SUMÁRIO: O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros, Victor Calvete (árbitro-presidente), Martins Alfaro (árbitro vogal) e Cristina Aragão Seia (árbitro vogal e relatora por vencimento), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 25.01.2022, acordam no seguinte:
1. Relatório
A... (anteriormente designado B...), organismo de investimento colectivo em valores mobiliários, constituído de acordo com o direito luxemburguês, com o número de identificação fiscal português..., com sede na Rue ..., Luxemburgo (doravante “Requerente”), representado por C..., entidade também com residência no Luxemburgo, na qualidade de sociedade gestora, apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente e, bem assim, dos actos de retenção na fonte respeitantes a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) dos meses de Maio e Setembro de 2017, à frente melhor identificados (docs. 1 e 2 juntos com o pedido arbitral e processo administrativo), no montante global de € 868.076,82.
O Requerente pede também a restituição do imposto retido indevidamente, o pagamento de juros indemnizatórios, bem como a condenação da Requerida no pagamento das custas de arbitragem.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 19.11.2021.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 07.01.2022, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 25.01.2022.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido arbitral e deduziu pedido de suspensão da instância até decisão pelo TJUE do pedido de reenvio prejudicial das questões prejudiciais formuladas no âmbito do proc. nº 93/2019-T.
O Requerente foi notificado para se pronunciar sobre o pedido de suspensão da instância, mas, entretanto, em 17.03.2022, o TJUE proferiu decisão no processo C-545/19, que tem por objecto a questão de Direito Europeu que é objecto do presente processo, tendo concluído que
«O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção».
Por despacho de 17.03.2022, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foram as partes convidadas a apresentar alegações, o que apenas o Requerente veio a fazer em 04.04.2022.
Por não ter sido possível consensualizar atempadamente a decisão, em 25 de Julho e de novo em 22 de Setembro, foram proferidos despachos ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, prorrogando o prazo para ser proferida a decisão arbitral.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
-
O Requerente é uma pessoa colectiva de direito luxemburguês sob a forma de Société d’Investissement à Capital Variable, mais concretamente, um Organismo de Investimento Colectivo (OIC) em valores mobiliários, constituído sobre a forma contratual de fundo de investimento (docs. 3 e 4, juntos com o pedido arbitral e processo administrativo);
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O Requerente é sujeito passivo de IRC, não residente, para efeitos fiscais, em Portugal, e sem qualquer estabelecimento estável no país (doc. 3 junto com o pedido arbitral e processo administrativo);
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O Requerente é administrado pela sociedade C..., entidade igualmente com sede no Luxemburgo (doc. 4, junto com o pedido arbitral e processo administrativo);
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Em Maio e Setembro de 2017, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de € 5.787.178, 67, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal, em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória à taxa de 15%, nos seguintes termos (doc. 2, junto com o pedido arbitral e processo administrativo):
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As retenções na fonte de IRC em causa, no valor total de € 868.076,82, foram efectuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública pelo D..., pessoa colectiva titular do número de identificação fiscal em Portugal ..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo dos artigos 94.º, n.º 7, do CIRC (doc. 2 junto com o pedido arbitral e processo administrativo);
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O Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo às retenções na fonte objecto dos presentes autos, seja ao abrigo da CEDT Portugal/Luxemburgo, seja ao abrigo da lei interna do Luxemburgo (cfr. cópia de declaração da entidade gestora do Requerente, junta como doc. 5 e processo administrativo);
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Em 04.05.2021, o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa ao qual foi atribuído o nº ...2021... (doc. 1 junto com o pedido arbitral e processo administrativo);
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O Requerente apresentou, em 17.11.2021, o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo;
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Até àquela data, o Requerente não tinha recebido qualquer decisão da Requerida no âmbito do procedimento de revisão oficiosa;
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto.
3. Matéria de direito
O Requerente é uma pessoa colectiva de direito luxemburguês, que está constituída como organismo de investimento colectivo (OIC), sendo sujeito passivo de IRC não residente e sem estabelecimento estável em Portugal, sendo residente no Luxemburgo, no ano de 2017.
Nesse período, o Requerente recebeu dividendos no montante total bruto de € 5.787.178, 67, sujeitos a retenção na fonte em Portugal, no montante de € 868.076, 82 (15%), decorrente das participações que detinha nas sociedades E..., SGPS, SA, F... SA e G..., SGPS, SA.
Relativamente aos rendimentos referidos obtidos pelo Requerente foram efectuadas retenções na fonte a título liberatório, de harmonia com o previsto nos artigos 94.º, n.º 1, al. c), n.º 3, al. b), e n.º 5, à taxa de 25%, prevista pelo art.º 87.º n.º 4, ambos do CIRC, em conformidade com o previsto nos artigos 10.º, n.º 2, e 11.º, n.º 2, alínea b), da Convenção entre a República Portuguesa e o Luxemburgo para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e sobre o Capital, aprovada pela Lei n.º 12/82, de e 3 Junho (doravante “CDT”).
O artigo 87.º do CIRC estabelece o seguinte, no que aqui interessa:
Artigo 87.º
Taxas
(...)
4 - Tratando-se de rendimentos de entidades que não tenham sede nem direção efetiva em território português e aí não possuam estabelecimento estável ao qual os mesmos sejam imputáveis, a taxa do IRC é de 25 %, exceto relativamente aos seguintes rendimentos:
(...)
O artigo 94.º do CIRC, estabelece o seguinte, no que aqui interessa:
Artigo 94.º
Retenção na fonte
1 - O IRC é objeto de retenção na fonte relativamente aos seguintes rendimentos obtidos em território português:
(...)
c) Rendimentos de aplicação de capitais não abrangidos nas alíneas anteriores e rendimentos prediais, tal como são definidos para efeitos de IRS, quando o seu devedor seja sujeito passivo de IRC ou quando os mesmos constituam encargo relativo à atividade empresarial ou profissional de sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade;
(...)
3 - As retenções na fonte têm a natureza de imposto por conta, exceto nos seguintes casos em que têm caráter definitivo:
(...)
b) Quando, não se tratando de rendimentos prediais, o titular dos rendimentos seja entidade não residente que não tenha estabelecimento estável em território português ou que, tendo-o, esses rendimentos não lhe sejam imputáveis;
(...)
O artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de Janeiro estabelece o seguinte:
Artigo 22.º
Organismos de Investimento Coletivo
1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.
4 – Os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis, havendo-os, de um ou mais dos 12 períodos de tributação posteriores, aplicando -se o disposto no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC.
5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.
6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.
7 – Às fusões, cisões ou subscrições em espécie entre as entidades referidas no n.º 1, incluindo as que não sejam dotadas de personalidade jurídica, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 73.º, 74.º, 76.º e 78.º do Código do IRC, sendo aplicável às subscrições em espécie o regime das entradas de ativos previsto no n.º 3 do artigo 73.º do referido Código.
8 – As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime.
9 – O IRC incidente sobre os rendimentos das entidades a que se aplique o presente regime é devido por cada período de tributação, o qual coincide com o ano civil, podendo, no entanto, ser inferior a um ano civil:
a) No ano do início da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre a data em que se inicia a atividade e o fim do ano civil;
b) No ano da cessação da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre o início do ano civil e a data da cessação da atividade.
10 – Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.
11 – A liquidação de IRC é efetuada através da declaração de rendimentos a que se refere o artigo 120.º do Código do IRC, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 89.º, no n.º 1 do artigo 90.º, no artigo 99.º e nos artigos 101.º a 103.º do referido Código.
12 – O pagamento do imposto deve ser efetuado até ao último dia do prazo fixado para o envio da declaração de rendimentos, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 109.º a 113.º e 116.º do Código do IRC.
13 – As entidades referidas no n.º 1 estão ainda sujeitas, com as necessárias adaptações, às obrigações previstas nos artigos 117.º a 123.º, 125.º e 128.º a 130.º do Código do IRC.
14 – O disposto no n.º 7 aplica -se às operações aí mencionadas que envolvam entidades com sede, direção efetiva ou domicílio em território português, noutro Estado membro da União Europeia ou, ainda, no Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que exista obrigação de cooperação administrativa no domínio do intercâmbio de informações e da assistência à cobrança equivalente à estabelecida na União Europeia.
15 – As entidades gestoras de sociedades ou fundos referidos no n.º 1 são solidariamente responsáveis pelas dívidas de imposto das sociedades ou fundos cuja gestão lhes caiba.
16 – No caso de entidades referidas no n.º 1 divididas em compartimentos patrimoniais autónomos, as regras previstas no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, a cada um dos referidos compartimentos, sendo-lhes ainda aplicável o disposto no Decreto -Lei n.º 14/2013, de 28 de janeiro.
Nos termos do artigo 7.º daquele Decreto-Lei n.º 7/2015, «as regras previstas no artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo presente decreto-lei, são aplicáveis aos rendimentos obtidos após 1 de julho de 2015».
No referido n.º 1 do artigo 22.º estabelece-se que o regime nele previsto é aplicável aos «fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional».
O Requerente é constituído ao abrigo da lei luxemburguesa e não da lei nacional, sendo por esse motivo que não lhe foi aplicado esse regime.
3.1. Posições das Partes
O Requerente defende no pedido arbitral, em suma, que do regime que se prevê no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) resulta um tratamento discriminatório para os OIC não residentes em relação aos residentes, que é incompatível com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que estabelece o seguinte:
Artigo 63.º
(ex-artigo 56.º TCE)
1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
No entanto, o artigo 65.º do TFUE limita a aplicação deste princípio, estabelecendo o seguinte:
Artigo 65.º
(ex-artigo 58.º TCE)
1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:
a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;
b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.
2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.
3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.
Alega o Requerente que:
- Os OIC não residentes são objecto de uma discriminação contrária ao TFUE, na medida em que o regime previsto no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, é aplicável apenas aos OIC residentes em Portugal, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional – i.e. ao abrigo da Lei n.º 16/2015, de 24 de Fevereiro, que transpõe a Directiva 2009/65/CE –, não permitindo o Estado português que os OIC não residentes, constituídos e a operar noutro Estado-Membro ao abrigo da Directiva 2009/65/CE acedam a tal regime, ainda que demonstrem que cumprem no seu Estado de residência exigências equivalentes às contidas na lei portuguesa;
- Nos termos dos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, e 87.º, n.º 4, do CIRC, os dividendos de fonte portuguesa pagos a OIC estabelecidos noutros Estados-Membros são tributados em sede de IRC mediante retenção na fonte liberatória, à taxa de 25%, a qual poderá ser reduzida ao abrigo de convenções para evitar a dupla tributação celebradas pelo Estado português;
- Os dividendos auferidos pelo Requerente em Portugal em Maio e Setembro de 2017 foram sujeitos a tributação em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória à taxa de 15%, nos termos dos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, e 87.º, n.º 4, do CIRC e 10º, nº 2 da CEDT Portugal/Luxemburgo;
- Estando isento de imposto luxemburguês sobre os rendimentos das pessoas colectivas ao abrigo dos artigos 161.º da Lei de 4 de Dezembro de 1967 – «Loi modifiée du 4 décembre 1967 concernant l’impôt sur le revenu» – e 173.º da Lei de 17 de Dezembro de 2010, relativa ao regime dos organismos de investimento colectivo, que transpõe para o ordenamento jurídico luxemburguês a Directiva 2009/65/CE – «Loi du 17 décembre 2010 concernant les organismes de placement collectif» –, não foi possível ao Requerente neutralizar a tributação dos referidos dividendos em Portugal através do crédito de imposto previsto no artigo 24.º, n.º 2, da CEDT Portugal/Luxemburgo;
- Bastaria ao Requerente ter a sua residência fiscal em Portugal, para que os referidos dividendos não tivessem sido sujeitos a retenção na fonte nem tão-pouco a tributação em sede de IRC, nos termos do artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EB;
- O tratamento discriminatório operado pelos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, 87.º, n.º 4, do CIRC e 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, encontra-se em violação do TFUE, ao constituir uma restrição às liberdades fundamentais, designadamente à liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63º, e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, por violação do primado do Direito Comunitário sobre o Direito interno, facto que deverá determinar anulação das liquidações de IRC por retenção na fonte acima melhor identificadas e a consequente restituição do imposto indevidamente liquidado ao ora Requerente;
- Na medida em que o artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, faz depender a dispensa de retenção na fonte e tributação em sede de IRC dos dividendos de fonte portuguesa auferidos por um OIC da respectiva residência em território português, os OIC não residentes constituídos e a operar em condições equivalentes, ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, encontram-se numa situação objectivamente comparável à dos OIC residentes em território português, podendo em ambos os casos os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal ser objecto de uma dupla tributação económica ou de uma tributação em cadeia;
- Neste contexto, constata-se que as liquidações de IRC objecto dos presentes autos assentam numa situação de discriminação que viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE;
- De acordo com as regras e princípios de Direito da União Europeia que prevalecem sobre a legislação nacional, nas situações como a ora em análise, impende sobre o Estado Português a obrigação de, no âmbito do exercício da sua soberania tributária sobre os dividendos auferidos pelo Requerente, tratar os mesmos de modo equiparável aos dividendos auferidos por um OIC accionista residente em situação análoga – ou seja, de não discriminar entre OIC accionistas residentes e não residentes;
- Essa obrigação de não discriminar implica, necessariamente, que também os benefícios ou vantagens de natureza fiscal atribuídos a residentes devam ser concedidos, nas mesmas condições, a não residentes;
- Estando o Requerente isento de tributação em sede de imposto luxemburguês sobre os rendimentos das pessoas colectivas, não poderá reclamar tal crédito de imposto no Estado da sua residência;
- Inexistindo um nexo directo entre a vantagem fiscal consagrada no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, e a compensação dessa vantagem pela liquidação de um determinado imposto sobre os OIC residentes, não poderá a discriminação sub judice ser justificada com a necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal português;
- A partir do momento em que o Estado português optou por não tributar em sede de IRC os dividendos pagos a OIC residentes em Portugal, não poderá justificar a discriminação sub judice com fundamento na salvaguarda da repartição equilibrada do poder de tributação entre Estados-Membros;
- O Estado português não pode justificar a discriminação em referência com a necessidade de evitar a fraude e a evasão fiscal ou de garantir a eficácia de controlos administrativos na medida em que tal resultaria numa presunção inilidível, e como tal contrária ao princípio da proporcionalidade, do carácter artificioso das operações em causa e do incumprimento por parte do Requerente, no seu Estado de residência, de exigências equivalentes às previstas na legislação portuguesa;
- O facto tributário subjacente à Verba 29 da Tabela Geral do Imposto do Selo não é comparável, em termos materiais e temporais, ao facto tributário subjacente à tributação em sede de IRC de dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC não residentes, não sendo como tal possível justificar que a tributação de OIC não residentes em sede de IRC se configura como uma contrapartida da respectiva não tributação em sede de Imposto do Selo;
- Necessariamente se conclui que os dividendos auferidos por um OIC residente numa situação comparável à do ora Requerente não se encontram sujeitos a tributação autónoma e, como tal, a discriminação dos OIC não residentes não pode considerar-se justificada;
- As liquidações de IRC por retenção na fonte acima identificadas enfermam do vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, a qual deverá, nos termos do artigo 163.º do CPA, determinar a anulação das liquidações por retenção na fonte ora em crise, com a consequente restituição do imposto retido na fonte no montante de EUR 868.076,82, ao abrigo do artigo 100.º da LGT e pagamento de juros indemnizatórios.
Nas alegações que juntou em 04.04.2022, o Requerente reiterou a sua posição, apresentando as seguintes conclusões:
«A) O Requerente é um OICVM, com sede e direcção efectiva no Grão Ducado do Luxemburgo, constituído e a operar ao abrigo da legislação que transpõe para a ordem jurídica luxemburguesa a Directiva 2009/65/CE, que em Maio e Setembro de 2017 auferiu dividendos com fonte em Portugal;
B) O artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, ao dispensar de retenção na fonte e excluir de tributação em sede de IRC apenas os dividendos auferidos por OICVM residentes em Portugal, trata discriminatoriamente os OICVM não residentes, que sejam residentes noutro Estado-Membro da União Europeia e sejam constituídos e operem em condições equivalentes às previstas na legislação portuguesa;
C) Os OICVM não residentes constituídos e a operar ao abrigo da Directiva 2009/65/CE são colocados numa situação de desvantagem tão-só em consequência de não terem a sua residência em Portugal, não obstante estarem numa situação objectivamente comparável à dos OICVM residentes em Portugal;
D) Os dividendos auferidos pelo Requerente foram sujeitos a tributação por retenção na fonte que não teria ocorrido caso os mesmos tivessem sido pagos a um OICVM residente em Portugal;
E) O tratamento discriminatório decorrente da retenção na fonte que incidiu sobre os dividendos de fonte portuguesa auferidos pelo Requerente em Maio e Setembro de 2017 não é justificado por quaisquer razões imperiosas de interesse geral;
F) Não foi possível ao Requerente neutralizar no seu Estado de residência a tributação dividendos auferidos em Portugal através do crédito de imposto previsto no artigo 23.º, n.º 2, da CEDT Portugal/Luxemburgo;
G) Os Representantes da Autoridade Tributária e Aduaneira não colocam em crise a veracidade e autenticidade da declaração junta pelo Requerente como documento n.º 5, não afectando como tal a força probatória deste documento;
H) Contrariamente ao sustentado pelos Representantes da Autoridade Tributária e Aduaneira, é irrelevante para aferir a compatibilidade do regime de tributação de OICVM não residentes o facto de estes eventualmente não serem tributados em sede de Imposto do Selo, nos termos da Verba 29 da Tabela Geral do Imposto do Selo,
contrariamente ao que sucede com os OICVM residentes, e de os OICVM residentes alegadamente serem sujeitos à tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 11, do CIRC;
I) Os dividendos auferidos por OICVM residentes não são sujeitos a tributação autónoma, mesmo quando as respectivas partes sociais não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período;
J) Ainda que se considerasse o regime previsto no artigo 88.º, n.º 11, do CIRC, relevante para o teste de comparabilidade a realizar nos presentes autos e ainda que se considerasse que tal regime é aplicável a OIC enquadrados no artigo 22.º do EBF, o que não se concede e admite por mero dever de patrocínio, necessariamente concluirá que a Administração Tributária não poderá invocar tal regime para sustentar a falta de comparabilidade da situação do Requerente com a situação de um OICVM residente, na medida em que não satisfez o seu ónus probatório, não tendo demonstrado que as acções na origem dos dividendos sujeitos a retenção na fonte permaneceram na titularidade do Requerente por período inferior a um ano;
K) As eventuais dúvidas que subsistissem relativamente à incompatibilidade do regime consagrado no artigo 22.º do EBF com a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, ficaram definitivamente dissipadas face à posição afirmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no Acórdão AllianzGi-Fonds AEVN de 17 de Março de 2022 (Processo n.º C-545/19);
L) Os artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, 87.º, n.º 4, do CIRC e22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, consubstanciam uma restrição discriminatória à livre circulação de capitais, contrária ao artigo 63.º do TFUE e, bem assim, ao artigo 8.º, n.º 4, da CRP, a qual deverá, nos termos do artigo 163.º do CPA, determinar (i) a anulação das liquidações por retenção na fonte ora em crise, (iii) a restituição do imposto retido na fonte ao Requerente, ao abrigo do artigo 100.º da LGT, e (iv) o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1, e 3, alínea d), da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT.»
A Autoridade Tributária e Aduaneira, por seu turno, defende, em suma, que:
- No que se refere ao quadro fiscal dos OIC, a opção legislativa teve por finalidade “aliviar” estes sujeitos passivos da tributação em IRC, mediante a subtracção à base tributável dos rendimentos típicos dos OIC, isto é, dos rendimentos de capitais (artigo 5.º do Código do IRS), dos rendimentos prediais (artigo 8.º do Código do IRS) e das mais-valias (artigo 10.º do Código do IRS) conforme previsto no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, e ainda prevendo a isenção de derrama municipal e de derrama estadual, nos termos do n.º 6 do artigo 22.º do EBF, deslocando a tributação para a esfera do Imposto do Selo;
- A tributação em Imposto do Selo apenas recai sobre os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, o que significa que dela são excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira;
- Os OIC não abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, como é o caso do Requerente, não estão sujeitos a tributação autónoma sobre os dividendos;
- Os regimes fiscais aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional e dos OIC constituídos e estabelecidos no Luxemburgo não são genericamente comparáveis, pois a tributação dos primeiros compreende uma tributação em IRC sobre um lucro tributável que integra rendimentos marginais e repousa sobretudo no Imposto do Selo, ao passo que os segundos estavam isentos de tributação no imposto sobre o rendimento e, aparentemente, também de outros impostos;
- Para efeitos de comparação da carga fiscal incidente sobre os dividendos auferidos em Portugal pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e os OIC constituídos no Luxemburgo, é redutor, e manifestamente insuficiente para extrair conclusões, atender apenas ao imposto retido na fonte e abstrair de outras imposições susceptíveis de onerar fiscalmente os dividendos;
- Para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e se tal diferenciação é susceptível de afectar o investimento em acções emitidas por sociedades residentes, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos – IRC e Imposto do Selo - que incidem sobre os segundos, e que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos;
- O imposto retido ao Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera dos investidores, questão que o Requerente também omitiu, ou, pelo menos, não esclareceu;
- Não pode afirmar-se que se esteja perante situações objectivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente, antes, pelo contrário;
- Para avaliar se da legislação nacional resulta um tratamento discriminatório dos fundos de investimento de outros Estados-Membros contrário ao TFUE, por constituir uma restrição à liberdade de circulação de capitais, a análise não pode cingir-se à consideração estrita das regras de retenção na fonte, há que atender à carga fiscal a que estão sujeitos os OICs abrangidos pelo artigo 22.º do EBF relativamente aos dividendos e às correspondentes acções, pois, só com esta visão global pode concluir-se com um mínimo de segurança que os fundos estrangeiros que investem em acções de sociedades residentes em Portugal são colocados numa situação mais desfavorável;
- A carga fiscal que pode recair sobre os dividendos e as correspondentes acções dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, seja de IRC, tributações autónomas ou de Imposto do Selo, também tem um impacto negativo na capacidade financeira dos mesmos e nas taxas de rendibilidade dos investimentos, que pode exceder o imposto retido na fonte sobre os dividendos auferidos por Fundos de investimento de outros Estados-Membros;
- O que existe é uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas, a que não corresponde uma discriminação em substância;
- A AT encontra-se subordinada ao princípio da legalidade, pelo que não poderia, na apreciação da reclamação graciosa interposta pelo Requerente, aplicar de forma directa e automática as decisões do TJUE proferidas sobre casos concretos que não relevam do direito nacional, para mais não estando em causa situações materialmente idênticas, e em que a aplicação correcta do direito comunitário não se revela tão evidente (Ato Claro) que não deixe margem para qualquer dúvida razoável quanto ao modo como deve ser resolvida a questão suscitada;
- O regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, embora consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos por outras formas, seja por tributação autónoma, seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não pode afirmar-se que, em substância, as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimentos constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objectivamente comparáveis;
- As retenções na fonte efectuadas sobre os dividendos pagos ao Requerente respeitam o disposto na legislação nacional e na convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre Portugal e o Luxemburgo, devendo ser mantidas na ordem jurídica, devendo concluir-se pela improcedência do PPA.
3.2. Apreciação da questão
A questão da compatibilidade ou não do regime previsto no artigo 22.º, n.º 1, do EBF com o Direito da União Europeia, designadamente o artigo 63.º do TFUE, foi apreciada no citado acórdão do TJUE de 17.03.2022, proferido no processo n.º C-545/19, em que se concluiu que
O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
No texto do acórdão, para cuja fundamentação se remete, abordam-se as questões relevantes para atingir esta conclusão.
Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25.10.2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, p. 3757; de 07.11.2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13.10.2003, p. 2602; de 07.11.2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13.10.2003, p. 2593). Acompanhamos, nesta matéria, o que se decidiu no processo 133/2019-T do CAAD.
A supremacia do Direito da União sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, em que se estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
Assim, declara-se ilegal, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo das sociedades constituídas segundo legislações de Estados Membros da União Europeia.
E assim sendo, tem de se concluir que as retenções na fonte e o indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa, enfermam de vício de violação de lei, o que justifica a sua anulação, de harmonia, com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT, com as demais consequências legais, designadamente o reembolso do imposto pago indevidamente.
3.3. Pedido de reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios
O Requerente pede reembolso do imposto indevidamente retido na fonte, acrescido de juros indemnizatórios.
Na sequência da anulação das retenções na fonte o Requerente tem direito a ser reembolsado das quantias retidas, o que é consequência da anulação.
No que concerne o direito a juros indemnizatórios, como explanado na decisão proferida no já referido processo nº 133/2021-T do CAAD, o TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só direito ao reembolso como o direito a juros, como pode ver-se pelo acórdão de 18.04.2013, processo nº C-565/11 (entre outros), em que se refere:
«21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgesellschaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).
22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).
23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida)».
No entanto, como se refere neste n.º 23, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respectiva taxa e o modo de cálculo.
Como tem vido a entender o Supremo Tribunal Administrativo, «nos casos de revisão oficiosa da liquidação (quando não é feita a pedido do contribuinte, no prazo da reclamação administrativa, situação que é equiparável à de reclamação graciosa) (...) apenas há direito a juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º, n.º 3, da LGT».[1]
Este regime justifica-se pela falta de diligência do contribuinte em apresentar reclamação graciosa ou pedido de revisão no prazo desta, como se prevê no n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:
a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;
b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.
4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.
No caso em apreço, não tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado no prazo da reclamação graciosa (2 anos a contar da data do pagamento, nos termos do n.º 3 do artigo 137.º do CIRC), não se está perante uma situação enquadrável na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, em que o pedido de revisão oficiosa é equiparável à reclamação graciosa, como se refere no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.
Consequentemente, não há direito a juros indemnizatórios com base nos n.ºs 1 e 2 do artigo 43.º da LGT, que pressupõem a existência de reclamação graciosa ou impugnação judicial tempestiva.
Assim, a norma à face da qual tem de ser aferida a existência de direito a juros indemnizatórios é a alínea c) deste n.º 3 do artigo 43.º da LGT, que estabelece que eles são devidos «quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária».
Nestes termos, o Requerente só teria direito a juros indemnizatórios a partir de um ano a contar da data em que foi apresentado o pedido de revisão oficiosa, isto é, a partir de 04.05.2022.
4. Decisão
De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Declarar ilegal o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo das sociedades constituídas segundo legislações de Estados Membros da União Europeia;
-
Julgar procedente o pedido de anulação das retenções na fonte efectuadas e identificadas na alínea D) dos factos provados, com as demais consequências legais;
-
Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia de € 868.076, 82 e condenar a Administração Tributária e Aduaneira a pagar este montante ao Requerente;
-
Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios;
-
Condenar a Administração Tributária e Aduaneira no pagamento das custas.
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 868.076,82, indicado pelo Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
6. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 12.240,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional e 185.º-A, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável.
Lisboa, 26 de Setembro de 2022
O Árbitro Presidente,
(Victor Calvete)
Vencido. Nos termos preconizados no projecto que apresentei, a decisão seria favorável à AT, não por razões substanciais, mas por inverificação dos pressupostos do pedido de pronúncia arbitral (PPA). Como se escreveu numa das decisões infra citadas, “A tempestividade da reclamação graciosa constitui condição necessária para a tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral, integrando um pressuposto processual deste último.”
Acontece que, embora tal não tenha sido invocado pela AT, tinha eu conhecimento – em virtude do exercício das minhas funções de árbitro no processo n.º 368/2021-T que correu termos no CAAD – que o Requerente apresentara reclamação graciosa não apenas das retenções na fonte que foram objecto desse outro processo, referentes a 2018, mas também das que foram impugnadas neste, referentes a 2017. E que, então, a AT recusara liminarmente considerar estas, por a reclamação ser, em relação a elas, extemporânea (indeferindo as outras). Em sequência, o Requerente apresentou no CAAD um PPA das que foram indeferidas (dando origem ao processo n.º 368/2021-T) e apresentou um pedido de revisão oficiosa em relação às de 2017 (que tinham sido alvo de reclamação em conjunto com as de 2018, mas tidas como fora de prazo para esse efeito).
Com base nesse expediente, transformou um prazo que deixara precludir, num outro prazo de reacção, apresentando novo PPA logo que pôde presumir o indeferimento do pedido de revisão oficiosa. E, como a AT, omitindo nos presentes autos essa anterior tramitação.
Considerando que a alínea c) do n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil (CPC), subsidiariamente aplicável ex vi da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, determina que “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: (...) aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”, e que o n.º 2 do artigo 412.º do CPC, determina que quando o tribunal se socorra de factos de que teve conhecimento por virtude do exercício das suas funções “deve fazer juntar ao processo documento que os comprove”, propus, sem êxito, despacho no sentido de juntar aos presentes autos a reclamação graciosa e a sua decisão, comum aos actos de liquidação de IRC por retenção na fonte de 2017 e 2018, que constavam do processo n.º 368/2021-T. Com base na junção desses documentos podiam provar-se, na minha opinião, duas coisas:
- que, tendo a AT considerado intempestiva a reacção contra as liquidações de 2017, e tendo-se o Requerente conformado com essa decisão, impugnando, na sequência, apenas as de 2018, o subsequente pedido de revisão oficiosa, que teve lugar ao abrigo da parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, implicaria uma contradição nos termos: invocava um “erro imputável aos serviços” que, desde a revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT pela alínea h) do n.º 1 do artigo 215.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, manifestamente não poderia existir (porque a AT nem sequer tinha alguma vez chegado a pronunciar-se sobre o mérito dos ditos actos de auto-liquidação por retenção na fonte: na reclamação graciosa, porque, sendo intempestiva, não os considerou; no pedido de revisão oficiosa porque, quando o Requerente foi notificado para se pronunciar sobre o sentido da decisão, já tinha apresentado o PPA que deu lugar aos presentes autos);
- que, como se decidiu no processo n.º 629/2021-T – cuja fundamentação propunha replicar no projecto que apresentei (e me parece ser uma decorrência do que reputo ser a melhor jurisprudência arbitral neste particular – vg, decisões nos processos ns. 691/2021-T, 250/2021-T, 189/2021-T, 19/2021-T, 662/2020-T, 362/2020-T), o “Requerente não imputou um erro à AT – imputou um erro ao legislador.
Ora, o processo de revisão oficiosa dos actos tributários por parte de quem está vinculado à lei não pode permitir ultrapassar erros dessa lei.”
Em suma: se o sujeito passivo deixa passar o prazo de consolidação do acto, e fica dependente da invocação de um “erro imputável aos serviços”, tem de apresentar argumentos sobre o erro na actuação da AT que não possam ser liminarmente rejeitados por esta. Como os que assentam na desconformidade da sua própria actuação, mais a mais por estrito cumprimento da lei que a AT não pode alterar (mesmo que tal lei tenha sido supervenientemente tida como desconforme com o Direito da União), não podem constituir “erro imputável aos serviços”, não havia, em minha opinião, fundamento para o pedido de revisão oficiosa que está na origem do presente PPA e, portanto, este não devia ter sido julgado.
(Martins Alfaro)
(Cristina Aragão Seia)
[1] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.07.2006, proferido no processo n.º 402/06.