Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 679/2021-T
Data da decisão: 2022-09-05  IRC  
Valor do pedido: € 325.172,90
Tema: IRC; Fundos de Investimento Imobiliário; artigo 22.º, n.º 3 do EBF; artigo 68.º, n.º 2 do CIRC
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Sumário:

I. O acto tributário considera-se devidamente fundamentado se der a conhecer ao seu destinatário, de forma clara, acessível, congruente e suficiente, as razões de facto e de direito subjacentes à tomada de decisão da AT;

II. Nos termos do n.º 3 do artigo 22.º do EBF, os participantes em fundos de investimento têm de considerar como “proveitos ou ganhos” em sede de IRC a totalidade dos rendimentos auferidos pelo resgate de unidades de participação;

III. O imposto retido “à entrada” na esfera do fundo de investimento tem de ser acrescido à matéria colectável de IRC do participante nos termos do n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC, sendo esse montante simultaneamente dedutível à colecta de IRC a título de pagamento por conta do imposto devido a final;

IV. Não há duplicação de colecta se não se verifica a aplicação da mesma norma de incidência tributária, mais do que uma vez, ao mesmo facto ou situação tributária, que resulte numa nova liquidação de um imposto já anteriormente liquidado e pago.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

         Os árbitros Carla Castelo Trindade (árbitra-presidente), Francisco Nicolau Domingos e Júlio Tormenta (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

        

I. RELATÓRIO       

 

1. A... SGPS, S.A. (“A... SGPS”), NIF ..., com sede na Rua ..., n.ºs .../..., ...-... Lisboa, na qualidade de sociedade dominante do Grupo de Sociedades tributado ao abrigo do Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (“RETGS”) e B..., S.A. (“B...”), NIF..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa (conjuntamente designadas por “Requerentes”), vêm requerer a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade e anulação parcial do acto de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”)  n.º 2019..., referente ao exercício de 2018, e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2021... que incidiu sobre aquele acto.

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”), aqui Requerida, em 20 de Outubro de 2021.

 

            3. As Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 16 de Dezembro de 2021, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 4 de Janeiro de 2022.

 

5. As Requerentes sustentaram a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:

Começaram as Requerentes por defender que a liquidação contestada é ilegal por violação do direito procedimental à fundamentação, previsto no artigo 77.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) e do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”). Segundo as Requerentes, a decisão de indeferimento da reclamação graciosa não estava devidamente fundamentada, na medida em que a argumentação da AT era incongruente, contraditória, obscura e insuficiente, não sendo possível descobrir qual o percurso cognitivo subjacente à tomada de decisão. Consequentemente, concluíram as Requerentes que a falta total de fundamentação afectava o núcleo essencial dos seus direitos fundamentais, o que implicava uma nulidade procedimental, por violação do direito previsto no artigo 268.º, n.º 3, da CRP ou, pelo menos, uma anulabilidade nos termos do artigo 163.º do CPA aplicável ex vi artigo 2.º, alínea d) do CPPT.

            Prosseguiram as Requerentes por defender que na decisão de indeferimento da reclamação graciosa a AT incorreu num erro sobre os pressupostos de facto que impõe a sua anulação por vício de violação de lei. Isto na medida em que, segundo as Requerentes, a AT considerou erroneamente não ser possível comprovar que o rendimento do resgate das unidades de participação (“UP’s”) no Fundo de Investimento Imobiliário C... (“Fundo C...”) concorreu para a formação do lucro tributável do período de 2018. No entender das Requerentes esse facto encontra-se provado, até porque os proveitos e custos declarados pela B... na IES de 2018 detalhavam, no anexo C, a composição do resultado líquido do exercício de 2018, que contém o detalhe dos rendimentos de activos financeiros disponíveis para venda que, por sua vez, é considerado para efeitos da determinação da matéria colectável. O facto de os rendimentos associados ao resgate das UP’s estarem devidamente reconhecidos na contabilidade/proveitos da B... de 2018 resultava ainda, na perspectiva das Requerentes, do balancete analítico da B... a 31 de Dezembro de 2018 e dos correspondentes lançamentos de suporte ao reconhecimento da liquidação e respectivo proveito.

            Continuaram as Requerentes por afirmar que a AT incorreu em erro sobre os pressupostos de direito ao indeferir a reclamação graciosa, impondo-se a sua anulação. Isto pelo facto de, para as Requerentes, não resultar da lei a aplicação aos rendimentos provenientes de aplicações em fundos de investimento o n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC, já que aqueles rendimentos não estão sujeitos a retenção na fonte. No entender das Requerentes, ainda que por hipótese o n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC fosse subsumível ao presente caso, sempre haveria de prevalecer o n.º 3 do artigo 22.º do EBF em virtude do seu estatuto de norma especial, que visa criar condições fiscais mais favoráveis às situações por si reguladas. Por conseguinte, para as Requerentes, resultava da anterior redacção do artigo 22.º do EBF um regime de “tributação à entrada, isenção à saída”, segundo o qual os rendimentos distribuídos aos participantes não deviam ser novamente sujeitos a tributação, designadamente através do regime de retenção na fonte. Nestes termos, deveria o acto de liquidação ser parcialmente anulado, com a consequente consideração de um crédito de imposto de € 325.172,90, correspondente à retenção na fonte suportada pelo fundo de investimento no exercício de 2018.

Subsidiariamente, e apenas para o caso de se entender aplicável a correcção prevista no n.º 2 do artigo 68.º do IRC, sempre deveria o acto de liquidação ser parcialmente anulado, com a consequente consideração de um crédito de imposto de € 325.172,90, acrescendo‑se ao rendimento líquido auferido o montante de imposto retido na fonte na esfera do fundo.

            Invocaram ainda as Requerentes que a AT pretende que seja feito um acréscimo na Modelo 22, correspondente ao imposto que a participante tem o direito a deduzir, dando de novo à tributação os rendimentos já tributados na esfera do Fundo. Consequentemente, entendem as Requerentes que se verifica uma situação de duplicação de colecta, resultante do preenchimento da unicidade do facto tributário, da identidade da natureza entre o imposto já pago e o que de novo se pretende cobrar e da coincidência temporal entre a incidência do imposto pago e o que de novo se exige. Assim sendo, concluíram as Requerentes pela ilegalidade da liquidação de IRC e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contestadas no pedido arbitral, impondo-se a sua anulabilidade nos termos do artigo 163.º do CPA, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea d) do CPPT.

            Por fim, alegaram as Requerentes que a interpretação da AT, segundo a qual a dedução do crédito de imposto associado ao resgate de UP’s está condicionada pela aplicação da norma constante do n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC que prevê a aplicação do mecanismo da retenção na fonte, viola os princípios do Estado de Direito democrático, da proporcionalidade, da igualdade, da legalidade fiscal e da tributação do rendimento real. Assim sendo, concluíram as Requerentes que a liquidação de IRC e a decisão de indeferimento contestadas eram inconstitucionais, impondo-se a sua anulação.

 

            6. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo (“PA”), em 14 de Fevereiro de 2022, tendo-se defendido por impugnação e peticionado a improcedência do pedido arbitral com a sua absolvição de todos os pedidos, o que fez, em síntese, com base nos seguintes argumentos:

            Começou a Requerida por referir que a Informação n.º 98-AIR1/2021 e a fundamentação acrescida ao exercício do direito de audição na informação 131-AIR/21, referem de forma clara o enquadramento e motivação fáctica e jurídica que determinaram o indeferimento do pedido de reclamação graciosa. Para a Requerida não se verifica nem falta de fundamentação nem fundamentação pouco clara ou incongruente, o que é evidenciado pelo facto de a Requerente ter atacado amplamente os argumentos constantes da decisão de indeferimento, demonstrando assim conhecer perfeitamente o iter cognoscitivo e valorativo dos actos tributários em apreço. Mas ainda que se verificassem tais deficiências na fundamentação, sempre haveria que considerar, na perspectiva da AT, que estavam em causa meras irregularidades não essenciais que permitiram, ainda assim, o cabal esclarecimento do seu destinatário e que se devem em qualquer caso considerar sanadas pela falta de recurso das Requerentes ao mecanismo previsto no artigo 37.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

            Prosseguiu a Requerida por salientar as especificidades do regime fiscal previsto no artigo 22.º do EBF, aplicável à tributação de organismos de investimento colectivo (onde se incluem os fundos de investimento) e à tributação dos rendimentos por eles distribuídos. Com base nessas especificidades defendeu a Requerida que ao ser a B... uma pessoa colectiva sujeita e não isenta de IRC, a dedução à colecta do imposto por conta associado às UP’s detidas estava condicionada à consideração para efeitos de determinação do lucro tributável do valor ilíquido gerado pelo fundo de investimento.

Tendo isto presente, reconheceu a Requerida que assistia à Requerente o direito de considerar, a título de imposto por conta, o valor correspondente ao imposto suportado pelo fundo quanto ao rendimento obtido com o resgate das UP’s pela B... . Sucede que, na perspectiva da Requerida, nem nos elementos juntos à reclamação graciosa, nem na documentação junta pela Requerente aos autos, nem da consulta à IES foi possível comprovar que o rendimento do resgate das UP’s concorreu para a formação do resultado tributável do período de 2018. Isto sem contar que, para a Requerida, foi a própria Requerente que confirmou que não incluiu, nem a título de dedução à colecta, nem a título de rendimento o montante de imposto suportado na esfera do fundo.

Dito isto, concluiu a Requerida que o entendimento perfilhado pela AT se encontrava em plena conformidade com a melhor interpretação das normas legais aplicáveis, não sendo possível considerar, a título de pagamento por conta, o valor do crédito de imposto a que a Requerente tem direito porque esta não provou que contabilizou no resultado tributável do período de 2018, e em que montante o fez, o rendimento que auferiu do resgate das UP’s, impondo-se assim a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

            7. Em 28 de Fevereiro de 2022 a Requerente apresentou um requerimento no qual peticionou a junção de documentos aos autos, tendo tal pedido sido deferido em 2 de Março de 2022.

 

8. Por despacho arbitral foi agendada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT para o dia 25 de Março de 2022, pelas 15:00 horas. A reunião realizou-se na data indicada, tendo sido inquiridas as testemunhas arroladas pela Requerente e notificadas as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas, direito que estas vieram a exercer e no qual sublinharam os argumentos anteriormente avançados.

 

            9. Tendo em conta a complexidade do processo e a interposição de períodos de férias judiciais, foi proferido despacho em 4 de Julho de 2022 no qual se prorrogou por dois meses o prazo de prolação da decisão arbitral, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT.

 

II. SANEAMENTO

 

            10. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.

            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas e coligadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

             O processo não enferma de nulidades processuais, nem existem excepções dilatórias ou quaisquer outros entraves à apreciação do mérito da causa.

 

III. DIREITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

 

III.1.1. Factos provados

 

            11. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A A... SGPS, S.A. é a sociedade dominante de um grupo de sociedades que integra a B..., S.A.;
  2. A B... adquiriu, até 30 de Junho de 2015, UP’s no Fundo C...;
  3.  No período de tributação de 2018 a B... resgatou parte das UP’s detidas no Fundo C...;
  4. O rendimento ilíquido derivado do resgate das UP’s foi de € 1.171.794,65;
  5. Por referência àquele rendimento, o Fundo C... suportou tributação por via de retenção na fonte no montante de € 325.172,90;
  6. O Fundo C... distribuiu à B... o rendimento líquido de € 846.621,75;
  7. No período de tributação de 2018 a A... SGPS e a B... foram tributadas ao abrigo do regime especial de tributação de grupos de sociedades;
  8. Em 25 de Junho de 2019 a B... submeteu a declaração Modelo 22 individual, referente ao período de tributação de 2018, nos termos da qual apurou um lucro tributável de € 3.464.211,86, que se traduziu num montante de IRC a liquidar de € 550.546,95;
  9. Em 28 de Junho de 2019, a A... SGPS submeteu a declaração Modelo 22 do Grupo, referente ao período de tributação de 2018, nos termos da qual apurou um prejuízo fiscal no valor de 2.950.900,35 €, que se traduziu num montante de IRC a liquidar de € 156.143,04;
  10. Na sequência da submissão da declaração Modelo 22 do Grupo foi emitido o acto de liquidação de IRC n.º 2019..., relativo ao período de tributação de 2018;
  11. As declarações de rendimento Modelo 22 não incluíram um crédito de imposto no valor de € 325.172,90, correspondente ao imposto suportado na esfera do Fundo C... quanto aos rendimentos referentes às UP’s detidas pela B...;
  12. As Requerentes apresentaram reclamação graciosa de forma a contabilizarem nas declarações de rendimento aquele crédito de imposto;
  13. As Requerentes foram notificadas para exercer o direito de participação na decisão sobre a Reclamação Graciosa, na modalidade de audição prévia;
  14. As Requerentes exerceram o direito de audição no âmbito do procedimento de reclamação graciosa;
  15. Em 21 de Julho de 2021, a AT indeferiu o pedido de reclamação graciosa apresentado pelas Requerentes.
  16. Em 19 de Outubro de 2021 as Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral.

 

III.1.2. Factos não provados

 

            12. Com relevo para a decisão da causa, não se considerou provado que o rendimento do resgate das UP’s no valor de € 1.171.794,65 foi incluído na matéria colectável de IRC, não tendo assim ficado provado que o mesmo concorreu para a formação do resultado tributável do período de 2018.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

            13. Sobre o Tribunal Arbitral não recai o dever de se pronunciar sobre toda a factualidade alegada pelas partes mas tão só o dever de seleccionar a matéria de facto essencial à decisão – tendo em conta a causa de pedir que suporta o pedido arbitral –, bem como o dever de decidir se a considera provada ou não provada, conforme resulta dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT.

            A matéria de facto foi fixada através da escolha dos factos que, pela sua relevância jurídica, se entenderam pertinentes para a decisão da causa, tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões objecto do litígio, em conformidade com o disposto no artigo 596.º, n.º 1, do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

            Em função das posições assumidas nas peças processuais apresentadas no decurso da instância, da prova documental, do processo administrativo juntos aos autos e da prova

testemunhal produzida, que foram objecto de exame e avaliação por este Tribunal tendo por base as regras da experiência de vida e de conhecimento das pessoas e da envolvência, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Quanto à concreta motivação subjacente à matéria de facto dada como não provada, cumpre sublinhar que o Tribunal teve presente as regras de distribuição do ónus da prova e a presunção de boa-fé e veracidade das declarações que resultam, respectivamente, dos artigos 74.º e 75.º da LGT. Sucede que a referida presunção não se verifica no presente caso quanto às declarações de rendimentos Modelo 22 apresentadas pelas Requerentes, já que se considera preenchida a alínea a), do n.º 2, do artigo 75.º da LGT que afasta a presunção consagrada no n.º 1 daquele mesmo artigo nos casos em que as “[a]s declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo”.

A este respeito cumpre ter presente que foram as próprias Requerentes que evidenciam “lapsos” e “omissões” na declaração Modelo 22 da B... e, reflexamente, na declaração Modelo 22 apresentada pela A... SGPS ao nível do grupo, designadamente no que respeita à falta de contabilização de um crédito de imposto no valor de € 325.172,90 que entendiam ter direito a deduzir.

No que em concreto respeita aos rendimentos do regaste das UP’s alegaram as Requerentes no procedimento administrativo e no processo arbitral que a B... Seguros procedeu ao respectivo registo contabilístico como proveitos do exercício de 2018, tendo aqueles rendimentos concorrido para a formação do resultado tributável daquele período. Porém, referiram simultaneamente que não contabilizaram o montante de rendimento correspondente à tributação suportada na esfera do Fundo C..., já que não teriam procedido a qualquer correcção do montante que foi distribuído.

Ora, a verdade é que não resultou demonstrada a contabilização e sujeição a tributação, quer do montante bruto (€ 1.171.794,65), quer do montante líquido (€ 846.621,75) de rendimentos auferidos provenientes do resgate das UP’s. Ainda que as Requerentes tenham junto aos autos elementos de prova adicionais a este respeito, a verdade é que tais elementos apenas permitem chegar a conclusões meramente indiciárias, não permitindo certificar em termos concretos e precisos se aqueles montantes estão ou não incluídos nos € 3.464.211,86 de lucro tributável ou nos € 2.715.458,99 de resultado líquido constante da declaração de rendimentos Modelo 22 junta aos autos com o pedido arbitral. E o mesmo se diga em relação à prova testemunhal produzida em sede da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, sujeita ao princípio da livre apreciação de prova, e que se limitou a afirmar de forma genérica que os rendimentos foram dados à tributação e a indicar o modo segundo o qual foram ou deviam ser efectuadas certas inscrições contabilísticas, sendo certo que estão em causa factos que, em última instância, têm de ser comprovados por confronto com os concretos elementos de prova carreados aos autos.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

IV.1 Ordem de conhecimento dos vícios alegados

 

 

            14. No pedido de pronúncia arbitral as Requerentes imputaram aos actos contestados diversos vícios, tendo formulado parte dos seus pedidos numa relação de subsidiariedade.

            A ordem de conhecimento destes vícios é feita em conformidade com o disposto no artigo 124.º do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT, nos termos do qual são apreciados, em primeiro lugar, os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, posteriormente, os vícios que conduzam à sua anulação. Quanto a estes últimos, a apreciação dos vícios é feita pela ordem indicada pelas Requerentes, desde que se estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade.

            Assim sendo, será apreciado, em primeiro lugar, o alegado vício de falta de fundamentação, em segundo lugar, será apreciado o alegado erro sobre os pressupostos de facto e de direito decorrente da aplicação do n.º 2, do artigo 68.º do Código do IRC, onde se apreciará em conjunto o vício de inconstitucionalidade da interpretação defendida pela AT e, por fim, será apreciado o invocado vício de duplicação de colecta.

 

IV.2 Vício de forma por violação do direito procedimental à fundamentação

 

            15. A este respeito cumpre aferir se a decisão de indeferimento da reclamação graciosa não cumpriu com os requisitos de fundamentação que eram exigidos, tal como alegado pelas Requerentes, ou se, pelo contrário, aquela decisão foi devidamente fundamentada, estando apenas em casa uma mera discordância com o sentido da decisão, tal como invocou a Requerida.

            A vinculação da AT à válida fundamentação dos actos que emite resulta, desde logo, do artigo 268.º da CRP que, no respectivo n.º 3, dispõe que “[o]s actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e

carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos.”.

            Este direito dos administrados a uma fundamentação expressa e acessível é densificado no procedimento tributário através do disposto no artigo 77.º da LGT que determina no seu n.º 1 que “[a] decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária” e que estabelece no seu n.º 2 que “[a] fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”.

            Sublinham a este respeito Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada, Encontro da Escrita, 4.ª ed., 2012, p. 675 que o acto tributário se pode considerar devidamente fundamentado se o mesmo permitir ao seu destinatário “(…) a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela autoridade que praticou o ato, de forma a poder saber-se claramente as razões por que decidiu da forma que decidiu e não de forma diferente”.

            Em idêntico sentido referiu o Supremo Tribunal de Administrativo (“STA”), no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 03014/11.1BEPRT, em 2 de Fevereiro de 2022, o seguinte:

“[p]ara apurar se um acto administrativo-tributário está, ou não, fundamentado impõe-se, antes de mais, que se faça a distinção entre fundamentação formal e fundamentação material ou substancial: uma coisa é saber se a Administração deu a conhecer os motivos que a determinaram a actuar como actuou, as razões em que fundou a sua actuação, questão que se situa no âmbito da validade formal do acto; outra, bem diversa e situada já no âmbito da validade substancial do acto, é saber se esses motivos correspondem à realidade e se, correspondendo, são suficientes para legitimar a concreta actuação administrativa (…)

Tem sido entendimento constante da jurisprudência e da doutrina que determinado acto (no caso acto administrativo-tributário) se encontra devidamente fundamentado (…) se um destinatário normalmente diligente ou razoável - uma pessoa normal - colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto acto (que determinará consoante a sua diversa natureza ou tipo uma maior ou menor exigência da densidade dos elementos de fundamentação) fica em condições de conhecer o itinerário funcional (não psicológico) cognoscitivo e valorativo do autor do acto. Mais se dirá que a fundamentação pode ser expressa ou consistir em mera declaração de concordância de anterior parecer, informação ou proposta, o qual, neste caso, constitui parte integrante do respectivo acto (…)”.

            Tendo presente as exigências de fundamentação dos actos tributários que acabaram de se enunciar, cumpre então aferir se no presente caso as mesmas foram cumpridas.

             

16. A decisão de indeferimento da reclamação graciosa contestada nos presentes autos foi fundamentada pela AT através do acolhimento da Informação n.º 131‑AIR1/20211, prestada pela Unidade dos Grandes Contribuintes.

Nessa informação a AT referiu, em síntese, quanto ao pedido apresentado pelas Requerentes que “(…) na esfera dos participantes o direito à dedução à coleta da tributação havida na esfera dos Fundos está subjacente ao englobamento para efeitos tributários do valor bruto dos rendimentos decorrentes das unidades de participação detidas”.

            Concretizando, entendeu a AT que “(…) em face da particularidade da tributação dos Fundos de Investimento, para efeitos de determinação do lucro tributável, os rendimentos das unidades de participação teriam de ser considerados pelo seu valor ilíquido, em cumprimento do estabelecido no n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC, devendo os respetivos titulares somar aos ganhos provenientes das unidades de participação o montante correspondente ao imposto retido ou devido nos termos do disposto no artigo 22.º do EBF, o qual tendo a natureza de imposto por conta do IRC devido a final, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 22.º, seria suscetível de ser deduzido à coleta do IRC, de acordo com o disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC”.

            Neste sentido, propôs a AT na referida informação o indeferimento da pretensão das Requerentes por entender que “[n]os termos da aplicação conjugada do n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC com o n.º 3 do artigo 22.º do EBF não pode merecer deferimento a pretensão das empresas aqui Reclamantes de verem considerado como dedução à coleta do IRC a título de retenção na fonte o valor do imposto de € 325 172,90, quando não foi incluído na determinação da matéria coletável o valor ilíquido do rendimento resultante das unidades de participação (€ 1 171 794,65)”.

            Portanto, constata-se que a decisão de indeferimento, ao acolher o teor da referida informação que faz parte integrante do seu conteúdo, indicou expressamente as razões de facto e de direito que a motivaram. Ao contrário do defendido pelas Requerentes, é compreensível para um destinatário normalmente diligente ou razoável, colocado perante o concreto acto, que a fundamentação formal da decisão de indeferimento teve subjacente o entendimento da AT de que a tributação dos rendimentos auferidos pela B... provenientes do resgate de parte das UP’s detidas no Fundo C... era conformada pela aplicação conjugada dos artigos 68.º, n.º 2 e 90.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código do IRC e do artigo 22.º, n.º 3, do EBF, que impunham a inclusão na matéria colectável do valor ilíquido do rendimento da UP’s enquanto condição necessária à dedução à colecta do montante de imposto retido na fonte na esfera do Fundo.

            Tanto assim é que as Requerentes demonstraram, quer no exercício do direito de audição no âmbito do procedimento tributário, quer no pedido de pronúncia arbitral, que compreenderem devidamente os motivos subjacentes ao sentido com que foi emitido o acto tributário ora contestado, já que em ambos os momentos procuraram refutar de forma desenvolvida e detalhada os argumentos apresentados pela AT.

            Por conseguinte, verifica-se que o acto de indeferimento da reclamação graciosa deu a conhecer, de forma expressa, clara e congruente os motivos de facto e de direito que determinarem o sentido da decisão da AT. Dito de outro modo, o acto de indeferimento permitiu às Requerentes compreender, de forma acessível e suficiente, o iter cognoscitivo subjacente à tomada de decisão, razão pela qual se considera que aquele acto está devidamente fundamentado na sua dimensão de validade formal.

Saber se as razões invocadas pela AT permitem ou não justificar a legalidade da sua actuação é uma questão que já respeita à validade substancial do acto, isto é, à apreciação do mérito da decisão, sendo certo que a discordância quanto ao mérito não equivale a um vício de forma por violação do direito procedimental à fundamentação.

Em face do exposto julga-se improcedente o vício de falta de fundamentação invocado pelas Requerentes.

 

IV.3 Erro sobre os pressupostos de facto e de direito decorrente da aplicação do n.º 2, do artigo 68.º do Código do IRC aos casos previsto no n.º 3 do artigo 22.º do EBF

 

17. Quanto a este ponto cumpre essencialmente determinar se na tributação dos rendimentos auferidos pela B... em resultado do resgate das UP’s no Fundo C..., prevista no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, era ou não aplicável o regime previsto no n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC, isto é, se tais rendimentos deviam ser incluídos na matéria colectável pelo seu valor ilíquido ou não.

 

18. Ressalva-se que o STA já se pronunciou relativamente a idêntica questão, designadamente no acórdão proferido pela secção, no âmbito do processo n.º 03032/13.5BEPRT, em 12 de Janeiro de 2022, resultante de um recurso ordinário per saltum de uma sentença proferido pelo TAF do Porto em 8 de Junho de 2021, no qual entendeu o seguinte:

Em suma, o art. 22.º n.º 3 do EBF, na redação, do Decreto-Lei n.º 108/2008 de 26 de junho, em vigor no ano de 2009, permitia, a um sujeito passivo de IRC, deduzir à coleta, do exercício, imposto pago (através de retenção na fonte ou não) por um fundo de investimento mobiliário, sem que, previamente, na competente autoliquidação, tivesse de adicionar, a importância correspondente a esse imposto, aos demais valores constitutivos/integrantes da respetiva matéria coletável.

É certo que nos termos do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil o julgador deverá ter em consideração os casos que mereçam tratamento análogo a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito, contudo, entre aquela decisão e o caso aqui em análise não existe uma efectiva identidade fáctica, já que se refere naquela decisão que “como tal não é disputado, subentendemos que a impugnante, no exercício de 2009 (autoliquidação), considerou como proveitos ou ganhos e/ou custos ou perdas, os rendimentos ilíquidos pagos pelos Fundos e mencionados no ponto A) dos factos provados”. Portanto, no acórdão do STA parte-se do pressuposto que os rendimentos auferidos foram incluídos pelo contribuinte na matéria colectável de IRC pelo respectivo montante ilíquido, enquanto nos presentes autos não resultou provado que tivesse sido incluído na matéria colectável de IRC quer o montante bruto quer o montante líquido de rendimentos auferidos em resultado do resgate das UP’s no fundo de investimento. Ora, tal facto influência de forma directa e decisiva as consequências jurídicas a extrair da douta decisão.

 

19. Como ponto de partida, cabe fixar o enquadramento jurídico vigente à data dos factos quanto à tributação dos rendimentos auferidos por fundos de investimento ou por eles distribuídos. Para o efeito, haverá que ter em consideração que ao estarem em causa rendimentos obtidos até ao dia 30 de Junho de 2015 – ainda que distribuídos em momento posterior –, será aplicável o regime de tributação previsto no artigo 22.º do EBF na redacção vigente até à entrada em vigor, em 1 de Julho de 2015, do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de Janeiro, conforme previsto no artigo 7.º, n.ºs 1 e 9 deste Decreto-Lei.

Na esfera dos fundos de investimento determinava‑se, ao que aqui importa, no n.º 1 do artigo 22.º do EBF, que os rendimentos eram “tributados à entrada”, isto é, quando ingressassem nas respectivas esferas jurídicas.

Caso estivessem em causa rendimentos obtidos em território português e que não fossem mais‑valias, a tributação operava através de retenção na fonte como se de uma pessoa singular se tratasse ou, na eventualidade de os rendimentos não estarem sujeitos a retenção na fonte, operava por via de uma tributação autónoma à taxa de 25% sobre o respectivo valor líquido obtido em cada ano, conforme decorria da alínea a), do n.º 1 do artigo 22.º do EBF.

Já quanto aos rendimentos auferidos fora de território português e que não fossem mais‑valias, a tributação efectuava-se de forma autónoma, à taxa de 20%, quanto aos rendimentos de títulos de dívida, lucros distribuídos e rendimentos de fundos de investimento, ou à taxa de 25 %, nos demais casos, incidente sobre o respectivo valor líquido obtido em cada ano, tal como decorria da alínea b), do n.º 1 do artigo 22.º do EBF.

Por fim, se estivessem em causa rendimentos de mais-valias, obtidas ou não em território português, a tributação ocorria de forma autónoma, à taxa de 25%, sobre a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias obtidas em cada ano, em condições similares às aplicáveis a sujeitos passivos de IRS residentes em território português, conforme previa a alínea c), do n.º 1 do artigo 22.º do EBF.

            A par desta tributação “à entrada” na esfera dos fundos de investimento, previa‑se uma “isenção à saída”, ou seja, não se tributavam os rendimentos distribuídos pelos fundos aos respectivos participantes, embora com certas especificidades.

             No que respeita aos participantes que fossem sujeitos passivos de IRS, residentes em território português, e cujos rendimentos não fossem enquadrados na categoria B, determinavam os n.ºs 2 e 10 do artigo 22.º do EBF que os rendimentos resultantes das unidades de participação detidas nos fundos de investimento estavam isentos de tributação. Isto sem prejuízo da opção pelo englobamento com direito à dedução de 50% dos rendimentos previstos no artigo 40.º-A do Código do IRS, caso em que o imposto retido na esfera do fundo passava a ter a natureza de imposto por conta.

            Quanto aos participantes que fossem sujeitos passivos de IRC, residentes em território português, e que não estivessem obrigados a entregar a declaração de rendimentos modelo 22 em virtude da aplicação de isenção, o imposto retido ou devido pelo fundo tinha de lhes ser restituído e pago conjuntamente com os rendimentos respeitantes às UP’s, em conformidade com o disposto no n.º 4 do artigo 22.º do EBF.

            Já os participantes que não fossem residentes em território português e que aqui não tivessem estabelecimento estável a que fossem imputáveis os rendimentos auferidos em relação às UP’s detidas nos fundos de investimento, estavam isentos de tributação, quer em sede de IRS, quer em sede de IRC, nos termos do n.º 5 do artigo 22.º do EBF.

            Por último, o n.º 3 do artigo 22.º do EBF regulava os rendimentos de UP’s em fundos de investimento, obtidos no exercício de uma actividade comercial, industrial ou agrícola, por sujeitos passivos de IRC – como sucedia com a B...–, ou de IRS, que fossem residentes em território português ou que, não o sendo, aqui tivessem estabelecimento estável a que fossem imputáveis. Quanto a estes rendimentos determinava-se no referido artigo que os mesmos não seriam sujeitos a retenção na fonte no momento da sua distribuição aos participantes. Porém, ao contrário do que sucedia com os demais participantes tributados em sede de IRC, não se previa uma isenção “tout court” ou completa” à saída. Pelo contrário, os rendimentos distribuídos pelos fundos aos participantes estavam sujeitos a tributação, já que tinham de ser considerados como proveitos ou ganhos pelos seus titulares e, nessa medida, englobados na matéria colectável. Simultaneamente, o montante do imposto que tivesse sido retido ou fosse devido na esfera dos fundos assumia a natureza de imposto por conta na esfera dos participantes para efeitos da posterior liquidação de IRC ou IRS o que, na prática, significava que seria aí dedutível à colecta.

            Tendo em conta o enquadramento jurídico descrito, constata-se que o regime de “tributação à entrada e isenção à saída” assumia uma maior ou menor amplitude em função da “categoria” ou “tipo” de sujeito passivo em questão, não se prevendo em todo e qualquer caso uma “isenção completa” de tributação relativamente aos rendimentos distribuídos.

No que respeita ao caso ora em análise, não resultava do n.º 3 do artigo 22.º do EBF uma isenção à saída “tout court”, já que os rendimentos provenientes das UP’s auferidos pela B... continuavam a ser tributados em sede de IRC, por força da sua posterior inclusão na matéria colectável, ainda que com a possibilidade de dedução à colecta do imposto suportado na esfera do Fundo C... que seria considerado como pagamento por conta.

 

            20. Aqui chegados, cabe então aferir se os rendimentos auferidos pela B... em resultado do resgate das UP’s no Fundo C... tinham ou não de ser contabilizados e incluídos na matéria colectável pelo seu valor ilíquido, designadamente por aplicação do n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC, que dispõe que “Sempre que tenha havido lugar a retenção na fonte de IRC relativamente a rendimentos englobados para efeitos de tributação, o montante a considerar na determinação da matéria colectável é a respectiva importância ilíquida do imposto retido na fonte.”.

            Tal como acima se mencionou, do regime previsto no n.º 3 do artigo 22.º do EBF não resultava a imposição de retenção na fonte aos rendimentos distribuídos pelos fundos de investimento aos seus participantes. Em todo o caso, nem por isso se pode assumir, sem mais, que a obrigação de englobar os rendimentos obtidos pelos participantes na matéria colectável de IRC não se reportava ao montante ilíquido que tivesse sido auferido.

Veja-se que na referida norma apenas se referia que os “(…) rendimentos respeitantes a unidades de participação nos fundos referidos no n.º 1 (…) são pelos seus titulares [participantes] considerados como proveitos ou ganhos (…)”, nada se dispondo quanto ao concreto modo pelo qual tais rendimentos deviam ser englobados e contabilizados na matéria colectável de IRC.

Por conseguinte, ao não resultar do teor literal da norma apenas um resultado interpretativo possível – já que tem correspondência com o seu teor e sentido verbal quer a eventual consideração na matéria colectável de IRC do montante líquido quer do montante ilíquido de rendimentos auferidos com o resgate das UP’s –, revela-se necessário ponderar os demais elementos da interpretação jurídica.

Até porque resulta do disposto no artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil aplicável ex vi artigo 11.º, n.º 1 da LGT que “[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.

De facto, “[m]ais decisivo do que o elemento linguístico é, porém, o elemento racional ou teleológico – isto é, aquele que, na determinação do enunciado legal, manda atender à finalidade prosseguida a norma interpretanda, isto é, à sua razão de ser (ratio

legis)” conforme bem sublinhou o Tribunal Constitucional, no âmbito do acórdão n.º 175/2018, proferido em 5 de Abril de 2018.

Ainda para mais quando estão em causa benefícios fiscais, cujas normas são qualificadas como anti‑sistémicas por concederem um certo favorecimento a um conjunto delimitado de contribuintes, em clara colisão com os princípios da igualdade (artigo 13.º da CRP) e da capacidade contributiva/tributação pelo rendimento real (artigo 104.º, n.º 2, da CRP). Estas normas são justificáveis na concreta medida do resultado que pretendem obter, de tal forma que a sua interpretação deve valorar especialmente o propósito ou finalidade que lhes está subjacente. A este respeito, salientava Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2007, p. 463, que:

“[u]ma vez que o benefício fiscal está incorporado numa norma de Direito Económico destinada a obter um concreto efeito de direcção da Economia, deverá ser aplicado levando em conta a política económica que corporiza naquele caso concreto. Ou seja, o elemento teleológico e as singularidades de cada caso devem ser determinantes no processo de interpretação‑aplicação de benefícios fiscais. (…) As regras de interpretação a utilizar são, por este motivo, as que podem contribuir para atingir uma tal finalidade. Estamos, então, perante um caso particularmente intenso de interpretação teleológica, que leva em linha de conta a política pública expressa pela norma que concede o benefício fiscal, como modo de proceder à sua aplicação correcta e evitar que as suas finalidades sejam frustradas pelas eventuais incorrecções do texto normativo”.

Portanto, só depois de serem considerados e ponderados os demais elementos interpretativos, maxime o elemento teleológico, e após a plena compreensão do regime consagrado no n.º 3, do artigo 22.º do EBF, é que se estará em condições de analisar a concreta aplicabilidade ao presente caso do n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC.

De um ponto de vista histórico, é possível identificar – por exemplo no artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 246/85, de 12 de Julho ou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho – que a criação de benefícios fiscais na tributação de rendimentos gerados na esfera de fundos de investimento e que são posteriormente distribuídos aos respectivos participantes, tem essencialmente em vista assegurar que estes últimos são sujeitos a um tratamento fiscal idêntico, designadamente no que respeita à carga fiscal, face àquele que resultaria se fossem investidores directos dos activos que compõem a carteira do fundo.

Dito de outro modo, o regime jurídico-tributário dos fundos de investimento visa, em última instância, assegurar o cumprimento do princípio da neutralidade e obstar à ocorrência de situações de dupla tributação económica, garantindo aos agentes económicos/contribuintes que pretendam adquirir UP’s em fundos de investimento que não serão objecto de uma tributação mais onerosa apenas por terem optado por essa via indirecta de investimento.

Neste preciso sentido salienta Eric M. Zolt, “Taxation of Investment Funds” in Tax Law Design and Drafting, Volume 2, International Monetary Fund, 1998, pp. 969 e seguintes, que a neutralidade fiscal apenas será assegurada se os contribuintes forem tratados do mesmo modo independentemente de actuarem como investidores directos ou de investirem indirectamente através de fundos de investimento.

Já na doutrina nacional, referem a este respeito Saldanha Sanches e João Taborda da Gama, “Provisões no âmbito de seguros unit-linked e dupla tributação económica” in Fiscalidade 33, 2008, pp. 64-67, o seguinte:

Em abstracto, os objectivos dos regimes tributários dos fundos de investimento (mobiliários ou imobiliários) devem ser (132):

  1. a dinamização do mercado dos fundos de investimento com a criação de normas destinadas a evitar a dupla tributação económica;
  2. a busca da neutralidade possível entre o investimento em fundos e outras formas de investimento – em especial, os contribuintes devem ser tratados como se investissem directamente nos activos;
  3. a criação de soluções simples do ponto de vista dos deveres de cooperação dos contribuintes e da fiscalização das empresas;

(…) o desiderato principal do seu regime de tributação é o de que os investidores sejam tributados como se investissem directamente nos activos subjacentes (134).

Naturalmente, este objectivo é alcançado por um sistema de tributação que assenta na transparência fiscal. Aplicando este método a entidade que se interpõe entre os investidores e os activos que geram rendimentos é desconsiderada, e os rendimentos são imputados aos participantes ou pelo menos tributados como se tivessem sido estes a auferi-los (135).

Tentemos encontrar, no nosso sistema fiscal, a tradução do que acabámos de afirmar, num sistema que trata, de um modo faseado mas integrado, dos rendimentos do fundo (recebidos ou gerados no seio do fundo) e dos rendimentos respeitantes a unidades de participação (resultantes de distribuição, resgate ou alienação).

O artigo 22.º do EBF (136) estabelece um regime de tributação que tem como objectivo “a não discriminação dos investidores em valores mobiliários ou imobiliários em relação aos investidores directos nos respectivos mercados”

(…) quanto aos rendimentos de unidades de participação detidas:

  1. por sujeitos passivos de IRC; ou
  2. por sujeitos passivos de IRS no âmbito de uma actividade comercial, industrial ou agrícola,
  3. em ambos os casos, residentes, ou desde que os rendimentos sejam imputáveis a estabelecimento estável português, o n.º 3 do artigo 22.º do EBF vem estabelecer um regime diferente.

Segundo o normativo citado:

  1. tais rendimentos não estão sujeitos a retenção na fonte;
  2. tais rendimentos são pelos seus titulares considerados como proveitos ou ganhos; e
  3. o montante do imposto retido ou devido nos termos do n.º l tem a natureza de imposto por conta, para efeitos do disposto no artigo 83.º do Código do IRC e do artigo 78.º do Código do IRS.

Estas normas legais reflectem, claro, um objectivo de transparência fiscal. Os rendimentos originados no investimento através de fundos são tributados como se o titular das UP fosse o titular directo dos activos que compõem o fundo. Por esta razão, o objectivo da lei é que, quando esses rendimentos são transportados para a esfera dos titulares das UP, já estejam tributados e não o voltem a ser.

Assim, os contribuintes de IRS que não actuem no âmbito de actividades da

categoria B e não optem pelo englobamento estão isentos.

Em todos os outros casos [contribuintes sujeitos a IRC, contribuintes sujeitos a IRS que actuem no exercício de actividades da categoria B e contribuintes sujeitos a IRS que optem pelo englobamento], os rendimentos são considerados proveitos ou ganhos e são normalmente tributados, mas as quantias retidas são sempre consideradas imposto por conta e, portanto, deduzidas, nos termos dos Códigos do IRC e do IRS.

Não há, neste ponto do regime, qualquer benefício atribuído aos fundos. Apenas se garante que a tributação funciona como se os investimentos fossem realizados directamente pelo titular das UPs. O regime apresentado é um regime de neutralidade fiscal entre o investimento directo em participações sociais e o investimento através de fundos não personalizados. Tributa o fundo, tendo em vista a tributação dos titulares das suas UPs.”. (destaque nosso)

            Tendo presente a ratio legis identificada, entende-se que a norma constante no n.º 3 do artigo 22.º do EBF deverá ser (teleologicamente) interpretada no sentido de assegurar a neutralidade fiscal, ou seja, no sentido de assegurar que a tributação na esfera do participante se processa em sede de IRC como se este tivesse efectuado directamente os investimentos. Para o efeito, impõe a referida norma que se desconsidere a intervenção dos fundos enquanto intermediários, porquanto o que se pretende é tributar o resultado da realização de activos decorrente do resgate das UP’s.

Consequentemente, resulta daquela norma que os rendimentos auferidos pelo Fundo C... são imputados à B... e tributados como se tivesse sido esta a auferi‑los directamente. Na lógica de “transparência fiscal” a que aludem Saldanha Sanches e João Taborda da Gama, tributa-se o Fundo C... tendo em vista a tributação da B... . Por conseguinte, a tributação inicialmente efectuada na esfera do Fundo C... é feita como se se tratasse da tributação dos rendimentos resultantes do resgate das UP’s pela B... . Tudo porque o Fundo C... se assume aqui como um veículo instrumental tendo em vista a tributação da B... .

Em bom rigor, prevê-se no n.º 3 do artigo 22.º do EBF que o montante de imposto retido na esfera do Fundo C... é dedutível à colecta de IRC da B... a título de imposto por conta, precisamente porque esse montante consiste num rendimento pertencente à B... cuja tributação foi antecipada. Tanto assim é que, a final, se for apurado um excesso de IRC já pago, aquele montante de imposto será devolvido à B... e não ao Fundo C... .

Caso assim não se entendesse, isto é, caso não se considerasse o imposto retido pelo Fundo C... como rendimento da B..., a unidade e coerência sistemática do regime tributário previsto no artigo 22.º do EBF seria colocada em causa.

Isto na medida em que se reconhece expressamente no n.º 4 do referido artigo que quando o titular das UP’s não se encontre obrigado à entrega da declaração de rendimentos, o imposto retido na esfera do fundo de investimento correspondente aos rendimentos das UP’s, deve ser restituído pela entidade gestora do fundo ao participante e pago com os rendimentos respeitantes a tais unidades. E assim é porque, repita-se, o imposto inicialmente tributado na esfera do fundo é um rendimento do participante.

 

21. Aqui chegados, e tendo por base estas considerações, cumpre finalmente aferir da aplicabilidade ao presente caso do n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC.

Para efeitos de enquadramento, revela-se pertinente registar que, em termos sistemáticos, aquele artigo insere-se no capítulo III do Código do IRC, respeitante à “Determinação da Matéria Tributável”. Assim, está em causa uma norma cujos efeitos se projectam na determinação e quantificação da medida do imposto, qualificando-se a mesma por essa razão como uma norma de incidência em sentido amplo, conforme refere Ana Paula Dourado, Direito Fiscal – Lições, Almedina, 2015, pp. 144-147. Por conseguinte, esta é uma norma cuja aplicação teria de ser ponderada aquando do englobamento pela B... dos rendimentos resultantes do resgate das UP’s como proveitos ou ganhos para efeitos da matéria colectável de IRC, já que este é um momento prévio e necessário à liquidação do imposto.

Feita esta nota, e ao estar nesta fase assente que o montante de imposto que foi previamente retido na esfera do Fundo C... como adiantamento/pagamento por conta do IRC devido a final pela B... é um rendimento desta última, haverá que aplicar a correcção prevista no n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC. Isto na medida em que se encontram preenchidos os respectivos pressupostos de aplicação, já que se verifica no presente caso o englobamento de proveitos ou ganhos para efeitos de apuramento do lucro tributável, existindo uma parte desses rendimentos que foi já objecto de tributação/retenção e cujo montante é dedutível à colecta pelo respectivo titular, impondo‑se assim que esse montante seja acrescido à matéria colectável de modo a que seja englobada a importância ilíquida e dada à tributação a totalidade dos rendimentos auferido pela B... .

Nestes termos, conclui-se que a obrigação prevista no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, de considerar os rendimentos respeitantes a UP’s em fundos de investimento como proveitos ou ganhos para efeitos de IRC, impõe a consideração da totalidade dos rendimentos (ilíquidos) auferidos e não apenas dos rendimentos (líquidos) distribuídos pelos fundos de investimento aos seus participantes, por força da ratio legis da referida norma e, bem assim, do disposto no n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC.

O mesmo é dizer que o anterior n.º 3 do artigo 22.º do EBF deverá ser interpretado no sentido de que quando o legislador se refere à obrigação de considerar os rendimentos respeitantes a UP’s como proveitos ou ganhos se deve entender que essa obrigação se reporta ao respectivo montante ilíquido, que é o montante auferido pelo participante em resultado do investimento que concretizou através do fundo.

Este é o resultado interpretativo que melhor se coaduna com o propósito de salvaguarda do princípio da neutralidade subjacente ao benefício fiscal aqui em análise.

 

22. É por isto, que não se consegue acompanhar o entendimento do douto acórdão do STA anteriormente citado onde, a propósito da neutralidade e do duplo benefício alcançado com a sua interpretação, se reconhece que:

“- podendo a nossa interpretação do art. 22.º n.º 3 do EBF, para o ano de 2009, merecer o apontamento de possibilitar a dedução de um imposto que não incidiu sobre os rendimentos pagos aos titulares de UP’s e, ainda, foi suportado por terceiro, como resulta do, anteriormente, exposto e justificado esse era, então, o resultado do “regime fiscal” instituído para, de forma privativa, tributar os rendimentos dos detentores de UP’s em fundos de investimento, mobiliário, com uma pretendida marca de benefício fiscal, eventualmente, em medida exagerada, mas, porventura, com a expressão certa/adequada (para o legislador) a conseguir implementar e desenvolver os fundos de investimento, enquanto organismos de investimento coletivo (…)” (destaque deste Tribunal)

Na interpretação jurídica ali defendida é, portanto, admitido o afastamento do princípio da neutralidade na tributação, já que não seria indiferente aos contribuintes concretizarem os seus investimentos directamente ou de forma indirecta através de fundos de investimento. De acordo com a referida interpretação os contribuintes que fossem investidores directos eram colocados numa posição mais desfavorável por comparação com os que investissem directamente, já que enquanto os primeiros teriam de declarar os rendimentos ilíquidos auferidos, os segundos teriam um “duplo benefício” materializado no facto de apenas serem tributados pelos rendimentos líquidos obtidos aos quais ainda era feita uma dedução adicional.

Este resultado interpretativo não pode, no entender deste Tribunal, ser transposto para o caso aqui em apreciação desde logo porque a circunstância fáctica não é a mesma na medida em que, aqui, ao contrário do que sucedia no processo em análise pelo STA, não ficou provado o facto de o rendimento obtido pela Requerente ter sido objecto de tributação na esfera da B... .

Em segundo lugar, porque se o objectivo é garantir que para efeitos de tributação é indiferente o modo pelo qual o investimento é feito, então a base tributável (rendimento) para efeitos de determinação da matéria colectável teria de ser sempre a mesma independentemente de os rendimentos ingressarem na esfera da B... de forma directa ou indirecta. Dito de outro modo, o rendimento auferido sujeito a tributação seria em qualquer dos casos o montante ilíquido de € 1.171.794,65.

Em terceiro lugar, porque só assim se assegura a coerência entre o crédito de imposto concedido nos termos do n.º 3 do artigo 22.º do EBF e a respectiva base de cálculo. Em síntese, o crédito de imposto tem por base um valor ilíquido (€ 1.171.794,65) sobre o qual se calcula uma colecta de imposto (€ 325.172,90) que vai dar origem, segundo previsão legal, a um imposto por conta que funciona como dedução à colecta em sede de IRC na esfera da B... enquanto titular das UP´s. Deste modo, se o referido artigo do EBF fosse interpretado no sentido de apenas se considerar como rendimento da B... a englobar à matéria colectável de IRC, o montante líquido (€ 846.621,75) de rendimentos auferidos em resultado do resgate das UP’s, então o crédito de imposto (€ 325.172,90) teria sido calculado por referência a uma base tributável diferente da que é sujeita a tributação.

Por último, porque a negação da aplicabilidade do n.º 2 do artigo 68.º do Código do IRC apenas com base no facto de não existir retenção na fonte no momento do resgate das UP’s, desconsiderando a retenção prévia e provisória que ocorre na esfera do fundo de investimento, resultaria, por um lado, numa quebra da coerência sistemática do regime como um todo e, por outro lado, num claro abandono e desvirtuar da neutralidade fiscal que se pretendeu alcançar com o regime jurídico-tributário vigente à data dos factos. Ainda para mais quando a neutralidade fiscal traduz a ratio legis subjacente ao n.º 3 do artigo 22.º do EBF, devendo por essa razão ser especialmente valorada e tida em consideração no momento da interpretação daquela norma conforme acima se evidenciou.

Ora, se se permitisse que a B... enquanto titular das UP´s declarasse apenas um montante líquido (€ 846.621,75) para efeitos de determinação do lucro tributável e, simultaneamente, se admitisse que esta deduzisse à colecta uma quantia correspondente ao imposto retido pelo fundo de investimento (€ 325.172,90) calculado sobre um montante ilíquido de rendimento (€ 1.171.794,65), e sem que este último montante fosse totalmente considerado na esfera da B..., então estar-se-ia a possibilitar a dedução de um imposto que não incidiu sobre os rendimentos pagos e dados à tributação. É que, repare-se, segundo tal posição, a B... receberia na sua esfera o montante correspondente aos rendimentos líquidos e o montante retido na esfera do fundo (€ 1.171.794,65) quando para determinação do lucro tributável declararia somente o rendimento líquido (€ 846.621,75). Ainda para mais quando o imposto suportado na esfera do Fundo C... corresponde a rendimento auferido pela B... que é deduzido em igual montante à colecta do IRC, precisamente para neutralizar o adiantamento do pagamento do imposto e para assegurar que apenas ocorre um nível de tributação, como se o investimento tivesse sido feito directamente.

 

21. Tendo em conta o que até aqui se referiu, resulta evidente que ao contrário do que sustentaram os Requerentes, a interpretação segundo a qual a dedução do crédito de imposto associado ao resgate de UP’s está condicionada à contabilização na matéria colectável de IRC do montante ilíquido dos rendimentos auferidos não é desconforme à constituição, designadamente por violação dos princípios do Estado de Direito democrático, da proporcionalidade, da igualdade, da legalidade fiscal e da tributação do rendimento real.

A contabilização dos rendimentos auferidos pelo seu valor ilíquido assegura, na verdade, o respeito pelo princípio da igualdade na sua dimensão de tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real, tal como determina o artigo 104.º, n.º 2, da CRP. É que só com a inclusão do valor bruto dos rendimentos na matéria colectável se assegura que os contribuintes são tributados pela totalidade da capacidade contributiva demonstrada, sendo certo que ainda lhe é conferido o direito a deduzir à colecta o imposto anteriormente suportado na esfera do fundo de investimento.

Este método de tributação é, no fundo, aquele que resulta do regime jurídico previsto à data dos factos, de modo que não se afigura ter ocorrido qualquer violação dos princípios do Estado de Direito Democrático e da legalidade fiscal, previstos no artigo 2.º e 103.º da CRP.

Quanto ao princípio da proporcionalidade também não se considera ter ocorrido qualquer violação que, em bom rigor, não foi sequer desenvolvida e argumentada pelos Requerentes.

 

22. Em face de tudo o exposto, considera-se que assistia razão à AT ao indeferir a reclamação graciosa apresentada pelas Requerentes, sendo assim improcedentes os vícios invocados por estas últimas a este respeito no âmbito do pedido arbitral que apresentaram.

 

IV.4 Vício de duplicação de colecta

 

            23. Por fim, cabe apreciar a ilegalidade imputada pelas Requerentes ao acto de liquidação de IRC e à decisão de indeferimento da reclamação graciosa aqui contestadas, por alegadamente implicarem uma situação de duplicação de colecta.

            Nos termos do artigo 204.º, n.º 1, alínea g), do CPPT, a duplicação de colecta consiste num fundamento de oposição à execução fiscal. Sem prejuízo, a doutrina e a jurisprudência têm entendido, de forma constante, que aquela também pode consistir num fundamento de impugnação da legalidade de actos de liquidação de tributos.

Quanto a este ponto, referiu o Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”), no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 63/10.0BELRS, em 24 de Junho de 2021, que “(…) pese embora, em regra, a duplicação de coleta esteja associada à inexigibilidade da dívida exequenda enquanto fundamento de oposição (cfr. artigo 204.º, n.º 1, alínea g), do CPPT) a verdade é que pode ser aceite como fundamento de impugnação judicial, quando consubstancie uma ilegalidade que afete a validade do ato de liquidação, mormente, nas situações em que o ato de liquidação impugnado ocorre em momento em que já se verifica cobrada a quantia por este apurada, por ter constituído matéria coletável num ato de liquidação anterior”.

            Portanto, a duplicação de colecta pode consistir num fundamento de impugnação judicial (artigo 99.º do CPPT) e, consequentemente, num fundamento de pedido de constituição de tribunal arbitral (artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), tendo este Tribunal competência para apreciar o vício imputado pelas Requerentes a este respeito.

           

23. Para que se verifique uma situação de duplicação de colecta é necessário, nos termos do artigo 205.º, n.º 1, do CPPT, que se verifique o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: “a) unicidade dos factos tributários; b) identidade de natureza entre a contribuição ou imposto e o que de novo se exige; c) coincidência temporal do imposto pago e o que de novo se pretende cobrar”, conforme sublinhou o TCA Sul no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 810/20.2 BELRA, em 15 de Dezembro de 2021.

Tal como referiu o TCA Sul no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 06195/12, em 26 de Fevereiro de 2013, este é um regime que “(…) pode configurar‑se como o equivalente, no domínio do direito fiscal, ao princípio penal da proibição do “non bis in idem”, sendo causa de ilegalidade do acto tributário. A duplicação de colecta resulta da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária concreta”. (destaque nosso)

Num sentido próximo, entendeu-se no acórdão arbitral proferido no âmbito do processo n.º 28/2018-T, em 8 de Junho de 2018 que “(…) o regime da duplicação de colecta pressupõe que o primeiro pagamento está consolidado, pois o que justifica a não exigência de novo imposto é o facto de com a dupla aplicação da mesma norma tributária a uma situação concreta se gerar uma situação de enriquecimento injustificado do erário público”. (destaque nosso)

            Considerações estas que são igualmente defendidas pela doutrina, designadamente por Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e Processo Tributário, 4.ª ed., p. 930, que regista que “(…) o alcance da duplicação de colecta é impedir que seja repetida a cobrança de um mesmo tributo. A duplicação de colecta resulta da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária”. (destaque nosso)

 

            24. Tendo em conta estas considerações, cumpre então verificar se estão preenchidos os pressupostos da duplicação de colecta, tal como alegaram as Requerentes.

            Em conformidade com a matéria de facto fixada nos presentes autos, não se verificou que tenha ocorrido a emissão de um segundo acto de liquidação que, em si considerado, implicasse uma nova tributação do mesmo facto tributário e, nessa medida, pudesse ser objecto de declaração de ilegalidade e consequente anulação. Em todo o caso, apesar de não se ter efectivado a referida segunda liquidação e cobrança poderia, ainda assim, equacionar-se a verificação de uma situação de duplicação de colecta. Isto na medida em que a eventual anulação do acto de autoliquidação contestado pelas Requerentes e o eventual acréscimo à matéria colectável dos rendimentos correspondentes ao crédito de imposto que estas pretendem deduzir pudesse consubstanciar uma nova cobrança de um mesmo tributo já liquidado e pago pelas Requerentes.

            Ora, tal como anteriormente se viu, o acréscimo do montante de € 325.172,90 à matéria colectável das Requerentes é exigido nos termos conjugados dos artigos 22.º, n.º 3 do EBF e 68.º, n.º 2 do Código do IRC, por forma a possibilitar a dedução à colecta do imposto suportado antecipadamente na esfera do Fundo C... relativamente aos rendimentos das UP’s resgatadas pela B... .

Assim sendo, ao invés de se proceder a uma nova tributação de uma realidade já anteriormente tributada, são anulados os efeitos da tributação antecipada e inicialmente realizada na esfera do Fundo C... de modo a assegurar a neutralidade na tributação dos rendimentos auferidos pela B... enquanto participante daquele. Isto na medida em que o rendimento tributado na esfera do Fundo C... é considerado enquanto pagamento por conta do imposto devido a final que será dedutível à colecta na esfera da B... . Se o referido acréscimo à matéria colectável não fosse realizado, a B... acabaria por não ser objecto de tributação sobre aquele montante de rendimento, que seria dedutível à colecta sem sequer ter concorrido para a base tributável do imposto. Por conseguinte, é notório que não estão verificados os pressupostos cumulativos acima identificados cujo preenchimento concretiza uma duplicação de colecta.

Tudo isto sem contar que não ocorreu no presente caso uma aplicação da mesma norma de incidência tributária, mais do que uma vez, ao mesmo facto ou situação tributária. Pelo contrário, o que se verificou foi a aplicação conjugada de diversas normas (de incidência) tributárias que conformam o regime da tributação de rendimentos distribuídos por fundos de investimentos aos respectivos participantes e que, ao invés de materializarem uma dupla tributação, procuram antes assegurar o cumprimento do princípio da neutralidade fiscal.

Em face do exposto, julga-se improcedente o vício de duplicação de colecta invocada pela Requerente quanto aos actos ora contestados.

 

IV.5. Juros indemnizatórios

 

            25. No pedido arbitral peticionou ainda a Requerente o pagamento de juros indemnizatórios. Sucede que o direito a juros indemnizatórios previsto no artigo 43.º da LGT tem como antecedente lógico e necessário o pagamento da prestação tributária em montante superior ao legalmente devido. Por conseguinte, ao não se terem julgado ilegais os actos contestados nos presentes autos, improcede o peticionado pelas Requerentes a este respeito.

           

V. DECISÃO

 

Nestes termos, acorda este Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar improcedentes os pedidos arbitrais formulados pelas Requerentes;
  2. Condenar as Requerentes nas custas do processo arbitral.

 

 

VI. VALOR DO PROCESSO

 

Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 325.172,90.

 

VII. CUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 5.814,00, a cargo das Requerentes, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 5 de Setembro de 2022.

 

Os Árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

(relatora)

 

 

Francisco Nicolau Domingos

 

 

Júlio Tormenta