Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 678/2021-T
Data da decisão: 2022-10-06  Selo  
Valor do pedido: € 145.780,25
Tema: IS – Intempestividade de Revisão Oficiosa – Revogação do art. 78.º, n.º 2 da LGT (autoliquidação)
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (presidente), Adelaide Moura e Ana Luísa Ferreira Cabral Basto, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 28 de dezembro de 2021, acordam no seguinte:

 

 

            I.         Relatório

 

A..., S.A., doravante designada por “Requerente”, pessoa coletiva n.º..., com sede na ... n.º ..., ...-... Lisboa, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“ppa”), ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na sequência da notificação da decisão final do pedido de revisão oficiosa, que correu termos sob o n.º ... 2021 ..., relativo aos atos de liquidação de Imposto do Selo praticados entre dezembro de 2016 e junho de 2018, no valor global de € 145.780,25.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

Em 20 de outubro de 2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

 

De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 28 de dezembro de 2021.

 

            Em 4 de fevereiro de 2022, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por exceção e por impugnação, e juntou o processo administrativo (“PA”).

 

            Notificada para o efeito, a Requerente apresentou resposta às exceções, por requerimento entrado em 25 de fevereiro de 2022.

 

Em 20 de abril de 2022, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, com inquirição das duas testemunhas indicadas pela Requerente. As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas e o Tribunal designou a data de prolação da decisão arbitral, (v. ata que se dá por reproduzida e gravação áudio disponível no SGP do CAAD).

 

Em 5 de maio de 2022, ambas as Partes apresentaram as suas alegações e reafirmaram, no essencial, as posições assumidas nos respetivos articulados.

 

Por despachos de 20 de junho e de 24 de agosto de 2022, foi prorrogado o prazo para prolação da decisão, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, derivado da tramitação processual, da interposição de períodos de férias judiciais e da situação pandémica.

 

Posição da Requerente

 

            Tempestividade do Pedido de Revisão Oficiosa

 

            A Requerente começa por justificar a tempestividade do pedido de revisão oficiosa, alegando que o mesmo foi formulado ao abrigo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), com fundamento em “erro imputável aos serviços”, pelo que lhe é aplicável o prazo de quatro anos (e não de dois anos) sobre a data em que as autoliquidações foram efetuadas, conforme previsto na norma citada.

 

            Preconiza a interpretação abrangente do conceito de “erro imputável aos serviços”, por forma a incluir, além de lapsos, erros materiais e de facto, o erro de direito, que compreende a emissão de atos tributários em violação do Direito da União Europeia (v. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 0678/16, de 8 de fevereiro de 2017).

 

            Aduz que a liquidação de imposto do selo em operações intermediação financeira a instituições de crédito não residentes respeitantes a operações de oferta para aquisição de obrigações, venda de ações e lançamento de uma oferta pública de aquisição de ações (“OPA”) constitui prática reiterada e enraizada e corresponde à interpretação da AT. Assim, por ser inequivocamente do conhecimento da AT, existe erro imputável aos serviços, tendo a via contenciosa sido precedida de um meio administrativo, in casu, o pedido de revisão oficiosa, que, para este efeito, deve ser equiparado à reclamação graciosa, cumprindo-se o requisito prescrito no artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (v. decisão arbitral no processo n.º 809/2019-T, de 4 de setembro de 2020, e acórdão do TCA Sul no processo n.º 147/17.4BCLSB, de 27 de abril de 2017).

 

A Requerente defende que o erro dos serviços não depende da imputação a título de culpa, na medida em que a possibilidade de revisão oficiosa de atos tributários, por parte da AT, radica na obrigação de anulação de atos ilegais, em cumprimento dos princípios que regem a atuação da administrativa, nomeadamente os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade tributárias, nos termos dos artigos 55.º da LGT e 266.º, n.º 2 da Constituição, conforme jurisprudência que cita (v. decisão arbitral do processo n.º 911/2019-T, de 5 de setembro de 2020, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 01019/14, de 8 de março de 2017, e o acórdão do TCA Sul no processo 887/11.1BELRA, de 6 de abril de 2017).

 

            Por outro lado, argui que, na apreciação do pedido de revisão oficiosa, a Requerida não se limitou a analisar os aspetos processuais, tendo também entrado na apreciação da legalidade das liquidações subjacentes e, nesse sentido, no mérito da questão apresentada, pelo que a ação arbitral constitui meio processual idóneo de reação, conforme confirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (v. acórdãos nos processos n.º 01958/13, de 14 de maio de 2015, e n.º 01412/15, de 7 de janeiro de 2016) e arbitral (v. processos n.ºs 937/2019-T, decidido em 27 de outubro de 2020).

 

            Ainda que assim não fosse entendido, i.e., que a AT não tivesse apreciado a legalidade dos atos de liquidação de Imposto do Selo, a impugnação judicial continuaria a ser o meio processual adequado para reagir contra tais atos, em virtude de o seu objeto mediato radicar na apreciação da respetiva legalidade (v. acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo nos processos n.º 0608/13.4BEALM 0245/18, de 18 de novembro de 2020, n.º 0279/19.4BEVIS, de 10 de março de 2021, e n.º 0129/18.9BEAVR, de 13 de janeiro de 2021). 

 

            A título subsidiário, a Requerente solicita a convolação da ação arbitral em ação administrativa, ao abrigo do disposto no artigo 98.º, n.º 4 do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, para a qual considera estar igualmente em tempo, nos termos do disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea b) do CPTA, bem como a respetiva remessa ao Tribunal Tributário de Lisboa, ao abrigo do disposto no artigo 18.º, n.º 2 do CPPT, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

Afirma também que a violação do direito da União Europeia é sancionada com o desvalor de nulidade (jurisprudência do Tribunal de Justiça no caso Simmenthal 106/77, de 9 de março de 1978, e artigo 162.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo – “CPA”), invalidade que é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e que inquina os atos de liquidação impugnados na presente ação, pelo que estes sempre seriam sindicáveis a todo o tempo.

 

            Ilegalidade das Liquidações de Imposto do Selo por violação da Diretiva 2008/7/CE

 

Em relação ao fundo da causa, para a Requerente, a liquidação de Imposto do Selo, efetuada ao abrigo da verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”) sobre as comissões devidas por serviços de intermediação financeira a instituições de crédito não residentes respeitantes a operações de oferta para aquisição de obrigações, venda de ações e lançamento de uma oferta pública de aquisição de ações (“OPA”), viola o direito da União Europeia, em concreto a isenção prevista no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 18 de fevereiro, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais.

 

De acordo com o mencionado 5.º, n.º 2, alínea b) da Diretiva é estabelecida uma regra de não sujeição a qualquer forma de imposto indireto: – da criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de ações; e – dos empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de obrigações ou outros títulos negociáveis e todas as “formalidades conexas”, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis. Esta regra sofre as exceções referidas no artigo 6.º, n.º 1 da Diretiva, no qual não se enquadram as operações que suscitaram as liquidações de Imposto do Selo aqui impugnadas, sendo que a própria AT já esclareceu que a emissão de obrigações e de papel comercial não está sujeita a Imposto do Selo.

 

Os serviços subjacentes às comissões sobre as quais foi liquidado Imposto do Selo enquadram-se no conceito de formalidades conexas às ofertas para a aquisição em dinheiro de obrigações, à venda de ações e à colocação de OPA de ações, pelo que não pode sobre as mesmas incidir aquele imposto dada a proibição da Diretiva de reuniões de capitais, quer a atualmente em vigor, quer aquela que esta veio revogar. Em reforço da sua posição, a Requerente invoca a jurisprudência do Tribunal de Justiça, compulsando os processos C-415/02, Comissão v. Bélgica, C-299/13, Isabele Gielen, C-573/16, Air Berlin, C-31/97, FECSA (este relativo a operações de reembolso de um empréstimo obrigacionista), C-466/03, Albert Reiss, e C-426/98, Comissão v. Grécia (estes últimos sobre emolumentos notariais).

 

Sobre o caráter optativo dos serviços, entende que não constitui critério que afaste uma determinada operação do conceito de formalidade conexa, nos moldes em que esta foi densificada pelo Tribunal de Justiça, contrariamente ao que foi decidido no processo arbitral n.º 856/2019-T (do qual discorda), a que acresce que numa das operações em causa – lançamento da OPA – a contratação dos serviços de intermediação financeira resulta mesmo de uma imposição da CMVM (v. artigo 113.º do Código dos Valores Mobiliários), sendo necessária a intervenção de um intermediário financeiro que assuma o risco de liquidez da operação.

 

Segundo a Requerente, as operações em causa tiveram por objetivo garantir a realização efetiva das operações de reunião de capitais da Requerente, com o necessário sucesso, através da contratação de entidades conhecedoras do mercado e com recursos para proceder à identificação e localização dos investidores, no quadro do cumprimento das normas de funcionamento do mercado de valores mobiliários.

 

Sustenta que a contratação de serviços de intermediação financeira não constituiu um fim em si mesmo, mas uma operação acessória, que deve seguir o mesmo tratamento da operação principal, na jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de IVA. Assim, as comissões pagas pela Requerente são indissociáveis e necessárias à execução das operações de “reunião de capitais”, i.e., à oferta para a aquisição em dinheiro de obrigações e à venda de ações, devendo, portanto, ser consideradas, juntamente com essas operações, verdadeiras “operações globais”, no contexto do acórdão Air Berlin. Quanto à colocação da OPA, a intervenção do intermediário financeiro resulta, como acima dito, de um imperativo legal.

A Requerente pugna adicionalmente pela inconstitucionalidade da verba 17.3.4 da TGIS, por violação do princípio do primado do Direito da União Europeia, ínsito no artigo 8.º da Constituição, uma vez que a tributação daí derivada colide com a isenção prevista no artigo 5.º, n.º 2 da Diretiva de reunião de capitais, que tem efeito direto.

 

Sem conceder, caso persistam dúvidas ao Tribunal, a Requerente suscita a formulação de questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça, no sentido de aferir se as operações em causa nos autos devem ser consideradas como “operações globais” (casos Isabele Gielen, C-299/13 e Air Berlin, C-573/16) e se a expressão formalidades conexas (artigo 5.º, n.º 2, alínea b) da Diretiva 2008/7/CE) deve ser interpretada no sentido de abranger os serviços de intermediação financeira contratados acessoriamente às operações de (i) oferta para aquisição em dinheiro de obrigações; (ii) venda de ações; e (iii) lançamento de uma OPA. 

 

Posição da Requerida

 

            A Requerida começa por suscitar a exceção de intempestividade do pedido de revisão oficiosa, rejeitando a aplicabilidade do prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, por não se verificar o pressuposto de erro imputável aos serviços, com a consequente preclusão do direito de deduzir a ação arbitral, tendo também (à data) decorrido o prazo de reclamação administrativa de dois anos (v. artigo 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário – “CPPT”), com a inerente extemporaneidade da ação arbitral com fundamento no artigo 10.º do RJAT. A este respeito invoca a inimpugnabilidade dos atos tributários, na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (v. acórdão de 14 de outubro de 2020, proferido no processo n.º 0937/02.2BTLRS 0318/15).

 

            Na perspetiva da Requerida, estamos perante autoliquidações, não se identificando pedido de informação vinculativa da Requerente em situação idêntica à discutida nos presentes autos, pelo que a AT não teve qualquer intervenção na liquidação do Imposto do Selo. Realça que a jurisprudência dos Tribunais Superiores citada pela Requerente não tem paralelo na situação vertente, pois estão aí em causa liquidações praticadas pela AT e não atos de autoliquidação, como os que ora nos ocupam.

            Acrescenta que o facto de o pedido de revisão oficiosa ter sido rejeitado liminarmente por intempestividade, implica que estamos perante um ato administrativo em matéria tributária. Este, ao não apreciar ou discutir a legalidade do ato de liquidação, é insindicável através de impugnação judicial (v. artigo 97.º, n.º 1, alínea a) do CPPT), invocando a Requerida o que entende ser orientação jurisprudencial consolidada (v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 0194/09, de 25 de junho de 2009). A ação arbitral, ao consubstanciar um meio alternativo da impugnação, também não pode apreciar atos dessa tipologia, como resulta do artigo 2.º do RJAT, o que se traduz na inidoneidade do meio processual e na exceção de incompetência do Tribunal Arbitral, que determina a absolvição da Requerida da instância (v. artigos 278.º, 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (“CPC”), ex vi artigo 29, n.º 1, alínea e) do RJAT).

           

            A Requerida suscita ainda a incompetência do Tribunal Arbitral por considerar que este não pode apreciar os atos de autoliquidação sem que tenha existido prévio recurso à via administrativa, nos termos do artigo 131.º do CPPT.

 

             Sobre a nulidade dos atos tributários alegada pela Requerente por ocorrer violação do Direito da União Europeia, a Requerida entende que tal sanção é inaplicável, uma vez que a regra geral do direito administrativo é a da anulabilidade, sendo a nulidade uma forma de invalidade excecional. No caso, não se verifica a falta de qualquer dos elementos essenciais do ato, nem existe lei que expressamente preveja essa forma de invalidade (v. artigos 163.º, n.º 1 e 161.º, ambos do CPA e jurisprudência diversa do Supremo Tribunal Administrativo, a título de exemplo, os acórdãos nos processos n.ºs 01644/13, de 14 de maio de 2014, e 611/12, de 6 de junho de 2012).

 

            Em relação ao mérito, a Requerida propugna que as comissões de intermediação financeira cobradas à Requerente são sujeitas a Imposto do Selo nos termos do artigo 1.º, n.º 1 do Código respetivo e da verba 17.3.4 da TGIS e não estão abrangidas pela proibição de tributação indireta constante do artigo 5.º, n.º 2 da Diretiva 2008/7/CE, por não incidirem, na situação concreta, sobre “a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação …” de obrigações ou ações. Por outras palavras, não se estão a tributar as obrigações ou as ações propriamente ditas, seja pela sua criação/emissão (mercado primário), seja pela respetiva entrada/admissão à negociação em bolsa de valores (mercado secundário), mas tão-só a remuneração cobrada pela prestação de um serviço de intermediação financeira na transmissão daqueles valores junto de potenciais investidores, que não pode ser considerado uma “formalidade conexa”. 

 

            Defende a Requerida que tais serviços são livremente contratados no mercado e, sobretudo, estão conexos com a compra e venda de títulos (que já estavam em circulação no mercado secundário) e não com a sua emissão e/ou colocação no mercado de capitais. A expressão “formalidades conexas” reporta-se, em sua opinião, apenas às relativas às operações de reunião de capitais e não a outras operações, incluindo contratos eventualmente acessórios, mas juridicamente distintos da emissão. Refere ainda que a expressão “formalidades conexas” não está prevista de forma expressa no caso das ações e outras partes sociais, mas somente para os títulos representativos de dívida. Neste sentido, convoca as decisões arbitrais dos processos n.ºs 856/2019-T, de 22 de setembro de 2020, 2/2020-T, de 29 de março de 2021, 502/2020-T, de 4 de junho de 2021 e 559/2020-T, de 24 de junho de 2021.

 

            Por fim, a Requerida rejeita o paralelismo estabelecido pela Requerente com o IVA, no âmbito do qual as operações acessórias seguem o regime da operação principal, que não está previsto em Imposto do Selo e que significaria o recurso à analogia, legalmente vedada, de normas que consagram benefícios fiscais (v. artigos 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais e 11.º, n.º 4 da LGT).

 

             Deste modo, a Requerida conclui pela procedência das exceções dilatórias invocadas, ou, caso assim não se entenda, pela improcedência de todos os pedidos.

            * * *

Tendo sido suscitada pela Requerida matéria de exceção, quer relativa à inimpugnabilidade do ato por intempestividade do pedido de revisão oficiosa, quer à incompetência material do Tribunal Arbitral, cujo conhecimento tem caráter prioritário, procede-se à fixação da matéria de facto relevante, com vista à subsequente apreciação destas questões prévias.

 

 

  1. Fundamentação de Facto

 

  1. Factos Assentes

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

  1. A A..., S.A., aqui Requerente, é uma entidade que tem por objeto a promoção, dinamização e gestão, por forma direta ou indireta, de empreendimentos e atividades na área do sector energético, tanto a nível nacional como internacional, com vista ao incremento e aperfeiçoamento do desempenho do conjunto das sociedades do seu grupo, atividade a que corresponde o código CAE 70100 – Atividades das Sedes Sociais, não atuando no setor financeiro – cf. Documento 15.
  2. Entre os anos 2016 a 2018, a Requerente realizou as seguintes operações:
    1. Oferta para aquisição em dinheiro de obrigações;
    2. Venda de ações da B..., SGPS, S.A. («B...»); e
    3. Lançamento de uma OPA relativa às ações ordinárias representativas de 100% do capital social da sociedade C..., S.A.

– cf. Documentos 4, 7, 9, 11 e 15 conjugados com a prova testemunhal produzida (também provado por acordo).

  1. Em relação à oferta para aquisição em dinheiro de obrigações, visava a recompra, pela Requerente, aos respetivos detentores dos títulos, de obrigações emitidas pela D... BV, ao abrigo das emissões “6.000% NOTES DUE FEBRUARY 2, 2018”; “4.900% NOTES DUE OCTOBER 1, 2019”; “4.9% Notes due October 1, 2019” e “4,125% Notes due January 15, 2020”, denominadas em dólares norte-americanos – cf. Documentos 4 e 11 conjugados com a prova testemunhal produzida.
  2. Para a realização das operações descritas no ponto antecedente, a Requerente celebrou dois contratos de prestação de serviços de intermediação financeira – “Dealer Manager Agreement” – com instituições financeiras não residentes em Portugal: a E... LLC (“E…”) e o F... (“F...”) – cf. Documentos 4 e 11.
  3. As referidas instituições financeiras obrigaram-se a prestar, e prestaram, serviços de:
    1. Identificação e contacto com os titulares das obrigações para lhes transmitir a oferta de aquisição da Requerente;
    2. Prestação de esclarecimentos detalhados aos detentores das obrigações sobre a oferta de aquisição destes títulos;
    3. Assistência à Requerente na determinação do preço da oferta e suporte na decisão sobre extensão, reabertura, alteração ou encerramento da oferta.

– cf. Documentos 4 e 11 e prova testemunhal produzida.

  1. Estes serviços não estão ao alcance da generalidade das sociedades comerciais, requerendo a intervenção de instituições financeiras especializadas, que tenham presença mundial, tendo em conta que os títulos (obrigações) em causa estavam dispersos no mercado internacional, junto de múltiplos investidores institucionais e estrangeiros, não facilmente identificáveis pela Requerente, pois, apesar de as obrigações estarem cotadas em bolsa, as operações subsequentes à sua emissão são realizadas fora de bolsa (over-the-counter – “OTC”) e não existem obrigações de autoidentificação (disclosure) dos adquirentes – cf. prova testemunhal produzida.
  2. Operações desta natureza e dimensão são sempre realizadas com a intervenção dos intermediários financeiros especializados, com presença internacional, sendo, neste caso, o principal intermediário financeiro uma instituição financeira norte-americana (E...) uma vez que as emissões foram denominadas em dólares. Relativamente à liquidação das operações esta tem de ser, por imposição regulatória, obrigatoriamente feita por instituições de crédito – cf. prova testemunhal produzida.
  3. Pelos serviços de intermediação financeira adquiridos em relação à oferta para aquisição em dinheiro de obrigações foram cobradas à Requerente comissões de:
  1. USD 1.250.000,00 (valor indexado ao número de obrigações adquiridas, em percentagem de valor nominal destas), montante sobre o qual foi autoliquidado pela Requerente Imposto do Selo na importância de o valor de € 47.778,31, ao abrigo da verba 17.3.4 da TGIS – cf. Documentos 5, 6 e 2; e
  2. USD 1.250.000,00, montante sobre o qual foi autoliquidado pela Requerente Imposto do Selo de € 41.634,66, ao abrigo da verba 17.3.4 da TGIS – cf. Documentos 12, 13 e 2.
  1. A Requerente celebrou em junho de 2017, com a sociedade de direito espanhol G..., um contrato de colocação no mercado sem tomada firme ou garantia, para a prospeção de mercado com vista à identificação de um comprador para a parte ou a totalidade das ações representativas do capital social da B... de que era titular – cf. Documento 7.
  2. Por estes serviços a Requerente pagou à G... comissões calculadas sobre o preço de venda das ações, em função do sucesso da operação, em concreto, sobre a diferença entre o preço de colocação mínimo autorizado e o preço efetivamente praticado, na quantia de € 747.600,00, sobre a qual foi autoliquidado pela Requerente Imposto do Selo de € 29.904,00, ao abrigo da verba 17.3.4 da TGIS – cf. Documentos 7, 8 e 2.
  3. No âmbito da OPA relativa às ações ordinárias representativas de 100% do capital da C..., S.A., que decorreu entre 6 de julho e 3 de agosto de 2017, a Requerente contratou o H..., S.A. para ser o assessor financeiro da operação e, designadamente, financiar a Requerente para pagar a contrapartida devida pelas ações a adquirir – cf. Documento 9.
  4. Pelos serviços adquiridos em relação à OPA, a Requerente pagou ao Banco H..., S.A., além de juros pela disponibilização de fundos, uma comissão – “Upfront fee” – correspondente a 0,05% do valor do crédito disponibilizado, no montante de € 661.582,03, sobre o qual a Requerente autoliquidou Imposto do Selo de € 26,463,28, ao abrigo da verba 17.3.4 da TGIS – cf. Documentos 10 e 2.
  5. De acordo com o disposto no artigo 113.º do Código dos Valores Mobiliários (“CVM”), sob a epígrafe “Intermediação obrigatória”, na versão em vigor à data dos factos, as ofertas públicas relativas a valores mobiliários tinham de ser realizadas com a intervenção de um intermediário financeiro que assegurasse, pelo menos, os serviços de assistência a partir do anúncio preliminar e receção das declarações de aceitação dos adquirentes – cf. artigo 113.º do CVM.
  6. As autoliquidações de Imposto do Selo efetuadas pela Requerente em relação às operações atrás descritas encontram-se discriminadas no quadro abaixo, totalizando o valor de € 145.780,25, que foi por esta pago – cf. Documento 2:

Operação

N.º da Guia

 

Data de

Liquidação

Período

Imposto do

Selo (€)

Oferta para aquisição em dinheiro de obrigações

...

17 janeiro 2017

Dez/2016

47.778,31

Venda de ações

...

19 julho 2017

Jun/2017

29.904,00

OPA

...

18 agosto 2017

Jul/2017

26.463,28

Oferta para aquisição em dinheiro de obrigações

...

16 fevereiro 2018

Jan/2018

16.008.97

Oferta para aquisição em dinheiro de obrigações

...

17 julho 2018

Jun/2018

25.625,69

Total

 

 

 

145.780,25

 

  1. Em discordância das autoliquidações acima identificadas, por entender que as mesmas violam o disposto no artigo 5.º, n.º 2 da Diretiva 2008/7/CE, porquanto constituem formalidades conexas com operações que devem estar isentas de tributação indireta, na medida em que a imposição de tributação sobre tais operações limita o desenvolvimento económico e o acesso a meios financeiros necessários para a concentração de capitais, a Requerente apresentou, em 14 de janeiro de 2021, pedido de revisão oficiosa, requerendo a anulação das mesmas [autoliquidações de Imposto do Selo], ao abrigo do disposto no artigo 78.º, n.º 1, II parte da LGT, por “erro imputável aos serviços” – cf. Documento 3.
  2. Após notificação da proposta de decisão à Requerente, para efeitos de exercício do direito de audição, que esta optou por não exercer, a Requerida rejeitou liminarmente o pedido de revisão oficiosa por intempestividade, nos termos do despacho de 19 de julho de 2021, do Chefe de Divisão de Serviço Central, ao abrigo de subdelegação de competências, notificado por ofício da mesma data, com os fundamentos que infra se transcrevem na parte relevante – cf. Documento 1:

“ […]

IV.2. Do meio processual apresentado e Legitimidade

21.  O procedimento de revisão oficiosa constitui uma garantia dos contribuintes, consubstanciando-se num meio administrativo de correção de atos de liquidação ou autoliquidação de tributos, visando a anulação total ou parcial de um ato que já produziu efeitos na ordem jurídica, com fundamento em qualquer ilegalidade, erro imputável aos serviços, injustiça grave ou notória, ou duplicação de coleta, de acordo com o previsto no artigo 78.º da LGT.

22.  Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-07-2006, proferido no processo n.º 402/06, a revisão do ato tributário «constitui um meio administrativo de correcção de erros de actos de liquidação de tributos, que é admitido como complemento dos meios de impugnação administrativa e contenciosa desses actos, a deduzir nos prazos normais respectivos, que tem em vista possibilitar sanar injustiças de tributação tanto a favor do contribuinte como a favor da administração».

23.  É um meio procedimental de revisão do ato tributário que não pode ser considerado como um meio excecional para reagir contra as consequências de um ato de liquidação, mas sim como um meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados) ou complementar deles (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos meios impugnatórios do ato de liquidação).

24.  Ora, nos termos do art. 78º da LGT o «erro imputável aos serviços» concretiza qualquer ilegalidade, não imputável ao contribuinte mas à Administração, com ressalva do erro na autoliquidação que, para o efeito, é equiparado aos daquela primeira espécie - art. 78º, n.º 2 in fine, até à entrada em vigor da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (Lei do Orçamento de Estado de 2016-LOE de 2016).

25.  A redação do aludido artigo 78.º da LGT, foi alterada pela LOE de 2016, resultando na revogação do seu n.º 2, e em consequência, os erros na autoliquidação deixaram de fruir da ficção legal de imputabilidade aos serviços, e nessa medida, nada justifica tratamento diferente daquele que é conferido para a heteroliquidação.

26.  Tal supressão, configura uma eliminação de uma garantia, pois por força da sua revogação os contribuintes passaram a ter o ónus de comprovar a imputabilidade do erro que, pela lei antiga, legalmente se presumia atribuída aos serviços, o que in casu, se aplica aos atos tributários em análise, ocorridos na vigência da nova lei, que entrou em vigor a 31 de março de 2016.

27. Resulta assim do artigo 78º, nº 1 da LGT, que a revisão dos atos tributários pode operar por iniciativa do sujeito passivo ou da Administração Fiscal; no primeiro caso o pedido deve ser interposto no prazo de reclamação administrativa e o fundamento pode ser qualquer ilegalidade; no segundo caso o prazo para interposição do pedido é de 4 anos, e o fundamento tem de ser, necessariamente, o erro imputável aos serviços, resultando, expressamente, do nº 2 do artigo 78º da LGT, que se considera imputável aos serviços (presunção “iuris tantum”) o erro na autoliquidação.

28.  E, deste modo, os erros cometidos pelo sujeito passivo que procedam a uma autoliquidação são suscetíveis de serem revistos, nos mesmos termos em que o são as liquidações efetuadas pela AT, em que existiu erro imputável aos Serviços.

29.  Com tem vindo a ser unânime pela jurisprudência, nomeadamente pelo Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no âmbito do processo n.º 0476/12 de 12-09-2012, “I - O artº. 78º da LGT prevê a revisão do ato tributário «por iniciativa do sujeito passivo» ou «da administração tributária», aquela «no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade», e esta «no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços».”.

30.  Também o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito do processo n.º 1009/10, de 22-03-2011, I - A revisão do acto tributário «por iniciativa da administração tributária» pode efectuar-se «a pedido do contribuinte» como resulta do art. 78.º, n.º 7 da LGT e 86º, n.º 4, alínea a) do CPPT, bem como dos princípios da legalidade, justiça, igualdade e imparcialidade - art. 266º, nº 2 da CRP. II - O «erro imputável aos serviços» constante do art. 78º, nº 1 in fine da LGT compreende o erro de direito cometido pelos mesmos que não apenas o simples lapso, erro material ou de facto, como aliás esclarece o n.º 3 do artigo 78.º da LGT, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 55-B/04, de 30 de Dezembro (cfr. CASALTA NABAIS, A Revisão dos Actos Tributários, in Por um Estado Fiscal Suportável: Estudos de Direito Fiscal, Volume III, Coimbra, Almedina, 2010, p, 236).”

31.  Como tal, veio o Requerente, deduzir a presente revisão oficiosa da liquidação de Imposto do Selo, uma vez que a revisão do ato tributário por iniciativa da administração tributária pode ser efetuada a pedido do contribuinte, como resulta do artigo 78.º da LGT, no prazo de quatro anos contados da liquidação (ou, no caso o tributo não ter sido pago, a todo o tempo), ficando com isso investido de um direito a uma decisão sobre o pedido formulado.

32.  Sendo que, o “erro imputável aos serviços” a que alude o artigo 78.º nº 1, in fine, da LGT compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, e essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afectada pelo erro, conforme defendido pelo acórdão do STA, proferido no processo n.º 1007/11, de 14-03-2012.

33.  Como se escreveu no Acórdão de 28/11/2007, Proc. 0532/07, “Esta possibilidade de a revisão «oficiosa», que deve ser da iniciativa da administração tributária, ser suscitada por um pedido do contribuinte veio a ser confirmada pela alínea a) do nº 4 do artº 86º do CPPT, que refere a apresentação de «pedido de revisão oficiosa da liquidação do tributo, com fundamento em erro imputável aos serviços». É assim, inequívoco que se admite, a par da denominada revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte (dentro do prazo de reclamação), que se faça, também na sequência de pedido seu, a «revisão oficiosa» (que a Administração deve realizar por sua iniciativa). Por outro lado, a alínea d) do nº 2 do artº 95º da L. G. T. refere os actos de indeferimento de pedidos de revisão entre os actos potencialmente lesivos, que são susceptíveis de serem impugnados contenciosamente. Não se faz, aqui qualquer distinção entre actos de indeferimento praticados na sequência de pedido do contribuinte efectuado no prazo da reclamação administrativa ou para além dele, pelo que a impugnabilidade contenciosa a actos de indeferimento de pedidos de revisão praticados em qualquer das situações, o que, aliás, é corolário do princípio constitucional da impugnabilidade contenciosa de todos os actos que lesem direitos ou interesses legítimos dos administrados (artº 268º, nº 4, da C.R.P.”).

34.  Como tal, é hoje doutrinal e jurisprudencialmente pacífico o entendimento segundo o qual, existindo um erro de direito numa liquidação efetuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266º da Constituição como o artigo 55º da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária atuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração.

35.  Em suma, a revisão do ato tributário por «iniciativa da administração tributária» pode ser efetuada «a pedido do contribuinte», como resulta do artigo 78.º, n.º 7 da LGT e do artigo 86.º, n.º 4, alínea a), do CPPT, bem como dos princípios da legalidade, justiça, igualdade e imparcialidade - art. 266º , nº 2 da CRP. E o «erro imputável aos serviços» constante do artigo 78.º, nº 1, in fine, da LGT compreende o erro de direito e não apenas o lapso, erro material ou erro de facto, como aliás veio esclarecer o n.º 3 do artigo 78.º da LGT.

36.  E uma vez que, a questão objeto da presente revisão prende-se com a aplicação de Imposto do Selo da verba 17.3.4 da TGIS, atinente ao período de Dezembro de 2016, Junho e Julho de 2017 e Janeiro e Junho de 2018, e consequentemente, ao pedido de pronúncia de anulação da liquidação de IS submetidas a 17.01.2017, 19.07.2017, 18.08.2017, 16.02.2018 e 17.07.2018, e respetiva restituição, pela AT, do montante de IS indevidamente suportado pelo Requerente, considera-se como admissível a dedução de revisão oficiosa, como meio de reação, nos termos do artigo 78.º da LGT.

37. Quanto à legitimidade, o Requerente, enquanto titular do encargo do imposto e sujeito passivo de imposto, tem legitimidade no presente procedimento tributário, nomeadamente, nos termos do art.º 3º do Código do Imposto do Selo (CIS) e ao abrigo do disposto nos art.os 18.º e 65.º da LGT e art.º 9.º n.º 1 do CPPT.

IV.3. Da Tempestividade

38. O Requerente apresentou a revisão oficiosa, em 14.01.2021 (cfr. fl 2 dos autos), nesta Unidade, e dado que os atos tributários de Imposto do Selo, referentes à verba 17.3.4 da TGIS, ora contestados, foram emitidos em 17.01.2017, 19.07.2017, 18.08.2017, 16.02.2018 e 17.07.2018, verifica-se que o pedido é intempestivo, atendendo a que se refere a ato tributário de liquidação de IS, praticado a partir (inclusive) do dia 31 de março de 2016, a situação não preenche os pressupostos contidos na 2.ª parte e 1.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT .

39.  Nem preenche os pressupostos do n.º 4 e 5 do art.º 78.º da LGT, ao qual consagra que o «dirigente máximo do serviço pode autorizar, excecionalmente, nos três anos posteriores ao do ato tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.»

40.  Ao abrigo deste regime o dirigente máximo serviço, pode autorizar, no prazo previsto de 3 anos, a contar da liquidação, a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, conceito que é densificado no número seguinte (n.º5) do 78.º da LGT, onde se consagra que «apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional.»

41.  Desde já, somos a verificar que subsistem razões a ponto de provocar a rejeição liminar da apreciação do mérito do pedido de revisão ora formulado pela Requerente, atentas as normas legais em vigor.

42.  A situação em apreço não comporta qualquer “erro imputável aos serviços” e, como tal, neste sentido, o pedido de revisão oficiosa deve ser formulado no respetivo prazo de reclamação administrativa, à luz do preceituado na primeira parte do n.º 1 do art.º 78.º da LGT, ademais quando, consabido, o n.º 2 do art.º 78.º da LGT se encontra revogado.

43.  Outrossim, na hipótese de se considerar o presente pedido de revisão oficiosa tempestivo, estaríamos não menos do que a proceder a uma errónea interpretação do regime legal da revisão oficiosa dos atos tributários previsto no art.º 78º da LGT, sob pena de subverter a letra e o espírito desta norma legal, e, bem como, os prazos fixados pelo legislador fiscal para efeitos de reclamação graciosa e de impugnação, indo muito para além daquilo que o princípio do acesso à justiça e o princípio da tutela jurisdicional pretendem, afinal, zelar.

       Senão vejamos,

44.  A existência de limites temporais cumpre a função de conferir segurança às relações jurídico-tributárias, consubstanciadas nos atos praticados pelas partes intervenientes, sob pena de nunca se vislumbrar um fim certo e definitivo para as situações em causa especialmente quando o tributo já foi pago.

45.  Esse é um corolário do princípio da segurança jurídica, corporizado na estabilidade dos atos de liquidação de tributos, pois a possibilidade de utilização do regime da revisão oficiosa do ato tributário como meio de impugnação indireta de atos de liquidação já há muito estabilizados tem como consequência a total supressão dos prazos de impugnação e reclamação para todos os atos da Administração Tributária praticados em violação de lei, mormente naqueles casos em que o tributo não tenha sido pago, em que a revisão se pode fazer a todo o tempo.

       E,

46.  De modo algum está em causa a limitação ou até o impedimento do exercício de garantias dos contribuintes, o que, consabido, seria mais que manifestamente inconstitucional, mormente face ao consagrado nos art.ºs 20.º, 266.º e 268.º, todos da nossa Lei Fundamental.

       Aliás,

47.  Pelo contrário, os meios para reagir continuam disponíveis para os próprios interessados, sem prejuízo da menção de que aqueles devem é, no entanto, ser exercidos dentro dos prazos legais o que, na verdade, não sucede no caso em apreço uma vez que se esgotou o prazo de uso do meio idóneo para reagir contra um ato de “autoliquidação” nos termos e com os fundamentos alegados pela Contribuinte, aqui Requerente, uma vez que a guia de autoliquidação mais recente ocorreu em 01 de novembro de 2017, já haviam decorrido mais de dois anos para apresentar a Reclamação Administrativa.

       Portanto,

48.  É nosso entender que, face à situação subjuditio, não tem acolhimento legal a invocação do mecanismo previsto no atual art.º 78.º da LGT, não preenchendo qualquer dos seus pressupostos.

49.  Pelo que, no caso em apreço, o requerimento no qual se consubstancia o presente pedido revisão oficiosa do ato tributário é, com efeito, intempestivo, dado ter sido apresentado em 14.01.2021 (fls. 2 dos autos) em consonância com o estabelecido no mencionado art.º 78.º da LGT vigente.

50.  E considerando o início da contagem dos prazos legais, a data da Guia de autoliquidação do imposto do selo, forçosamente se terá de trazer à colação a intempestividade do presente pedido, visto que:

  • O pedido sob exame comporta igualmente uma questão de direito e não um mero erro material, a qual, nos termos por nós dirimidos, não cabe, para efeitos da norma, no conceito de “erro imputável ao serviço”, ademais quando estamos diante de uma “autoliquidação”;
  • O n.º 1 do art.º 78.º da LGT prevê que o pedido de revisão oficiosa seja efetuada por iniciativa do contribuinte respeitando, claro está, o prazo de interposição de reclamação administrativa de um ato de liquidação - i.e. a reclamação graciosa;
  • O prazo de reclamação administrativa, no caso de “autoliquidação”, fixa-se, in casu, consabido, no limite temporal em 2 (dois) anos, por remissão para o n.º 1 do art.º 131.º do CPPT, ex vi do art.º 49º nº 1 do CIS;
  • O prazo de revisão oficiosa por iniciativa da administração tributária tem de ser igualmente condicionado ao decurso ou não do prazo de caducidade, visto que, antes de mais, o dies ad quo do pedido de revisão corresponde ao momento da prática do ato de liquidação e não ao da verificação do facto tributário; e
  • Por último, isto não se esquecendo que as razões que, por sua vez, sublinhando esta nossa posição, subjazem ao disposto no n.º 3 do já mencionado art.º 131 do CPPT, ao admitir a impugnabilidade direta nos casos de “autoliquidação” por referência a fundamentos exclusivamente de direito.

51.  Aqui chegados, a nossa conclusão não pode ser outra que não aquela que comporte a rejeição liminar do pedido de revisão ora formulado nos autos pela Contribuinte, ora Requerente, uma vez que o pedido se encontra insindicável por se encontrar esgotado o prazo vertido no art. 78.º da LGT para o efeito.

[…]

V. SEM PREJUÍZO, DA ANÁLISE DA MATÉRIA DE FACTO E DO PEDIDO

[…]

VI.  DO DIREITO

[…]

67. Ademais, e sem colocar em causa a aplicação direta do regime legal das Diretivas Comunitárias, na ordem interna jurídica, tendo o TJUE sucessivamente vincado o “primado do direito comunitário” (cf., entre outros, o Acórdão “Costa contra Enel”, de 15 de julho de 1964, Proc. 6/849), não é possível retirar da predita Diretiva da Reunião de Capitais, mormente o disposto no art.º 5 n.º 2, alíneas a) e b) da mesma, a não sujeição de imposto de selo das comissões em análise, pela verba 17.3.4 da TGIS.

68.  Na verdade, está em causa uma norma de incidência de imposto, cujo caráter definidor tem de ser certo, objetivo e estar “desenhado na lei de forma suficientemente determinada”, sendo que na letra da referida diretiva, não se encontra prevista a não sujeição de tributação das comissões por serviços financeiros de colocação de valores imobiliários.

69.  Necessário será distinguir entre “as formalidades conexas (...) admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis” previstas na Diretiva de Reunião de Capitais, e a as operações financeiras que “gravitam” em redor dessas mesmas operações financeiras.

70.  Operações essas, como é o caso das aludidas comissões liquidadas no âmbito das operações de oferta para aquisição em dinheiro de obrigações e colocação e subscrição de novas obrigações e acções emitidas pela Requerente, que de resto preenchem o requisito de incidência de natureza objetiva que permite o enquadramento das comissões na sub-verba 17.3.4, porquanto cabem na categoria “outras comissões e contraprestações por serviços financeiros”, não estando abrangidas por nenhuma isenção.

71.  A ora Requerente alega a incompatibilidade da incidência de IS sobre as comissões, com o direito europeu, designadamente com a Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008.

72.  Esta Diretiva, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais, visa eliminar fatores suscetíveis de distorção de concorrência ou obstar à livre circulação de capitais. No preâmbulo deste instrumento comunitário, esclarece-se que “[n]ão deverão ser aplicados impostos indiretos às reuniões de capitais, exceto o imposto sobre as entradas de capital. Em especial, não deve ser aplicado imposto de selo sobre os títulos, quer estes sejam representativos de capitais próprios das sociedades quer de capitais de empréstimo, e qualquer que seja a sua proveniência”.

73.  Na Diretiva ora em análise, a al. a) e b) do n.º 2 do art.º 5.º estipula que os Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto: “Entradas de capital” e “Os empréstimos, incluindo os estatais, contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, independentemente de quem os emitiu, e todas as formalidades conexas, bem como a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação dessas obrigações ou de outros títulos negociáveis.”, respetivamente.

74.  Por sua vez, a al. a) do n.º 1 do art.º 6.º da Diretiva vem derrogar parcialmente o esta[be]lecido no número anterior, uma vez que, “permite aos os Estados-Membros a cobrança dos seguintes impostos e direitos:

  1. Impostos sobre a transmissão de valores mobiliários, cobrados forfetariamente ou não;
  2. Direitos de transmissão, incluindo os encargos de registo de propriedade que incidem sobre a entrada, numa sociedade de capitais, de bens imóveis ou de estabelecimentos comerciais sitos no respetivo território;
  3. Direitos de transmissão sobre ativos de qualquer natureza que constituam entradas de capital numa sociedade de capitais, na medida em que a transmissão dos referidos ativos não seja remunerada através de partes sociais;”

78.  In verbis, caso o legislador comunitário quisesse de facto não sujeitar, a tributação em sede de imposto de selo dos encargos decorrentes dos contratos de emissão de obrigações e papel comercial cobradas pelas instituições de crédito, enquanto intermediários financeiros, bastaria que tivesse feito essa menção nas al. a) e b) do n.º 2 do art.º 5.º da Diretiva 2008/7/CE, e não o fez.

79.  Entende a ora Requerente que não existe no direito interno, norma de incidência em sede de IS, sobre os encargos decorrentes das comissões por serviços financeiros, porquanto o legislador nacional estaria ciente que uma eventual norma dessa natureza e com esse conteúdo traduziria uma violação do Direito da União Europeia em vigor, mais concretamente da Diretiva 2008/7/CE.

80.  Mais entende, que estando assente a não sujeição a imposto de selo das ditas operações financeiras, o texto do art.º 5, n.º 2 alínea b) da Diretiva 2008/7/CE, incorpora a proibição de sujeição a imposto de selo dos encargos decorrentes dos contratos de emissão de obrigações e de papel comercial, máxime, as comissões cobradas pelos bancos na vigência dos referidos contratos, por revestirem a natureza de “formalidades conexas” com estes mesmos contratos.

81.  Pelo que conclui, que estes encargos devem ser equiparados à noção de formalidades conexas, previstas no art.º 5.º n.º 2 alíneas a) e b) da Diretiva 2008/7/CE. Mais invocou neste mesmo sentido, um acórdão do TJUE, mormente o acórdão de 19-10-2017, processo C-573/16 “Air Berlin”.

82.  Se no que concerne ao assunto vertente, é meridianamente claro, quer pela doutrina e pela jurisprudência, que a emissão das obrigações e bem assim, de papel comercial, não está sujeita a IS, na medida em que a verba 17.1. da TGIS não tributa tais operações.

83.  Tal realidade de resto, decorre da já referida Diretiva 2008/7/CE, através da qual, o legislador europeu pretendeu, de forma clara e inequívoca, colocar em pé de igualdade todos os operadores que decorram a mercados primários para a obtenção de financiamento. Tal resulta entre outros, do segundo e terceiro considerandos da predita Diretiva, que explicitam esse mesmo desiderato.

84.  In rectius, a Diretiva dispõe que os Estados- Membros não possam tributar através de impostos indiretos, nomeadamente em sede de imposto de selo, inter alia operações de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis.

85.  No seguimento, a referida Diretiva não identifica os sujeitos passivos que estão abrangidos por essa exigência de não incidência de tributação indireta, nem podia ser dessa forma.

86.  Na verdade, determina a Diretiva 2008/7/CE, que os Estados-membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto, entre outras, a emissão de papel comercial (independentemente de quem os emitiu).

87.  Consabido é que a emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis, como papel comercial, pode ser realizada por diversas entidades. Note-se que em Portugal, a possibilidade de uma sociedade comercial proceder á emissão de obrigações, encontra-se prevista no quadro do art.º 348.º do Cód. Sociedades Comerciais, sendo a emissão de papel comercial disciplinada pelo Decreto-Lei n.º 29/2014 de 25 de fevereiro.

88.  Face ao exposto, a sociedade comercial, ora Requerente, não se encontrava impedida por si só, de proceder diretamente à emissão de ofertas para aquisição em dinheiro de obrigações, novas obrigações e acções, beneficiando nesse caso, de forma inequívoca da não tributação em sede de imposto de selo.

89.  Reitera-se que tal resulta de forma clara (sendo a única sujeição com interesse para o caso sub judice que se pode efetivamente retirar) do disposto no art.º 5 n.º 2 da Diretiva em questão, quando determina que os Estados- Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto os empréstimos contraídos sob a forma de emissão das obrigações ou outros títulos negociáveis “independentemente de quem os emitiu (…)”.

90.  Caso a Requerente tivesse optado por proceder diretamente à emissão de obrigações, beneficiaria da não sujeição de IS, não apenas sobre a emissão, strictu sensu, mas igualmente sobre as formalidades conexas como, verbi gratia, o registo da emissão no livro de registo, o registo dos titulares das obrigações, eventuais autentificações de atas sociais, registos comerciais e publicações da deliberação de emissão pela sociedade.

91.  É justamente a parte final do art.º 5.º n.º 2 da Diretiva 2008/7/CE que corrobora, este entendimento, quando se referes à admissão à cotação em bolsa da emissão ou à colocação em circulação da emissão no mercado primário ou secundário, por exemplo através da colocação junto do publico.

92.  No caso sub judice, a ora Requerente através das instituições financeiras referidas, procedeu a operações de oferta para aquisição em dinheiro de obrigações e venda de acções, não estando obrigada a recorrer a esses serviços de intermediação.

93.  Em Portugal, a possibilidade de uma sociedade comercial proceder à emissão de obrigações encontra-se prevista no quadro do artigo 348.º do Código das Sociedades Comerciais, sendo a emissão de papel comercial disciplinada pelo Decreto-Lei n.º 69/2004, de 25 de março - que regula a disciplina aplicável aos valores mobiliários de natureza monetária designados por papel comercial - na versão resultante do Decreto-Lei n.º 29/2014, de 25 de fevereiro.

94.  O enquadramento fiscal do papel comercial, em sede de IRS e IRC, encontra-se previsto Regime Especial de Tributação dos Rendimentos de Valores Mobiliários, publicado pelo Decreto-Lei n.º 193/2005, de 7 de novembro e alterado pela Lei n.º 83/2013, de 9 de dezembro.

95.  Pelo que se conclui ser legítimo, a qualquer sociedade comercial, recorrer à emissão de obrigações ou papel comercial como forma de financiamento, não estando estas operações sujeitas a imposto de selo, como resulta - de forma clara e inequívoca, reitere-se - quer da Diretiva, quer do CIS e respetiva TGIS.

96.  Em sentido idêntico, pronunciou-se o CAAD, na decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 856/2019-T, que remete para o TJUE, concretamente o acórdão “Air Berlin” (processo C-573/16). Atente-se, a este propósito, na seguinte conclusão então proferida: “o artigo 5.º, n.º 1, alínea c), da Diretiva 2008/7 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à tributação de uma operação de transmissão de ações como a que está em causa no processo principal, através da qual a titularidade das novas ações emitidas por ocasião de um aumento de capital foi transmitida a um serviço de compensação com o único objetivo de propor a venda dessas novas ações.”

97.  Contudo, verifica-se que, nos presentes autos, a factualidade subjacente é ligeiramente distinta da que se resulta da aplicação da Directiva 2008/7/CE ou do acórdão “Air Berlin”.

98.  No caso concreto, a Requerente solicitou os serviços de intermediação financeira de instituições de crédito, não procedendo diretamente à emissão de obrigações ou títulos – apesar do Código das Sociedades o permitir – não podendo por isso considerar-se os encargos decorrentes de tais serviços de intermediação, maxime as comissões cobradas pelos Bancos contratados, estarem abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/7/CE.

99.  A ser como é, não se poderá por isso considerar-se, que os encargos decorrentes dos contratos de emissão de obrigações e de papel comercial, máxime as comissões liquidadas, se encontram abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/7/CE, uma vez que a ora Requerente poderia deles ter prescindido.

100. Aliás, na Diretiva proíbe-se a sujeição, a qualquer forma de imposto indireto, dos empréstimos contraídos sob a forma de emissão de obrigações ou outros títulos negociáveis independentemente d quem os emitiu. Por outro lado, os encargos decorrentes dos contratos de emissão de obrigações e de papel comercial, maxime as comissões cobradas pelos bancos, são tributados em sede de IS, verba 17.3.4 da TGIS.

101. Pelo que se conclui, que as comissões em análise, preenchem cumulativamente os elementos de natureza objetiva e subjetiva previstos na Verba 17.3.4 da TGIS, e, em conformidade, estão sujeitas a imposto do selo por força do disposto no nº 1 do artigo 1º do CIS.

102. Neste conspecto, cabe a liquidação, cobrança e entrega do imposto apurado nos cofres do Estado à ora Requerente, na qualidade de sujeito passivo, de acordo com o disposto no art.º 2º do CIS, sendo encargo das instituições financeiras referidas, enquanto titulares do interesse económico.

103. Porém, tanto o IS suportado nas comissões devidas a instituições de crédito não residentes pelos serviços de intermediação relativos a operações de oferta para a aquisição em dinheiro de obrigações e venda de acções, bem como para o lançamento de uma OPA de acções, se encontram-se insindicáveis por se encontrar esgotado o prazo vertido no art. 78.º da LGT para o efeito.

104. Face ao exposto, verificada a falta do pressuposto processual da tempestividade do pedido, propõe-se a sua rejeição liminar por intempestividade, e consequente arquivamento do mesmo.

VII. DO EXERCÍCIO DO DIREITO DE AUDICÃO

105. Analisado o mérito do peticionado, procedeu-se à elaboração do “Projeto de Decisão” junto dos autos, consubstanciado na nossa anterior Informação n.º ...-ISCP1/2021, disso se notificando o Contribuinte, ora Requerente, para, exercer, querendo o seu direito de participação, na modalidade de audição prévia, sob a forma escrita, nos termos e efeitos do preceituado na alínea b) do n.º 1 e dos nºs 4 a 6 todos do artigo 60.º da LGT, por sua vez conjugado com o preceituado no artigo 100.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA).

[…]”

  1. A Requerente deduziu reclamação graciosa de atos de autoliquidação de Imposto do Selo relativos a operações análogas às dos presentes autos, ocorridas entre janeiro de 2019 e setembro de 2020, sobre a qual recaiu despacho de indeferimento da AT, por considerar que os encargos cobrados pelos Bancos relativamente às mesmas se enquadram na verba 17.3.4 da TGIS e não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/7/CE – cf. Documento 15.
  2. Mantendo a discordância em relação aos atos tributários impugnados de autoliquidação de Imposto do Selo e à decisão de rejeição do pedido de revisão oficiosa que os manteve inalterados, a Requerente apresentou no CAAD, em 19 de outubro de 2021, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral na origem da presente ação – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.

           

            2.         Motivação da Decisão da Matéria de Facto

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se essencialmente na análise crítica da prova documental junta aos autos. Foram também tidos em conta os depoimentos das duas testemunhas indicadas pela Requerente, I..., que à data dos factos era Diretora Financeira da Requerente, competindo ao seu departamento a gestão do financiamento do Grupo J..., e K..., funcionário e representante do F... em Portugal para a área de banca de investimento, e que acompanha pessoalmente as operações da J... . As testemunhas foram questionadas especificamente sobre as operações de recompra de obrigações, tendo revelado conhecimento direto e objetivo das mesmas e da forma como se processaram.

 

Ambos os depoimentos foram consonantes em relação à dimensão considerável das operações, sendo as emissões, cada uma no mínimo de 500 milhões de euros/dólares, destinadas a investidores institucionais (cerca de 100 a 300 investidores por emissão), estando todas as obrigações listadas na Euronext Dublin. As transmissões subsequentes dos títulos ocorrem em mercado secundário e potenciam o incremento do número de investidores que detêm os títulos das emissões obrigacionistas.

 

Ficou claro que nestas operações de recompra a intervenção de intermediários financeiros é fundamental para definir e implementar a estratégia de maximização e aproximação aos mercados. São esses intermediários que sabem como contactar os investidores, quais os melhores canais, o melhor “timing”, a proposta financeira adequada (que títulos incluir na oferta - critério de prioridade, e a que preço) e, em consequência, conduzir ao sucesso da operação. Estes intermediários financeiros detêm o conhecimento especializado dos mercados em que operam, permitindo aferir da apetência dos investidores para vender e respetivas condições, bem como identificar e contactar os ditos investidores, podendo ter ocorrido alterações significativas nos titulares desde a data da emissão, tudo informações que não são facilmente acessíveis à Requerente. Os intermediários estabelecidos nas diversas praças financeiras encontram os investidores, contactam-nos, indagam da sua disponibilidade para a oferta da Requerente. Para este efeito é necessária a colaboração de uma equipa transversal a diversas áreas da instituição financeira intermediária, podendo envolver aproximadamente 200 pessoas distribuídas por distintas geografias. Pode haver mais do que uma instituição financeira a intervir. As testemunhas manifestaram não ter conhecimento de operações desta natureza sem a intervenção de intermediários financeiros.

 

Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

            3.         Factos não Provados

 

Não se provou que em relação à operação de venda de ações da B... teria sido impossível à Requerente encontrar, apenas com os seus próprios recursos e conhecimentos, um comprador disposto a pagar o melhor preço pelas ações em causa (artigo 176.º do ppa e artigo 195.º do ppa na parte em que se aplica a esta operação), não tendo sido produzida prova sobre esta matéria.

 

Com relevo para a decisão não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

 

  1. Pressupostos Processuais

 

  1. Sobre a Incompetência Material

 

A competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que, independentemente da ordem de arguição das questões prévias, impõe-se a apreciação daquela previamente à verificação dos demais pressupostos processuais, conforme resulta do cotejo dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Importa, para este efeito, ter presente o âmbito de competência dos tribunais arbitrais, que é delimitado pelo disposto no artigo 2.º do RJAT e pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, compreendendo, exclusivamente, a apreciação das pretensões relacionadas com a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamento por conta, de atos de fixação da matéria tributável que não deem origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais. Este recorte da jurisdição arbitral em razão da matéria corresponde, de um modo geral, às pretensões que são sindicáveis nos Tribunais Tributários por via da impugnação judicial, conforme resulta do disposto no artigo 97.º, n.º 1 do CPPT.

 

Acrescenta o artigo 4.º do RJAT que a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de Portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça. E aqueles serviços e organismos vincularam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais nos casos que tenham por objeto a apreciação das referidas pretensões, de valor não superior a € 10.000.000,00, relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida[1], o que abrange de forma inequívoca o Imposto do Selo.

 

Neste âmbito, a Requerida invoca duas razões para suscitar a incompetência deste Tribunal.

 

A primeira prende-se com o facto de o pedido de revisão oficiosa ter sido rejeitado liminarmente por intempestividade, o que, a seu ver, implica que a decisão que recaiu sobre o mesmo não tenha apreciado a legalidade dos atos de liquidação, e, em consequência, que tais atos não sejam sindicáveis por via de impugnação judicial e, portanto, também pela sucedânea ação arbitral.

 

Contudo, como bem assinala a Requerente, a Requerida, na apreciação do pedido de revisão oficiosa, não endereçou apenas a questão da tempestividade, tendo-se pronunciado também sobre o mérito, embora acabe por concluir pela rejeição liminar com base naquele fundamento. Acresce que, para concluir pela extemporaneidade do pedido, teve de aferir a existência do pressuposto de “erro imputável aos serviços” o que, em rigor, encerra a análise de argumentos pertinentes ao fundo da causa e, desta forma, à ilegalidade dos atos.

 

Porém, mesmo que assim não se entendesse, a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Administrativo  pronuncia-se no sentido, que se acompanha, de que, sendo o pedido do contribuinte dirigido à anulação por ilegalidade do ato tributário, está em causa a apreciação dessa mesma ilegalidade, qualquer que seja a razão ou o vício que conduziram à rejeição ou indeferimento dessa pretensão, como se retira do seguinte excerto do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de janeiro de 2021, no processo n.º 0129/18.9BEAVR:

“A impugnação judicial é o meio processual adequado para discutir a legalidade do ato de liquidação – artigo 99.º do CPPT - independentemente de ter sido ou não precedida de meio gracioso e, no caso de assim ter acontecido, independentemente do teor da decisão que sobre ele recaiu, ou seja, de ser uma decisão formal ou de mérito – acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18/11/2020, proferido no processo 0608/13.4BEALM 0245/18. E visa a anulação total ou parcial do ato tributário (a liquidação).

Ao invés, a ação administrativa, meio contencioso comum à jurisdição administrativa e tributária, será o meio processual a usar quando a pretensão do interessado não implique a apreciação da legalidade do ato de liquidação.

Assim, se na sequência do indeferimento do meio gracioso, o interessado pedir ao tribunal que aprecie a legalidade da liquidação e que, em consequência, a anule (total ou parcialmente), o meio processual adequado é a impugnação judicial, ainda que esse conhecimento tenha de ser precedido da apreciação dos vícios imputados àquela decisão administrativa.

Daí que se tenha vindo a afirmar que nestas situações, em que o meio gracioso precede o contencioso, a impugnação judicial tem um objeto imediato (a decisão administrativa) e um mediato (a legalidade da liquidação).

[…]

Importa dizer que sobre esta matéria a posição deste Tribunal tem também sido uniforme no sentido de adotar, na interpretação do pedido formulado, um critério flexível com vista a alcançar uma justiça efetiva e não meramente formal, pois só assim é garantida uma tutela jurisdicional efetiva.”

 

Deste modo, o facto de a AT ter considerado intempestivo o pedido de revisão oficiosa não impede ou compromete a apreciação do objeto mediato da presente ação, identificado no petitório pela Requerente, a saber: a ilegalidade e consequente anulação dos cinco atos tributários de (auto)liquidação de Imposto do Selo supra identificados.

 

Tendo a Requerente erigido em pedido principal a declaração de ilegalidade dos atos de (auto)liquidação de Imposto do Selo, de acordo com a jurisprudência citada é indiferente o teor – formal ou material – da decisão dos atos administrativos (em matéria tributária) de segundo (ou de terceiro) grau. Se é pedida pronúncia sobre a legalidade do ato de liquidação estamos no domínio do meio processual da impugnação judicial, e, portanto, por identidade de razões, da ação arbitral, cujo objeto também é a apreciação da legalidade do ato tributário – v., sobre questão análoga, a decisão no processo arbitral n.º 832/202-T, de 15 de setembro de 2022.

 

Na situação vertente, não se questiona que a pretensão deduzida pela Requerente seja enquadrável no âmbito da apreciação da (i)legalidade de atos de liquidação de tributos, pois é expressamente peticionada a ilegalidade e anulação das (auto)liquidações de Imposto do Selo impugnadas. Assim, esta pretensão tem cabimento na ação arbitral, equivalente à impugnação judicial, ainda que, como declarado pelo Supremo Tribunal Administrativo, o seu conhecimento tenha de ser precedido da apreciação dos vícios imputados àquela decisão administrativa (vícios que não respeitam ao ato de liquidação propriamente dito).

 

Em síntese, tendo em conta que:

  1. A ação arbitral foi conformada pelo legislador como um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial, como ressalta dos artigos 2.º e 10.º do RJAT e do artigo 124.º, n.º 2 da Lei n.º 3‐B/2010, de 28 de abril (Lei do Orçamento do Estado para 2011), que consagrou uma autorização legislativa ao Governo para a introdução da arbitragem tributária;
  2. A Requerida se vinculou à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida pelo artigo 2.º do RJAT, nos termos do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, previsão que abrange o Imposto do Selo; e que
  3. O objeto da ação é a apreciação da legalidade de atos de autoliquidação de Imposto do Selo,

 

estamos perante tarefa que cabe a este Tribunal Arbitral.

 

O segundo fundamento de incompetência respeita à alegação de não ter existido prévio recurso à via administrativa, exigida como condição de impugnabilidade contenciosa dos atos de autoliquidação, nos termos do artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e da remissão por esta operada para o artigo 131.º do CPPT, que dispõe que a “impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa”.

 

Tal alegação é, todavia, improcedente, pois o pedido de revisão oficiosa constitui um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa, tendo sido apresentado previamente à propositura da ação arbitral.

 

É verdade que o artigo 131.º do CPPT, para o qual a Portaria n.º 112-A/2011 remete, faz referência à reclamação graciosa, mas não à revisão oficiosa dos atos tributários. Não obstante, deve ser entendido como abrangendo, além da reclamação, a via da revisão dos atos tributários aberta pelo artigo 78.º da LGT, pois a finalidade visada pela norma é a de garantir que a autoliquidação seja objeto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro “litígio”. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar sobre o erro na autoliquidação do contribuinte e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo contencioso.

 

O legislador tributário consagrou a via administrativa como condição necessária e prévia do recurso à via jurisdicional, porquanto os atos de autoliquidação (assim como os atos de retenção na fonte e de pagamento por conta) decorrem da iniciativa do contribuinte, sem que a administração tributária tenha tido qualquer intervenção, ou seja, são atos em relação aos quais a administração tributária ainda não tomou posição, razão pela qual se justifica a obrigatoriedade de recurso à via administrativa prévia, como se infere dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de setembro de 2012, processo n.º 476/12, e de 12 de julho de 2006, processo n.º 402/06.

 

Não se alcança que deva ser outro o propósito da norma de remissão da Portaria de Vinculação que indica expressamente as pretensões “que não tenham sido precedid[a]s de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, ou seja, referindo-se com clareza a um procedimento administrativo prévio e não, em exclusivo, à reclamação graciosa. Por outro lado, seria incoerente e antissistemático que os artigos 131.º a 133.º do CPPT revestissem distintos significados consoante estivessem a ser aplicados nos Tribunais Administrativos e Fiscais e nos Tribunais Arbitrais.

 

Aliás, sob idêntica perspetiva se pode afirmar que a alegada falta de suporte literal também se verificaria quanto àqueles Tribunais (administrativos e fiscais), pois as normas interpretandas são as mesmas, o que poria em causa a jurisprudência consolidada do STA, solução a que não se adere, até porque é inequívoco que a revisão oficiosa consubstancia um procedimento de segundo grau que se insere na “via administrativa”, locução empregue pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 122-A/2011 – v. neste sentido a decisão proferida no processo arbitral n.º 245/2013-T, de 28 de março de 2014.

 

De igual modo, o Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”) pronunciou-se sobre a questão no sentido da admissibilidade do recurso à arbitragem tributária quando se reaja a indeferimento de pedido de revisão oficiosa contra ato de liquidação – v., a título ilustrativo, os acórdãos de 27 de abril de 2017, processo n.º 08599/15, e de 25 de junho de 2019, processo n.º 44/18.6BCLSB.

 

De referir ainda que o problema deve ser juridicamente analisado na perspetiva das condições de impugnabilidade do próprio ato tributário e não da competência do tribunal, pois o que está em causa é a necessidade de uma (específica) interpelação administrativa prévia. Este requisito configura o pressuposto processual da inimpugnabilidade do ato (in casu, dos atos de autoliquidação, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4 alínea i) do CPTA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT (sobre esta questão vide Vieira de Andrade, “Justiça Administrativa (Lições)”, 9.ª edição, Almedina, 2007, p. 305 e segs.). Dito de outro modo, se a tese da AT tivesse vencimento, o Tribunal Arbitral seria competente, mas o ato seria inimpugnável, pelo que do mesmo não poderia conhecer – v. decisão do processo arbitral n.º 397/2019-T, de 12 de junho de 2020.

 

Em qualquer caso, independentemente da qualificação jurídica como incompetência do Tribunal ou como inimpugnabilidade do ato, a exceção suscitada pela Requerida é improcedente, pois não corresponde à melhor interpretação das normas aplicadas, que é a de que se encontram abrangidas pelo artigo 2.º, alínea a) da Portaria de Vinculação as pretensões que se prendam com a ilegalidade de atos de autoliquidação que sejam precedidos de pedido de revisão oficiosa, pelo que este Tribunal Arbitral é competente em razão da matéria, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e no artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011.

 

  1. Da Intempestividade (Caducidade do Direito de Ação)

 

A Requerida argui a exceção de intempestividade da ação arbitral com fundamento no artigo 10.º do RJAT, suportada no facto de o pedido de revisão oficiosa dos atos de (auto)liquidação de Imposto do Selo ter sido apresentado fora de prazo, tendo em conta que considera inaplicável o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT por não se verificar qualquer “erro imputável aos serviços”. Por outro lado, invoca que à data da submissão desse pedido, já tinha decorrido o prazo de dois anos previsto no artigo 131.º, n.º 1 do CPPT para a reclamação administrativa. Neste contexto, suscita também a inimpugnabilidade dos atos tributários.

 

Colocam-se, neste contexto, essencialmente dois problemas jurídicos com uma relação de precedência.

 

O primeiro é o da potencial aplicabilidade do artigo 78.º, n.º 1 a atos de autoliquidação, na sequência da revogação do n.º 2 deste preceito[2], que estabelecia a presunção de “erro imputável aos serviços” para essas situações [de autoliquidação]. Esta questão tem, segundo entendemos, resposta positiva, dada a equiparação entre a autoliquidação, em que o contribuinte atua no lugar dos serviços da AT, e a liquidação administrativa.

 

Como assinala Paulo Marques[3], na autoliquidação a lei institui “uma delegação dos poderes administrativos tributários nos próprios contribuintes e a forçosa consideração do seu exercício como um verdadeiro acto tributário, credor da presunção legal da verdade declarativa a favor do contribuinte (artigo 75.º, n.º 1, da LGT). A escolha sobre a forma concreta de liquidação de imposto depende assim da vontade do Estado-legislador. Pelo que lançando mão de uma justificada e pertinente interpretação sistemática, em conformidade com o princípio da coerência e unidade do sistema jurídico (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), podemos concluir que o contribuinte não está impedido de deduzir o pedido de revisão do acto tributário (artigo 78.º, da LGT) em relação à autoliquidação, apesar de já não beneficiar actualmente da ficção legal de «erro imputável aos serviços».

Ou, dito de outro modo, pela eliminação do n.º 2, do artigo 78.º, da LGT, não nos parece arredada a autoliquidação do objecto do procedimento de revisão.

A revogação do mencionado preceito legal apenas colocou termo, expressamente, à determinação legal que considerava imputável aos serviços o erro na autoliquidação, para efeitos de revisão oficiosa, intro­duzindo-se agora uma maior paridade entre o contribuinte e o fisco. Mas nada nos leva a entender que deva existir um desequilíbrio garantístico entre a liquidação efectuada pelo próprio contribuinte e a liquidação admi­nistrativa. Ambas poderão assim ser sindicadas mediante a revisão do acto tributário (artigo 78.º, da LGT) […]”.

 

Idêntica posição adota a decisão do processo arbitral n.º 9/2021-T, de 13 de setembro de 2021, sobre o mesmo problema.

 

Nestes termos, a conclusão a retirar é a de que a segunda parte do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, que prevê a revisão no prazo de quatro anos após a liquidação, ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, é aplicável a qualquer liquidação – seja autoliquidação (pelo contribuinte) ou heteroliquidação (por via administrativa). Contudo, o seu fundamento não é qualquer ilegalidade, como previsto para a revisão deduzida no prazo de reclamação administrativa. Para que o prazo de quatro anos seja convocável, o legislador foi mais restritivo e exigiu a ocorrência de um “erro imputável aos serviços”. A revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT simplesmente removeu a regra de inversão do ónus probatório de que beneficiavam os atos de autoliquidação, que passam, assim, a estar sujeitos às regras gerais (v. artigos 74.º, n.º 1 da LGT e 342.º, n.º 1 do Código Civil).

 

O segundo problema que se suscita é o da aferição, no caso concreto, do “erro imputável aos serviços”, não perdendo de vista que estamos perante atos de liquidação materialmente realizados pelos sujeitos passivos ou pelos seus substitutos tributários e que, como acima dito, o ónus da sua demonstração compete à Requerente.

 

Observa Jorge Lopes de Sousa que “sendo o contribuinte quem faz a autoliquidação, o que é normal é que os erros lhe sejam imputáveis a ele próprio, que a fez, e não à administração tributária, que não a fez. Apenas se entrevê a possibilidade de erros na autoliquidação serem imputáveis à administração tributária nos casos em que esta procedeu a correção ou em que o contribuinte incorreu em erros, segundo instruções, gerais ou especiais, que aquela lhe forneceu.”[4]

 

Todavia, nem da prova produzida pela Requerente, nem do adquirido processual resulta que a Autoridade Tributária tenha dado instruções gerais (nomeadamente através de Circulares ou Ofícios-Circulados), ou especiais (v.g. por via de informações vinculativas prestadas à Requerente) no sentido de ser liquidado Imposto do Selo nas operações de recompra de obrigações, venda de ações (B...) e OPA (C...), bem como nas formalidades conexas a tais operações.

 

É certo que a Requerente convoca um despacho do Diretor-geral dos Impostos, de 13 de outubro de 2003 (com base no parecer n.º 156/2003, da Direção de Serviços Jurídicos e do Contencioso), segundo o qual é vedada à AT “quer a aplicação de uma norma nacional contrária ao direito comunitário, quer a negação de um direito contido numa diretiva, não previsto no direito nacional”.  Daqui, porém, não se depreende uma regra de agir sobre a liquidação, ou não, do Imposto do Selo em relação às operações realizadas pela Requerente e aos serviços de intermediação financeira adquiridos, associados àquelas.

 

O  mesmo se diga do despacho do Diretor-geral dos Impostos, de 2 de junho de 2004 (emitido com base no parecer n.º 507, de 13 de abril de 2004, da Direção de Serviços Jurídicos e do Contencioso) que refere que “A expressão «formalidades conexas» reporta-se, assim, apenas às formalidades da operação de reunião de capitais propriamente dita, no  caso, a emissão de papel comercial, ou seja, à sua exterioridade perante os destinatários da operação” e que (…) “a expressão «formalidades conexas» no contexto em que figura reporta-se apenas às operações de reunião de capitais propriamente ditas, ou seja, à emissão de obrigações e outros valores mobiliários representativos de empréstimos, deixando ao legislador a liberdade de tributar, ou não as operações, incluindo contratos, eventualmente acessórios, mas juridicamente distintos da emissão.»

 

De tais asserções emanadas da AT não se retira a indicação de que a Requerente tinha de liquidar Imposto do Selo nas operações de intermediação financeira contratadas e antes descritas, nem as mesmas revestem a natureza de orientações genéricas, ou são especificamente dirigidas ao caso da Requerente.

 

As dificuldades da Requerente em fazer a demonstração da imputabilidade do erro à AT são de tal ordem manifestas, que esta acaba por invocar, em relação às liquidações de Imposto do Selo objeto desta ação arbitral, ocorridas entre dezembro de 2016 e junho de 2018, a posição assumida pela Requerida na decisão do pedido de revisão oficiosa e, bem assim, de uma reclamação graciosa relativa a questões idênticas, em ambos os casos, documentos emitidos em julho de 2021. Como se um entendimento veiculado em 2021 pudesse ter influenciado uma conduta tributária (de autoliquidação de Imposto do Selo) ocorrida três anos antes…

 

Acresce salientar que o argumento da Requerente de que a liquidação de Imposto do Selo em operações desta natureza (serviços de intermediação financeira adquiridos nos termos e com as finalidades atrás descritos) constitui uma prática reiterada e enraizada no mercado não apresenta relevância, pois o simples facto de os contribuintes liquidarem o imposto não significa que o façam em virtude de instruções da AT, podendo tal atuação derivar de diversos fatores, desde logo, da interpretação das normas legais feita, de forma autónoma, ou seja, sem influência de orientações administrativas, por esses mesmos contribuintes.

 

Não se diverge que o erro imputável aos serviços possa consistir quer num erro sobre os pressupostos de facto, quer num erro de direito, compreendendo-se neste último também a violação do Direito da União Europeia. Todavia, como declara a decisão arbitral no processo n.º 9/2021-T, para que seja aplicável o prazo de 4 anos previsto na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, a ilegalidade não pode ser imputável ao contribuinte, mas tem de o ser à AT.

Só que, como acima salientado, no caso em exame a Requerente não fez prova de circunstâncias passíveis de atribuir a liquidação de Imposto do Selo por si efetuada a um erro que seja imputável à AT[5], motivo que impede o enquadramento no prazo alargado de quatro anos, mantendo-se aplicável o de dois anos, que resulta da conjugação do disposto nos artigos 131.º, n.º 1 do CPPT e 78.º, n.º 1 da LGT. Respeitando as liquidações a períodos temporais entre dezembro de 2016 a junho de 2018 e tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado em 14 de janeiro de 2021 já se encontrava nesse momento esgotado o prazo de dois anos para aceder ao procedimento de revisão oficiosa e/ou de reclamação graciosa.

 

À face do exposto, conclui-se que, na situação concreta, a Requerente não satisfez o ónus que sobre si impendia de demonstrar factos constitutivos de que as (auto)liquidações de Imposto do Selo controvertidas derivaram de erro imputável aos serviços. Por essa razão, não podia a revisão ter lugar no prazo mais alargado de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, por não estarem reunidos os correspondentes pressupostos. Por outro lado, estando esgotado o prazo de reclamação administrativa, a revisão com fundamento em qualquer ilegalidade já não era admissível. Assim, conclui-se que andou bem a Requerida ao rejeitar o pedido de revisão oficiosa por extemporaneidade.

 

Por outro lado, não é de acolher a alegação da Requerente, de que o fundamento de violação do Direito da União Europeia, que constitui a causa de pedir desta ação, produz a nulidade dos atos de liquidação inquinados, invalidade que é invocável a todo o tempo (v. artigo 162.º, n.º 2 do CPA), pelo que não se verifica, igualmente por esta via, a caducidade da ação arbitral. Compulsa-se a este propósito a jurisprudência consensual do Supremo Tribunal Administrativo que se pronuncia no sentido de que os atos tributários que apliquem norma jurídica nacional contrária ao Direito da União Europeia são meramente anuláveis, sendo o prazo para a sua impugnação, o geral, considerando, ainda, que este entendimento respeita quer o princípio de equivalência com o direito interno, quer o princípio da efetividade da tutela judicial (v. a título ilustrativo os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 31 de outubro de 2001, processo n.º 026392, e de 20 de março de 2002, processo n.º 26774).

 

Esta conclusão deriva de o regime de anulabilidade ser a regra geral do direito público (administrativo – v. artigo 163.º do CPA), e de a nulidade apenas afetar os atos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade (v. artigo 161.º, n.º 1 do CPA), como sucede com os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental, circunstância desprovida de aplicação na situação em análise – v. acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de maio de 2014, processo n.º 01644/13, e de 6 de junho de 2012, processo n.º 611/12.

 

            Conclui-se, desta forma, pela improcedência da alegada aplicação do regime de nulidade, com a consequente sujeição do direito de ação ao efeito da caducidade por decurso do prazo.

 

O reflexo da intempestividade do pedido de revisão oficiosa, não é, porém, a subsequente intempestividade da ação arbitral, que só se verifica se o prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir dos factos elencados no artigo 102.º do CPPT [no caso, a notificação do pedido de revisão oficiosa], não for respeitado, o que não sucedeu no presente caso. Nestas circunstâncias, a extemporaneidade do pedido de revisão impede o Tribunal Arbitral de conhecer do mérito por haver “caso decidido ou caso resolvido”. Os atos de liquidação de Imposto do Selo consolidaram-se na ordem jurídica, verificando-se a exceção de inimpugnabilidade dos mesmos, enquadrada na categoria das exceções dilatórias, nos termos do artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea i) do CPTA, e dos artigos 278.º, n.º 1, 576.º e 608.º do CPC, aplicáveis ao abrigo do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e) do RJAT.

 

Veja-se a respeito da impugnação judicial, em que se coloca questão idêntica, o entendimento sufragado no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14 de outubro de 2020, processo n.º 0937/02.2BTLRS 0318/15, que se pronuncia nos seguintes termos:

“Se a reclamação graciosa é intempestiva tudo se passa como se não tivesse sido apresentada, e o ato tributário (a liquidação) consolida-se na ordem jurídica.

Logo, a concluir-se pela extemporaneidade da reclamação graciosa, a posterior impugnação judicial terá de improceder por inimpugnabilidade do ato e não por caducidade do direito de deduzir impugnação judicial (cf. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31/05/2017, recurso 01609/13).”

 

Nestes termos, procede a exceção de inimpugnabilidade invocada pela Requerida (derivada da intempestividade do pedido de revisão oficiosa deduzido contra os atos tributários impugnados nesta ação), que põe termo ao processo e impede que este Tribunal Arbitral conheça das demais questões suscitadas e do mérito da pretensão da Requerente, importando a absolvição da Requerida da instância.

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil (artigo 608.º do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

 

  1. Decisão

 

De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar procedente a exceção de inimpugnabilidade (por intempestividade do pedido de revisão oficiosa deduzido) dos atos de autoliquidação de Imposto do Selo supra identificados, com as legais consequências, nomeadamente a absolvição da Requerida da instância e a condenação da Requerente nas custas do processo, tudo com as legais consequências.

 

 

VI.       Valor do Processo

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 145.780,25, indicado pela Requerente, respeitante ao montante das (auto)liquidações de Imposto do Selo cuja anulação pretende, e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

VII.     Custas

 

            Custas no montante de € 3.060,00 (três mil e sessenta euros), a suportar integralmente pela Requerente, em virtude da sucumbência, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 6 de outubro de 2022

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins, Relatora

 

 

 

Adelaide Moura

 

 

 

Ana Luísa Ferreira Cabral Basto

 



[1] Com exceção das pretensões expressamente identificadas nas alíneas a) a d) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, sem cabimento na situação dos autos.

[2] Revogação operada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março. 

[3] V. “A Revisão do Acto Tributário: Requiem pela Autoliquidação?”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal do IDEFF, Ano 9, N.º 1, Primavera, pp. 209 a 229.

[4] V. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e Comentado, Volume II, 6.ª Edição, Áreas Editora, Lisboa 2011, p. 412.

[5] No sentido de imputação objetiva e não a “título de culpa” como decorre da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. V. os acórdãos proferidos nos processos n.º 1349/10.0BELRS, de 23 de março de 2017, e n.º 01019/14, de 8 de março de 2017.