Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 762/2021-T
Data da decisão: 2022-08-31  IRS  
Valor do pedido: € 8.653,51
Tema: IRS de 2016 - Caducidade do direito à liquidação - Direito de audição prévia à liquidação oficiosa - Artigo 60.º, n.º 1, alínea a) da LGT.
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SUMÁRIO:

 

1.            Nos termos do artigo 38.º do CPPT, aqui aplicável, ex vi o artigo 29.º do RJAT, as notificações são efetuadas obrigatoriamente por carta registada com aviso de receção sempre que tenham por objeto atos ou decisões suscetíveis de alterarem a situação tributária dos contribuintes, como é o caso. Visto que a liquidação ocorreu mediante mero correio por registo simples e não por carta registada com aviso de receção, não foi observada a respetiva formalidade legal.

2.            Não estamos perante liquidações de tributos que resultem de uma declaração de rendimentos apresentada pelo Requerente, nem de correções à matéria tributável objeto de notificação para efeitos de direito de audição, pelo que não se aplica o preceituado no n.º 3 do mesmo artigo, quanto à possibilidade de a notificação ser efetuada por carta registada.

 

3.            Pese embora não tenha sido observada a competente formalidade legal, a notificação deve ainda assim ter-se por válida, porquanto cumpriu a sua finalidade, não justificando a invocada caducidade da liquidação oficiosa.

 

4.            O “procedimento de divergências” nos termos em que foi concretizado, não configura uma notificação válida para efeitos de exercício do direito de participação, padecendo a liquidação oficiosa de vício de forma, por preterição do direito de audição, previsto no artigo 60.º, n.º 1, alínea a) da LGT.

 

5.            A liquidação oficiosa em apreço não pode ser enquadrada nos termos do artigo 60.º      n.º 2, alíneas a) e b), da LGT, beneficiando da dispensa de audição, porquanto não é efetuada em sintonia com a posição que decorre da declaração do contribuinte, nos aspetos factuais e jurídicos, nem tão puco tem por base qualquer valor objetivo previsto na lei que esteja evidenciado e determinado perante a Administração, fundando-se antes em valores de rendimentos que, segundo as autoridades dinamarquesas, o Requerente auferiu na Dinamarca, no período de tributação de 2016.

6.            O vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação não deve considerar-se sanado, no caso, por recurso ao princípio do aproveitamento do ato administrativo, e pela circunstância de o Requerente ter apresentado reclamação graciosa. 

 

DECISÃO ARBITRAL

I. RELATÓRIO

 

A... (doravante Requerente), com morada na Rua ..., n.º..., ..., ..., ...-... Vila do Conde,  sujeito passivo com número de identificação fiscal ..., vem requerer pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA), nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alínea a), e artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que regula o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante RJAT), submetendo à apreciação do Tribunal Arbitral a legalidade do ato tributário identificado abaixo.

Peticiona que seja declarada a ilegalidade da decisão de indeferimento expresso do procedimento tributário de reclamação graciosa que correu termos junto da AT, sob o n.º ...2021...;

Peticiona ainda a título mediato, enquanto objeto daquela reclamação graciosa, a declaração de ilegalidade da liquidação oficiosa de IRS, ano de 2016, com o n.º 2020..., efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, a 16-12-2020, com o valor total a pagar de imposto, incluindo juros compensatórios, fixado em € 8.653,51 (oito mil seiscentos e cinquenta e três euros e cinquenta e um cêntimos), com a consequente anulação e respetiva restituição do montante em causa pago pelo Requerente, acrescido, no caso de procedência do pedido efetuado a título subsidiário, de juros indemnizatórios à taxa legal aplicável.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente enviado email à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), a informar da entrada de um pedido de constituição de tribunal arbitral e do n.º do processo atribuído, em 23-11-2021, tendo por sua vez a AT sido notificada, em 26-11-2021.

Nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 6.º e da alínea b), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a signatária foi designada pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente tribunal arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.

Em 12-01-2022, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico.

Síntese da posição das Partes:         

1.      Do Requerente

Entende o Requerente que a AT está a incorrer em diversos vícios, nos seguintes termos:

a)            DO VÍCIO DA CADUCIDADE DA LIQUIDAÇÃO OFICIOSA DO IRS/2016 POR FALTA DE NOTIFICAÇÃO VÁLIDA 

A este respeito, o Requerente recorda o que estabelece o artigo 92.º, n.º 1, do Código do IRS: “A liquidação do IRS, ainda que adicional, bem como a reforma da liquidação efetua-se no prazo e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária.”.

“(…) Por sua vez estabelece o artigo 45.º, n.º 1, da LGT, que: “O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.”.

(…) E o mesmo artigo 45.º da LGT, no seu n.º 4, preceitua: “O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário (…).”.

Neste sentido, estando aqui em causa o IRS/2016, e na ausência de qualquer efeito suspensivo ocorrido, então o prazo de caducidade para a notificação válida da respetiva liquidação, terminaria a 31-12-2020, segundo o Requerente.”.

E acrescenta:

(…) Ora, in casu, verifica-se que estamos perante uma liquidação oficiosa de IRS/2016 promovida pela AT cujo ato de notificação processou-se através de mero correio por registo simples (cf. documento n.º 2).

(…) Sucede que, tal como estabelece o artigo 38.º, n.º 1, do CPPT: “As notificações são efetuadas obrigatoriamente por carta registada com aviso de receção, sempre que tenham por objeto atos ou decisões suscetíveis de alterarem a situação tributária dos contribuintes ou a convocação para estes assistirem ou participarem em atos ou diligências.”.

“(…) E no caso concreto não foi observada esta formalidade, porquanto o envio da notificação da liquidação ocorreu mediante mero correio por registo simples, ao invés, de carta registada com aviso de receção.

Além, de que, nunca seria aplicável o n.º 3 do artigo 38.º do CPPT quando enuncia: “As notificações não abrangidas pelo n.º 1, bem como as relativas às liquidações de tributos que resultem de declarações dos contribuintes ou de correções à matéria tributável que tenha sido objeto de notificação para efeitos do direito de audição, são efetuadas por carta registada.”.

“(…) De facto, nem a liquidação adveio de uma declaração de rendimentos apresentada pelo Requerente, nem adveio de correções à matéria tributável que tenham sido objeto de notificação para efeitos de direito de audição.

Pelo que nunca poderia ser a notificação da liquidação oficiosa do IRS/2016 ter sido processada por mera carta registada simples.

Desde 1 de janeiro de 2015, o regime das notificações passou a estar previsto no artigo 38.º do CPPT, o que significa a obrigatoriedade da notificação ser efetuada através de carta registada com aviso de receção, sempre que tenha por objeto atos ou decisões suscetíveis de alterarem a situação tributária dos contribuintes ou a convocação para estes assistirem ou participarem em atos ou diligências.

O que ocorreu no caso sub judice, porquanto houve, efetivamente, uma decisão de alteração da situação tributária do Requerente.

(…) Pelo que nenhuma dúvida poderá haver, face a tudo o exposto, que no caso concreto deveria a notificação da liquidação oficiosa do IRS/2016 ter sido promovida antes através de uma carta registada com aviso de receção.

(…) O que não sucedeu.”.

Cita também jurisprudência do TCAS: “Como sustentou o TCAS, no seu Douto Acórdão de 15 de novembro de 2018, processo n.º 634/10.5BELRS, naquela notificação da liquidação exequenda, a Administração tributária não cumpriu a formalidade da carta registada com aviso de receção, tendo utilizado a via (…) menos formal do registo simples.

Nessas circunstâncias, em que ocorreu a preterição de formalidades legais atinentes à notificação da liquidação, não provando a Administração Tributária que, apesar disso, a notificação chegou ao efetivo conhecimento do contribuinte (art.º 35.º, n.º 1, do CPPT), a notificação não pode ter-se por efetuada ao destinatário do ato, não podendo a AT    prevalecer-se de qualquer presunção legal de notificação, como pretende.”.

“(…) O mesmo determinou o Douto Acórdão do STA, no processo n.º 0297, de 15 de junho de 2016: “I - Nos termos do art.º 149.º do CIRS os atos de liquidação de IRS efetuados com base na declaração anual de rendimentos apresentada pelo contribuinte estão sujeitos a notificação por mera carta registada. Todavia, estando em causa as notificações dos atos de alteração dos rendimentos declarados e dos atos de fixação pela administração dos rendimentos sujeitos a tributação, têm as mesmas de ser efetuadas por meio de carta registada com aviso de receção. II - Uma liquidação oficiosa que materialize ou revele um ato de fixação ou alteração da matéria tributável declarada pelo contribuinte deve obrigatoriamente ser notificada por carta registada com A/R, em conformidade com o disposto nos artigos 65.º n.º 4, 66.º e 149.º.”.

Face ao exposto, conclui o Requerente que:

Não podendo a notificação ter-se por efetuada, a caducidade do direito à liquidação, tanto do imposto como dos juros compensatórios, que daí resulta, constitui um vício gerador de ilegalidade do ato de liquidação, na medida em que consubstancia a prática de um ato tributário ferido de um vício de violação da lei.

b)           DO VÍCIO PROCEDIMENTAL POR PRETERIÇÃO DE FORMALIDADE ESSENCIAL - VIOLAÇÃO DO DIREITO DE PARTICIPAÇÃO

Neste ponto, o Requerente cita RUI DUARTE MORAIS, in “Manual de Procedimento e Processo Tributário”, página 34, Almedina, 2012, onde se pode ler o seguinte: “(…) os procedimentos em questão (aqueles em que é obrigatória a audiência prévia dos interessados) são, apenas, os que presumivelmente irão desembocar em atos desfavoráveis aos sujeitos passivos.” (...)

“Deste modo, concretizando este princípio fundamental, vem o artigo 60.º da LGT, tal como o artigo 45.º do CPPT, enumerar, de modo exemplificativo, os casos em que tal possibilidade de audição prévia deve ocorrer.”.

E acrescenta: “Ora, com relevo para a situação sub judice, preceitua o artigo 60.º, n.º 1, alínea a), da LGT, sobre o direito de audição antes da liquidação: “1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas: a) Direito de audição antes da liquidação;”.

“Trata-se do princípio geral do direito de audição: como a liquidação de um imposto é o momento principal da relação fisco/contribuinte, o sujeito passivo deve ser ouvido antes de aquela ter lugar.”, tal como defendido por SALDANHA SANCHES e JOÃO TABORDA DA GAMA in “A Audição - Participação - Fundamentação: A Co-Responsabilização do Sujeito Passivo na Decisão Tributária”, na obra coletiva de “Homenagem a José Guilherme Xavier de Basto”, página 274, Coimbra Editora, 2006.”.

“E nestas estão incluídas, necessariamente, as denominadas “liquidações oficiosas” e que são aquelas que resultam da falta de apresentação da declaração fiscal por parte do respetivo sujeito passivo. Tal como sustentam SERENA CABRITA NETO e CARLA CASTELO TRINDADE in “Contencioso Tributário – volume I”, página 204, Almedina, 2017: “Incluem-se nestas situações, em primeiro lugar, as liquidações oficiosas, que têm lugar quando o sujeito passivo não entregou a declaração com base nos elementos conhecidos relativos a esse sujeito passivo.”.

Ora, no caso concreto, não houve qualquer notificação efetuada pela AT para efeitos de ser passível o exercício do direito de participação do Requerente.

De facto, a única notificação que foi promovida pela AT (cf. documento n.º 4, alusivo ao ofício n.º GIC-..., de 23-10-2020, para o sujeito passivo apresentar no prazo de 30 dias, a declaração modelo 3 de IRS do ano de 2016) nada teve a ver com o permitir do direito à participação na formação da decisão e nem sequer tinha qualquer fundamentação atinente ao antecipado ato de liquidação, como sejam, por exemplo, qual a quantificação dos rendimentos que seriam tidos em conta e sua respetiva fonte.”.

Conclui assim o Requerente que: “Em face disto, estamos perante um vício de forma por preterição de formalidade essencial passível de implicar a anulação da liquidação aqui visada.

(…) Da mesma forma, no sobredito Douto Acórdão de 7 de abril de 2021, processo 045/06.7BEPRT, enuncia o STA: “A falta de audição prévia do contribuinte, nos casos em que é obrigatória, constitui um vício de forma do procedimento tributário suscetível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada (cfr. art.º 60.º, da L.G.T, art.º 163.º, do C.P. Administrativo).”.

Igualmente, RUI DUARTE MORAIS, ob. cit., página 44: “A falta de notificação dos interessados para, querendo, exercerem o direito de audição prévia, nos casos em que tal deva acontecer, constitui preterição de uma formalidade legal essencial, geradora da anulabilidade do ato decisório do procedimento em que tal preterição aconteceu.”. (…) Mais se diga ser inaplicável o ínsito na alínea b) do n.º 2 do artigo 60.º da LGT quando preceitua a dispensa a audição: “b) No caso de a liquidação se efetuar oficiosamente, com base em valores objetivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.”.

E volta a recorrer à jurisprudência, escrevendo: “Efetivamente, e como dimanou do Douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), processo 00397/08.4BEPRT, de 27 de janeiro de 2012, e que aqui transcreve-se em parte substancial da sua decisão dada a incontornável similitude ao caso sub judice: “No artigo 60.º da LGT, depois de no n.º 1 se deixarem estabelecidas as formas pelas quais pode ser exercida a participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito, previram-se, nos n.ºs 2 e 3, os casos em que é dispensada a audição. Trata-se aqui de uma enumeração completa, que não exemplificativa, como decorre dos termos em que as referidas normas se mostram formuladas, de modo, diríamos, suficientemente concretizado.

Um dos casos em que a lei prevê a dispensa da audição do contribuinte é, precisamente, a hipótese de a liquidação se efetuar oficiosamente, com base em valores objetivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.

Quer isto dizer que, para efeitos da dispensa do direito de audição prevista na al. b) do n.º.2 do artigo 60.º da LGT, não basta que a liquidação tenha sido oficiosamente efetuada perante a não entrega da declaração de rendimentos. A dispensa pressupõe que tal liquidação oficiosa tenha por base valores objetivos previstos na lei. Só neste caso, portanto, que não em todos os de emissão de liquidação oficiosa (decorrente, bem se vê, da falta de entrega da declaração) é que a Administração Tributária está dispensada de notificar o contribuinte para exercer o direito de audição previsto no artigo 60.º da LGT.

A dificuldade na interpretação do conteúdo e alcance da citada alínea b) do n.º 2 do artigo 60.º da LGT, está, como bem se vê, em saber em que casos estamos perante uma liquidação oficiosa efetuada com base em valores objetivos previstos na lei. Dito por outras palavras e de volta ao caso concreto, importa saber se uma liquidação efetuada pela Administração Tributária com base em valores de rendimentos do trabalho fornecidos pelas autoridades espanholas, no âmbito da troca de informações ao abrigo de convenções bilaterais, é ainda uma liquidação oficiosa efetuada com base em valores objetivos previstos na lei. E a resposta a esta questão só pode ser negativa.

Quando a lei, no referido artigo 60.º, n.º 2, al. b) da LGT, se refere às liquidações oficiosas efetuadas com base em valores objetivos previstos na lei, tem em vista aquelas hipóteses em que, na falta de apresentação de declaração de rendimentos, a Administração procede à liquidação do imposto socorrendo-se de valores que estão ao seu dispor e cujo montante se apresenta, nesta fase de liquidação, imediatamente determinável. Que valores objetivos são estes que a lei prevê é, naturalmente, a pergunta que se impõe. Exemplos destes valores objetivos podem ser recolhidos, desde logo, no CIRS, mas também no CIRC. Assim, nos termos o artigo 76.º, n.º1, al. c) do CIRS, temos aí referida a totalidade do rendimento líquido da categoria B obtido pelo titular do rendimento no ano mais próximo que se encontre determinado; em sede de IRC, por exemplo, encontramos a previsão de valores objetivos quando a lei se reporta – vide artigo 90.º, n.º1, al. b) do CIRC - ao valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, à totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada;

Em casos como estes, em que não foi apresentada declaração de rendimentos (apesar da notificação para tal) deve, no caso do IRS, a liquidação ser efetuada no ano imediato àquele a que respeitam os rendimentos, concretamente até 30 de Novembro – cfr. artigo 77º, al. c) do CIRS. Ora, recuperando o caso dos autos temos que a Administração Tributária, em Julho de 2007 (ou seja, quase três anos depois do prazo a que alude o citado artigo 77.º, al. c) do CIRS), após ter obtido informações provenientes das autoridades espanholas (no âmbito do procedimento de troca espontânea e automática de informações ao abrigo de convenções bilaterais) sobre rendimentos auferidos, em 2003, em Espanha, pelo Recorrido, e constatando que o mesmo, nesse ano, não entregara a declaração de rendimentos, notifica-o, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 3 do CIRS, para, no prazo de 30 dias, apresentar a declaração de rendimentos em falta. Não tendo sido apresentada a declaração, foi emitida a liquidação posta em crise na impugnação judicial sobre a qual foi proferida a sentença recorrida.

Desde já podemos dizer, com a sentença recorrida, que esta liquidação oficiosa não tem subjacentes valores objetivos previstos na lei, nos termos em que o são aqueles que se deixaram apontados. Esta liquidação de IRS tem por base valores de rendimentos que, segundo as autoridades espanholas, o Recorrido auferiu em Espanha no ano de 2003. Ou seja, não se trata, aqui, de qualquer valor objetivo previsto na lei que esteja evidenciado e determinado perante a Administração Tributária e do qual esta se pudesse socorrer imediatamente.

A dispensa da audiência prévia quando a liquidação oficiosa se efetua com base em valores objetivos previstos na lei, atentos os demais pressupostos previstos no artigo 60.º, n.º2, al. b) da LGT (a prévia notificação para apresentar a declaração, sem que tal seja feito), funda-se na ideia de que, neste caso, face a tais dados objetivos, a participação possível do contribuinte é desnecessária e que, por isso, convidar o contribuinte a pronunciar-se sobre tais elementos, redundaria num ato inútil.

Não é, seguramente, nos termos expostos, o caso dos autos. Porque assim é, tanto basta para afirmar que não é aplicável à situação dos autos a dispensa de notificação para o exercício do direito de audição, prevista no artigo 60.º, n.º 2, al. b) da LGT. Tal equivale a dizer que, no caso, a Administração Tributária estava obrigada a ouvir o contribuinte antes de emitir a liquidação.”

Na verdade, como emanado no Douto Acórdão do STA, de 2 de julho de 2003, processo         n.º 684/03: “A dispensa da audiência prévia quando a liquidação coincida com a declaração funda-se na ideia de que, neste caso, toda a participação possível do contribuinte já teve lugar, sendo desnecessário convidá-lo a nova participação, que redundaria num ato inútil. No caso em que o contribuinte faltou à sua obrigação de declaração não há nenhuma participação sua no procedimento que culmina com a liquidação. Por isso, a mesma razão que, nos casos previstos no apontado n.º 2 (do artigo 60.º LGT), leva a dispensar a audição, exige-a quando o contribuinte não fez a sua declaração. E não é o facto de o contribuinte faltar a um dever para com a Administração que legitima esta a, por sua vez, desrespeitar um direito dele.

É certo que pode parecer que o contribuinte, ao faltar ao seu dever de declaração, se desinteressa de participar na definição da sua situação tributária. Mas só aparentemente assim é: por um lado, a ausência de apresentação da declaração imposta pela lei não pode interpretar-se com tal sentido, pois outras razões podem haver, nomeadamente, de força maior, justificativas da falta; por outro lado, nada permite afirmar que o contribuinte que se absteve de entregar a sua declaração não quer exercer o seu direito a participar na formação da decisão que, assente nessa omissão, a Administração venha a tomar.”.

O Requerente cita igualmente o Douto Acórdão de 8 de julho de 2021, processo                    n.º 835/08.6BELRS, onde se pode ler o seguinte: “I – Na falta de apresentação de declaração de rendimentos no prazo legal, a AT procede à liquidação oficiosa nos termos do disposto no artigo 83.º do CIRC, com base na matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada. II - O artigo 60.º da LGT impõe que, neste caso, se faculte ao contribuinte a oportunidade de exercer o seu direito de audição prévia. III - As situações de liquidação oficiosa não podem ser enquadradas como liquidações efetuadas com base na declaração do contribuinte, donde, com subsunção normativa no artigo 60.º, n.º 2, alínea a) da LGT, cuja fórmula deve ser interpretada com o alcance de apenas dispensar a audição quando a liquidação for efetuada em sintonia com a posição que decorre da declaração do contribuinte, nos aspetos factuais e jurídicos. IV-Não é pelo facto de o contribuinte não cumprir com um dever declarativo a que está legalmente vinculado, que legitima a AT a desrespeitar o direito de participação na definição da sua situação com responsabilidade limitada nos termos do artigo 104.º, n.2, do EOA tributária, quando em nenhum momento prévio à emissão da liquidação foi chamado a pronunciar-se.”

E volta a concluir o Requerente:

“Em face disto, e tal como indicado supra, estamos perante um vício procedimental por preterição de formalidade essencial passível de implicar a anulação da liquidação aqui visada.

Por fim, e a título meramente subsidiário, o Requerente invoca ainda:

c)            O ERRO SOBRE OS PRESSUPOSTOS DE DIREITO – DA FALTA DE RESIDÊNCIA FISCAL NO TERRITÓRIO PORTUGUÊS DO REQUERENTE

Neste último ponto refere-se no PPA que: “No ano de 2016 (e tal como nos anos seguintes), o ora Requerente viveu e trabalhou a maior parte do ano para uma sociedade estrangeira, num navio em que embarcou em Luanda – Angola.”.

Invocando a cédula marítima que junta, o Requerente vem dizer que esteve embarcado fora de Portugal, em 2016, durante 222 dias, e que a estes “acrescem ainda os dias de deslocação fora do território português para o local de embarque, o que significa que esteve muito mais do que meio ano fora de Portugal.”.

E sublinha o PPA: “Assim, e ao abrigo do artigo 16.º do Código do IRS, o Requerente deve ser considerado não residente fiscal em Portugal. Ora, conforme estipula o artigo 15.º, n.º 2, do Código do IRS: “Tratando-se de não residentes, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português.” Pelo que o Requerente está desobrigado, em sede de IRS, da obrigação fiscal em Portugal relativamente a rendimentos de fonte estrangeira.

Nesta matéria, a AT incorre em patente erro sobre os pressupostos de direito quando, em sede do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa supra identificada, sustenta a residência fiscal em Portugal do aqui Requerente aludindo para tal à figura do “domicílio fiscal” e ao facto de este estar aqui localizado ou, ainda, ao facto do Requerente ter adquirido uma habitação em 2012 na qual declarou ser para habitação permanente do seu agregado familiar.”.

Concluindo: “Como é entendível tal aspeto nada contende com o preenchimento do conceito de residência fiscal tal como este conceito está densificado no artigo 16.º do Código do IRS.”.

O Requerente apresentou, por fim, alegações escritas, onde mantêm, no essencial, os argumentos apresentados na petição inicial, acrescentando ou sublinhando, designadamente o seguinte:

“No tocante ao vício da caducidade, a Requerida sustenta a validade da missiva simples que utilizou para o notificar do Requerente da liquidação aqui contestada aludindo, num juízo meramente conclusivo, porquanto sem qualquer argumentação de suporte, que: “Todavia, importa precisar que o sobredito preceito terá, necessariamente, de ser complementado com a observação do disposto no artigo 39º, nº 3 do CPPT, e que assevera a perfeição da notificação, através de carta registada, nos casos em que o contribuinte tenha sido consultado em audição prévia.”.

“Ora, como é do conhecimento da Requerida, o contribuinte não foi consultado em audição prévia.

Numa tentativa de inversão do seu ónus probatório, a Requerida vem sustentar uma pretensa confissão do Requerente quanto à notificação ocorrida através de um registo simples. Olvidando que é seu ónus probatório provar que o Requerente teve conhecimento da liquidação antes do prazo de caducidade estar esgotado.

Aliás, basta ler o artigo 10.º da petição inicial, e que foi transcrito pela Requerida para defender a tese da confissão, para se constatar que nada ali consubstancia uma confissão do Requerente: foi antes indicado pelo Requerente que a liquidação aqui visada foi enviada ao seu cuidado por correio, mediante registo simples. Deste modo, se a formalidade utilizada pela Requerida não foi a legalmente prevista, então o ónus probatório de que o Requerente teve conhecimento da liquidação antes de estar esgotado o prazo de caducidade é necessariamente oponível à Requerida.”.

“Na mesma linha sustentou o Supremo Tribunal Administrativo (STA), no seu Douto Acórdão de 17 de outubro de 2018, processo n.º 0394/16.6BELRA 01049/17: “Neste particular e num caso com contornos similares pronunciou-se o STA, no acórdão de 29/05/2013 (proc. n.º 0472/13), cuja doutrina é no sentido de que «o registo simples não representa um índice seguro da sua receção em termos de se poder aplicar a presunção do art.º 39.º, n.º 1, do CPPT e acarreta um ónus desproporcionado por impossibilidade de ilisão da presunção de depósito da carta no recetáculo, quando existe risco de extravio.

A prevalecer a tese da interpretação das normas do n.º 3 do art.º 38.º em conjugação com o n.º 1 do art.º 39.º do CPPT, que admita que a carta registada pode ser substituída pelo registo simples, nos termos e para os efeitos daqueles preceitos, levar-nos-ia a concluir que tal interpretação afetaria a garantia da proteção jurisdicional eficaz do destinatário, em violação das exigências decorrentes do n.º 3 do art. 268.º da CRP e do princípio constitucional da proibição da indefesa, ínsito no art.º 20.º em conjugação com o n.º 4 do art.º 268.º da CRP.”.

E prossegue o Requerente: “Mais recentemente, o mesmo Tribunal superior, no seu Douto Acórdão de 8 de janeiro de 2020, processo 01639/17.0BELRA, refere: “ III - O registo simples, em que a única certeza que existe é que a expedição terá ocorrido em determinada data, não oferece suficientes garantias de assegurar que o ato de notificação foi colocado na esfera de cognoscibilidade do destinatário e acarreta um ónus desproporcionado por impossibilidade de ilisão da presunção de depósito da carta no recetáculo, quando existe risco de extravio, não podendo servir para fundar a presunção estabelecida no n.º 1 do art.º 39.º do CPPT.”.

Em suma, recai apenas sobre a Requerida o ónus probatório de que o objetivo que se visava alcançar com a notificação foi atingido. Sucede que nada fez nesse sentido.

Por outro lado, o artigo 267.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa consagra o direito aos cidadãos de participarem na formação das decisões e deliberações que lhes disserem respeito. Ora, a audiência dos interessados, rectius a audição prévia, é o aspeto principal deste direito de participação no procedimento administrativo (aqui perspetivado num sentido lato, incluindo, como tal, os procedimentos tributários). Assumindo, por isso, uma função garantística.

Todavia, no caso concreto, não houve qualquer notificação efetuada pela AT para efeitos de ser passível o exercício do direito de participação do Requerente. De facto, a única notificação que foi promovida pela Requerida (cf. documento n.º 4 junto à petição inicial), nada teve a ver com o permitir do direito à participação na formação da decisão e nem sequer tinha qualquer fundamentação atinente ao antecipado ato de liquidação, como sejam, por exemplo, qual a quantificação dos rendimentos que seriam tidos em conta e sua respetiva fonte.”.

“Ou seja, para a Requerida foi a notificação junta à petição inicial como documento n.º 4, com um teor totalmente insuficiente, e para um procedimento totalmente atípico, assente na figura do “procedimento de divergências”, que consubstanciou o permitir do direito de participação do Requerente. Como é obvio, isto não faz, e ressalvado o devido respeito, qualquer sentido.

Da mesma forma, o Douto Acórdão do STA, de 10 de novembro de 2010, processo n.º 0671/10: “III - Não afastam a relevância do vício de violação do direito de audiência os factos de, depois de efetuadas as liquidações, o contribuinte ter tido oportunidade de as impugnar judicialmente e ter sido ouvido no âmbito da reclamação graciosa. IV - A preterição da formalidade que constitui o facto de não ter sido assegurado o exercício do direito de audiência só pode considerar-se não essencial se se demonstrar que, mesmo sem ela ter sido cumprida, a decisão final do procedimento não poderia ser diferente.”

Ora, com o devido e merecido respeito, não se alcança como é que a Requerida poderia vir provar que, mesmo que o direito de audição fosse concedido e exercido, a decisão em relação àquele ato não poderia ser outra”.

Finaliza o Requerente citando CABRAL MONCADA, in “Código do Procedimento Administrativo Anotado”, em anotação ao artigo 163.º, página 539, Quid Iuris, 3ª edição: “A interpretação desta norma não deve, porém, servir de pretexto para desvalorizar o direito das formas quando por detrás delas se agigantam direitos fundamentais como sucede nos casos de fundamentação adequada e da audiência prévia. Com efeito, os vícios de natureza formal designadamente os decorrentes da preterição de formalidades procedimentais muito valorizadas pelo código não devem ser escamoteados em nome do princípio do aproveitamento do ato administrativo.”

2. Da Requerida

Os argumentos apresentados na Resposta da AT, bem como em alegações escritas, sublinham o seguinte:

A Requerida pugna pela manutenção na ordem jurídica da liquidação impugnada por entender que a mesma, consubstancia uma correta aplicação do direito aos factos, com os seguintes fundamentos:

“Consultada a base de dados da AT, designadamente o Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes, verificou-se que o Requerente teve as seguintes residências:

-De 02/11/2020 a 21/12/2003-..., n.º ...- ...-... Vila do Conde;

- De 22/12/2003 a 06/12/2007- Av. ..., n.º...- ...- ...-... Vila do Conde;

- Desde 21/06/2012- Rua ..., n.º ...- ... - ...-... Vila do Conde.

Nessa qualidade de residente, aqueles rendimentos obtidos em 2016 deveriam ter sido declarados em Portugal em sede de IRS, nos termos do n.º 1 do artigo 15.º do CIRS.

No que tange à caducidade da liquidação em crise, articulada pelo Requerente na respetiva petição, a argumentação formulada assenta no formalismo empregue para a notificação expedida ao contribuinte.

Mais concretamente, o Requerente alega que a liquidação teria de ser notificada, por via de carta registada com aviso de receção, ao invés de missiva simples.

Porquanto estaríamos perante uma alteração da correspondente situação tributária, suscetível de enquadramento na norma do artigo 39.º, n.º 1 do CPPT.

Todavia, importa precisar que o sobredito preceito terá, necessariamente, de ser complementado com a observação do disposto no artigo 39.º, n.º 3 do CPPT.

Que assevera a perfeição da notificação, através de carta registada, nos casos em que o contribuinte tenha sido consultado em audição prévia.

Aqui chegados, importa realçar que é o próprio Requerente que confessa que a notificação contestada, foi efetuado através de registo simples: “Em resultado desta declaração oficiosa gerou-se a liquidação de IRS/2016 com o n.º 2020..., aqui impugnada, de 16 de dezembro de 2020, e que foi enviada ao cuidado do Requerente, por correio, mediante registo simples, identificado sob o código RY...PT, de 21 de dezembro de 2020.”.

Uma ordenação sobejamente suficiente, para sustentar a rejeição do argumento avançado.  Não obstante, consideramos, salvo o devido respeito que a visão do Requerente é incompleta, porquanto concentra a análise da eficácia da notificação, em torno da norma do artigo 39.º,  n.º 1 do CPPT. Justamente, a discussão deverá, antes, redundar na conferência da cognoscibilidade da notificação.

Ou seja, numa perspetiva holística da temática.

É um entendimento pacífico na nossa jurisprudência, conforme resulta do Acórdão do TCAS n.º 00603/13.3BEPRT, de 12-02-2015: “Saber se uma notificação foi validamente efectuada é um juízo conclusivo decorrente dos termos em que sucedeu a notificação, por contraposição com as exigências legais determinadas para a mesma. Importa, portanto, apenas saber se tal notificação se deve ter por válida apesar de não terem sido observadas todas as exigências legais previstas para a sua efectivação. A resposta terá de ser afirmativa na consideração de que, apesar da preterição de formalidades procedimentais, foi alcançado o fim que as formalidades preteridas visavam assegurar, que era levar ao conhecimento da impugnante o apuramento dos rendimentos em causa.

Neste sentido, cfr. Jorge Lopes de Sousa em anotação 3 ao artigo 38.º do CPPT, 4ª edição, 2003, na página 223: “(...) se fosse enviada carta registada para a notificação dessas liquidações e se provasse que a carta foi efectivamente recebida, não deixaria de considerar-se efectuada a notificação”. Justamente, a ponderação acerca da validade da notificação, afigura-se uma análise finalística, direcionada a conferir se o contribuinte tomou conhecimento, por via da notificação, da liquidação objetada.

Entende a Requerida chamar igualmente à colação o teor do Acórdão do STA n.º 0830/17, de 30-05-2018: “Da leitura atenta da petição inicial e das alegações de recurso não se detecta, em momento algum, que a recorrente alegue que não ter recebido efectivamente as notificações das liquidações que lhe foram enviadas, alega sim que as mesmas não cumpriam os ritualismos processuais legalmente previstos e que visam assegurar a certeza e a segurança de que o acto notificado chega à esfera de cognoscibilidade do destinatário.” O paralelismo fatual com o caso sub judice é evidente, tendo em atenção que o Requerente não refuta a receção da notificação controvertida. Prossegue o mesmo aresto: “Sobre questão idêntica a esta já se pronunciou este Supremo Tribunal no sentido de não assistir razão à recorrente. Efectivamente, decidiu-se no acórdão datado de 29.05.2013, recurso n.º 0472/13 em que, como se verá mais abaixo, a factualidade alegada pela ali recorrida para fundamentar o seu pedido era essencialmente idêntica à alegada nestes autos: (…) Acontece, porém, que o facto de a recorrente alegar e com razão que a Administração Tributária não terá observado todas as formalidades da notificação exigidas por lei, tal não significa por si só que se tenha de concluir pela sua invalidade, se foi atingido o objectivo que se visava alcançar com a notificação: transmitir à destinatária o teor da liquidação.

Com efeito, da análise atenta da argumentação da recorrente verifica-se que em caso algum a mesma alega que a notificação não tenha sido recepcionada no receptáculo do seu domicílio fiscal ou que lhe seja difícil ou impossível fazer prova do não recebimento da mesma.”.

E finaliza o Acórdão: “Assim sendo, constituindo jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal que as formalidades procedimentais previstas na lei são essenciais, mas desgraduam-se em não essenciais se, apesar delas, foi atingido o fim que a lei visava alcançar com a sua imposição (Cfr., entre outros, o Acórdão de 8/9/2010, proc nº 437/10.

No mesmo sentido, cfr., JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6ª ed., 2011, Áreas Editora, anotação ao art. 39.º do CPPT, p. 384.), não podem deixar de improceder as alegações e respectivas conclusões da recorrente.” Falamos de uma posição razoável, e que, naturalmente, devemos secundar. Justamente, o formalismo associado à notificação, reveste-se de natureza instrumental. O aviso de receção não constitui um valor absoluto em si mesmo, como é compreensível. A tutela jurídica dispensada ao procedimento de notificação, consiste, como esclarece o mencionado Acórdão do STA nº 0830/17, de 30-05-2018, numa: “(…) garantia não impugnatória dos contribuintes, que se destina não apenas a levar ao seu conhecimento o acto praticado pela Administração Tributária como a permitir-lhes reagir contra ele em caso de discordância.”. Estando assegurado conhecimento da liquidação ao Requerente, conforme advém da respetiva petição: “E no caso concreto não foi observada esta formalidade, porquanto o envio da notificação da liquidação ocorreu mediante mero correio por registo simples, ao invés, de carta registada com aviso de receção.”.

“Salvo o devido respeito, não existem assim razões que possam justificar a caducidade da liquidação contestada.”.

No que concerne à preterição do direito de participação, arguida pelo Requerente, sublinha a Requerida: “as objeções formuladas direcionam-se à desconsideração do direito de audição, em sede prévia à emissão da liquidação.

Sobre o primeiro, importa explicitar que o procedimento de divergências, identificado sob o número de irregularidade ..., possibilitou, precisamente, a justificação da preterição da entrega da declaração modelo 3.

Neste âmbito, o requerente procedeu à fundamentação da susodita postergação, nos termos agora citados: “Na sequência da notificação para submissão de declaração do IRS referente a 2016, venho pelo presente transmitir que não estou obrigado a tal entrega, em face da minha situação, conforme passo a descrever. No ano de 2016 (tal como nos anos seguintes), eu vivi e trabalhei a maior parte do ano para uma sociedade estrangeira, num navio em que embarco em Luanda (Angola). Conforme se poderá ver no resumo abaixo (retirado da minha cédula marítima em anexo, na página seguinte), estive embarcado fora de Portugal durante os seguintes dias em 2016 (…). Aos 222 dias acrescem ainda os dias de deslocação fora do território português para o local de embarque, o que significa que estive muito mais do que meio ano fora do Portugal.”

É, portanto, manifesto que foi conferida a oportunidade ao Requerente, de pronunciar-se em momento anterior à liquidação objetada.

Mas, mesmo perante a hipótese meramente académica que admita a preterição do direito de audição, tão pouco, essa circunstância teria consequências invalidantes para a liquidação, objeto do presente pedido.

Acerca da temática, melhor escreve o Acórdão do TCAN nº 01196/05.0BEPRT, de 02/02/2017: “Mas há duas situações em que esta omissão ilegal poderá não ter consequências invalidantes. Uma, ocorre nas situações em que possa intervir o princípio do aproveitamento do acto, e outra quando em procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) o contribuinte teve oportunidade de se pronunciar sobre as questões acerca das quais foi omitida a audiência no procedimento de primeiro grau.”.

“Ainda, do sobredito Acórdão: “Nestas condições, devemos considerar que ficou sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia antes da liquidação Ac. do STA n.º 01391/14 de 25-06-2015 Relator: FRANCISCO ROTHES Sumário: (…) V - Tendo o contribuinte interposto reclamação graciosa da liquidação adicional e neste meio de reacção administrativa tido a oportunidade de se pronunciar sobre a liquidação adicional e sobre todas as questões relativamente às quais lhe deveria ter sido previamente concedida a faculdade de se pronunciar, devemos considerar que ficou sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação.”.

“Poderá também considerar-se convalidado o acto primário que enferme de vício de violação do direito de audição se o interessado veio a utilizar meios de impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) e neles acabou por ter oportunidade de se pronunciar sobre questões sobre as quais foi indevidamente omitida a audiência no procedimento de primeiro grau. Em situações deste tipo, quer o acto primário tenha sido mantido quer tenha sido revogado e substituído pelo acto de segundo grau, a decisão administrativa final acaba por ser o acto de segundo grau, pelo que deverá ser em relação a este acto que deverá aferir-se se o contribuinte teve ou não oportunidade de participar na sua formação.

Porém, se a reclamação graciosa e o recurso hierárquico são facultativos e o interessado impugna contenciosamente o acto primário, não ocorrerá qualquer convalidação, subsistindo o vício de preterição do direito de audição, se o acto primário enfermava dele. Isto é, não é apenas por o interessado ter a possibilidade de impugnar administrativamente o acto primário, mas apenas quando tenha deduzido efectivamente uma impugnação e nela se tenha pronunciado sobre as questões sobre as quais era necessário dar-lhe oportunidade de se pronunciar, que se pode considerar convalidado o acto, por ter sido atingida, antes de ser concluída a actividade administrativa, a finalidade visada por lei com a concessão daquele direito» (cfr. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, in Ob. e loc. citados).”.

No contexto da discussão acerca da residência do contribuinte em território português, entende o Requerente que: “durante o período em crise de 2016, não é de somenos salientar que não é controvertida a circunstância do Requerente figurar como residente em Portugal, quando compulsada a base de dados da administração fiscal.

(…) É determinante compreender as razões que conduziram o autor a asseverar, junto da administração fiscal, por via do cadastro fiscal, a sua residência em Portugal.

Não logrando o Requerente demonstrar a sua não residência em território português. Senão vejamos:

Com efeito, dos elementos disponibilizados à presente pronúncia, os únicos documentos apresentados pelo Requerente, resumem-se a um escrito, intitulado P 045318.

58. Neste domínio, o documento é notoriamente incongruente, porquanto faz menção ao embarque, ocorrido a 02-03-2016, com o correspondente desembarque, sucedido a                13-06- 2016.

59. Paralelamente, o dito elemento probatório, assevera que o contribuinte teria embarcado a 25- 05-2016, e desembarcado a 06-07-2016.

60. Ou seja, o Requerente teria embarcado, sem ter desembarcado, no mesmo porto e navio….

61. É, naturalmente, incompreensível este alinhamento, que prejudica a idoneidade do documento.

62. Se não bastante, é mister realçar que o Requerente não comprova a nacionalidade da embarcação, onde teria desempenhado a respetiva atividade, que teria originado os rendimentos em crise.

63. Desde logo, apenas existindo elementos objetivos e congruentes que relacionam a residência do Requerente a Portugal. E não havendo qualquer referência (muito menos, qualquer expediente probatório), acerca da nacionalidade do navio.

(…) 65. Não é despiciendo concluir que a embarcação possa ser portuguesa.

66. O que enquadraria os montantes em apreciação, no âmbito da norma do artigo 18.º, n.º 1 al. c) do CIRS.

67. De qualquer modo, sempre incumbirá ao Requerente, o ónus de prova acerca da situação da embarcação susodita.

68. Mas, ainda que ultrapassados os requisitos da norma do artigo 16.º, n.º 1 al. a) do CIRS, que pontifica com critério primeiro da aferição da residência do contribuinte em Portugal, não é menos verdade que essa putativa circunstância, não afasta a verificação do preceituado no artigo 16.º, nº 1 al. b), do mesmo Diploma.”.

Vem também a Requerida citar uma decisão arbitral proferida pelo CAAD: “Acerca da densificação da sobredita norma do artigo 16.º, n.º 1 al. b), do CIRS, mormente no que concerne ao conceito de residência habitual, discorre a Sentença do CAAD, exarada no Processo nº 231/2017-T, de 2020-01-17: “Relativamente ao critério previsto na alínea a. do ponto anterior, sustenta Manuel Faustino que se “exige a reunião do corpus e do animus. Não basta a permanência em território português. Ou pode nem ter havido permanência, no sentido anteriormente visto, suficiente em território português. Existe um corpus, constituído por um local de residência, associado a um animus, que consiste na intenção de a manter e ocupar como residência habitual.” (Cfr. Manuel Faustino, Os Residentes no Imposto Sobre o Rendimento Pessoal (IRS) Português, Ciência e Técnica Fiscal n.º 424, 2009, p. 124);

Justamente, a conferência desse animus de residência em território português, poderá ser aferido em função das manifestações advindas do próprio Requerente. Uma delas é a verificação do domicílio fiscal,

Tanto mais que a identificação do domicílio fiscal do autor, coincide com o único imóvel que se encontra associado ao contribuinte: Rua...: Código Postal: ...-... Vila do Conde; ....

Conclui, por último, a Requerida que: “(…) não se verificarem no presente caso os pressupostos do artigo 43.º da LGT.”.

***

Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular, foi constituído em 28-09-2021.

Em 28-09-2021, foi proferido despacho arbitral ordenando a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para apresentar resposta, nos termos e prazo do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT, o que efetuou, em 02-11-2021, juntando Processo Administrativo (doravante PA).

Em 10-11-2021, foram notificadas as partes do despacho, de 09-11-2021, proferido pelo Tribunal Arbitral, no qual se dispensava a reunião prevista no artigo 18.º, n.º 1, do RJAT, convidando-se as partes, querendo, a apresentar alegações escritas por prazo simultâneo, em 30 dias, o que o Requerente efetuou, em 13-12-2021.

Por despacho, de 18-07-2022, o Tribunal Arbitral prorrogou o prazo para proferir decisão arbitral previsto no n.º 1, do artigo 21.º, do RJAT, por dois meses, nos termos do n.º 2, do artigo 21.º do RJAT.

 

II. SANEAMENTO

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à luz do preceituado nos artigos 2.º n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

Não foram suscitadas exceções de que deva conhecer-se.

O processo não enferma de nulidades.

Inexiste, deste modo, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

1. Factos provados:

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

O Requerente não apresentou declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, relativamente ao ano de 2016, dentro do prazo legal para o efeito;

Através de informação prestada pela Dinamarca à AT portuguesa, verificou-se que o Requerente auferiu durante esse ano rendimentos de trabalho dependente, no montante de      € 30.970,49 (trinta mil, novecentos e setenta euros e quarenta e nove cêntimos);

 No âmbito do processo de irregularidades de IRS, do ano de 2016, foi o Requerente notificado através do ofício n.º GIC-..., de 23-10-2020, para apresentar no prazo de 30 dias, a declaração modelo 3 de IRS do ano de 2016, com rendimentos de trabalho dependente auferidos na Dinamarca;

O Requerente apresentou a sua resposta sustentando não se encontrar obrigado à apresentação da declaração de rendimentos em causa, em razão da localização da sua residência fiscal e dos rendimentos terem sido obtidos através de fonte estrangeira;

Esta resposta foi apresentada na área reservada do Requerente junto do Portal das Finanças, tendo a divergência sido encerrada na situação de “Regularizada”;

Na ausência de entrega no prazo estipulado, da declaração modelo 3 de IRS do ano de 2016, a AT procedeu, em 03-12-2020, à recolha de declaração oficiosa identificada com a referência ...-2016-...;

Em resultado desta declaração oficiosa, gerou-se a liquidação de IRS/2016 com o n.º 2020..., de 16-12-2020, que foi enviada ao cuidado do Requerente, por correio, mediante registo simples, identificado sob o código RY...PT, de 21-12-2020, com o valor total a pagar de imposto, incluindo juros compensatórios, de   € 8.653,51 (oito mil seiscentos e cinquenta e três euros e cinquenta e um cêntimos);

Foi fixada, como data-limite para esse pagamento, o dia 25-01-2021, tendo o pagamento integral deste montante sido realizado pelo Requerente, a 18-01-2021;

Em 13-04-2021, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação oficiosa de IRS, supra identificada, cingindo-se às seguintes questões:

a) Desconsideração do direito de audição; e,

b) Falta de residência fiscal no território português do Requerente;

Em 18-08-2021, foi proferido projeto de despacho no sentido de indeferimento de pedido, o qual veio a ser notificado ao sujeito passivo a coberto de ofício 2021S..., de 19-08-2021, para exercer, querendo, no prazo de 15 dias, o direito de audição previsto no artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT);

Face à ausência de resposta do exercício do direito de audição prévia, foi indeferida a pretensão da Requerente nos termos e com os fundamentos constantes do projeto de decisão anteriormente notificado;

O Requerente reagiu através da utilização do presente meio arbitral, cujo pedido de pronúncia arbitral (PPA) apresentou, em 21-11-2021;

O PPA foi apresentado na sequência do indeferimento da reclamação graciosa identificada com o n.º ...2021..., apresentada contra a liquidação ..., respeitante ao período de tributação de 2016, invocando o Requerente os seguintes vícios:

a) Caducidade do direito à liquidação por falta de notificação válida da mesma dentro do prazo legal;

b) Preterição de formalidade essencial – desconsideração do direito de audição; e,

c) Erro sobre os pressupostos de direito – da falta de residência fiscal no território português do Requerente.

 

2. Factos não provados:

Não resultou provado nos autos que a notificação da liquidação de IRS/2016 com o n.º 2020 ..., de 16-12-2020, que foi enviada ao cuidado do Requerente, por correio, mediante registo simples, identificado sob o código RY...PT, de 21-12-2020, não tenha sido rececionada no recetáculo do seu domicílio fiscal, ou que lhe tenha sido difícil ou impossível fazer prova do não recebimento da mesma;

Não ficou provado que o Requerente tivesse sido notificado para afeitos de exercício do direito de audiência prévia.

Com relevo para a decisão da causa, não existem outros factos que não tenham ficado provados.

 

3. Fundamentação da fixação da matéria de facto:

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e), do RJAT).

Os factos dados como “provados” e “não provados” foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA, e no PA - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos - e, bem assim, no consenso das partes.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º n.º 7, do CPPT (aqui aplicável por força do disposto no artigo 29.º n.º 1, alínea a), do RJAT), a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

III. DO DIREITO

 

1. A questão a decidir:

Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, a questão central a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral consiste em apreciar a legalidade do ato de liquidação oficiosa de IRS referente ao período de tributação de 2016, com o n.º 2020..., efetuada pela AT, a 16-12-2020, com o valor total a pagar de imposto, incluindo juros compensatórios, de € 8.653,51 (oito mil seiscentos e cinquenta e três euros e cinquenta e um cêntimos).

Perante a factualidade dada como provada suscetível de integrar a causa de pedir, e as normas legais em vigor à data dos factos, procede-se ao conhecimento do mérito da causa começando por apreciar as invocadas: a) CADUCIDADE DA LIQUIDAÇÃO OFICIOSA DO IRS/2016 POR FALTA DE NOTIFICAÇÃO VÁLIDA, e b) VIOLAÇÃO DO DIREITO DE PARTICIPAÇÃO, por esta ordem.

Com efeito, não tendo sido estabelecida pelo Requerente qualquer relação de subsidiariedade entre ambas, e considerando-se que a figura da caducidade do direito à liquidação prevista pelo artigo 45.º, da LGT, não consubstancia uma exceção perentória, podendo vir a afirmar uma ilegalidade ou vício material invalidante do ato tributário impugnado, passar-se-á em primeiro lugar à apreciação do vício de caducidade do direito à liquidação pelo facto da respetiva procedência poder determinar uma estável e eficaz tutela dos interesses do Requerente, em cumprimento do disposto no artigo 124.º do CPPT, aqui aplicável por força do artigo 29.º do RJAT.

A título meramente subsidiário, o Requerente invoca ainda, e como referido, a c) FALTA DE RESIDÊNCIA FISCAL NO TERRITÓRIO PORTUGUÊS DO REQUERENTE, pelo que se trata ainda de apreciar se o sujeito passivo, no ano de 2016, preenchia os requisitos para ser considerado residente fiscal em Portugal, e consequentemente, se como tal poderá ser tributado.

Cumpre apreciar e decidir.

a) A respeito da caducidade do direito à liquidação, dispõe o artigo 45.º, n.º 1 da LGT, aqui aplicável por remissão do artigo 92.º, n.º 1, do Código do IRS, que: “O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.”.

Considerando a natureza do tributo em causa, perante o IRS referente ao período de tributação de 2016, conclui-se que o prazo de caducidade, terminou em 31-12-2020.

A questão é pois a de saber se, a notificação emitida pela AT desta liquidação de IRS, e vulgarmente apelidada de “registo simples”, preenche ou não os requisitos previstos no artigo 38.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante CPPT, aqui aplicável, ex vi o artigo 29.º do RJAT).

Isto é, a de aferir se perante este quadro factual e as normas legais aplicáveis, se deve ou não considerar devidamente notificado o Requerente da liquidação oficiosa em análise.

Dispõe o artigo 38.º do CPPT: “1 - As notificações são efectuadas obrigatoriamente por carta registada com aviso de recepção, sempre que tenham por objecto actos ou decisões susceptíveis de alterarem a situação tributária dos contribuintes ou a convocação para estes assistirem ou participarem em actos ou diligências. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior a comunicação dos serviços postais para levantamento de carta registada remetida pela administração fiscal deve sempre conter de forma clara a identificação do remetente. 3 - As notificações não abrangidas pelo n.º 1, bem como as relativas às liquidações de tributos que resultem de declarações dos contribuintes ou de correcções à matéria tributável que tenha sido objecto de notificação para efeitos do direito de audição, são efectuadas por carta registada.".

 

Aqui chegados, a pergunta que se impõe é se o ato notificado a que vimos fazendo referência será suscetível de alterar a situação tributária da Requerente, sendo pacífico que assim é. Veja-se a estes propósito a jurisprudência dos tribunais superiores vertida nos processos do STA,  0423/05, 0412/06, 01145/12, e do TCAS, 0479/09, 02625/08.

 

Ora, de acordo com o n.º 1 do artigo 38.º, acima citado, “actos ou decisões suscetíveis de alterarem a situação tributária dos contribuintes” devem obrigatoriamente ser efetuadas através de carta registada com aviso de receção.

 

Tendo a notificação da liquidação ocorrido mediante mero correio por registo simples e não por carta registada com aviso de receção, não foi observada a respetiva formalidade legal.

 

E nem se diga que o ato de liquidação oficiosa em análise, encontra igualmente enquadramento no preceituado no n.º 3 do mesmo artigo que dispõe que, “As notificações não abrangidas pelo n.º 1, bem como as relativas às liquidações de tributos que resultem de declarações dos contribuintes ou de correções à matéria tributável que tenha sido objeto de notificação para efeitos do direito de audição, são efetuadas por carta registada.”.

 

Pois que a realidade factual que aqui encontramos é diversa. Não estamos perante liquidações de tributos que resultem de uma declaração de rendimentos apresentada pelo Requerente, nem de correções à matéria tributável objeto de notificação para efeitos de direito de audição.

 

Questão diferente é a de saber se a notificação se deve ter por válida, no caso concreto, apesar de não terem sido observadas todas as exigências legais previstas para a sua efetivação.

 

O aspeto mais relevante para efeito de garantias de defesa do contribuinte, seria assim o do conhecimento do ato e não a forma por que ele é notificado, colocando-se a tónica na cognoscibilidade da notificação.

A resposta depende exclusivamente da factualidade do caso concreto que vimos analisando. Ora no que a esta diz respeito, encontra-se provado nos autos que:

 

- Na ausência de entrega no prazo estipulado, da declaração modelo 3 de IRS do ano de 2016, a AT procedeu, em 03-12-2020, à recolha de declaração oficiosa identificada com a referência 1902-2016-F0024-03;

- Em resultado desta declaração oficiosa, gerou-se a liquidação de IRS/2016 com o               n.º 2020..., de 16-12-2020, que foi enviada ao cuidado do Requerente, por correio, mediante registo simples, identificado sob o código RY...PT, de 21-12-2020, com o valor total a pagar de imposto, incluindo juros compensatórios, de   € 8.653,51 (oito mil seiscentos e cinquenta e três euros e cinquenta e um cêntimos);

- Foi fixada, como data limite para esse pagamento, o dia 25-01-2021, tendo o pagamento integral deste montante sido realizado pelo Requerente, a 18-01-2021;

- Em 13-04-2021, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação oficiosa de IRS.

 

De resto, não foi alegado pelo Requerente, nem resultou provado nos autos que a notificação da liquidação de IRS/2016, com o n.º 2020..., de 16-12-2020, que foi enviada ao cuidado do Requerente, por correio, mediante registo simples, identificado sob o código RY...PT, de 21-12-2020, não tenha sido rececionada no recetáculo do seu domicílio fiscal, ou que lhe tenha sido difícil ou impossível fazer prova do não recebimento da mesma.

 

Atentemos ao Douto Acórdão do STA, proferido a 29 de Maio de 2013, no âmbito do Processo n.º 0472/13: “a notificação tem por objetivo dar conhecimento pessoal aos interessados dos atos administrativos suscetíveis de afetar a sua esfera jurídica, como exigência da garantia constitucional consagrada no n.º 3 do art.º 268.º da CRP, segundo a qual impende sobre a Administração o dever de dar conhecimento aos administrados dos atos que lhes respeitam. Neste sentido, diz o n.º 1 do art. 36.º do CPPT que “os atos em matéria tributária que afetem os direitos e interesse legítimos dos contribuintes só produzem efeitos em relação a estes quando lhes sejam validamente notificados”. E embora a CRP relegue para a liberdade constitutiva do legislador ordinário o encargo de determinar as formalidades das notificações, a verdade é que esse formalismo deverá mostrar se constitucionalmente adequado e observar o princípio constitucional da proibição da indefesa (Cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 130/2002, de 14 /3/2002, proc n.º 607/01.). Mais concretamente, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o dever de notificação que impende sobre a Administração Tributária “tem um conteúdo obrigatório, devendo estarem reunidos alguns requisitos essenciais, nomeadamente, a pessoalidade e a efetiva cognoscibilidade do ato ao notificando” (Acórdão de 11/2/2009, proc. n.º 916/2007);

 

Socorremo-nos, por seu turno, da anotação de Jorge Lopes de Sousa ao artigo 38.º do CPPT, 4ª edição, 2003, na página 223, onde se pode ler: “(...) se fosse enviada carta registada para a notificação dessas liquidações e se provasse que a carta foi efectivamente recebida, não deixaria de considerar-se efectuada a notificação. Justamente, a ponderação acerca da validade da notificação, afigura-se uma análise finalística, direcionada a conferir se o contribuinte tomou conhecimento, por via da notificação, da liquidação objetada”;

 

E do Acórdão do STA n.º 0830/17, de 30-05-2018, igualmente invocado pelo Requerente, e que aqui recordamos: “Da leitura atenta da petição inicial e das alegações de recurso não se detecta, em momento algum, que a recorrente alegue que não ter recebido efectivamente as notificações das liquidações que lhe foram enviadas, alega sim que as mesmas não cumpriam os ritualismos processuais legalmente previstos e que visam assegurar a certeza e a segurança de que o acto notificado chega à esfera de cognoscibilidade do destinatário.” O paralelismo fatual com o caso sub judice é evidente, tendo em atenção que o Requerente não refuta a receção da notificação controvertida. Prossegue o mesmo aresto: “Sobre questão idêntica a esta já se pronunciou este Supremo Tribunal no sentido de não assistir razão à recorrente. Efectivamente decidiu-se no acórdão datado de 29.05.2013, recurso n.º 0472/13 em que, como se verá mais abaixo, a factualidade alegada pela ali recorrida para fundamentar o seu pedido era essencialmente idêntica à alegada nestes autos: (…) Acontece, porém, que o facto de a recorrente alegar e com razão que a Administração Tributária não terá observado todas as formalidades da notificação exigidas por lei, tal não significa por si só que se tenha de concluir pela sua invalidade, se foi atingido o objectivo que se visava alcançar com a notificação: transmitir à destinatária o teor da liquidação. Com efeito, análise atenta da argumentação da recorrente verifica-se que em caso algum a mesma alega que a notificação não tenha sido recepcionada no receptáculo do seu domicílio fiscal ou que lhe seja difícil ou impossível fazer prova do não recebimento da mesma.” (negrito nosso dada a similitude com o caso que vimos analisando).

“Assim sendo, constituindo jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal que as formalidades procedimentais previstas na lei são essenciais, mas desgraduam-se em não essenciais se, apesar delas, foi atingido o fim que a lei visava alcançar com a sua imposição (Cfr., entre outros, o Acórdão de 8/9/2010, proc n.º 437/10. No mesmo sentido, cfr., JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6ª ed., 2011, Áreas Editora, anotação ao art. 39.º do CPPT, p. 384.), não podem deixar de improceder as alegações e respectivas conclusões da recorrente.” 32. Falamos de uma posição razoável, e que, naturalmente, devemos secundar. 33. Justamente, o formalismo associado à notificação, reveste-se de natureza instrumental. 34. O aviso de receção não constitui um valor absoluto em si mesmo, como é compreensível. 35. A tutela jurídica dispensada ao procedimento de notificação, consiste, como esclarece o mencionado Acórdão do STA nº 0830/17, de 30-05-2018, numa: “(…) garantia não impugnatória dos contribuintes, que se destina não apenas a levar ao seu conhecimento o acto praticado pela Administração Tributária como a permitir-lhes reagir contra ele em caso de discordância.”. 36. Estando assegurado conhecimento da liquidação ao Requerente, conforme advém da respetiva petição: “E no caso concreto não foi observada esta formalidade, porquanto o envio da notificação da liquidação ocorreu mediante mero correio por registo simples, ao invés, de carta registada com aviso de receção”. 37. Salvo o devido respeito, não existem assim razões que possam justificar a caducidade da liquidação contestada.";

Para secundar o entendimento de que a ponderação acerca da validade da notificação resulta de uma análise finalística, concluindo-se no caso que cumpriu a sua finalidade.

A notificação deve assim ter-se por válida, presumindo-se que ocorreu não obstante não ter sido observada a competente formalidade legal, razão pela qual não justifica a invocada caducidade da liquidação oficiosa também no caso sub judice.

Em termos gerais, recordemos contudo, com prudência, os ensinamentos de RUI MORAIS, no seu Manual de Processo Tributário, Almedina, Coimbra, 2012, p. 99.):

“ (...) este regime legal tem que ser cuidadosamente aplicado, pois, de outro modo, facilmente acontecerão situações intoleráveis. Se, por um lado, se compreende que estando em causa notificações em massa se tenha de limitar, no razoável, o esforço da AF para contactar os contribuintes, não podemos esquecer que estas notificações têm um efeito semelhante ao de uma verdadeira citação, pois determinam o início de contagem dos prazos para a “contestação” do ato notificado”. (...) A prevalecer a tese da interpretação das normas dos n.ºs 1 e 3 do art. 38.º em conjugação com o nº 1 do art. 39.º do CPPT, que admita que os atos suscetíveis de alterar a situação tributária dos contribuintes, como sejam a liquidação de tributos que não resultem de declarações dos contribuintes (nomeadamente liquidações oficiosas), ou a convocação para participarem em  atos ou diligências, lhes sejam considerados notificados mediante simples carta registada, i.e., que a carta registada com aviso de receção pode ser substituída pelo registo simples, nos termos e para os efeitos daqueles preceitos, levar-nos-ia a concluir que tal interpretação afetaria a garantia da proteção jurisdicional eficaz do destinatário, em violação das exigências decorrentes do n.º 3 do art.º 268.º da CRP e do princípio constitucional da proibição da defesa, ínsito no art.º 20.º em conjugação com o n.º 4 do art.º 268.º da CRP.", garantia da proteção jurisdicional eficaz do destinatário que entendemos não ter sido posta em crise, in casu, como vimos.

b) Cumpre apreciar de seguida, a invocada violação do direito de participação.

 

O artigo 45.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (doravante CPPT) prevê o direito de participação do contribuinte na formação da decisão,  o artigo 121.º do CPA prevê expressamente o direito de audiência prévia, e o artigo 122.º do CPA contém as regras referentes à notificação para a audiência, determinando, no seu n.º 2, que “a notificação fornece o projeto de decisão e demais elementos necessários para que os interessados possam conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, em matéria de facto e de direito, indicando também as horas e o local onde o processo pode ser consultado.”.

Todos estes preceitos legais concretizam a garantia constitucional da participação dos interessados na formação das decisões ou deliberações administrativas, prevista no artigo 267.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, cuja redação é a seguinte: “O processamento da atividade administrativa será objeto de lei especial, que assegurará a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito.".

Nesta fase de apreciação do processo arbitral está em causa saber se a liquidação oficiosa de IRS, relativa ao ano de 2016, levada a cabo em 16-12-2020 padece, ou não, de vício de forma por preterição de formalidades essenciais, em virtude da postergação do direito de audição, nomeadamente em violação do princípio da audiência dos interessados, plasmado no artigo 60.º, n.º 1, alínea a), da Lei Geral Tributária (doravante LGT).

 

Ora, o artigo 60.º da LGT, que consagra o princípio da participação, concretamente na situação que vimos analisando, tem a seguinte redação nos seus n.ºs 1 e 2:

“Princípio da participação

1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas: a) Direito de audição antes da liquidação; b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições; c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal; d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção; e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária.

2 - É dispensada a audição: a) No caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável; b) No caso de a liquidação se efectuar oficiosamente, com base em valores objectivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.”.

Vamos deter-nos um pouco mais sobre este n.º 2, do artigo 60.º da LGT, aferindo se a os factos em análise incorrem na previsão do mesmo, desembocando na dispensa de audição.

A este respeito, o Requerente transcreve parcialmente o Douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), processo 00397/08.4BEPRT, de 27 de janeiro de 2012, como refere, pela incontornável similitude que apresenta face ao caso sub judice, e que acompanhamos.

Como dimana do mesmo, “No artigo 60.º da LGT, depois de no n.º 1 se deixarem estabelecidas as formas pelas quais pode ser exercida a participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito, previram-se, nos n.ºs 2 e 3, os casos em que é dispensada a audição. Trata-se aqui de uma enumeração completa, que não exemplificativa, como decorre dos termos em que as referidas normas se mostram formuladas, de modo, diríamos, suficientemente concretizado. Um dos casos em que a lei prevê a dispensa da audição do contribuinte é, precisamente, a hipótese de a liquidação se efetuar oficiosamente, com base em valores objetivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.

Quer isto dizer que, para efeitos da dispensa do direito de audição prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 60.º da LGT, não basta que a liquidação tenha sido oficiosamente efetuada perante a não entrega da declaração de rendimentos. A dispensa pressupõe que tal liquidação oficiosa tenha por base valores objetivos previstos na lei. Só neste caso, portanto, que não em todos os de emissão de liquidação oficiosa (decorrente, bem se vê, da falta de entrega da declaração) é que a Administração Tributária está dispensada de notificar o contribuinte para exercer o direito de audição previsto no artigo 60.º da LGT.

A dificuldade na interpretação do conteúdo e alcance da citada alínea b) do n.º 2 do artigo 60.º da LGT, está, como bem se vê, em saber em que casos estamos perante uma liquidação oficiosa efetuada com base em valores objetivos previstos na lei. Dito por outras palavras e de volta ao caso concreto, importa saber se uma liquidação efetuada pela Administração Tributária com base em valores de rendimentos do trabalho fornecidos pelas autoridades espanholas, no âmbito da troca de informações ao abrigo de convenções bilaterais, é ainda uma liquidação oficiosa efetuada com base em valores objetivos previstos na lei. E a resposta a esta questão só pode ser negativa.

Quando a lei, no referido artigo 60.º, n.º 2, al. b) da LGT, se refere às liquidações oficiosas efetuadas com base em valores objetivos previstos na lei, tem em vista aquelas hipóteses em que, na falta de apresentação de declaração de rendimentos, a Administração procede à liquidação do imposto socorrendo-se de valores que estão ao seu dispor e cujo montante se apresenta, nesta fase de liquidação, imediatamente determinável.

Que valores objetivos são estes que a lei prevê é, naturalmente, a pergunta que se impõe. Exemplos destes valores objetivos podem ser recolhidos, desde logo, no CIRS, mas também no CIRC. Assim, nos termos o artigo 76º, nº1, al. c) do CIRS, temos aí referida a totalidade do rendimento líquido da categoria B obtido pelo titular do rendimento no ano mais próximo que se encontre determinado; em sede de IRC, por exemplo, encontramos a previsão de valores objetivos quando a lei se reporta – vide artigo 90.º, nº 1, al. b) do CIRC - ao valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, à totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada;

Em casos como estes, em que não foi apresentada declaração de rendimentos (apesar da notificação para tal) deve, no caso do IRS, a liquidação ser efetuada no ano imediato àquele a que respeitam os rendimentos, concretamente até 30 de Novembro – cfr. artigo 77.º, al. c) do CIRS. Ora, recuperando o caso dos autos temos que a Administração Tributária, em Julho de 2007 (ou seja, quase três anos depois do prazo a que alude o citado artigo 77.º, al. c) do CIRS), após ter obtido informações provenientes das autoridades espanholas (no âmbito do procedimento de troca espontânea e automática de informações ao abrigo de convenções bilaterais) sobre rendimentos auferidos, em 2003, em Espanha, pelo Recorrido, e constatando que o mesmo, nesse ano, não havia entregue a declaração de rendimentos, notifica-o, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 3 do CIRS, para, no prazo de 30 dias, apresentar a declaração de rendimentos em falta.

Não tendo sido apresentada a declaração, foi emitida a liquidação posta em crise na impugnação judicial sobre a qual foi proferida a sentença recorrida. Desde já podemos dizer, com a sentença recorrida, que esta liquidação oficiosa não tem subjacentes valores objetivos previstos na lei, nos termos em que o são aqueles que se deixaram apontados. Esta liquidação de IRS tem por base valores de rendimentos que, segundo as autoridades espanholas, o Recorrido auferiu em Espanha no ano de 2003. Ou seja, não se trata, aqui, de qualquer valor objetivo previsto na lei que esteja evidenciado e determinado perante a Administração Tributária e do qual esta se pudesse socorrer imediatamente.

A dispensa da audiência prévia quando a liquidação oficiosa se efetua com base em valores objetivos previstos na lei, atentos os demais pressupostos previstos no artigo 60.º, n.º 2, al. b) da LGT (a prévia notificação para apresentar a declaração, sem que tal seja feito), funda-se na ideia de que, neste caso, face a tais dados objetivos, a participação possível do contribuinte é desnecessária e que, por isso, convidar o contribuinte a pronunciar-se sobre tais elementos, redundaria num ato inútil. Não é, seguramente, nos termos expostos, o caso dos autos. Porque assim é, tanto basta para afirmar que não é aplicável à situação dos autos a dispensa de notificação para o exercício do direito de audição, prevista no artigo 60.º, n.º 2, al. b) da LGT. Tal equivale a dizer que, no caso, a Administração Tributária estava obrigada a ouvir o contribuinte antes de emitir a liquidação.”

Acompanhando o entendimento expresso no citado Acordão, podemos desde já antecipar que o caso em apreço não configura uma liquidação oficiosa efetuada com base em valores objetivos previstos na lei, nos termos do artigo 60.º n.º 2, alínea b), da LGT.

Por sua vez, no Douto Acórdão de 8 de julho de 2021, processo n.º 835/08.6BELRS, também invocado pelo Requerente, pode ler-se o seguinte: “I – Na falta de apresentação de declaração de rendimentos no prazo legal, a AT procede à liquidação oficiosa nos termos do disposto no artigo 83.º do CIRC, com base na matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada. II - O artigo 60.º da LGT impõe que, neste caso, se faculte ao contribuinte a oportunidade de exercer o seu direito de audição prévia. III - As situações de liquidação oficiosa não podem ser enquadradas como liquidações efetuadas com base na declaração do contribuinte, donde, com subsunção normativa no artigo 60.º, n.º 2, alínea a), da LGT, cuja fórmula deve ser interpretada com o alcance de apenas dispensar a audição quando a liquidação for efetuada em sintonia com a posição que decorre da declaração do contribuinte, nos aspetos factuais e jurídicos. IV-Não é pelo facto de o contribuinte não cumprir com um dever declarativo a que está legalmente vinculado, que legitima a AT a desrespeitar o direito de participação na definição da sua situação com responsabilidade limitada nos termos do artigo 104.º, n.º 2, do EOA tributária, quando em nenhum momento prévio à emissão da liquidação foi chamado a pronunciar-se.”.

Face à jurisprudência exposta, verificamos que também neste caso não se incorre na previsão do artigo 60.º n.º 2, alínea b), da LGT.

Com efeito, a liquidação oficiosa em apreço não pode ser enquadrada nos termos do artigo 60.º n.º 2, alíneas a) e b), da LGT, porquanto não é efetuada em sintonia com a posição que decorre da declaração do contribuinte, nos aspetos factuais e jurídicos, nem tão puco tem por base qualquer valor objetivo previsto na lei que esteja evidenciado e determinado perante a Administração, fundando-se antes em valores de rendimentos que, segundo as autoridades dinamarquesas, o Requerente auferiu na Dinamarca, no período de tributação de 2016.

Donde se conclui que na situação sub judice, não haveria lugar à dispensa de audição, nos termos do artigo 60.º n.º 2, da LGT. 

Ora, pretende a Requerida que o "procedimento de divergências, identificado sob o número de irregularidade ..., possibilitou, precisamente, o exercício de audição por parte do sujeito passivo. (...) É, portanto, manifesto que foi conferida a oportunidade ao Requerente, de pronunciar-se em momento anterior à liquidação objetada" - conclui.

 

Responde assim o Requerente, a cuja tese aderimos: "De facto, a única notificação que foi promovida pela AT (cf. documento n.º 4, alusivo ao ofício n.º GIC-..., de 23-10-2020, para o sujeito passivo apresentar no prazo de 30 dias, a declaração modelo 3 de IRS do ano de 2016 – acrescentado nosso) nada teve a ver com o permitir do direito à participação na formação da decisão e nem sequer tinha qualquer fundamentação atinente ao antecipado ato de liquidação, como sejam, por exemplo, qual a quantificação dos rendimentos que seriam tidos em conta e sua respetiva fonte.".

 

E acrescenta: “Ou seja, para a Requerida foi a notificação junta à petição inicial como documento n.º 4, com um teor totalmente insuficiente, e para um procedimento totalmente atípico, assente na figura do “procedimento de divergências”, que consubstanciou o permitir do direito de participação do Requerente.

 

Perante a factualidade subjacente, as normas legais aplicáveis, e aqui chegados, resulta inequívoco que o “procedimento de divergências”, nos termos em que foi concretizado, não configura uma notificação válida para efeitos de exercício do direito de participação.

 

Logo, a liquidação oficiosa padece de vício de forma por preterição de formalidades essenciais, nomeadamente em violação do princípio da audiência dos interessados, plasmado no artigo 60.º, n.º 1, alínea a), da LGT.

 

Admitindo a Requerida, por mera hipótese académica, que o Requerente não foi validamente notificado para exercer o direito de audição prévia no âmbito do procedimento de análise de divergências, entende aquela que a alegada preterição da mencionada formalidade legal deveria considerar-se sanada, não decorrendo dessa circunstância quaisquer consequências invalidantes para a liquidação, objeto do presente pedido, porquanto o Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação no âmbito da qual teve, novamente, a possibilidade de se pronunciar sobre a liquidação adicional, tendo optado por não exercer o direito de audição, e ainda, porque poderá concorrer para a solução do pleito o princípio do aproveitamento do ato.

 

Em abono destas posições, a Requerida invoca o decidido no Acórdão do TCAN                   n.º 01196/05.0BEPRT, de 02/02/2017: “Mas há duas situações em que esta omissão ilegal poderá não ter consequências invalidantes. Uma, ocorre nas situações em que possa intervir o princípio do aproveitamento do acto, e outra quando em procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) o contribuinte teve oportunidade de se pronunciar sobre as questões acerca das quais foi omitida a audiência no procedimento de primeiro grau.”

 

Deste modo, não se demonstrando nem se presumindo a receção pelo destinatário da notificação enviada para exercício do direito de audição prévia, não se pode considerar devidamente cumprido o dever de audiência prévia, pela AT, pelo que será de apurar se, como pretende a Requerida, a verificada preterição dessa formalidade legal se deve considerar sanada.

A este propósito recorremos à decisão do CAAD, proferida no âmbito do Processo                 n.º 533/2015-T, que abaixo se transcreve parcialmente:

" (...) se se entendesse que será suficiente, para aplicação da doutrina plasmada no aresto em análise, a mera oportunidade abstracta de o contribuinte “se pronunciar sobre a liquidação adicional e sobre todas as questões relativamente às quais lhe deveria ter sido previamente concedida a faculdade de se pronunciar”, concluir-se-ia que em todas as situações em que houvesse audiência prévia relativamente à reclamação graciosa, ficaria “sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação.”, já que sob tal ponto de vista (abstracto) o contribuinte é livre de se pronunciar sobre tudo o que for possível pronunciar-se (negrito e itálico nosso).

Deste modo, e pelo exposto, julga-se que apenas ficará “sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação.”, quando o conteúdo da própria notificação para o exercício de audiência prévia pelo contribuinte em sede de reclamação graciosa contiver (negrito e itálico nosso) , expressamente e em concreto, todas “as questões relativamente às quais lhe deveria ter sido previamente concedida a faculdade de se pronunciar”. Ora, no caso não será isso que acontece. Com efeito, a reclamação graciosa, conforme resulta do ponto 29 dos factos dados como provados, restringiu-se às questões, colocadas pelos Requerentes, referentes à: a. a alteração da data de aquisição do imóvel para o mês de Dezembro de 2010; e b. a alteração do respectivo valor de aquisição para €73.000,00.".

 

No nosso caso verificamos que a reclamação graciosa se cingiu à: a) Desconsideração do direito de audição; e,

b) À falta de residência fiscal no território português do Requerente.

 

E esclarece ainda a decisão do CAAD, a que vimos fazendo referência: "Ora, em sede de audiência prévia, os Requerentes poderiam ter suscitado outras questões, como vieram a fazer em sede impugnatória, designadamente (...) questões que não foram abrangidas pela audiência prévia do procedimento de reclamação graciosa, uma vez que não tinham sido colocadas como objecto da mesma pelos Requerentes, nem foram oficiosamente suscitadas pela AT, não integrando assim quer o projecto de decisão notificado aos Requerentes para efeitos de audiência prévia na reclamação graciosa, nem a decisão final desta.".

 

No presente processo arbitral, por sua vez, o Requerente para além dos tópicos apontados suscitou ainda a questão da caducidade do direito à liquidação por falta de notificação válida da mesma dentro do prazo legal, questão que não foi abrangida pela audiência prévia do procedimento de reclamação graciosa.

Retornemos àquela decisão arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 533/2015-T: "Aqui chegados, resta apenas aferir, em obediência à jurisprudência reiterada e constante do STA na matéria em causa, se se verifica a não relevância da preterição do direito de audição, por via da aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo.

Como tem afirmado repetidamente o STA, “A não relevância da preterição do direito de audição, por via da aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo, apenas é admissível quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insusceptível de influenciar a decisão final.” Tem entendido assim aquele alto Tribunal que “o princípio do aproveitamento do acto em direito fiscal face à sua natureza ablativa só em casos muito específicos em que se considere de todo a irrelevância do vício formal na génese do acto administrativo por não contender com a sua existência ou validade é que em sede fiscal pode ser atendido. Ora, no caso, não se pode concluir que o exercício do direito de audição pelos Requerentes, fosse insusceptível de “influenciar a decisão final, seja no seu sentido seja nos seus fundamentos.”

 

Ora, o mesmo acontece no âmbito do processo arbitral em análise.

 

Por tudo o que fica exposto, conclui-se que a liquidação oficiosa em análise não deve considerar-se sanada.

Neste termos, padece de vício de forma, por preterição do direito de audição, previsto no artigo 60.º, n.º 1, alínea a) da LGT, pelo que é ilegal e deve ser anulada, e em consequência os atos que dela decorrem, designadamente a liquidação de juros compensatórios e a decisão do procedimento de reclamação graciosa.

Atento o decidido quanto ao arguido vício de forma, fica prejudicado em toda a sua extensão o conhecimento do pedido que o Requerente invoca a título subsidiário, relacionado com a alegada c) falta de residência fiscal em Portugal do Requerente.

 

V. DECISÃO

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral Singular:

 

a)            Julgar procedente a presente ação e anular a liquidação oficiosa de IRS, ano de 2016, com o n.º 2020..., efetuada pela AT a 16-12-2020, com o valor total a pagar de imposto, incluindo juros compensatórios, fixado em € 8.653,51 (oito mil seiscentos e cinquenta e três euros e cinquenta e um cêntimos) e todos os atos subsequentes, incluindo de segundo grau;

 

b)           De harmonia com o disposto nos artigos 296.º e 306.º, do Código do Processo Civil (CPC) e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1 alíneas a) e e), do RJAT, e 3.º, n.ºs 2 e 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 8.653,51 (oito mil seiscentos e cinquenta e três euros e cinquenta a um cêntimos), atendendo ao valor económico aferido pelo montante da liquidação de imposto impugnada;

 

c)            Condenar a Requerida nas custas judiciais. Nos termos dos artigos 12.º e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigos 2.º e 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas, em € 918,00 (novecentos e dezoito mil euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, imputáveis à Requerida AT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 31 de agosto de 2022    

 

A Árbitra

 

/Alexandra Iglésias/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

 

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.