado em EUR 100.000,00. Haverá, por isso, uma parte de EUR 1.131,13, a qual, ainda que venha a ser reconhecido mérito ao pedido, permanecerá firmada no ordenamento jurídico. Donde, o valor económico do pedido deverá ser fixado por observância dos ajustamentos necessários.
O enquadramento jurídico-fiscal efetuado pelos Serviços Inspectivos não merece qualquer censura pois agiram em conformidade com o quadro contabilístico e fiscal que é aplicável a factos desta natureza.
Se, como a Requerente agora defende em sede do Pedido Arbitral, se trata de um mero erro contabilístico, a audição dessas pessoas traduzir-se-ia certamente num ato inútil, pois não permitiria obter qualquer informação capaz de esclarecedor sobre a natureza e efetiva ocorrência desse erro, na medida em que essas pessoas não são as responsáveis pela elaboração da contabilidade.
Os Serviços Inspectivos promoveram todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material.
Em termos concretos, os Serviços Inpsctivos procederam ao enquadramento jurídico reconhecido pela própria Requerente, na medida em que ocorreu uma efetiva saída de valores monetários do caixa, e não existem documentos de suporte a essas saídas.
É claro, e inquestionável, que sobre os Serviços Inspsctivos impende um dever de obter junto dos Sujeitos Passivo objeto de inspeção o esclarecimento sobre todas as dúvidas que possam decorrer da análise, verificação e controlo dos elementos que suportam o apuramento dos resultados fiscais, ou seja, os elementos contabilísticos, por serem estes que os sustentam, como previsto pelos art.os 17.º e 123.º do CIRC.
Nem durante o procedimento inspetivo, nem em sede do direito de audição, nem com o presente Pedido Arbitral, a Requerente logrou apresentar à AT os documentos necessários e exigíveis que permitam conhecer qual o destino dos meios financeiros extraídos do património da empresa, qual ou quais as operações económicas que estão subjacentes a tais pagamentos, qual ou quais os verdadeiros destinatários desses valores: foi o sócio-gerente a título de adiantamento por conta de lucros, foi o vendedor do terreno ou está em causa um mero erro contabilístico? Falta-lhe lograr alcançar esta demonstração, provando.
O vertido no Relatório inspectivo demonstra, de forma inequívoca, que os Serviços Inspectivos promoveram todas as diligências que, à data de realização da ação inspetiva, se mostravam possíveis para a descoberta da verdade material.
A avaliação indireta é um meio para a determinação da matéria coletável. Sucede, porém, que as correções efetuadas não se refletem na matéria coletável pois apenas influenciam o imposto a pagar, pois o que está em causa é a tributação autónoma de despesas não documentadas. Facto que por si só, afastaria a possibilidade de avaliação indireta por recurso à aplicação de métodos indiretos.
A AT não deixou de proceder a avaliação indireta por opção discricionária mas, outrossim, porque estava obrigada a efetuar avaliação direta, na medida em que, in casu, face ao quadro legal aplicável, a utilização do método de avaliação indireta não tinha acolhimento em nenhuma das situações previstas pelo art.º 87.º da LGT. O recurso aos métodos indiciários só é legalmente possível quando o recurso a correcções técnicas se revele impraticável.
Ademais, também não ocorre qualquer situação de fundada dúvida, compaginável na previsão contida no art.º 100.º do CPPT. Antes, porém, existe uma certeza: há uma saída de meios financeiros da empresa, cujo destino se desconhece. Não ocorrendo qualquer dúvida sobre esse facto.
A Requerente não satisfez o ónus de demonstrar o que alegou, i.e., em que circunstâncias é que esses lançamentos erróneos, ocorreram e, fundamentalmente, porque vieram a ser corrigidos apenas em 2020, bem como das razões que impediram que sobre os mesmos nada tenha sido dito ou esclarecido no decurso da ação inspetiva.
O registo contabilístico que vai sustentar a correção desse eventual erro tem de estar obrigatoriamente suportado em documentos que permitam avaliar sobre a substância da operação que vai ser - ou foi - relevada contabilisticamente de forma errónea. A Requerente não forneceu, até ao momento, quaisquer elementos probatórios que permitam contrariar todos os factos apurados no decurso da ação de inspetiva, confirmando-se a existência de um mero erro contabilístico e, reconhecendo-se a ocorrência do mesmo, que possibilitem circunscrever o(s) momento(s) em que tal erro tenha sido - ou foi – retificado.
Como vem jurisprudencialmente assente, o dever que recai sobre a AT de realizar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material não se reconduz a que esta tenha de ficar subordinada à iniciativa dos Sujeitos Passivos, realizando as diligências que os mesmos entendam ou, ainda, substituindo-se-lhe nos deveres que sobre os mesmos recaem quanto ao ónus da prova e de esclarecimento das dúvidas que lhes forem colocadas.
Na fundamentação do relatório de inspecção a AT pronunciou-se sobre os concretos elementos trazidos pela Requerente, em sede de direito de audição ao projecto de relatório de inspeção, […], pelo que, com estes pressupostos, não se vislumbra qualquer violação do direito da participação/audição prévia constante do artigo 60.º da LGT, improcedendo o alegado vício.
Acresce que o Relatório de Inspecção Tributária, explicita, com suficiência, as razões de facto e de direito que justificam as correcções efectuadas, nada haverá a censurar, na perspectiva do dever de fundamentação.
Não possuindo a Requerente, na sua contabilidade, documentos que identifiquem e comprovem de forma idónea, a origem, natureza e destino dos montantes que deveriam fazer parte integrante dos saldos de caixa evidenciados nas Declarações Fiscais, não tendo igualmente apresentados quaisquer documentos relativamente aos alegados pagamentos efetuados em favor do suposto vendedor do terreno, só poderá concluir-se, com o devido respeito, pelo reconhecimento da existência de despesas não documentadas e, como tal, sujeitas a TA à taxa de 50%, donde o imposto em falta é quantificado em EUR 100.000,00.
Conclui a requerida pela legalidade do acto de liquidação contestado pela Requerente que deverá, assim, ser mantido.
II – Saneamento
6.1. O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
6.2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
6.3. O processo não enferma de nulidades.
6.4. Foi suscitada pela Requerida questão relativa ao valor da causa invocando que o acto de liquidação impugnado compreende quer tributações autónomas, devidas por despesas não documentadas, a que corresponde imposto quantificado de € 100.000,00, quer uma correcção relativa a benefício fiscal relativo a DLRR, no montante de € 1.131,13, concluindo que, não tendo a Requerente impugnado este último, deverá o valor do processo ser alterado em conformidade.
Convidada a Requerente a pronunciar-se alegou assistir razão à Requerida uma vez que, de facto, apenas impugnou a liquidação no que respeita a tributações autónomas.
Anuindo à tese da Requerida, e sem necessidade de outras considerações, impõe-se, pois, proceder à alteração do valor da causa, fixando-se o mesmo em 106.865,36 €, correspondendo ao valor do imposto liquidado e respectivos juros compensatórios.
6.5. Não foram suscitadas outras excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
III – MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO
III.1. Matéria de facto
Atendendo às posições assumidas pelas partes e à prova documental junta aos autos, consideram-se, com relevo para apreciação e decisão da causa, como provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade unipessoal, por quotas, cuja actividade é exercida nos estabelecimentos comerciais sob a designação de “Supermercado C...”, tendo como Atividade CAE Designação Principal 47111 Comércio a Retalho em Supermercados e Hipermercados e Secundária 056301 Cafés.
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Ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2020..., foi objecto de acção inspectiva incidente sobre o exercício de 2018, o qual teve início em 19-10-2020 e fim em 19-05-2021.
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Do respectivo RIT consta, designadamente:
(...)
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A Requerente reconhece não ter suporte documental justificativo da saída de meios financeiros no montante de 200.000,00 €.
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A Requerente foi notificada da nota de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC) com o n.º 2021..., referente ao ano de 2018, no montante de €108.556,95, o qual compreende juros compensatórios de €7.425,82
Fundamentação da matéria de facto:
A matéria de facto dada como provada assenta no exame crítico da prova documental apresentada e não contestada, que aqui se dá por reproduzida, bem como do processo administrativo junto aos autos.
Não foram dados como não provados factos com relevo para a decisão da causa.
III.2. Matéria de Direito
Atentas as posições das partes, a questão decidenda assenta na (i)legalidade da tributação autónoma de despesas não documentadas nem contabilizadas e, mais, do que isso, com o ónus da prova que tal questão implica.
Sustenta a Requerente que a Requerida não logrou fazer prova dos fundamentos para tal tributação defendendo que “para que se possa concretizar a tributação autónoma relativa a despesas não documentadas, impunha-se que se comprovasse a efetiva movimentação de meios financeiros a favor de alguém cuja identidade se desconhece (e não um mero erro de lançamento passível de correção”. Aduz em abono da sua tese os princípios da verdade material e do inquisitório.
Defende, também, padecer a liquidação impugnada de falta de fundamentação e de preterição do direito de audição prévia, e resultar a omissão de documentação de erro contabilístico, justificando-se a aplicação de métodos indirectos.
Contrariando a tese da Requerente, a Requerida invoca que precisamente para dar “cumprimentos aos princípios do contraditório e da colaboração, previstos nos artigos 8º e 9º do RCPITA, a Requerente foi notificada, por duas vezes, para justificar as operações subjacentes à despesa registada na contabilidade e comprovada pela análise dos fluxos financeiros. A Requerente não exibiu qualquer documento comprovativo das operações nem prestou esclarecimentos sobre as mesmas, quer na resposta às notificações quer em sede do direito de audição”.
Sustenta, ainda, estar o acto devidamente fundamentado e não estarem reunidos, no caso, requisitos para aplicação de métodos indirectos.
São, por isso, em suma, três as questões a apreciar:
- falta de fundamentação e preterição de audição prévia
- aplicação de métodos indiciários
- aplicação da tributação autónoma: requisitos, ónus da prova (princípios da verdade material e inquisitório).
- Falta de fundamentação – Audição Prévia
A Requerente assaca o vício de violação do direito de audição em sede de exercício do direito de audição no procedimento inspectivo, sustentando que a AT ignorou totalmente a audição por si exercida e os elementos facultados nessa sede, ignorando a existência de erro na contabilidade então invocada.
Antes de se avançar, há que esclarecer que uma coisa é a falta absoluta de audição dos contribuintes no caso de não estar prevista a possibilidade da sua dispensa (como é o caso). Outra diferente, é o efectivo exercício desse direito que o deverá ser de forma eficaz e adequada, quer por parte do contribuinte, a quem deve ser dada a possibilidade de tomar posição expressa na sequência da análise do que lhe é proposto pela AT, quer por parte desta que, designadamente no caso de serem invocados fundamentos novos por parte do contribuinte, os deve mencionar e apreciar na decisão final.
A Requerente, pese embora invoque a violação do direito de audição, não alega que não lhe foi dada essa possibilidade mas antes invoca a deficiente apreciação da sua audição por parte da AT. Refere, a este propósito, que “houve preterição do direito de audição prévia, uma vez que o Requerente invocou a realidade do erro na contabilidade, demonstrável pelo confronto com os extratos da conta bancária”.
Mas sem razão. Da análise ao requerimento de audição prévia a Requerente invocou factos tendentes a alcançar conclusões que a AT entendeu não terem a virtualidade de ser considerados como elementos ou fundamentos novos, susceptíveis de abalar a conclusão vertida no RIT, depois de ter ouvido as testemunhas por si apresentadas.
Como se diz no Ac. TCA Sul de 10-02-2009 – Proc. 02674/08: “a AF não está obrigada, por força da existência do direito de audição, a atender aos argumentos vertidos pelo impugnante, caso não se demonstre, sem margem para dúvidas, que efectivamente os pressupostos de base das correcções não existiam, não se podendo afirmar que o princípio da participação não foi respeitado”.
O mesmo se diga quanto ao próprio RIT na sua completude, o qual constitui o fundamento do acto. Com efeito, o que ocorre – e é bem diferente - é que a Requerente não concorda com os fundamentos invocados pela AT.
A Requerente pode não concordar com a fundamentação apresentada pela AT mas é indesmentível que ela existe, é clara, não contraditória e congruente com a conclusão que levou ao acto de indeferimento.
Da análise ao RIT, é manifesto que este cumpre tal dever de fundamentação. Com efeito, a AT descreveu de forma clara os elementos de facto que entendeu relevantes, invocou expressamente as normas legais em que se apoiou, permitindo à Requerente entender de modo claro as razões da sua actuação. Entendimento esse, aliás, que a própria Requerente demonstra ter atingido, pelo modo como atacou o acto.
A fundamentação do acto de liquidação mais não é do que a forma de a “AF exteriorizar os motivos porque procedeu àquela liquidação e não a qualquer outra, de uma forma clara, congruente e racional de molde a constituir a base que suporta a decisão” (Ac. TCA Sul de 25-01-2011 – Proc. 04410/10
Como se diz no Ac. STA de 2-07-2014 - Proc. nº 01074/13: “É inquestionável que a Administração tem o dever de fundamentar os actos que afectem os direitos ou os legítimos interesses dos administrados – em harmonia com o princípio plasmado no artigo 268º da CRP e acolhido nos artigos 124º do CPA e 77º da LGT. Ora, como a doutrina e a jurisprudência têm vindo exaustivamente a repetir, a fundamentação há-de ser expressa, através duma exposição sucinta dos fundamentos de facto e de direito da decisão; clara, permitindo que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide; suficiente, possibilitando ao contribuinte um conhecimento concreto da motivação do acto; e congruente, de modo que a decisão constitua a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação. É também incontroverso que as exigências de fundamentação não são rígidas, variando de acordo com o tipo de acto e as circunstâncias concretas em que este foi proferido, bastando-se com a expressão clara das razões que levaram a determinada deliberação decisória. A determinação do âmbito da declaração fundamentadora pressupõe, portanto, a busca de um conteúdo adequado, que há-de ser, num sentido amplo, o suficiente para suportar formalmente a decisão administrativa. Assim, a fundamentação deve ser entendida como a obrigação de enunciar expressamente (de modo directo ou por remissão) os motivos de facto e de direito que determinaram o agente ou órgão decisor, esclarecendo o seu destinatário das razões que o motivaram e do porquê do sentido decisório, visando proporcionar ao administrado o conhecimento do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto. Deste modo, o acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal - o bonus pater familiae de que fala o artigo 487º, nº 2, do C.Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, por aceitar, ou não, o acto”.
Acresce que “não ocorre o vício formal de falta de fundamentação se a própria impugnante expressamente revela ter compreendido perfeitamente o processo lógico e jurídico que conduziu à decisão de tributação, reconhecendo ter percebido os pressupostos concretamente levados em conta pelo autor do ato e as razões por que foram alcançados os valores tributados, denunciando o percurso cognoscitivo e valorativo percorrido” (…», in (Ac. STA de 0-01-2013 – Proc. n.º 0105/12).
Estando o acto devidamente fundamentado está apto a produzir os seus efeitos, não lhe sendo apontada quaisquer ilegalidades.
Improcedem, assim, os invocados vícios de falta de fundamentação e de preterição da audição prévia.
- Aplicação de métodos indirectos
Está tido por assente que a Requerente reconhece não ter suporte documental para a saída de meios financeiros no valor de 200.000,00 €.
Como primeira justificação de tal facto é dito, em declarações do seu sócio-gerente, que “o valor real pago pelo terreno teria sido 300.000,00 € e não os 100.000,00 € declarados na escritura de compra e venda, correspondendo a diferença de 200.000,00 € ao valor pago para além do preço declarado”. Mais disse “não possuir qualquer documento de suporte a esta operação, tais como documentos de quitação, contratos promessa de compra e venda, confissão de dívida ou qualquer outro documento que permita comprovar as declarações prestadas no decurso do procedimento inspetivo”.
Reiterando inexistir na contabilidade suporte documental justificativo da operação, esclareceu, por escrito que “relativamente aos movimentos contabilísticos em questão, não existe suporte documental para que os mesmos tenham sido efetuados. Neste sentido com o suporte documental existentes os saldos correspondentes deveriam estar refletidos na conta de caixa”.
Quer dizer, as partes convergem na factualidade descrita, apenas divergindo das consequências da mesma resultante, defendendo a Requerente que tal se traduziu num erro de contabilização que a AT “representou como uma ficção contabilística sem correspondência com supostas saídas de meios monetários da empresa, seja de bancos, seja de caixa”. Perante tais erros da contabilidade, a AT ou recorria à aplicação de métodos indirectos ou procedia à investigação dos movimentos contabilísticos que estavam relacionados com tais erros.
No que respeita à segunda solução, debruçar-nos-emos no ponto seguinte. No que toca à aplicação de métodos indirectos, diga-se, desde já, que se nos afigura que a Requerente assenta o seu raciocínio num lapso.
É sabido que, como regra, a matéria colectável é efectuada de modo directo, constituindo a avaliação indirecta, designadamente por métodos indirectos, uma aplicação excepcional de carácter subsidiário (artigos 83º, n.º 1 e 2 e 85º, n.º 1 da LGT) que só pode ter lugar nos casos expressamente definidos no artigo 87º do mesmo diploma.
Quer dizer, a avaliação por métodos indirectos só pode ter lugar quando a AT não puder quantificar de forma directa e exacta os factos sujeitos a tributação. Como se diz no Acórdão do TCA-Norte de 29-05-2014 – Proc. 00018/02: “o lançar mão de qualquer dos meios alternativos disponíveis, - correcções técnicas/avaliação indirecta -, e de um deles em detrimento do outro, não depende de um critério discricionário da AT, antes, qualquer deles constitui um seu poder vinculado”.
Por outro lado, outro acórdão do mesmo TCA, de 11-01-2013 – Proc. 00739/05.4BEPRT, esclareceu que “a administração tributária só tem o dever de recorrer a métodos indiretos para presumir custos não declarados e não documentados se a sua existência for evidenciada ou demonstrada e o seu valor não puder ser diretamente determinado (…) só os custos cuja existência possa ser confirmada mas cujo valor não possa ser diretamente determinado por falta de documentação devem ser apurados por métodos indiretos, como decorre do artigo 90.º, n.º 1, alínea f), da Lei Geral Tributária”.
Tais circunstâncias não ocorrem no caso, onde a AT identificou e quantificou de forma precisa o facto sujeito a tributação: o registo da saída de meios financeiros sem o respectivo suporte documental e sem que a Requerente tenha feito o esforço de justificar tal facto de forma minimamente credível.
Acresce que, contrariamente ao que a Requerente quer fazer crer, a AT não fez funcionar qual ficção que, ainda que em tese, pudesse justificar o recurso à aplicação de métodos indirectos. Apenas aplicou uma correcção técnica resultante de comprovação directa aos elementos fornecidos pela Requerente, nenhuma censura merecendo a sua actuação.
- Tributação autónoma: requisitos, ónus da prova (princípios da verdade material e inquisitório)
O artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, na redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, estabelece que “as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A”.
Para a determinação do conceito de despesa – não coincidente com o de gastos previsto no artigo 23º do CIRC - recorremos ao que dispõe o Acórdão do STA de 07-07-2010, proferido no Processo n.º 0204/10, quando considera que “tratar-se-á de encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afetam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o”. Conforme refere a decisão arbitral no processo n.º 213/2020-T, o significado de despesas não documentadas “reconduz-se a saídas de meios financeiros do património empresarial, por movimentação da conta caixa ou de contas bancárias (onde esses meios financeiros estavam registados), desprovidas de suporte documental”.
A despesa não estará devidamente documentada quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ela foi efetivamente suportada pelo sujeito passivo. A apreciação da existência ou não da devida documentação é feita tendo por objeto o acto através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é suscetível de afetar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC.
Ora, como se disse, as despesas não documentadas são objecto de tributação autónoma.
De acordo com o acórdão do STA de 31-03-2016, proferido no Processo n.º 0505/15: “As despesas em questão são tributadas apenas porque são efectuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC”.
Por outro lado, é pacífico, na jurisprudência, que nos casos de despesas não documentadas é sobre o sujeito passivo que recai o ónus da prova do direito que se arroga a deduzir os custos ao lucro tributável, não reconhecido pela AT pelo facto da inexistência de suporte documental.
Diz-se no Acórdão do STA de 27-02-2019, proferido no Processo n.º 01424/05.2BEVIS que “basta à AT provar a factualidade que a levou a não aceitar esses custos, factualidade essa que tem de ser suscetível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respetivos documentos de suporte, só então passando a competir ao contribuinte o ónus de prova do direito de que se arroga (o de exercer o direito de deduzir os custos ao lucro tributável) e que não é reconhecido pela AT, ou seja, o ónus de prova de que as operações se realizaram efetivamente e ocorrem os pressupostos de que depende o seu direito àquela dedução”.
Na mesma linha se refere na decisão arbitral n.º 235/2020.T que “o ónus da prova dos alegados erros e irregularidades recai sobre a Requerente, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova que permite concluir pela sua existência tinha de ser valorada no procedimento tributário e no presente processo contra a Requerente. De resto, é a Requerente que está em melhor posição probatória, dispondo ou devendo dispor dos elementos documentais e materiais necessários e suficientes para justificar as saídas de valores da empresa e evitar a incidência de tributação autónoma. (…) Por isso, há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada, de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado. (…) Não tem aqui aplicação, quanto à existência do facto tributário gerador da tributação autónoma, o preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não se vislumbram razões que abalem a presunção de terem ocorrido despesas não documentadas a que conduzem as presunções referidas”.
Ou na decisão arbitral no processo 752/2019-T, de 03-10-2020, quando se pronuncia no sentido de que, “tendo sido a Requerente notificada para apresentar elementos contabilísticos e prestar esclarecimentos”, teve a oportunidade de juntar documentos de suporte de despesas a justificar a divergência. Acrescenta que “o Relatório de Inspecção Tributária tem valor probatório próprio que apenas poderia ter sido posto em causa caso a Requerente tivesse logrado pôr em dúvida os resultados probatórios aí coligidos, o que manifestamente não ocorreu. Com efeito a Requerente não prova quais as despesas efetivas que a sociedade teve”.
No caso em apreço, a AT demonstrou inequivocamente as razões que, no seu entender, justificavam a aplicação de tributação autónoma e, em cumprimento dos princípios da verdade material e inquisitório notificou a Requerente para justificar e/ou apresentar suporte documental para as despesas não documentadas que identificou, o que esta não logrou fazer quer no decurso da inspecção, quer no exercício do direito de audição quer, muito menos, no presente pedido de pronúncia arbitral.
Desse modo, aderindo aos fundamentos vertidos nas mencionadas decisões, conclui-se que a AT cumpriu o ónus de prova quanto aos elementos constitutivos da tributação autónoma, pelo que improcede o pedido com base neste fundamento.
IV. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
-
Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral formulado, dele se absolvendo a Requerida.
-
Condenar a Requerente nas custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 106.865,36 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 3.060,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 28 de Setembro de 2022
Os Árbitros
Fernanda Maçãs (Presidente)
Prof. Doutora Cristina Aragão Seia (vogal- Relatora)
Drª Maria da Graça Martins (vogal)