Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 239/2022-T
Data da decisão: 2022-09-21  IUC  
Valor do pedido: € 1.793,10
Tema: IUC – Incidência subjetiva na redação dada pelo DL 41/2016, de 01.08 – Locação financeira – Validade das faturas para provar transações.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I - RELATÓRIO

1. A..., S.A. – Sucursal em Portugal, adiante designada Requerente, com o número de pessoa coletiva..., com sede na Rua ... n.º ... – Edifício ..., ...-... Carcavelos, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante «RJAT», apresentou em 07.04.2022, um pedido de constituição arbitral e de pronúncia arbitral em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), visando impugnar a decisão do Diretor de Serviço Central de 31.0.2022, tomada em subdelegação de competências,  que indeferiu um recurso hierárquico em que se solicitou a anulação da liquidação do Imposto Único de Circulação (IUC) de um conjunto de veículos.

2. O pedido de pronúncia arbitral incide sobre 16 atos de liquidação do IUC do ano de 2020 que, tendo sido pagos atempadamente pela Requerente, foram posteriormente objeto de pedido anulação, em sede de reclamação graciosa e de recurso hierárquico, pedido esse que as autoridades tributárias não atenderam.  Com o pedido de anulação, a Requerente solicita o reembolso do indevidamente pago, bem como o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT, calculados à taxa legal.

3. Nos termos do disposto nos artigos 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, o Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro singular em 27.05.2022.

4. Na mencionada data foram as Partes notificadas dessa designação, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD, não tendo as mesmas manifestado a intenção de recusar a designação do árbitro.

5. Em conformidade com o disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 15.06.2022.

6. Nos termos do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, a AT foi notificada, enquanto parte requerida, para no prazo de 30 dias apresentar resposta e, caso entendesse, solicitar a produção de prova adicional, devendo no mesmo prazo ser remetida cópia do processo administrativo.

7. Nessa resposta, em 30.08.2022, a Requerida sustentou a legalidade das liquidações efetuadas, solicitou a dispensa da audição de testemunhas oferecidas pela Requerente e da realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, dado ter considerado estar em causa apenas uma questão de direito, tendo concluído pelo pedido de improcedência do pedido de pronúncia arbitral e pela manutenção dos respetivos atos tributários, remetendo simultaneamente cópia do processo administrativo.

8. Em 09.09.2022, o Tribunal Arbitral após um exame preliminar da documentação existente e da profusa explanação da posição das Partes, dispensou a audição das testemunhas, duas bancárias de profissão, e a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, tendo fixado como data-limite para a prolação do despacho a data de 23.09.2022.

 

II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

9. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, é materialmente competente e as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, sendo legítimas, à luz dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.  

10. O processo não padece de vícios que o invalidem e não existem incidentes que importe resolver nem questões prévias sobre as quais o Tribunal Arbitral se deva pronunciar.

  

III – DA POSIÇÃO DAS PARTES

11. A Requerente, a fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, no essencial, diz o seguinte:

11.1. É uma instituição de crédito em que uma parte substancial da sua atividade reconduz-se à celebração de contratos de locação financeira (LSG) ou de aluguer de longa duração de veículos automóveis (ALD), destinados à aquisição por empresas e particulares.

11.2 Esses contratos obedecem, de uma forma geral, a um guião comum, em que a Requerente, depois de contatada pelo cliente que, nessa fase, já escolheu o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características e, inclusive, o seu preço, adquire o veículo ao fornecedor indicado pelo próprio cliente e, de seguida, procede à sua entrega a esse cliente, assumindo este a qualidade de locatário.

Durante o período estipulado no contrato, o locatário restitui o financiamento em prestações mensais, na forma de rendas, tendo o direito, no final do contrato, de adquirir o veículo, mediante o pagamento de um valor residual, acrescido de despesas e do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA.

11.3. Estão em causa no pedido de pronúncia um conjunto de 16 veículos que foram objeto deste tipo de contratos, e nos termos dos quais foi transferida a sua propriedade, como o atestam as faturas de venda, delas constando o valor residual do bem locado, acrescido de despesas e de IVA, afirmando que nas datas respeitantes aos factos tributários que originaram as liquidações do IUC já não era locadora nem proprietária dos veículos pelo que não pode assumir a qualidade de sujeito passivo.

11.4 A Requerente tem vindo a proceder à apresentação dos competentes pedidos de registo e propriedade em nome dos atuais proprietários, instruindo os pedidos com as faturas de venda, enquanto meio de prova.

 

12. Em termos de direito, a Requerente pretende ver esclarecida a questão da qualidade de sujeito passivo e da responsabilidade pelo pagamento do IUC.

12.1 Discorre sobre a tese da presunção (in)ilidível, referindo que a jurisprudência maioritariamente arbitral tem realçado que nem mesmo durante a vigência de um contrato de LSG ou de ALD deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo do imposto, pelo que, por maioria de razão, após o término do contrato, quando o locatário exerce o seu direito a adquirir o bem locado pelo valor residual, torna-se o novo proprietário.

Afirma que a Requerida, conforme decorre da análise do indeferimento do recurso hierárquico, fundamenta os atos de liquidação no facto de, nos anos em que o IUC se tornou exigível, a sua propriedade ainda se encontrava registada na Conservatória do Registo Automóvel (CRA) em nome da Requerente, solução que  esta rejeita porque os efeitos do registo automóvel e o princípio da equivalência não apontam nessa direção, mas também porque tal não se coaduna com os elementos gerais da interpretação das leis constantes dos artigos 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) e 9.º do Código Civil (CC). 

12.2 Argumenta que o registo de propriedade automóvel não é condição de eficácia do contrato de compra e venda mas tem somente eficácia declarativa, transcrevendo, em abono da referida tese, extratos de um extenso parecer do jurista Agostinho Cardoso Guedes, publicado na Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas n.º 23 (2013), em que, designadamente, se diz «Em suma uma vez celebrado o contrato de compra e venda do veículo locado a favor do locatário, este adquire a propriedade do mesmo por mero efeito do contrato, e, concomitantemente, a qualidade de sujeito passivo do IUC, agora já não como titular de uma opção de compra, mas como proprietário de pleno direito. Se o proprietário não proceder de imediato ao registo de propriedade a seu favor, presume-se que a propriedade continua a pertencer ao vendedor (artigo 7.º do CRP) mas esta presunção é relativa, ou seja pode ser afastada mediante prova em contrário».

12.3 O mesmo parecer, em continuação, refere que «Só os terceiros para efeitos de registo que atuem de boa-fé podem prevalecer-se da ausência de registo para (tentar) adquirir direitos sobre o bem não registado», não preenchendo a Administração Fiscal os requisitos legais do conceito de terceiro para efeitos de registo.

12.4. Por outro lado, à luz dos elementos de interpretação racional ou teleológica, porque o princípio da equivalência está consubstanciado no artigo 1.º do CIUC – no atual e novo quadro de tributação automóvel – daí decorre que o sujeito passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo visa compensar.

12.5 Do recurso às regras elementares de hermenêutica jurídica (elemento histórico) extrai-se a observação preliminar de que desde a entrada em vigor do DL 59/72 sempre o legislador consagrou (ou quis consagrar) a presunção (segundo crê, ilidível) dos sujeitos passivos do imposto serem as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontram registados.

12.6 Da conjugação do artigo 349.º do CC, relativo à matéria de presunções, e do artigo 73.º da LGT, a conclusão a tirar é que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC constituiu uma presunção júris tantum, portanto ilidível.

12.7 Uma interpretação do n.º 1 do artigo 3.º com o n.º 1 do artigo 6.º, ambos do CIUC, levada ao extremo, poderia levar a que veículos abatidos fora das normas legais aplicáveis, permanecessem sujeitos ao imposto uma eternidade, salientando que o próprio CIUC contém normas que apelam a realidades não registadas, caso dos veículos com matrícula estrangeira que permanecem em Portugal para além dos prazos de admissão temporária.

12.8 Finalmente, alude ao artigo 17.º A do CIUC, introduzido pelo artigo 215.º da Lei 82-B/2014, de 31 de dezembro, para referir que não é mais do que uma clarificação das normas de incidência subjetiva do IUC – 82.º do pedido de pronúncia, pelo que, face ao exposto, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC configura uma presunção ilidível que admite sempre prova em contrário. Acrescenta que o artigo 17.º A não contempla uma regra de incidência subjetiva, mas versa sobre os efeitos fiscais da regularização da propriedade e principia com «sem prejuízo do disposto no artigo 3.º», porquanto a pessoa que está inscrita como proprietária do veículo automóvel e que por essa razão é considerada pela AT como sujeito passivo de IUC, pode apresentar elementos de prova com vista a demonstrar que o titular da propriedade é outrem.

12.9 Para sintetizar as alegações produzidas, no sentido da presunção ilidível, a Requerente menciona um conjunto de decisões arbitrais, transcrevendo, por vezes, no que lhe importa demonstrar, alguns excertos das mesmas, referenciadas aos Processos n.ºs 333/2018-T, 236/2019 - T, 740/2016-T (recentemente retificado), 695/2020-T, 333/2018-T, e 283/2019-T.

13.1 Debruçando-se sobre o valor probatório das faturas, a Requerente alude de novo ao estudo do jurista Agostinho Cardoso Guedes, transcrevendo que a prova pode ser feita «por qualquer meio, uma vez que a lei não exige para este contrato forma escrita. Assim, e designadamente, a prova pode ser feita por confissão, verbal ou escrita, por testemunhas ou por documento. Neste último caso, por exemplo a prova pode ser feita por apresentação de uma declaração de venda (incluindo a declaração preparada para efeito de registo) ou de uma fatura/recibo da venda do veículo». 

13.2 Sobre esta questão do valor probatório das faturas, a Requerente refere um conjunto de decisões arbitrais, de que destaca a do Processo n.º 283/2019-T, que transcreve um excerto de um Acórdão do STA com o n.º 66/14.1BEMDL 273/18, de 20.03.2019,  em que se escreve que «Dado que o registo do direito de propriedade sobre uma coisa móvel, cuja validade depende da regularidade do respetivo ato constitutivo apenas confere publicidade ao ato registado, sempre é possível ilidir a presunção de que o titular inscrito no registo coincide com o efetivo titular do registo registado. Assim, quando o titular do direito de propriedade inscrito no registo não coincidir com o titular do direito de propriedade é possível ilidir a presunção de que o titular registado é o titular do direito registado, em numerosas situações com repercussões ao nível do direito civil e comercial. Deverá admitir-se que o mesmo aconteça em sede de direito fiscal, com a consequente possibilidade de produzir a alteração em sede de incidência subjetiva de imposto dando prevalência ao ato constitutivo do direito sobre o ato registado». «No contexto das relações tributárias, e especificamente para efeitos de tributação em IUC, a exibição de faturas comerciais emitidas pelo sujeito passivo é suficiente para ilidir a presunção do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, afastando a sua qualidade de proprietário dos veículos», teses corroboradas no mesmo sentido pelos acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 22.08.2018, processo n.º 938/13.5BEPRT, de 19.06.2019, processo n.º 1269/14.9BEPNF  e processo n.º 2502/14.2BEPRT de 01.06.2017.

Outras decisões arbitrais citadas, com transcrição no que importava demonstrar, foram a n.º 598/2016-T, 14/2013-T, 845/2015-T, 27/2013-T, 230/2014-T, 133/2018-T e 430/2017 e 258/2017-T, em que um coletivo considerou que «... a fatura constitui documento contabilístico elaborado no seio da empresa e que se destina ao exterior, mormente à AT, que dela extrai todos os efeitos inerentes em sede de valoração para incidência de diversos impostos. Logo, a menos que se demonstre a sua falsidade, as faturas presumem-se válidas para todos os efeitos legais, não podendo deixar de o ser, apenas e só, como meio de prova da transação, ou seja, da compra e venda efetuada», n.º 462/2019-T, n.º 158/2017-T, n.º 128/2019-T e n.º 332/2018, de que faz extensa transcrição.

14.1 Finalmente, a Requerente discorre sobre «Da interpretação da AT maximalista da receita tributária e cerceadora do princípio da equivalência».

Alude ao princípio da igualdade tributária, que se desdobra na capacidade contributiva e da equivalência, apoiando o seu raciocínio em textos doutrinais de. Sérgio Vasques, cita Casalta Nabais para fazer emergir o princípio da praticabilidade que «implica que o legislador não vá tão longe na determinação das soluções legais quanto seria de exigir, permitindo deixar à administração uma dada margem de livre decisão, sob pena de nos depararmos com soluções impraticáveis», e realça a importância do princípio da equivalência no campo da incidência subjetiva para a resolução do litígio.

14.2 Considera que, caso se admita a tese da presunção inilídivel defendida pela AT, «de que o sujeito passivo deverá ser necessariamente a pessoa em nome da qual se encontre registada a propriedade do veículo automóvel, incluídas as entidades locadoras, sempre se dirá que a interpretação daquela norma, nesses termos, padece de INCONSTITUCIONALIDADE, revelando, pois a sua desconformidade com o principio da equivalência consagrado no artigo 13.º da CRP.». 

14.3 O entendimento da AT sobre a presunção inilídivel é totalmente contrária à lógica subjacente ao artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), citando o Acórdão n.º 348/97, de 29 de abril de 1997, do Tribunal Constitucional sobre a ilegitimidade constitucional das presunções absolutas na medida em que impedem o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva prevista na respetiva lei e dando conta que o artigo 73.º da LGT é um reflexo de tal interpretação. «Para que a interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC possa estar em harmonia com o princípio da equivalência, que é constitucionalmente tutelado, esta presunção de causação de custo ou de aproveitamento de um benefício deixa de subsistir no momento em que o putativo proprietário apresenta prova da transmissão da propriedade do veículo, prova essa válida pera efeitos de direito civil.».

14.4 Conclui que, ainda que admitisse uma interpretação do disposto no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC como presunção inilídivel, não era possível aplicar essa interpretação à situação vertente (entidade locadora) sob pena de manifesta e crassa inconstitucionalidade.

15. Por seu turno, a Requerida em resposta ao pedido de pronúncia arbitral, vem dizer, no essencial, o seguinte:

15.1 Salienta que na tarefa interpretativa deve estar sempre presente o escopo do regime instituído com a reforma da tributação automóvel, designadamente com o IUC. A sistemática do imposto nomeadamente o âmbito de incidência subjetiva o facto constitutivo da obrigação do imposto mostra que o legislador quis expressa e intencionalmente no âmbito da liberdade de conformação legislativa que o IUC assentasse na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.

15.2 Os antecedentes legislativos em matéria de incidência subjetiva do Regulamento do Imposto Municipal sobre Veículos e do Regulamento do Imposto de Circulação e Camionagem mostram que o legislador do IUC se quis afastar de uma presunção, estando essas motivações bem demonstradas na Proposta de Lei n.º 118/X que foi enviada à Assembleia da República

15.3 Interpretado à luz do elemento literal a expressão considerando-se em vez de presumindo-se não é mera semântica, foi uma opção legislativa dos princípios e normas orientadoras descritas no despacho que criou Grupo de Trabalho que levou a cabo a Reforma da Tributação Automóvel.

15.4 À luz de uma interpretação racional e teleológica o entendimento não pode ser outro que não seja o legislador ter pretendido expressa e intencionalmente que fossem considerados sujeitos passivos do imposto, aqueles que figuram no registo sendo esta a interpretação que preserva a unidade do sistrema jurídico-fiscal.

15.5 O registo automóvel português é um elemento estruturante da determinação de tributação com base no qual se determina o sujeito passivo do imposto por referência ao sujeito ativo do imposto.

15.6 Sob os efeitos do registo automóvel, sublinha que, mesmo admitindo que do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial a ausência de registo não afeta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, no âmbito tributário o legislador quis que a incidência subjetiva do IUC fosse aferida pela inscrição do titular do direito de propriedade no registo automóvel, tornando esta inscrição como uma realidade evidente, assente na fé pública emanada pelo registo.

15.7 A operacionalidade do imposto passou pela criação de um sistema que, com poucos recursos, assegurasse que se conseguissem promover as liquidações de IUC dentro dos prazos de caducidade e as respetiva cobranças, doutra forma o custo/benefício do imposto não seria acautelado.

15.8. As regras do registo foram sendo adaptadas, permitindo, por exemplo, o registo por qualquer uma das partes ou a criação de regimes excecionais de regularização da propriedade como aconteceu em 2008 ou em 2014, casos dos Decreto-Lei n.ºs 20/2008 e 177/2014 sendo elucidativo o preâmbulo deste último, com a aprovação do artigo 17.º A do CIUC.

15.9 A atuação da AT está estritamente vinculada à lei, sendo o princípio da legalidade um dos princípios norteadores da atividade administrativa.

15.10 A alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 ao n.º 1, do artigo 3.º do CIUC mostra que o legislador pretendeu que o sujeito passivo do imposto fosse indiscutivelmente o proprietário, independentemente de ser ou não o titular do direito real de propriedade sobre o veículo, de forma a serem ultrapassadas as dificuldades interpretativas evidenciadas nalguma jurisprudência judicial e arbitral sobre a natureza «júris tantum» da presunção.

15.11 A jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais tem feito uma inequívoca distinção entre a redação originária do artigo 3.º, n.º 1, e a que decorreu da alteração do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, caso do acórdão do STA, de 2020-06-03, Processo 467/14.OBEMDL 356/18, de que a alteração não tem natureza interpretativa.

15.12 Nos acórdãos do TCAN n.ºs 00611/134 BEVIS e 1271/14. 0BEPNF, reafirma-se o facto de o legislador ter afastado qualquer presunção legal, transcrevendo-se deste último um largo excerto com a conclusão de que o Decreto-Lei n.º 41/2016 afastou qualquer presunção quanto a quem pode ser proprietário.

15.13 O acórdão do TCA Norte n.º 888/13.5 DEPRT conclui no sentido de o Decreto-Lei ter introduzido um novo enquadramento jurídico, conclusão que é igualmente reafirmada na Decisão n.º 417/2020-T e em várias outras decisões arbitrais, n.ºs 410/2020-T, 256/2020-T, 90/2020-T, 557/2019-T e 658/2018-T.

15.14 Referenciando o sumário da Decisão Arbitral n.º 69/2020-T de que «O artigo 3.º n.º 1 do IUC na redação vigente até 2016 estabelece uma presunção legal que admite prova em contrário...» conclui que a falta de registo em nome do novo adquirente faz com que a incidência subjetiva se mantenha no titular do direito de propriedade inscrito na CRA e seja este o responsável pela liquidação e pagamento do IUC, independentemente da sua alienação.

16. Realça que o relevo que a Requerente atribui ao princípio da equivalência não tem essa amplitude, tratando-se de uma norma de caráter programático, sem caráter vinculativo, como decorre da doutrina, citando para o efeito um comentário de A. Brigas Afonso e Manuel Fernandes em anotação ao referido artigo de que «o princípio da equivalência, que agora impregna a fiscalidade automóvel, vai valendo como norma programática e como referencial que ajuda o decisor político a legitimar a tributação especial neste importante setor económico.

17. Por fim, rebate o argumento da Requerente de que a AT sabia ou devia saber que os automóveis em causa já não eram propriedade da mesma no momento (ano mais concretamente) em que os impostos deveriam ter sido pagos, mencionando uma contradição entre a anulação e o registo de locação financeira de um determinado veículo, que extrapola para os demais, concluindo pela falta de fiabilidade e credibilidade da prova apresentada.

18. Em conclusão, solicita a improcedência do pedido arbitral, e a consequente desconsideração do pedido de juros indemnizatórios.

 

IV - DOS FACTOS

19. O Tribunal Arbitral não se irá pronunciar sobre toda a matéria alegada pelas Partes, e em conformidade com o artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, ex-vi do artigo 29.º do RJAT, procederá a uma seleção dos factos que julga relevantes para a respetiva tomada de decisão. Assim, face aos elementos constantes dos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

a) A Requerente é uma instituição de crédito que se apresenta atualmente como um dos maiores bancos especializados a operar no financiamento ao setor automóvel, na área dos bens de consumo, cartões de crédito e empréstimos pessoais com presença no mercado nacional, em que uma parte substancial da sua atividade se reconduz à celebração de contratos de locação financeira destinados à aquisição de veículos automóveis, por empresas e particulares.

b) Esses contratos obedecem, de forma geral, a um guião comum, em que a Requerente, depois de contatada pelo cliente que, nessa fase, já escolheu o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características e, inclusive, o seu preço, adquire o veículo ao fornecedor indicado pelo próprio cliente, e de seguida, procede à sua entrega ao cliente, assumindo este a qualidade de locatário.

c) Durante o período estipulado no contrato, o locatário restitui o financiamento em prestações mensais, na forma de rendas, tendo o direito, no final do contrato, de adquirir o veículo, mediante o pagamento de um valor residual, acrescido de despesas e IVA. 

d) A Requerente celebrou contratos de aluguer de longa duração ou de locação financeira para os veículos indicados na alínea seguinte, tendo os locatários, no final desses contratos e nos respetivos termos, adquirido os veículos, para o que a Requerente emitiu as respetivas faturas de venda.   

e) Os veículos cujas liquidações foram impugnadas, todas do ano de 2020 e mês de dezembro, conforme consta do Processo Administrativo, para os quais a Requerente procedeu oportuna e atempadamente ao pagamento do IUC e pede a sua restituição, são os seguintes, mencionando-se a matrícula, data da matrícula com a consequente obrigação de pagamento do imposto e os montantes pagos:

 

Matrícula     Data da matrícula                     IUC pago            

...                     19.02.2002                            32,52 €

...                      23.12.2002                           32,52 €

...                      06.12.2007                           53,85 € 

...                      28.12.2011                          181,77 €        

...                      18.12.2011                          137,68 €

...                      09.12.2010                         137,68 €

...                       31.12.2012                         147,21 €

...                       27.12.2011                         108,14 €

....                     16.12.2008                         166,84 €

...                      15.12.2010                         259,49 €

...                      02.12.2008                        207,13 €

...                      06.12.2012                         147,21 €

...                      23.12.2003                           57,73 €

...                       27.12.2006                           36,96 €

...                       18.12.2008                            32,52 €

 ...                        28.12.2006                           53,85 €

 

f) De acordo com a documentação posta à disposição pela Requerente, os veículos foram sujeitos a contratos de aluguer de veículo automóvel sem condutor ou de locação financeira, e sujeitos às seguintes transmissões:

...– Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 23.12.2002, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 60 meses. Emitida a fatura de venda n.º 2007/12/6565 H, em 03.12.2007, no montante de 707,22 €, IVA incluído.

 

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 04.12.2009, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 60 meses. Emitida a fatura de venda n.º 22014/12/6565 H, no montante de 1482,01 €, IVA incluído.

                                

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 05.02.2007, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 72 meses. Emitida a fatura de venda n.º 12008/1086843, em 01.08.2018, no montante de 5097,61 €, IVA incluído.

      

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 13.02.2011, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 84 meses. Emitida a fatura de venda n.º 12019/415, em 01.01.2019, no montante de 2769,85 €, IVA incluído.

                                  

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 23.12.2002, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 72 meses. Emitida fatura de venda n.º 12017/1765190, em 12.12.2017, no montante de 555,60 €, IVA incluído.

     

...-   Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 03.12.2010, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 72 meses. Emitida a fatura de venda n.º 2201/6348, em 03.01.2007, no montante de 351,66 €, IVA incluído.

     

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 28.12.2012, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 59 meses. Emitida a fatura de venda n.º 12017/1706466, em 28.11.2007, no montante de 4020,04 €, IVA incluído.

       

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 28.12.2011, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 72 meses. Emitida a fatura de venda n.º 12019/415, em 01.01.2019, no montante de 2769,85 €, IVA incluído.

      

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 17.12.2008, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 12 meses. Emitida a fatura de venda n.º 2009/12/11512 H, em 02.12.2009, no montante de 5552,27 €, IVA incluído.

      

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 15.12.2010, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 60 meses. Emitida a fatura de venda n.º 2205/226805, em 08.12.2015, no montante de 687,83 €, IVA incluído.

       

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 04.12.2008, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 72 meses. Emitida a fatura de venda n.º 22014/88258, em 01.12.2014, no montante de 1394,92 €, IVA incluído.

     

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 03.12.2012, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 84 meses. Emitida a fatura de venda n.º 12019/6707401, em 10.12.2019, no montante de 2040,00 €, IVA incluído.

       

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 17.02.2003, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 24 meses. Emitida a fatura de venda n.º 2005/12/7765 H, em 05.12.2005, no montante de 3106,48 €, IVA incluído.

      

...- Objeto de contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 07.07.2008, com contrato de promessa de compra e venda ao fim de 84 meses. Emitida a fatura de venda n.º 22015/96898, em 01.07.2015, no montante de 1313,53 €, IVA incluído.

        

...-   Objeto de contrato de locação financeira, em 19.12.2006, com opção de compra ao fim de 60 meses. Emitida a fatura de venda n.º 2006/34070/01, em 29.06.2010, no montante de 1474,36 €, IVA incluído.

     

...- Objeto de contrato de locação financeira em 04.04.2002, com opção de compra ao fim de 72 meses. Emitida a fatura de venda n.º 2012/12/30 R, em 04.12.2012, no montante de 1758,35 €, IVA incluído.

      

g) Segundo certidão emitida pela Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, de 6 de setembro de 2021, todos os veículos à data do facto gerador encontravam-se registados no nome da Requerente.

h) A Requerente reclamou graciosamente visando a anulação das liquidações e interpôs recurso hierárquico do despacho de 26.10.2021, de não atendimento da reclamação, que foi indeferido em 31.01.2022, por despacho do Diretor de Serviço Central da AT, ao abrigo de subdelegação de competências. 

20. Os factos foram dados como provados tendo em consideração os documentos trazidos ao processo pela Requerente, cuja autenticidade não foi posta em causa pela Requerida, consubstanciados no pedido de pronúncia arbitral e anexos com situações negociais respeitantes aos diversos veículos e na informação constante do processo administrativo junto aos autos pela Requerida.

21. Com relevância para a apreciação da causa, o Tribunal Arbitral não dá como provado que, em razão das cláusulas contratuais que implicavam a aquisição dos veículos pelos locatários no fim dos contratos, as quantias constantes das faturas emitidas pela Requerente tenham sido pagas, mediante o pagamento de um valor residual, acrescido de despesas e IVA e que, por sua iniciativa, estivesse em curso o registo de propriedade em nome dos atuais proprietários. 

 

V - QUESTÕES A DECIDIR:

22. Entende este Tribunal Arbitral que deve dar resposta às seguintes questões:

a) – A norma de incidência subjetiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, consubstancia uma ficção, insuscetível de demonstração em contrário, ou continua a ser suscetível de uma interpretação presuntiva;

b) A prova documental junta ao processo pela Requerente é, ou não, um meio idóneo e apto para firmar a propriedade dos locatários no final dos contratos;

c)  No caso de procedência de uma decisão arbitral favorável à Requerente e encontrando-se a dívida de IUC já paga, atento o facto da mesma ter sido reclamada e indeferida hierarquicamente, com a sua anulação, são, ou não, devidos juros indemnizatórios.

 

VI – FUNDAMENTAÇÃO

23. O artigo 9.º, n.º 1 do CC preceitua que a interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicado. Por seu turno, o n.º 3 do mesmo artigo preceitua que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

O recurso a este artigo 9.º está presente na legislação fiscal por via do artigo 11.º, n.º 1 da LGT, segundo o qual, na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

24.1 Em termos de elemento histórico, a reforma da fiscalidade automóvel teve na sua génese os estudos efetuados por um Grupo de Trabalho (GT), mandado constituir por Despacho Conjunto dos Ministros de Estado e das Finanças e do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional (Despacho Conjunto n.º 290/2006, de 27 de março, (2.ª série), em que se definiram um conjunto de orientações, destacando-se princípios de eficiência, eficácia e simplicidade e o recurso sempre que possível, a soluções eletrónicas, que facilitassem o cumprimento das obrigações fiscais e a fiscalização dos regimes, para o que deveriam ser procuradas soluções integradas que permitissem segurança e eficácia nas liquidações e cobranças através do envolvimento em processos de transmissão eletrónica de dados e acesso à informação de entidades externas ao ministério das Finanças.

24.2 No que respeita especificamente ao imposto de circulação, que se viria a designar por IUC, as orientações respeitaram à ponderação na forma de cálculo da categoria do veículo, da cilindrada e das emissões específicas do CO2 ou de outras emissões poluentes constantes da homologação técnica, da consideração do grau poluidor dos motociclos e quadriciclos e de que o novo sistema fosse aplicável apenas aos veículos que fossem introduzidos no consumo no âmbito da sua vigência.

24.3 Os trabalhos desse GT culminaram com propostas, que vieram a consubstanciar a Proposta de Lei n.º 118/X, de 7 de março de 2007. A exposição de motivos foi clara ao apontar uma deslocação de parte da carga fiscal do momento da admissão no consumo dos veículos para a fase de circulação, pretendendo-se «formar um todo coerente» que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na «medida dos custos ambientais que cada individuo provoca à comunidade».

24.4. No referido despacho nada se disse especificamente quanto ao acolhimento da forma legal de instituição dos sujeitos passivos do imposto, pelo que, ao se apresentar uma solução legislativa que vai buscar a informação de que carece para as operações de cobrança do IUC a uma base de dados de uma entidade externa ao ministério das finanças, no caso aos registos da CRA, por se entender que é a que melhor corresponde aos princípios de eficiência, eficácia e simplicidade, o recurso a uma tal solução extrafiscal não pôde deixar de ter em conta as condicionantes resultantes das finalidades e da própria natureza da formação de uma tal base de dados, obrigatória, mas meramente declarativa.

24.5 Essa solução foi facilitada pelo facto de já existirem ligações eletrónicas permanentes entre a administração fiscal, a entidade competente para a atribuição de matrículas e as conservatórias do registo automóvel, neste caso para o registo dos ónus fiscais e de tributação residual, donde a solução encontrada ter sido a que melhor se adequou aos referidos princípios, pois com reduzidos custos, uma vez que a base de dados já existia, teve a possibilidade de transformar um imposto de circulação num imposto de registo e de arquitetar uma liquidação e cobrança de imposto muito alargada subjetivamente. 

 

25.1 Era um imperativo que se vinha a colocar há algum tempo, por um lado pelo anacronismo do IMV, que representava uma insignificância em termos de receita, e pela falta de sistematização e dispersão legislativa do Imposto Automóvel (IA) e, por outro, pela necessidade da integração de diretiva comunitária, em matéria de introdução dos níveis de emissões do dióxido de carbono (CO2) como fator de tributação.

25.2 O poder legislativo partiu com objetivos bem definidos, e sabia que os mesmos apenas poderiam ser alcançados com soluções práticas e expeditas, sendo pressuposto que das mudanças a operar não resultasse nem acréscimo nem quebra da receita.

26. A versão inicial do referido artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, preceituava que «São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados.».

26.1 Para melhor se compreender as razões da alteração desta versão inicial, concretizada pela publicação da Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, importa averiguar os antecedentes legislativos da incidência subjetiva no domínio da fiscalidade automóvel, os quais remontam ao ano de 1972.

26.2 O Decreto-Lei n.º 599/72, de 30 de dezembro, instituiu um denominado «Imposto sobre Veículos» em que «O imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados».

26.3 Esta redação transitou sucessivamente para o Decreto-Lei n.º 782/74, de 31 de dezembro, para o Decreto-Lei n.º 81/76, de 28 de janeiro e finalmente para o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de junho, legalmente designado por «Imposto Municipal sobre Veículos», aplicável aos automóveis ligeiros de passageiros e motociclos.

26.4 O Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de maio, que aprovara o «Regulamento dos Impostos de Circulação e Camionagem», este aplicável aos veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias particular ou por conta própria ou rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, adotou a mesma incidência subjetiva.

26.5 Com a entrada em vigor da Lei n.º 22-A/2007, os Decreto-Lei n.ºs 143/78 e 116/94, foram expressamente revogados, tendo havido uma inovação da incidência subjetiva, pois a palavra «presumindo-se» foi substituída por «considerando-se», tendo igualmente sido eliminada a expressão «até prova em contrário».

27.1 A norma fiscal da incidência subjetiva esteve sempre subordinada às regras do registo automóvel, cujos antecedentes históricos são os seguintes:

O Decreto-Lei n.º 47 952, de 22 de setembro de 1967, no artigo 1.º considerava que «O registo de automóveis tem essencialmente por fim individualizar os respetivos proprietários e, em geral, dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis».

Por sua vez, o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, na versão do Decreto-Lei n.º 242/82, reafirma o mesmo sentido, preceituando que «O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico».

Nos termos do artigo 5.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 54/75 afirma-se que estão sujeitos a registo, entre outros, o direito de propriedade e de usufruto dos automóveis, sendo obrigatório o registo de tal facto, particularizando o Decreto n.º 55/75, igualmente de 12 de fevereiro, que aprovou o Regulamento de Registo Automóvel, a existência de um prazo de 60 dias a contar da data da atribuição da matrícula para que o mesmo seja requerido, conforme decorre do artigo 42.º, n.ºs 1 e 2.

27.2 No que respeita à atividade desenvolvida pela Requerente estabelece a alínea e), do n-º 1 do mesmo Decreto-Lei n.º 54/75 que o registo é feito mediante requerimento subscrito pelo vendedor, na sequência do exercício do direito de propriedade ou de aluguer de longa duração registado, acompanhado da fatura correspondente à venda ou de documento de quitação.

28.1 Como decorre da legislação sobre registos, a sua finalidade principal é a de transmitir segurança ao comércio jurídico, uma vez que o número de automóveis em circulação exponenciou para mais de cinco milhões de veículos e quem compra e quem vende tem de ter mecanismos de segurança mínimos quanto à transação que efetua, seja para acautelar os recebimentos do que vende e as responsabilidades cíveis, contraordenacionais ou penais em que o veículo possa incorrer no após venda, seja para o comprador se assegurar de que adquire um veículo a um vendedor legitimo nas condições acordadas, ou seja, é um instrumento jurídico de garantia.

28.2 No entanto, como resulta do texto da lei, não está excluída a possibilidade de lhe poderem ser atribuídas outras finalidades, como seja a de, a partir da respetiva base de registos, serem fornecidas informações a outras entidades que dela careçam, como sejam as autoridades de investigação criminal, ou de sancionamento de infrações ao código da estrada, de elaboração de estatísticas por parte de entidades públicas ou mesmo privadas, ou, como no caso presente, às autoridades fiscais.

28.3 O legislador fiscal sempre soube as contingências da base de dados dos registos automóveis, e ao utilizar a palavra «presumindo-se», tinha perfeita noção de que o artigo 349.º do CC lhe conferia a faculdade de extrair uma conclusão do facto dos veículos se encontrarem matriculados ou registados no nome de uma determinada pessoa, ou seja a de que eles seriam os proprietários, a chamada ilação, todavia, sujeita a poder ser ilidida mediante prova em contrário, conforme o impunha o artigo 350.º n.º 2 do CC, e como as próprias normas tributárias o reafirmavam.

A expressão «até prova em contrário», não deixava, de resto, outra via interpretativa, uma vez que reforçava a natureza presuntiva «juris tantum» da norma.

 

28.4 Todavia, a versão inicial do CIUC, ao utilizar a palavra «considerando-se», deu azo a que se tenham suscitado dúvidas sobre o alcance da referida alteração, tendo havido um forte pendor jurisprudencial a sustentar a manutenção de uma presunção, como se explicita no acórdão do STA, de 20-03-2019, Processo nº 466/14, em que se afirma “Dado que o registo do direito de propriedade sobre uma coisa móvel, cuja validade depende da regularidade do respetivo ato constitutivo, apenas confere publicidade ao ato registado, sempre é possível ilidir a presunção de que o titular inscrito no registo coincide com o efetivo titular do direito registado. Assim, quando o titular do direito de propriedade inscrito no registo não coincidir com o titular do direito de propriedade é possível ilidir a presunção de que o titular registado é o titular do direito registado, em numerosas situações com repercussões ao nível do direito civil e comercial. Deverá admitir-se que o mesmo aconteça, em sede de direito fiscal, com a consequente possibilidade de produzir a alteração em sede de incidência subjetiva de imposto dando prevalência ao ato constitutivo do direito sobre o ato registado. O legislador pretendeu com o artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação dotar a Administração Tributária de um mecanismo de fácil identificação dos sujeitos passivos deste imposto socorrendo-se da presunção constante do art.º 7.º do CRP, aplicável subsidiariamente ao registo automóvel de que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define».

29. A natureza dos anteriores impostos, baseados num facto gerador representado pela circulação, nunca colocou problemas na sua aplicação, pois era por via de uma vinheta aposta no para-brisas do veículo que as autoridades policiais fiscalizadoras verificavam se o veículo tinha a sua situação tributária regularizada, não relevando a mera propriedade do veículo, o qual poderia estar numa garagem ou num qualquer outro recinto não sujeito às regras do Código da Estrada. No entanto, com a mudança de paradigma de imposto de circulação para imposto sobre a propriedade, a questão começou a colocar-se com uma certa acuidade, pois o legislador, muito embora ciente das dificuldades iniciais de sanear um registo automóvel desatualizado, em que se estimava que mais de um milhão de veículos, embora registados, já não existiam fisicamente, fruto das regras práticas que então imperavam no mercado, e que continuam a subsistir embora numa escala muito mais limitada, pretendeu que o registo automóvel fosse base suficiente para subjetivamente imputar o imposto.

30.1 O imposto em si, tem um alargado número de abrangidos e uma dinâmica viva. Há uma apreciável renovação da incidência objetiva, com correspondentes novos proprietários, pois por via da entrada de novos veículos no consumo e do abate de veículos em fim de vida, que se estima entre os 5 e os 7%, assim como também na subjetiva, em matéria de transação de veículos usados e de mudanças de domicílio, pelo que apenas soluções baseadas em bases de dados eletrónicas e com o mínimo de intervenção humana permitem concretizar os objetivos subjacentes ao despacho de eficiência, eficácia e simplicidade e inexistência de quebra de receitas.

30.2 As importâncias correspondentes aos IUC de cada veículo, não sendo propriamente bagatelas fiscais – sendo certo que as liquidações inferiores a 10 € não são objeto de pagamento, também não assumem expressão financeira quantitativa que justifique o exercício de um inquisitório relevante, pelo que o sistema de cobrança tem de encontrar formas que permitam realizar a finalidade do imposto, sem que se defrontem com múltiplas intervenções administrativas.

30.3 Para que o efeito útil preconizado na proposta legislativa, de deslocação da carga fiscal da fase única da admissão para fases sucessivas do aniversário da matrícula do veículo não fosse frustrado, era necessário que a área da incidência subjetiva não fosse um «Calcanhar de Aquiles» do regime, ou seja, teria de se acautelar o facto do Estado ir deixar de receber uma parte significativa do ISV de uma única vez para o passar a receber em prestações pagas anualmente, com todos os riscos inerentes à grande transmissibilidade dos veículos e ao fator psicológico de anualmente confrontar o sujeito passivo com montantes de imposto que não tinham qualquer comparação com os anteriormente praticados no âmbito do IMV.

30.4 Muito embora o propósito da deslocação da carga fiscal tenha sido abandonado no ano de 2010, uma vez que a percentagem anual de 5%, das taxas aplicáveis aos veículos admitidos a partir da entrada em vigor do CIUC, que começou a ser transferida do ISV para o IUC por meio do agravamento das taxas, cessou no referido ano, tendo-se ficado apenas pelos 15%, conforme o n.º 3, do artigo 10.º do CIUC, uma vez que foi ponderado o risco de trocar a receita certa pela incerta, a cobrar em prestações anuais, algumas dificuldades práticas detetadas nos oito anos de vigência do IUC, e alguma litigância em volta do conceito da «incidência subjetiva», resultante do acolhimento de uma base de dados externa, motivaram o levaram o legislador a promover um conjunto de alterações, tendo obtido através da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que aprovou o OE para 2016, uma autorização legislativa no sentido do Governo «Definir, com caráter interpretativo, que são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas de direito público ou privado, em nome dos quais se encontre registada a propriedade dos veículos, no n.º 1 do artigo 3.º».

 31. Esta autorização veio a ser concretizada pela Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, nos seguintes termos:

«1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.

2 - São equiparados a sujeitos passivos os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

3 - ....»

 

32. A autorização legislativa ao habilitar a uma definição com caráter interpretativo de uma lei que então vigorava, poderia supor uma interpretação autêntica da lei, declarando formal e obrigatoriamente o sentido da lei, mas, na prática, não foi isso que aconteceu, pois o texto aprovado pelo legislador não foi meramente interpretativo mas inovou para o futuro o conceito de incidência subjetiva, representando uma rotura com o quadro legislativo, uma vez que visou afastar de vez qualquer pretensão de ilidir a prova de que o proprietário de um veículo, muito embora esteja registado no seu nome, não é sujeito passivo do imposto.

33. O legislador converteu a base de dados dos registos de propriedade automóvel numa base de dados fiscal constituída por sujeitos passivos, abstraindo-se da formação da sua constituição e da respetiva natureza declarativa, pretendendo assim com esta mudança que as questões que se suscitavam com a titularidade da propriedade formal versus propriedade efetiva não levantassem dificuldades à liquidação e cobrança do imposto,

A exigência constante do Despacho Conjunto de reforma da fiscalidade, onde pontificava a necessidade de eficiência, eficácia e simplicidade e que se materializa através do recurso a soluções eletrónicas, em que há um envolvimento em processos de transmissão de dados e acesso à informação de entidades externas ao ministério das Finanças, foi mantida, mas o legislador conferiu-lhe uma autonomia jurídico-fiscal, pretendendo imunizá-la das «fragilidades» da sua formação.

34.1 As necessidades financeiras do Estado são permanentes, donde a perceção de insegurança  na respetiva cobrança, ter levado o legislador fiscal, em nome dos interesses da sociedade a transformar a base de dados dos registos automóveis numa base de dados de sujeitos passivos ou, na terminologia do artigo 1.º do CIUC contribuintes, numa solução que, ainda assim, admitiu revisões oficiosas das liquidações quando o erro seja imputável às entidades competentes para a manutenção, conservação e atualização das matrículas.

34.2 Como em qualquer imposto, é de primordial importância a componente financeira e a administração tributária tem a obrigação de potenciar as respetivas receitas através da adoção de procedimentos que facilitem o cumprimento das obrigações fiscais e que contrariem eventuais tentativas de embaraço da cobrança, seja por atos deliberados, seja simplesmente pela inércia dos contribuintes, uma vez que as suas atribuições são exercidas na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários. – artigo 55.º da LGT, devendo os atos a adotar no procedimento ser os adequados aos objetivos a atingir, de acordo com os princípios da proporcionalidade, eficiência, praticabilidade e simplicidade – artigo 46.º do CPPT, no fundo, os proclamados no despacho conjunto. 

Decorre do artigo 266.º n.º 2 da CRP, que os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e devem atuar no exercício das suas funções com respeito pelo princípio da proporcionalidade.

35.1 Todavia, este Tribunal Arbitral tem sérias dúvidas que a solução encontrada pelo legislador, ao ignorar o princípio da coerência valorativa, não fira a unidade do sistema jurídico, vista na sua globalidade, pois a uma realidade subjetiva de um mesmo facto igual, construída numa base meramente declarativa por interessados num procedimento, representada por documentos a que a ordem jurídica reconhece validade formal, o legislador atribui efeitos distintos, consoante esteja em causa as incidências do direito civil ou do direito fiscal, permitindo num regime aquilo que não consente no outro.

35.2 Acresce que também no domínio exclusivamente fiscal, o afã do legislador em encontrar uma solução expedita para a cobrança do IUC, ultrapassando as dificuldades com que se estava a deparar, ignorou normas fiscais relevantes com interesse para a decisão da causa.

36.1 O registo da propriedade automóvel tem subjacente um documento particular de contrato de compra e venda e é obrigatório, havendo um prazo para ser efetuado sob pena de incorrer numa penalização financeira. Todavia, como se assinala no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.02.2004, Processo 03B4639 «O registo não surte eficácia constitutiva pois que se destina a dar publicidade do ato registado, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível (presunção júris tantum) da existência do direito (artigo 1.º n.º 1 do CRP84 e 350.º n.º 2 do Código Civil) bem como da respetiva titularidade, tudo nos termos dele».

36.2 Conforme o artigo 349.º do CC, presunção é a ilação que o legislador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, referindo o n.º 2 do artigo 350.º do código atrás referido que «As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, exceto nos casos em que a lei o proíba».

36.3 O papel do Estado em matéria de registo automóvel não tem uma verdadeira certificação oficial, muito embora haja uma validação da informação prestada por parte das conservatórias por onde as declarações são distribuídas eletronicamente, para o que existem formulários com campos de preenchimento. No entanto, nunca foi além da disponibilização de informação para o exterior sobre as relações jurídicas que se encontram envolvidas na compra e venda de veículos, nunca se intrometendo nas relações contratuais estabelecidas entre as Partes, deixando aos Tribunais a tarefa de escrutinar a legalidade e a autenticidade documental, mediante o inconformismo de quem eventualmente se sentir lesado. A propriedade encontra-se registada, mas não significa que não possa ser posta em causa pois o referido registo é apenas indiciador de que aquela pessoa, em face de um contrato de compra e venda que celebrou, é a proprietária.

37. Constata-se, todavia, que o legislador, que por simplificação apelidamos de tributário, no exercício do seu «jus imperium» apropriou-se da base de registos automóvel e converteu a sua maleável natureza numa ficção jurídica, tendente a superar as dificuldades com que se confrontava, instituindo aquilo que Rudof von Jhering  (Finzione giuridica . Enciclopédia Treccari) definiu como «uma mentira técnica consagrada pela necessidade», isto porque constatou que o referido instituto não lhe garantia que os objetivos que perseguia em termos de procedimentos escorreitos e metas de cobrança fossem alcançados, uma vez que existia uma incerteza que decorria do facto do regime que era a sua fonte prever que quem é proprietário, afinal pode o não ser.

O legislador tributário estabelece que são sujeitos passivos as pessoas em nome das quais se encontra registada a propriedade, no entanto, essas pessoas, não obstante terem o registo do veículo em seu nome, tem ao seu alcance no âmbito da legislação civil a possibilidade de demonstrar que não são efetivamente os proprietários, mediante naturalmente a apresentação de provas conducente ao apuramento dessa outra realidade fática subjetiva.

38. Manuel de Andrade ao procurar os termos em que a ratio legis de uma determinada disposição deve ser tida em conta na atividade interpretativa e sobre a questão do valor dos diversos elementos meios ou subsídios de interpretação (textual, racional ou teleológico, sistemático e histórico) diz que os princípios da interpretação devem dar-nos a possibilidade de atrás das palavras encontrarmos os pensamentos possíveis, mas também de entre os possíveis descobrirmos o verdadeiro, sendo uma das maneiras de o extrair ter em conta aquele mediante o qual a lei exteriorize o sentido mais razoável, mais salutar e produza o efeito mais benéfico, pois a vida jurídica mais e melhor se desenvolve ou prospera se as leis tiverem o sentido mais razoável e significativo e a jurisprudência deve considerar uma alta e capital missão o servir pela razão do Direito a vida do Direito.

«Decerto que, segundo este ponto de vista, várias significações são possíveis, podendo assim ver-se tanto numa como noutra a boa solução. Mas em tal caso devemos recorrer à conexão das disposições legais e preferir a interpretação mercê da qual a lei apresente a estrutura mais consequente e mais organicamente correta; e em particular havemos de tomar em consideração o encadeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas.» (Ensaio sobre a teoria da interpretação das Leis, páginas 23 a 27, Arménio Amado – Editor – Coimbra - 1978).

Referindo-se ao legislador refere a páginas 101 que, «A justa linha política ou legislativa está, portanto, num quid medium entre um idealismo utopista, que despreza todas as contingências históricas, e um realismo sem horizonte, que divinisa o atual, erigindo arbitrariamente todo o ser em dever ser.».  

39.1 Entende este Tribunal Arbitral que a unidade do sistema jurídico não comporta garantias diferenciadoras, consoante a entidade que dispõe da informação, ou seja, se a informação constante dos registos é assumida com certas condicionantes e a Administração Tributária a vai recolher para os seus fins específicos, ao proceder a essa recolha, não pode deixar de ter em consideração essas condicionantes. Na verdade, a criação da ficção constante do IUC é um artifício técnico interessante, parente das presunções absolutas, mas conforme resulta do artigo 2.º da LGT, em matéria de legislação complementar, às relações jurídico-tributárias aplica-se em primeiro lugar a LGT e só num nível seguinte o CPPT e os demais códigos e leis tributárias.

39.2 Na prevalência interpretativa das leis tributárias prevalece a LGT e com ela um acervo de normas comuns e transversais à generalidade dos impostos, de que se destacam as presunções em matéria de incidência tributária, conforme resulta do artigo 73.º com o ónus da prova dos factos constitutivos do direito a recair sobre quem os invoque.

 

40.1 Por via de ficção, que a CRP e a LGT expressamente não consagram, pretende-se que a capacidade contributiva imputada a um sujeito passivo não seja suscetível de demonstração em contrário, o que se extrai do acórdão do TACN n.º 1271/14 BEPNF quando afirma que a propriedade e a posse não são elementos de incidência subjetiva do imposto.

A incidência e as garantias dos contribuintes são áreas muito sensíveis que tem guarida constitucional no artigo 103.º, n.º 2 da CRP, pelo que terá de haver especiais cautelas na formulação de normas que lhe digam respeito, de modo que não deixe de estar presente a justiça, a proporcionalidade e a praticabilidade. A LGT em matéria de fins de tributação preceitua no n.º 2 do artigo 5.º que a tributação respeita os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material.

40.2 Francesco Ferrara ao analisar a discordância entre o resultado da interpretação lógica e o da gramatical admite o extremo de se negar sentido e valor a uma disposição de lei, quando se verifica a sua absoluta contraditoriedade e incompatibilidade com outra norma supra-ordenada, afirmando que, quando entre duas disposições há uma contradição absoluta e não se descobre nenhum meio de as conciliar, a interpretação deve logicamente eliminar a norma contradicente, no que chama «interpretativo abrogans», devendo, no entanto, ter-se em consideração o diverso grau de importância das normas contraditórias. (In Interpretação e aplicação das leis, página 151 e 152, tradução de Manuel de Andrade – Coimbra 1978).

40.3 A eficiência da administração tributária na gestão de um imposto com estas características carece de soluções legais expeditas, mas tem de encontrar justiça e verdade na tributação, não podendo subalternizar ou eliminar mesmo a função do artigo 73.º da LGT, no que toca especificamente à incidência, como mecanismo de ponderação de interesses, assim como do procedimento contraditório próprio ou de reconhecimento de interesses legítimos previstos nos artigos 64.º e 145.º do CPPT.

40.4 O acórdão n.º 348/97, de 29 de abril de 1997, do Tribunal Constitucional é uma fonte inspiradora do referido artigo 73.º ao acordar na interpretação de uma determinada norma do Código do Imposto de Capitais, na versão do Decreto-Lei n.º 197/82, que o segmento que não permitia a elisão da presunção da onerosidade dos mútuos efetuados pelas sociedades a favor dos respetivos sócios violava o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição. Na fundamentação refere que «o estabelecimento pelo legislador fiscal de uma presunção júris et de jure veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria coletável fixada à revelia do princípio da igualdade tributária. Com efeito, o estabelecimento de presunções com o objetivo de conferir certeza e simplicidade às relações fiscais, de permitir uma pronta e regular perceção dos impostos e de evitar a evasão e a fraude fiscal, como adverte Casalta Nabais (ob.cit. p.279) «tem de compatibilizar-se com o princípio em análise, o que passa, quer pela ilegitimidade constitucional das presunções absolutas que impedem o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva visada na respetiva lei, quer pela exigência de idoneidade das presunções relativas para apresentarem o pressuposto económico tido em conta».

41. Nestes termos, e respondendo à questão mencionada na alínea a) do n.º 22 da presente decisão arbitral, a LGT estabelece no artigo 2.º, alínea a) uma prevalência de leis, impondo-se, ela por si própria,  de acordo com a natureza das matérias, às relações jurídico-tributárias do CPPT e dos demais códigos, onde se inclui o CIUC, (alínea b) do mesmo artigo), pelo que a atual redação do artigo 3.º n.º 1 do CIUC, ao instituir uma ficção em matéria de incidência subjetiva,  pretende neutralizar a aplicação do disposto no artigo 73.º da LGT, o que não se mostra legalmente possível, sendo este mesmo artigo 73.º, o quid médium referido por Manuel de Andrade a que se deve ater o intérprete.

Por outro lado, a redação sub judice confronta o intérprete com uma quebra do princípio da coerência valorativa e da importância da unidade do sistema jurídico, vista na sua globalidade, pois a uma mesma realidade subjetiva (proprietários constantes de uma base de dados) atribui efeitos distintos, consoante estejam em causa as incidências do direito civil ou do direito fiscal.

42.1 A Requerida interroga-se como poderia saber que os automóveis já não eram da propriedade da Requerente, no momento em que os impostos deveriam ter sido pagos, não valorizando a prova consubstanciada nos contratos de locação e de aluguer sem condutor e a valia e efeitos jurídicos das faturas apresentadas, sublinhando um caso específico relacionado com o veículo com a matrícula ..., em que não existiu linearidade registral.

42.2 Após alguma divergência decisória é atualmente mais ou menos pacífico, em nome de uma certa coerência e unidade do sistema fiscal, que as faturas que são emitidas no âmbito de impostos, como o IVA (artigo 29.º, n.º 1, alínea b), que no caso dos operadores económicos viabiliza a dedução do imposto e a sua contabilização como custo) e o IRC (artigos 23.º, n.º 6 e 123.º n.º 2),  para efeitos de comprovar operações de venda e de prestação de serviços, originando, em regra, liquidações e cobranças subsequentes, não poderão deixar de produzir os mesmos efeitos fiscais, ainda que, para o caso presente, num sentido inverso, ou seja, desonerando da responsabilidade fiscal.

42.3 Ainda que não seja dado como provado que todas as faturas emitidas pela Requerente tenham sido objeto do pagamento do preço, como resulta das alíneas a) e c) do artigo 879.º do Código Civil, a compra e venda tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade ou da titularidade do direito e a obrigação de pagar o preço, sendo que, em face da falta de pagamento do preço, não pode o vendedor, salvo convenção em contrário, resolver o contrato.

42.4 No entanto, assiste razão à Requerente quando afirma que não tinha condições para saber quem era o sujeito passivo, pois por muita informação que a administração tributária recolha, o tratamento dessa informação tem de ser direcionado e não é o facto da AT poder ter conhecimento de milhões de transações, por via do e-fatura, e do cumprimento de obrigações declarativas contabilísticas que a torna habilitada a tratar situações de que não tem conhecimento, além do mais porque a obrigação acessória que existia no artigo .19.º do CIUC. foi eliminada.

43. O comércio jurídico de veículos sofreu nas últimas décadas uma grande transformação quanto às suas formas próprias de se manifestar, existindo muitas empresas que se dedicam a esta área especifica de financiamento e disponibilização de veículos, e celebram centenas ou milhares de contratos.

As exigências empresariais quanto à necessidade de dispor permanentemente de automóveis em condições mecânicas e de conforto para o prosseguimento das suas atividades e a perda da noção individual de propriedade por parte dos particulares relativamente aos veículos, deixando cair a estima por um bem, cuidadosamente conservado e, muitas vezes, fator de vaidade, por soluções pragmáticas, que unicamente se ajustem às necessidades de deslocação e de prestação de serventia, levou a um incremento extraordinário de outro tipo de formas aquisitivas e de uso do bem.

 

44.1 Estão neste caso, soluções como a locação financeira, para a qual o legislador estabeleceu um regime jurídico através da aprovação do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, que justificou pela necessidade de adaptação às exigências de um mercado caraterizado pela crescente internacionalização da economia portuguesa e pela sua integração no mercado único europeu.

É definido como o contrato em que cada uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço determinado ou determinável - artigo 1.º

Pode ser celebrado por documento particular, e no caso dos bens móveis sujeitos a registo, caso dos automóveis, deve conter informação identitária e ser sujeito a inscrição no serviço de registo competente – artigo 3.º.

A posição jurídica do locatário, obriga-o, nomeadamente, a pagar as rendas e a efetuar o seguro do bem locado, tendo o direito de adquirir o bem locado, findo o contrato, pelo preço especificado – artigo 10.º.

44.2 Em termos de registo o Código do Registo Automóvel prevê no artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12 de fevereiro, que estão sujeitos a registo a locação financeira e a transmissão dos direitos dela emergentes (alínea d) e a afetação do veículo ao regime de aluguer sem condutor (alínea f).

44.3 Esta realidade da locação financeira é igualmente tida em conta no âmbito da incidência subjetiva do IUC pois o legislador prevê no artigo 3.º n.º 2 que «São equiparados a sujeitos passivos os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.» (Redação dada pela Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto).

44.4 O legislador ao equiparar determinadas categorias de possuidores a sujeitos passivos está a por em paralelo, igualar por comparação, julgar-se semelhante, igualar (Dicionário da língua portuguesa – Porto Editora – 1977) as pessoas singulares ou coletivas que tem propriedade dos veículos registada com os possuidores de automóveis que, for força do contrato de locação, são suscetíveis de se vir a tornar proprietários dos veículos.

 

45.1 A responsabilidade do pagamento do IUC é endossada, no caso da Requerente, pela sua transferência para o locatário, uma vez que por força do disposto no artigo 4.º do CIUC, relativo à incidência temporal do imposto: “1 - O imposto único de circulação é de periodicidade anual, sendo devido por inteiro em cada ano a que respeita. 2 - O período de tributação corresponde ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários, relativamente aos veículos das categorias A, B, C, D e E, e ao ano civil, relativamente aos veículos das categorias F e G. 3 - O imposto é devido até ao cancelamento da matrícula ou registo em virtude de abate efetuado nos termos da lei».

45.2 Ocorrendo os aniversários do veículo em período em que a responsabilidade fiscal é atribuída aos locatários, não se se vislumbra razões para que o mesmo contrato, que equiparou, ou melhor presumiu, que eles eram proprietários registados, e que contempla cláusulas de aquisição com montantes previamente fixado, determine a extinção da responsabilidade fiscal do locatário e não perdure para além dos períodos de locação, pois isso será uma decorrência da livre vontade contratual das partes na celebração do contrato.

45.3 É um facto que nas dezenas de milhares de contratos celebrados anualmente por parte das empresas deste setor, haverá sempre situações que não serão concluídas pelo estrito cumprimento das Partes, designadamente pelo locatário, das cláusulas contratuais que assinou, podendo ter origem nas mais diversas situações, exempli gracia, desinteresse pela manutenção do veículo para além do prazo de locação, falta de pagamento das rendas, emigração dos locatários e desaparecimento do veículo, insolvência dos locatários, falecimentos ou simplesmente inércia na transferência dos veículos para a sua propriedade, não obstante terem pago os montantes residuais acordados.

Os locadores têm ao seu alcance a via cível para fazer cumprir os contratos, o que terá de ser avaliado caso a caso, não só pelos montantes da dívida como também pelas próprias particularidades das situações, uma vez que há uma relação entre o custo de demandar e o benefício que se possa retirar da demanda. Não faz, no entanto, sentido que perante um contrato validamente celebrado, o locador, para se desobrigar do IUC, e face a algum eventual incumprimento, tenha de recorrer a suas expensas a uma transferência de propriedade para alguém que, eventualmente, ainda se encontra em falta no escrupuloso cumprimento do contrato, ou tenha que anular a matrícula, com a respetiva dilação, para evitar a eventual continuação de uma utilização abusiva, suscetível de induzir  responsabilidades, ainda que a mesma não o afaste da condição de sujeito passivo.

46.1 Há interesses diversificados, que não significa que sejam antagónicos, entre o negócio principal dos locadores, cujo  objeto é financiar a aquisição de automóveis e como emprestadores de dinheiro tem pouco interesse em reter os automóveis em fim de contrato, porque são veículos usados com uma óbvia desvalorização comercial, em teoria, igual ao montante residual com que os locatários se comprometeram a pagar no fim do contrato, e o interesse da administração tributária que é liquidar e cobrar o IUC correspondente aos veículos que se encontram matriculados e registados, compreendendo-se que poderá haver um especial interesse em constituir como sujeitos passivos as referidas entidades, não só porque tem um domicilio fiscal mais estável como é  suposto disporem de uma maior capacidade financeira para o pagamento.

46.2. Não se defende interpretações subjetivas diferenciadas quanto à responsabilização da condição de devedor, ou seja, haver distinções entre sujeitos passivos, no entanto a questão dos locatários financeiros, adquirentes com reserva de propriedade e titulares de direitos de opção de compra sempre foi uma área que o próprio legislador civil e fiscal tem isolado da restante atividade de comercialização de veículos e, neste último caso, no período de locação, os locatários, foram os obrigados fiscais e, por essa razão, tiveram um relacionamento com a administração tributária.

46.3 Se nada for alterado, e não houver uma estabilidade jurisprudencial sobre o alcance da alteração introduzida pelo legislador, a situação deste Requerente, concretamente do IUC respeitante aos veículos com matrícula do mês de dezembro de 2020 é suscetível de repetir-se nos anos seguintes, em todos os outros meses do ano em função dos veículos que vai contratualizando, o mesmo se dizendo do conjunto de empresas do setor que operam nas mesmas circunstâncias negociais, com o que isso representa em termos de custos humanos, administrativos e judiciais de Requerentes e Requerida, sendo certo que esta última tem capacidade suficiente para persuadir o legislador a encontrar um remedium júris, necessariamente em base eletrónica, eventualmente numa inversão de ónus.

 

47. Nestes termos e respondendo à questão mencionada na alínea b) do n.º 18 desta Decisão Arbitral, a prova documental junta ao processo pela Requerente é considerada válida e idónea para firmar a propriedade dos locatários e alugadores no final dos respetivos contratos.

48. Finalmente, embora tenha deixado de ser fundamento decisivo para a presente Decisão Arbitral, importa aludir ao princípio da equivalência em que as duas Partes dirimem argumentos contraditórios quanto à sua valia. 

49.1 A Requerente considera que a «Interpretação da AT maximalista da receita tributária é cerceadora do princípio da equivalência» desenvolvendo que, a singrar a tese da presunção inilidível suportada pela AT, «sempre se dirá que a interpretação daquela norma, nesses termos, padece de INCONSTITUCIONALIDADE, revelando, pois, a sua desconformidade com o princípio da equivalência consagrado no artigo 13.º da CRP.»(sic).

49.2 A Requerida, por seu turno, refere que o referido princípio não tem a amplitude que a Requerente lhe pretende atribuir, constituindo apenas uma norma programática, desprovida de caráter vinculativo.

50.1 Sobre esta questão, este Tribunal Arbitral está de acordo com a Requerida quanto à importância que lhe atribui no contexto da tributação em sede automóvel, não podendo o referido princípio da equivalência ser invocado como travão à capacidade da AT em maximalizar a receita tributária, respeitando-se obviamente as normas legais aplicáveis.

50.2 Os impostos sobre os automóveis que o IUC e o ISV vieram substituir foram sempre impostos que, em função das suas taxas e da profusão de classificações fiscais, foram opções políticas que a cada momento, nomeadamente nos anos 90 do século passado, se estabeleceram para proteção da atividade comercializadora, transformadora e até produtora, mas que nunca puseram em causa a sua função principal de coletora de receita.

Não deixando de se assinalar que são impostos internos e, como tal, cabe a cada Estado Membro definir a forma como deve fazer tal acolhimento no respetivo ordenamento, a única alteração, foi a introdução, a partir de 2005, de uma componente ambiental no ISV, visando concretizar metas apontadas por diretivas comunitárias, sem, todavia, perder essa função.  

50.3 Ao ser introduzida uma regra inovadora que pretende balizar a tributação, por via do chamado princípio da equivalência, importa ter algumas cautelas quanto ao seu acolhimento constitucional, uma vez que os sistemas de tributação dos automóveis dos países da União Europeia, baseados nos impostos de registo ou matrícula e nos impostos de circulação não a tem como paradigma, ou seja, não há inocuidades jurídicas, mas tal regra tem de ser interpretada «cum grano salis».

50.4 A equivalência significa a qualidade do que é equivalente, da igualdade de valor, provêm do latim «Aequipollentia» e é uma figura que se adequa na perfeição ao regime de taxas, pois o que se pretende com as mesmas é que as mesmas compensem os custos administrativos e outros que decorrem para os utentes e utilizadores de serviços e prestações resultantes da disponibilização de determinadas infraestruturas, isto para além das outras justificações legais para a aplicação de taxas.

50.5 Analisado o IUC, que se pretende atualmente classificar como imposto sobre o património e não como imposto rodoviário de características indefinidas, e o próprio ISV, têm de se sopesar as vantagens e desvantagens da entrada em circulação dos automóveis e da própria circulação, sendo certo que as vantagens são claramente superiores às desvantagens, pelo que a questão da tributação tem de ser vista no âmbito de um plano económico e não na forma restrita da equivalência das externalidades negativas da admissão e circulação de veículos.

Com efeito, uma parte significativa do funcionamento da economia assenta basicamente na capacidade de transporte das pessoas e na distribuição das matérias-primas e dos bens, para os quais a rigidez do funcionamento do caminho-de-ferro concorre de forma desigual.

A atividade representada pela entrada em circulação dos automóveis promove a dinamização da produção e das redes de distribuição automóvel e desenvolve um circuito assistencial e fiscalizador com grande capacidade de absorção de emprego e gerador de riqueza.

Como valor imaterial, a mobilidade, enquanto emanação de um princípio da liberdade, e a utilização do veículo nos fins profissionais ou no mero lazer, são importantes fatores do progresso económico e da satisfação social.

Mesmo, considerando o exaurir de matérias-primas e outros produtos associados ao fabrico e comercialização dos veículos, ainda assim, o benefício suplanta muito claramente os custos com que se pretende fundamentar o imposto.

50.6 O princípio da equivalência faz algum sentido quando aplicado a produtos cujo consumo excessivo esteja claramente identificado como nocivo à saúde pública, caso do tabaco e do álcool, assim como também no que respeita à definição do regime económico e financeiro de atividades de gestão de resíduos e tem também aplicabilidade no domínio do cálculo do respetivo valor das portagens dos veículos pesados de mercadorias, o próprio ordenamento comunitário chama à colação, em determinadas circunstâncias, coeficientes de equivalência de modo a acolher desvios à forma de cálculo convencional dos quilómetros percorridos, onerando os de maior peso bruto, (Diretiva , 1999/62/CE, do Parlamento Europeu do Conselho, de 17 de junho de 1999), no entanto, este Tribunal Arbitral vê com cautela a invocação do princípio da equivalência por parte da Requerente de que existe uma interpretação maximalista da angariação de receitas da AT, pois o IUC e o ISV são impostos e não taxas, não existindo subentendidos princípios de consignação de receitas.

51.1  Atento o disposto no artigo 9.º, n.º 3 do CC, de que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, e o n.º 2, que não pode o intérprete considerar um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, não poderá deixar de se sublinhar quão difícil é ao intérprete compreender a opção do referido legislador na formulação de princípios, uma vez que, ou eram comuns ao IUC e ao ISV, ou, não o sendo, a sinistralidade rodoviária enquanto consequência direta da ação de circulação, deveria ter sido imputada ao IUC e não ao ISV, enquanto imposto de registo.

51.2 Aliás, a mesma dificuldade se coloca ao intérprete quando se confronta com a equivalência fiscal, em matéria de taxas,  norteada pelos custos, sabendo-se, por exemplo, que dois veículos da mesma marca, modelo e ano de matrícula, em que um circule 10 000 quilómetros por ano e o outro 50 000 quilómetros, pagam o mesmo IUC, ou seja a equivalência, em termos de taxas, deveria ser aferida pela quilometragem efetivamente realizada, como no caso da tributação dos veículos pesados de mercadorias ou da legislação holandesa em que é tida em conta as quilometragens verificadas nas inspeções periódicas, ou mesmo, quanto à incidência temporal, quando o IUC é devido por inteiro no mês do aniversário da data da matrícula e o veículo é retirado para abate em fim de vida ou é destruído por acidente ou outra razão, nos dias ou meses subsequentes, sem que haja um mecanismo de restituição parcial do imposto «equivalente» ao período não utilizado.       

 

52. O Tribunal Arbitral considera que uma interpretação da norma do artigo 1.º do IUC, que indexe o princípio da equivalência ao princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, como o faz a Requerente, e balize o imposto, ainda que de forma programática, à luz do critério do custo ambiental e viário, mesmo que de forma não absoluta, e, na prática, se afaste da satisfação das necessidades financeiras do Estado e da  adaptação à evolução das necessidades de desenvolvimento económico, a que se referem os artigos 103.º e 104.º da CRP, revela-se inadequada e é suscetível de extravasar a sua constitucionalidade, uma vez que, considera os custos legalmente selecionados como referenciais mas ignora os proveitos que a entrada no consumo e a circulação dos automóveis ocasiona, os quais deveriam ser calculados a nível do contributo para o produto nacional, devendo o imposto e as respetivas taxas ser calculadas, estratificadas e uniformizadas, por categorias de veículos, a partir dessa diferença,

 

VII - JUROS INDEMNIZATÓRIOS

53. No que respeita à questão da condenação em juros indemnizatórios, importa apreciar, em conformidade com os artigos n.º 43.º da LGT e n.º 61.º do CPPT, o respetivo pedido da Requerente.

Essa apreciação é efetuada a coberto do artigo 24.º, n.º 5 do RJAT, de acordo com o qual «É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário». A alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo estabelece como um dos efeitos da decisão arbitral o restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários, estando compatibilizado com o artigo 100.º da LGT, segundo o qual a administração tributária está obrigada em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo à  imediata reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litigio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão.  

54. O artigo 43.º, n.º 1 da LGT preceitua que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

O n.º 2 do mesmo artigo refere que «Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.».

Por seu turno, o artigo 61.º, n.º 2 do CPPT estabelece que em caso de anulação judicial do ato tributário, cabe à entidade que execute a decisão judicial da qual resulte esse direito determinar o pagamento dos juros indemnizatórios a que houver lugar.

O n.º 5 do artigo 24.º do RJAT deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

55.1 - No presente caso, a Requerida, liquidou o imposto a quem na base de dados da CRA figurou como titular da propriedade do veículo, tendo-se limitado a, no exercício das respetivas competências, dar cumprimento a um ditame legal de que não poderia exonerar-se, notificando ou facultando uma referência para o pagamento do imposto, a quem, de acordo com a informação de que dispunha, deveria ser considerado o sujeito passivo.

Por força de se tratar de pessoa coletiva, a liquidação do imposto teria de ser feita obrigatoriamente pelo próprio sujeito passivo através da Internet, nas condições de registo e acesso às declarações eletrónicas, conforme o n.º 2 do artigo 16.º do CIUC.

Verifica-se que as liquidações em apreciação foram materialmente efetuadas pela Requerente, de acordo com a informação eletrónica disponibilizada pela entidade Requerida, em termos de identificação das caraterísticas fiscais dos veículos e dos montantes de IUC que deveriam ser pagos em função dessas caraterísticas, e que essas dívidas, assim liquidadas, foram pagas. Nem se poderá considerar que esse pagamento tenha resultado do acatamento de orientações genéricas, dado que ao requerente foi oferecida uma única alternativa para o cumprimento da obrigação.

55.2 Todavia, a Requerente apresentou reclamação graciosa a que se seguiu um recurso hierárquico, indeferido, em que deu conhecimento da situação de facto existente em relação à titularidade dos veículos, tendo havido uma oportunidade por parte da entidade Requerida de, à luz da nova informação, e num âmbito puramente administrativo, reponderar os erros nos pressupostos de facto que afetavam as liquidações, delas extraindo as respetivas consequências em termos de direito, ou seja, passou a ter conhecimento de que as liquidações que promoveu, à luz da matéria factual oferecida, eram suscetíveis de estar eivadas de erro que lhe pudesse ser imputado.

Foi confrontada com factos para os quais deu uma resposta inadequada em termos de avaliação dos pressupostos de direito, incorrendo na prática de vício de violação de lei substantiva. Com efeito, poderia ter anulado as liquidações e restituído os montantes recebidos, redirecionando a sua exigibilidade às pessoas singulares e coletivas mencionadas nas faturas, o que não fez.

55.3 A partir da data do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, e ocorrendo uma pronúncia arbitral de declaração da ilegalidade dos atos de liquidação impugnados, na esteira de jurisprudência do STA nos processos n.ºs 926/17, de 06.12.2017 e 250/2017, de 03.05.2018, em que foram relatores os Conselheiros Dulce Neto e Francisco Rothes, há lugar ao reembolso e ao pagamento  de juros indemnizatórios, por força dos já mencionados artigos 24.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e 100.º da LGT, na redação da Lei n.º 64-B/2011, devendo estes últimos ser calculados à taxa legal das dívidas cíveis, conforme decorre dos artigos 43.º, n.ºs 1 da LGT, 61.º do CPPT e 559.º do Código Civil e Portaria 291/2003, de 8 de abril, devidos até à data do processamento da nota de crédito em que são incluídos (artigo 61.º n.º 5 do CPPT).

 

VIII - CUSTAS PROCESSUAIS

56. Nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4 do RJAT, e do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, (RCPAT) na decisão arbitral consta a fixação do montante e a repartição pelas partes das custas diretamente resultantes do processo arbitral. Tendo a Requerente obtido vencimento na impugnação que deduziu, cabe à Requerida, enquanto parte vencida, suportar as respetivas custas processuais.

 

IX - DECISÃO

57. Nestes termos, o Tribunal Arbitral Singular decide o seguinte:

 a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, no que respeita à suscetibilidade de prova em contrário da norma de incidência subjetiva constante do artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, no sentido de que o locador, com a emissão de fatura, prova não ser o proprietário do veículo, anulando-se os atos de liquidação relativos aos veículos identificados pela respetiva matrícula no n.º 19, alínea e), desta decisão, com a consequente declaração de ilegalidade do indeferimento do recurso hierárquico,

b) Determinar o reembolso pela Requerida das importâncias pagas pela Requerente, em termos de IUC, no montante de 1793,10 €.

c) Julgar procedente o pedido de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da Requerente, devidos desde a data do indeferimento da reclamação graciosa.

d) Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.  

 

X - VALOR

58. Nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicáveis por força do que se dispõe no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT, é fixado o valor do processo em € 1793,10 € (mil setecentos e noventa e três euros e dez cêntimos).

 

XI – CUSTAS PROCESSUAIS

59. Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, aplicável por remissão do seu artigo 4.º n.º 1, as custas são fixadas no valor de 306 € (trezentos e seis euros), a pagar pela Requerida.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 21 de setembro de 2022

O Árbitro Singular

 

 

António Manuel Melo Gonçalves