Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 106/2022-T
Data da decisão: 2022-07-27  IUC  
Valor do pedido: € 4.264,45
Tema: IUC – incidência subjetiva e exigibilidade do imposto
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SUMÁRIO:

  1. O n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção legal, que, nos termos do artigo 73.º da LGT, pode ser ilidida.
  2. Atento o princípio da equivalência consagrado no artigo 1.º do CIUC, o sujeito passivo do imposto não deve ser o proprietário formal do veículo, mas sim o seu efetivo proprietário.
  3. Os contratos de locação com opção de compra ou o contrato de compra e venda acompanhados da emissão de fatura na forma legal a titular a transmissão do veículo constituem prova suficiente para comprovar a transmissão de veículos automóveis sujeitos a registo.

 

DECISÃO ARBITRAL

A Árbitra Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral constituído em 04.05.2022, decide nos termos e com os fundamentos que se seguem:

 

 

I – RELATÓRIO

 

A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, sociedade anónima, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva..., com sede na Rua ...– ..., ...-... ..., apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral no dia 22.02.2022, o qual foi aceite e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”), na qualidade de Requerida.

 

A Requerente contesta a legalidade de 50 (cinquenta) atos de liquidação de imposto único de circulação («IUC») identificados numa listagem que junta como ANEXO A ao pedido de pronúncia arbitral, pedindo que o respetivo conteúdo se dê por integralmente reproduzido, emitidos pela Autoridade Tributária e Aduaneira («AT») relativamente a 50 (cinquenta) veículos automóveis igualmente discriminados no mencionado ANEXO A, respeitantes ao ano de 2020, no montante global de € 4.624,45; e, bem assim, do ato de indeferimento (parcial) do recurso hierárquico n.º ...2021... apresentado contra a decisão de indeferimento das reclamações graciosas inicialmente apresentadas contra os referidos atos de liquidação.

 

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitra do Tribunal Arbitral Singular, a qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. Em 13.04.2022, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar. Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 04.05.2022.

 

No dia 30.05.2022, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

Através de despacho de 06.06.2022, o Tribunal fixou a data para a audiência, nos termos do disposto no artigo 18.º do RJAT. A audiência realizou-se no dia 29.06.2022, na sede do CAAD, tendo sido ouvida uma das testemunhas arroladas pela Requerente, B... . Finda a inquirição, o Tribunal fixou o prazo para a apresentação de alegações escritas, advertiu quanto à necessidade de pagamento da taxa de arbitragem subsequente por parte da Requerente e fixou o prazo para prolação da decisão arbitral.

 

Resumo da posição da Requerente

 

A Requerente começa por referir que, embora os atos de liquidação tenham sido dirigidos ao «Banco C...», com o número de pessoa coletiva..., é a Requerente («A..., S.A. – Sucursal em Portugal») que detém legitimidade para apresentar o presente pedido de pronúncia arbitral, pois, na sequência de uma reorganização societária intra-grupo, o Banco C... S.A., fundiu-se com a sociedade A... S.A., através de uma fusão sem liquidação. Assim, a partir de 01.10.2021, passou a ser uma sucursal do D..., Avenida ... Madrid, Espanha, registada junto do Registo Mercantil de Madrid F. (hoja) M-..., L. (tomo) ..., F. (folio) 25, CIF A-..., e a utilizar a designação de A... S.A. - Sucursal em Portugal, com sede em Rua ... ..., Portugal, com o NIPC..., registada no Banco de Portugal com o número ... e junto da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões com o número ... .

 

Num segundo momento, a Requerente sustenta a possibilidade de cumulação de pedidos nos termos em que a apresentou, considerando a identidade de factos tributários, de factualidade relevante e da fundamentação jurídica, assim como do Tribunal competente para a decisão, e atendendo ainda ao significativo número de viaturas automóveis e ao volume de documentação necessária para comprovar os factos alegados. Com efeito, nos termos do artigo 3.º do RJAT e do artigo 104.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário («CPPT»), verificam-se os pressupostos da cumulação, sendo de admitir o pedido nos termos em que o mesmo foi formulado.

 

Quanto à questão de fundo, a Requerente defende que a Autoridade Tributária e Aduaneira, ao proceder às liquidações impugnadas, se baseou unicamente na informação constante do registo automóvel, a qual não seria atual nas datas da exigibilidade do IUC (datas de aniversário das viaturas) por as mesmas já terem sido alienadas. Contesta a falta de diligência da AT na recolha de elementos adicionais de prova – ou na sua consideração quando os mesmos lhe foram apresentados no decurso do processo administrativo – à qual estava obrigada ao abrigo do princípio do inquisitório. Por outro lado, sustenta que a função do registo é meramente publicitária, não sendo o registo constitutivo de factos. Por isso mesmo, a presunção que dele decorre pode ser ilidida mediante prova em contrário. Mais concretamente:

  1. não subscreve o entendimento de que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabeleça uma presunção (in)lidível de incidência subjetiva do imposto com base tão-só no registo automóvel, desde logo, porque nem os efeitos do registo automóvel nem tampouco o princípio da equivalência apontam nessa direção, mas também porque esta «proposta» hermenêutica não se coaduna com os elementos gerais da interpretação das leis, nos termos dos artigos 11.º da LGT e 9.º do CC;
  2. o registo de propriedade automóvel não é condição de eficácia do contrato de compra e venda do veículo, mas tem somente eficácia declarativa (mesmo quando confrontada com a nova redação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC);
  3. decorre do princípio da equivalência que o sujeito do passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar;
  4. desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 59/72, de 30 de dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de maio, o último a anteceder o Código do IUC aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, com a última alteração introduzida pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, a legislação fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma outra expressão que, como vimos, têm no ordenamento jurídico português um sentido coincidente;
  5. se o artigo 73.º da LGT prevê que as presunções relativas a normas de incidência tributária são sempre ilidíveis – «admitem sempre prova em contrário» –, então, o único desfecho possível é o de que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC é uma presunção juris tantum, portanto, ilidível;
  6. a conjugação do n.º 1 do artigo 3.º com o n.º 1 do artigo 6.º, ambos do Código do IUC, nos termos da qual o facto gerador do imposto seria constituído pela propriedade do veículo automóvel, levada ao extremo, provocaria situações absurdas, sendo certo também que o mesmo diploma legal contém normas que também apelam a realidades «não registadas»;
  7. o artigo 215.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, que aprovou a LOE2015, que veio aditar o artigo 17.º-A do Código do IUC sob a epígrafe «[e]feitos fiscais da regularização da propriedade», apenas aplicável às transmissões de veículos automóveis ocorridas em ou após o dia 1 de janeiro de 2015, mais não fez do que uma «clarificação» das normas de incidência subjetiva do IUC;
  8. não se consegue compreender como é que a Requerida insiste em escudar-se na sentença proferida pelo TAF de Penafiel no processo n.º 210/13-OBEPNF, quando bem sabe (ou deveria saber) que tal segmento decisório já havia sido revogado pelo Acórdão do STA de 23-05-2018, proferido no processo n.º 01341/17, segundo o qual «não obstante o referido preceito consagrar uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, tal presunção é ilidível, por força do artº.73, da L.G.T.»;
  9. nos processos n.º 332/2018-T e n.º 333/2018-T, tribunais arbitrais constituídos junto do CAAD reconheceram que «qualquer outra interpretação violaria, para além dos princípios da confiança, da segurança jurídica e da proporcionalidade, o princípio da equivalência consagrado no artigo 1º do CIUC, nos termos do qual se estabelece que o IUC procura “onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”», e que importa «conhecer quem eram, a final, os reais utilizadores dos veículos locados, para que fossem eles, e não outros, a suportar o imposto único de circulação, entendimento que se mostra em total sintonia com o princípio da equivalência, enquanto princípio estruturante do Código do IUC»;
  10. Na mesma linha, chama a atenção para o recente Acórdão do TCAS de 14-03-2019, proferido no processo n.º 201/14.4BEALM, nos termos do qual: «o registo definitivo não constitui mais do que uma presunção ilidível, admitindo, por isso, contraprova. Com efeito, da exegese do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC resulta que se trata de uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível, por força do artigo 73.º, da LGT, [«as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis»] por ser relativa a uma norma de incidência tributária»;
  11. Sobre a questão do valor probatório das faturas, sustenta que a jurisprudência arbitral se pronunciou sobre a viabilidade, suficiência e concludência da fatura para comprovar a transferência de propriedade. Como se concluiu na (mais) recente decisão proferida no âmbito do processo n.º 261/2018-T, «[t]ais contratos e respectivas facturas/recibos são meios idóneos para fazer prova da qualidade de locadora e de locatário e subsequente transmissão do direito de propriedade, tudo do conhecimento da AT. Não existem, aliás, quaisquer elementos que permitam entender que os dados inscritos nesses documentos não correspondem à verdade contratual, não vendo este Tribunal razões para os pôr em causa, sendo também certo que a lei, no caso, o n.º 1 do artigo 75.º da LGT, atribui a esse documento uma presunção de veracidade que não foi afastada»;
  12. Sobre a questão suscitada pela AT quanto à ausência de comprovativos de pagamento do valor residual (ou do capital) do veículo automóvel, a Requerente remete para o modus operandi das entidades locadoras, nos termos do qual o pagamento daquela quantia opera por débito bancário (i.e., débito direto). Apela à explicação dada pela Testemunha quanto ao processamento dos Débitos Diretos SEPA (Single Euro Payments Area) sujeita às instruções do BdP. Em termos práticos, este método de pagamento é realizado através de ficheiros eletrónicos em formato XML que respeitam a norma e formato definido pelo BdP; ficheiros esses que são compostos por lotes de pagamento que englobam um universo infindável de registos, sendo que a liquidação financeira desses lotes é executada pelo montante global cobrado aos milhares dos clientes do SCF e não por registo a registo. Não existe, por isso, documentação física de suporte detalhada –insistentemente requerida pela AT – facultada por estes sistemas de pagamento (geridos por entidades externas);
  13. A interpretação da norma consagrada no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, quando interpretada no sentido defendido pela AT, padece de inconstitucionalidade material, por violar o postulado no artigo 13.º da CRP, mas também porque o princípio da equivalência, constitucionalmente consagrado, e a ratio legis da incidência subjetiva do IUC, per se, indicam que assume as vestes de sujeito passivo do imposto o verdadeiro proprietário da viatura automóvel, exceto nas situações expressamente tuteladas, e não (exclusivamente) a pessoa em nome da qual o veículo está registado. Assim, mesmo que se pudesse interpretar a (nova) redação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, alterada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, como se de uma presunção inilidível se tratasse, não era possível, contudo, aplicar essa interpretação à situação vertente, sob pena de manifesta e crassa inconstitucionalidade, ferindo os atos de indeferimento dos recursos hierárquicos e, bem assim, os atos de liquidação – o que se invoca expressamente nesta sede – com apoio legal no artigo 13.º da CRP;
  14. Finalmente, e quanto à responsabilidade pelo pagamento dos juros indemnizatórios e das custas arbitrais, a Requerente chama a atenção para a jurisprudência arbitral que tem assacado pacificamente à AT esta oneração, já que estes atos tributários são da única e exclusiva responsabilidade desta última, que, por conseguinte, não poderá deixar de proceder ao pagamento de juros indemnizatórios calculados à taxa legal e contados desde a data de pagamento das liquidações de IUC, ou, caso assim não se entenda, o que não se concede, a partir do término do prazo de decisão das reclamações graciosas; ou, no limite e sem prescindir do supra exposto, da data de apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral –, assim como das custas arbitrais.

 

Resumo da posição da AT

 

A AT entende, genericamente, que o entendimento propugnado pela Requerente decorre de uma

enviesada leitura da letra da lei e da adoção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal, e decorre ainda de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

 

Sobre a jurisprudência invocada pela Requerente, a AT salienta que a mesma não tem valor de precedente vinculativo, mas meramente um valor persuasivo. Por outro lado, salienta que a jurisprudência mais recente dos tribunais arbitrais junto do CAAD tem seguido orientação diversa, citando exemplificativamente os processos n.º 658/2018-T e n.º 557/2019-T.

 

A AT defende ainda o seguinte:

  1. o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação direta com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo (cfr. artigos 4.º/2 e 6.º/3 do CIUC, artigo 10.º/1 do Decreto-Lei 54/75, de 12 de fevereiro, e artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis). No mesmo sentido milita a solução legislativa adotada pelo legislador fiscal no artigo 3.º, n.º 2 do CIUC ao fazer coincidir as equiparações aí consagradas com as situações em que o registo automóvel obriga ao respetivo registo. Assim, a não atualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC, enquanto sujeito ativo deste imposto;
  2. tendo em vista a liquidação do IUC, a Requerida procede à consulta das bases de dados, quer do Instituto da Mobilidade dos Transportes Terrestres (IMTT), quer do Instituto de Registo e Notariado/Conservatória do Registo Automóvel (IRN), como forma de determinar os proprietários ou os locatários financeiros, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra, sujeitos passivos do IUC à luz do disposto no artigo 3.º do CIUC, conjugado com o artigo 6.º do mesmo código. Determinado o sujeito passivo de IUC em função das pessoas em nome das quais o veículo em causa se encontre registado junto da Conservatória do Registo Automóvel, a Requerida procede à liquidação do IUC relativamente a estas.
  3. no presente caso, consultada a referida Conservatória do Registo Automóvel, verifica-se que a Requerente consta como proprietária dos 50 veículos automóveis, cujas liquidações constam do presente pedido arbitral.
  4. por isso, não pode aceitar-se que o artigo 3.º do CIUC nunca poderá ser interpretado no sentido de pretender tributar apenas quem conste do registo como proprietário, porquanto o registo é uma mera aparência da realidade, o que põe em causa, inequivocamente, a segurança e a certeza jurídicas (na medida em que o instituto do registo automóvel deixaria de proporcionar a segurança e a certeza que constituem as suas finalidades principais), assim como o poder-dever de a Requerida liquidar impostos.
  5. a alteração da redação do art. 3.º CIUC (operada pelo DL 41/2016, de 1 de agosto) teve como objetivo estabelecer procedimentos tendentes a adaptar o registo automóvel ao novo regime de tributação e evitar os problemas existentes relacionados com o facto de existirem muitos veículos não registados em nome do real proprietário. O novo regime de tributação do IUC veio alterar de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando a ser sujeitos passivos do imposto os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública, passando o IUC a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos.
  6. O legislador ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1, do CIUC quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários, ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados.
  7. A não atualização do registo, nos termos do artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis tem de ser imputada na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado Português, enquanto sujeito ativo do imposto.
  8. A Requerida considera que, à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efetivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.
  9. Neste sentido, importa atentar no teor dos debates parlamentares em torno da aprovação do Decreto-Lei n.º 20/2008, de 31 de janeiro, dos quais resulta inequivocamente que o IUC é devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos.
  10. Faz ainda referência à Recomendação n.º 6-B/2012 do Provedor de Justiça, de 22.06.2012 (cfr. art.º 67.º da resposta), bem como refere a posição do causídico Rui Ribeiro Pereira no sentido de i) «No novo modelo de tributação automóvel, (…) a liquidação e pagamento do imposto, levada a cabo durante o mês de matrícula do veículo, passou a ser exigida a quem conste como proprietário do mesmo junto da Conservatória de Registo Automóvel. ii) A alteração legislativa vinda de descrever transformou o anterior imposto de circulação num verdadeiro imposto sobre a propriedade de automóveis. Ou seja, o acento tónico da tributação deixa de estar na circulação para se centrar na mera propriedade».
  11. Para além das razões já enunciadas, a Requerida sustenta o seu entendimento e posição nas decisões jurisdicionais prolatadas em Tribunais Tributários (Acórdão do TAF de Penafiel, proc.º 210/13.0BEPNF; Acórdão do TCA Norte, proc.º n.º 00611/13.4BEVIS) e em decisões arbitrais (proc.º 658/2018-T, proc.º 557/2019-T, proc.º 557/2019-T).
  12. Quanto ao ónus da prova da transmissão dos veículos, a Requerida alega que os contratos que a Requerente junta não são prova suficiente de que houve transmissão de propriedade de um veículo da Requerente para terceiro numa determinada data, uma vez que a mesma não junta a cópia de um cheque ou de um extrato financeiro de onde conste o recebimento de um determinado valor respeitante à venda de veículo automóvel. Acresce que a Requerente junta, ainda, um acervo de faturas/recibos e desses documentos consta a data de emissão e a data de vencimento, que não coincidem, para além de constar do lado inferior direito “válido como recibo após boa cobrança”.
  13. A Requerida reforça a sua alegação dizendo que as faturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático pois não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade, isto é, a aceitação por parte dos pretensos adquirentes. Para tanto, socorre-se das decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 63/2014-T, 130/2014.T, 150/2014-T, 220/2014-T, 339/2014-T.
  14. Conclui, portanto, que os atos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços, não se encontrando reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios.

 

II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, conforme previsto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03.

 

A ação é tempestiva e o processo não enferma de nulidades.

 

Quanto à cumulação de pedidos efetuada pela Requerente, considerando a existência de uma relação direta entre as liquidações tributárias cuja legalidade é questionada no presente processo, nada obsta à apreciação conjunta dos atos tributários em causa, dado que, em face do que vem alegado e da documentação junta, se constata que, no essencial, a eventual procedência do pedido depende das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação das normas legais relativas à incidência subjetiva do IUC. Assim, estará em causa essencialmente a apreciação das mesmas circunstâncias de facto e a aplicação das mesmas normas legais acerca da incidência subjetiva do IUC, sendo legal a cumulação de pedidos, nos termos do artigo 3.º do RJAT e 104.º do CPPT.

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

 

A. MATÉRIA DE FACTO

 

A.1. Factos provados

 

  1. A Requerente é uma instituição de crédito que se dedica à atividade de locação financeira automóvel.

 

  1. Para o desenvolvimento dessa atividade, celebra contratos com os seus clientes que obedecem a um guião comum, próprio deste tipo de financiamentos.

 

  1. Depois de contactada pelo cliente – que, nessa fase, escolheu já o tipo de veículo automóvel que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), e inclusive o seu preço – adquire a viatura ao fornecedor que lhe for indicado pelo cliente, e procede, de seguida, à sua entrega ao cliente, que, então, assume a qualidade de locatário.

 

  1. De acordo com cada um destes contratos, o financiamento concedido ao locatário pela Requerente é restituído em prestações mensais, sob a forma de rendas.

 

  1. Uma vez liquidadas as rendas, e assim alcançado o termo do correspondente contrato, o locatário tem o direito de adquirir o bem locado mediante o pagamento do valor residual da viatura automóvel, acrescido de despesas e IVA.

 

  1. Os veículos automóveis catalogados no documento identificado como ANEXO A e junto com o pedido de pronúncia arbitral foram, sem exceção, objeto de contratos de aluguer de longa duração («ALD») ou de locação financeira («LSG») celebrados entre a Requerente e os clientes ali identificados (contratos juntos com o pedido de pronúncia arbitral como documentos n.ºs 1 a 50).

 

  1. No final dos contratos, foram emitidas as faturas de venda aos clientes para pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA (documentos n.ºs 51 a 100 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

  1. A Requerida liquidou IUC relativo ao ano de 2020 sobre vários veículos automóveis que foram detidos pela Requerente.

 

  1. A Requerente efetuou o pagamento das liquidações.

 

  1. Os veículos que deram origem a liquidações de IUC em causa neste processo e que constam da listagem reproduzida no anexo A junto com o pedido de pronúncia arbitral já tinham sido alienados pela Requerente na data em que ocorreu o facto gerador do imposto.

 

A.2. Factos não provados

Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção da árbitra fundou-se nas posições assumidas pelas partes nas respetivas peças processuais, na análise crítica da prova documental junta aos autos e, ainda, na prova testemunhal realizada em audiência.

 

B. DO DIREITO

 

A questão de fundo em causa nos presentes autos consiste em saber se os factos alegados e a prova sobre eles realizada pela Requerente consubstanciam motivos de exclusão de incidência subjetiva de imposto e se, em consequência, se se deve considerar que os atos impugnados enfermam de erro sobre os pressupostos do facto tributário, o que consubstanciaria um vício de violação de lei determinante da respetiva anulação, com as consequências legais de restituição do imposto e dos juros pagos.

 

A Requerente fundamenta o seu pedido no argumento de não se encontrarem preenchidos os pressupostos de incidência subjetiva previstos no artigo 3.º do CIUC porque, nas datas da exigibilidade do IUC respeitante às viaturas em causa, já não era a proprietária dos veículos em questão, por já os ter vendido a anteriores locatários.

 

Sustenta que as vendas das viaturas ocorreram na data da emissão das faturas que junta ao processo e que esses documentos provam que os veículos sobre os quais incide o IUC já tinham sido alienados na data em que o facto gerador do imposto se verificou.

 

Entende a AT que a presunção estabelecida no artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, é inilidível e que, portanto, o sujeito passivo do imposto é aquele a favor de quem se encontrar registada a propriedade dos veículos no momento em que ocorra o facto gerador. Mas ainda que se admitisse a prova em contrário, em seu entender os documentos juntos pela Requerente não seriam aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é o da compra e venda, por não revelarem uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes. 

 

À data dos factos geradores do imposto liquidado através das liquidações impugnadas, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC estabelecia que:

“1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.”[1]

 

A questão que se discute a propósito desta norma – e que já se discutia face à redação anterior – é se a mesma consagra uma presunção ilidível ou inilidível de propriedade do veículo automóvel para efeitos de tributação.

 

Uma segunda questão relevante neste processo é a se saber se, admitindo-se que a norma em questão admite prova em contrário, essa prova pode, ou não, ser realizada através das faturas e contratos juntos pela Requerente.

 

Nos termos do disposto no artigo 349.º do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.” Por outro lado, o n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil esclarece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.

 

Ora, quanto à questão de saber se o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC consagra uma presunção ilidível ou inilidível, não vemos que se possa olvidar ou, de qualquer outra forma, ignorar, o disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, que estabelece claramente que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário. Tratando-se a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC de uma norma de incidência tributária, outro entendimento senão o de que a mesma prevê uma presunção ilidível seria claramente contrário aos princípios que regem a relação jurídica fiscal.

 

Quanto ao elemento histórico, importa referir que o CIUC teve a sua génese na criação, através do DL 599/72, de 30 de Dezembro, do imposto sobre veículos, o qual já consagrava expressamente que o imposto era devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados. Por outro lado, o artigo 2.º do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que: “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”. 

 

É certo que a última alteração introduzida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC potenciou (ainda mais) a discussão sobre se a presunção nela consagrada é, ou não, suscetível de ser ilidida através de prova em contrário – ainda para mais conhecendo-se o debate que antecedeu a respetiva consagração em texto legal. Contudo, a partir do momento em que a norma se insere num conjunto normativo onde se prevê, inequivocamente, que todas as presunções consagradas em normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, não há outra forma adequada de interpretar o texto legal que não seja a de entender que o mesmo contempla uma presunção ilidível. Para tanto basta sabermos o que é uma presunção – nos termos do código civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – e sabermos reconhecer no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC uma norma de incidência tributária - facto que nem a AT discute.

 

Como afirmam DIOGO LEITE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES E JORGE LOPES DE SOUSA, na anotação ao n.º 3 do artigo 73.º da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objetiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”.

 

Quanto ao elemento teleológico, importa referir que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente o da incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1.º do CIUC. Donde, a interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC à luz da relevância legalmente, constitucionalmente e até no âmbito do Direito da União Europeia, conferida ao princípio da equivalência não comporta a tributação, em IUC, do locador que, enquanto proprietário formal do veículo, não tem, consequentemente, qualquer potencial poluidor, o que significa que os danos advenientes para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis devem ser assumidos pelos seus reais utilizadores, como custos que só eles deverão suportar.

 

Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria. Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efetivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel. 

 

Nesta conformidade, considerando os elementos de interpretação da lei referidos, somos conduzidos à conclusão de que o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível. Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo.

 

Cumpre ainda atender, na presente análise, ao valor jurídico do registo automóvel. Assim, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 1.º do DL 54/75, de 12 de fevereiro, que instituiu o Registo da Propriedade Automóvel, “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. Acrescenta ainda o artigo 7.º do Código do Registo Predial que “o registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. O registo de propriedade automóvel não tem, portanto, natureza constitutiva, mas meramente declarativa, permitindo apenas a inscrição no registo presumir a existência do direito e a sua titularidade. Logo, a presunção resultante do registo pode ser ilidida mediante prova em contrário. E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, salvas as exceções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente da inscrição no registo.

 

Em suma, o registo automóvel, na economia do CIUC, representa mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto. No caso de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, não prevendo a lei qualquer exceção para o mesmo, o contrato tem eficácia real, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo; do mesmo modo, o titular inscrito no registo deixará de ser o proprietário, pese embora ainda possa constar, por algum tempo ou mesmo muito, do registo como tal.

 

De notar ainda que as transmissões efetuadas são oponíveis à Requerida, apesar do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial, que dispõe: “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros quando registados.” A noção de terceiros para efeitos de registo está consagrada no n.º 4 do mesmo artigo 5.º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, o que, manifestamente não é o caso da AT. Assim, a AT não é terceiro para efeitos de registo.

 

Em consequência do que antecede, o proprietário registado de um automóvel pode fazer prova, para efeitos de tributação em sede de IUC, de que já não é o proprietário efetivo do veículo em causa, nomeadamente por ter procedido à respetiva venda. Para tanto, importa ter-se presente que estamos perante contratos de compra e venda que, sendo relativos a coisas móveis e não estando sujeitos a quaisquer formalismos especiais nos termos do artigo 219.º do Código Civil, operam a correspondente transferência de direitos reais nos termos do n.º 1 do artigo 408.º do mesmo código.

 

A questão que se segue diz respeito à prova. Quanto ao ónus da prova, não restam dúvidas quanto ao “quem”, sendo ao sujeito passivo que cabe apresentar meios idóneos para promover a prova necessária ao afastamento da presunção. Cabe-lhe a “prova do contrário”, ou seja, a prova de que não era o proprietário à data do facto tributário. Em segundo lugar, quanto ao “como”, o sujeito passivo da relação jurídica tributária pode lançar mão do procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, pode utilizar o procedimento de reclamação graciosa ou a impugnação judicial, sendo o processo arbitral, nos termos da lei, um meio processual idóneo para ilidir as presunções constantes das normas de incidência tributária. Por fim, importa clarificar através de que meios é que o proprietário poderá alcançar esse objetivo, sendo aqui que se torna relevante a questão, suscitada pela Requerida, da idoneidade das faturas apresentadas pela Requerente enquanto meio de prova da venda dos veículos.

 

Nos termos do disposto nos artigos 219.º e 408.º, n.º 1, do Código Civil, os contratos de compra e venda de automóveis têm uma base consensual e não estão sujeitos a formalismos especiais. Por outro lado, a propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (cfr. o artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12/2). A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador - o sujeito ativo do facto sujeito a registo (cfr. o artigo 8.º-B, n.º 1, do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel por força do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12/2, conjugado com o artigo 5.º, n.º 1, alínea a), deste último diploma). Contudo, o Regulamento do Registo Automóvel contém um regime especial, em vigor desde 2008, para entidades que, em virtude da sua atividade comercial, procedam com regularidade à transmissão da propriedade de veículos automóveis. Segundo esse regime, que se encontra estabelecido no artigo 25.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 55/75, de 12/2 (na redação do Decreto-Lei n.º 20/2008, de 31/1), o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio.

 

O afastamento da presunção legal resultante do registo obedece à regra constante do artigo 347.º, do CC, nos termos do qual a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto. O que significa que não basta à parte contrária opor a mera contraprova - a qual se destina a lançar a dúvida sobre os factos (cfr. o artigo 346.º, do CC) – ela tem de demostrar que não é verdadeiro o facto presumido, de forma que não reste qualquer incerteza de que os factos resultantes da presunção não são reais.

 

A fatura é um documento contabilístico elaborado internamente numa empresa, de acordo com as prescrições constantes do artigo 36.º do Código do IVA e respetiva legislação complementar, válida para titular diversas operações com relevância fiscal [cf. o disposto no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IRC, al. b) do n.º 1 do artigo 29.º e artigo 36.º do Código do IVA e artigo 115.º do Código do IRS] e que se destina à contraparte numa transmissão de bens ou prestação de serviços, mas que também serve para outros efeitos, nomeadamente, junto da AT, para efeitos de liquidação de impostos. Portanto, a menos que se demonstre a sua falsidade, as faturas presumem-se válidas para todos os efeitos legais. Por outro lado, é um documento que surge na fase de liquidação da importância a pagar pelo comprador e que nem sempre coincide com o pagamento efetivo, muitas vezes antecedendo-o. Assim, embora não façam prova do pagamento efetivo do preço pelo mesmo comprador, constituem prova da transação que o justifica, ou seja, da compra e venda efetuada.

 

Nestes termos, os documentos juntos aos autos – e que serviram de base à matéria de facto provada – constituem um meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjetiva do IUC em que se fundamentam as liquidações tributárias cuja anulação é peticionada nestes autos. Além disso, gozam da presunção de veracidade que lhes é conferida pelo artigo 75.º, n.º 1 da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas com base no registo automóvel. Acresce ainda, a prova testemunhal produzida pela testemunha inquirida no processo no sentido de, nos casos objeto do pedido de pronúncia arbitral, o pagamento do valor constante da fatura ter, efetivamente acontecido. Com efeito, foi claramente – e de forma plenamente convincente – explicado a este tribunal o sistema de conferência de pagamentos em vigor na instituição requerente, nos termos do qual, para além da verificação por parte de um sistema informático de que os débitos diretos associados aos contratos em causa foram concretizados (isto é, que havia fundos suficientes para assegurar a liquidação dos montantes faturados), houve, ainda, a verificação humana de que assim foi especificamente em relação aos 50 casos que, após a fase graciosa deste processo, persistiram em dissídio entre a Requerente e a AT.

 

Face ao quadro jurídico aplicável e à prova produzida, conclui este Tribunal que a Requerente não era realmente proprietária dos veículos a que respeitam as liquidações em apreço na data em que ocorreu o facto gerador do IUC liquidado em relação ao exercício de 2020, por ter transferido, à data em que era devido o respetivo IUC, a propriedade dos veículos, nos termos previstos na lei civil.

 

Em consequência, as liquidações impugnadas, assim como o indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2021..., afiguram-se ilegais, padecendo do vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito subjacentes, pelo que se impõe a sua anulação e, consequentemente, a restituição à Requerente, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, das importâncias pagas indevidamente.

 

É verdade, também, que, atentos os comandos legais que estabelecem a incidência subjetiva do IUC, bem como a sua exigibilidade e os meios ao dispor da Autoridade Tributária e Aduaneira para recolher informação quanto à titularidade de veículos automóveis, quando esta procedeu à realização das operações de liquidação de IUC, se limitou a aplicar a lei com base nos dados constantes no sistema de informação do registo automóvel, sendo que os veículos automóveis sobre os quais incidiu o IUC estavam registados em nome da Requerente. Com efeito, no que ao registo automóvel diz respeito, a Autoridade Tributária e Aduaneira não dispõe de qualquer outra fonte de informação que lhe permita conhecer a transferência ou transmissão de propriedade dos veículos automóveis, daí que exista uma direta e estreita articulação funcional entre o registo da propriedade automóvel e os procedimentos de liquidação do IUC. Contudo, também tem que se referir que, quando o sujeito passivo lança mão do processo de reclamação graciosa, a AT tem aí oportunidade para escrutinar a documentação junta para prova da transferência de propriedade pelo que, a partir desse momento, deixa de ser relevante a anterior limitação no acesso à informação para efeitos de realização (ou correção) das operações de liquidação do imposto. Esta questão temporal é relevante para efeitos da decisão quanto ao pagamento dos juros indemnizatórios.

 

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios, importa referir que estes são devidos quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (n.º 1 do art.º 43.º da LGT). Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito ao pagamento dos juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral.

 

O pagamento dos juros indemnizatórios pressupõe que o imposto objeto das liquidações colocadas em crise tenha sido pago, o que se verifica no presente processo. Contudo, quanto ao erro que determina o pagamento de juros indemnizatórios, deve reconhecer-se que, quando a Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu à realização das liquidações de IUC aqui em causa, o fez em observância das normas de incidência previstas na lei e tendo em conta os factos conhecidos e emergentes do registo da propriedade automóvel. Nesse momento, não podemos dizer que tenha havido erro da parte da AT. É apenas na sequência das reclamações graciosas apresentadas pela Requerente contra as liquidações de IUC aqui controvertidas que a Autoridade Tributária e Aduaneira tem a oportunidade de verificar a prova produzida pela Requerente – o que lhe permitiu, aliás, eliminar parte das liquidações que tinham sido emitidas à Requerente com referência ao mesmo exercício. O que acontece aí é que a AT apenas considera ser de anular as liquidações referentes a veículos cuja propriedade já tinha, entretanto, sido atualizada junto do registo automóvel e de forma a clarificar que a propriedade por parte da Requerente já não existia na data do facto gerador de imposto. O facto de a AT não ter considerado, relativamente aos veículos cujo registo de propriedade continuava a favor da Requerente, que era possível a esta ilidir a presunção legal prevista no artigo 3.º, n.º 1, do CIUC através dos meios de prova que apresentou, esse sim, é um erro gerador de responsabilidade, concretizada no pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do CPPT. Deste modo, e na linha da jurisprudência constante dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (STA) proferidos no processo n.º 0926/17, de 06.12.2017, e no processo n.º 0250/17, de 03.05.2018, deve a Autoridade Tributária Aduaneira, nos termos do artigo 43.º da LGT e artigo 61.º do CPPT, proceder ao pagamento de juros indemnizatórios à Requerente, em relação a cada uma das liquidações de IUC do ano de 2020, desde a data do despacho de indeferimento parcial da respetiva reclamação graciosa até à data do processamento da respetiva nota de crédito (n.º 5 do art.º 61.º do CPPT).

 

IV – DECISÃO

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

 

  1. Julgar procedente o pedido arbitral de anulação dos atos tributários supra identificados, relativos a IUC liquidado com referência ao ano de 2020, no valor total de € 4.624,45;
  2. Julgar procedente o pedido de anulação do despacho de indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2021...;
  3. Determinar a restituição à Requerente do montante de imposto indevidamente pago;
  4. Determinar o pagamento à Requerente de juros indemnizatórios desde a data do despacho de indeferimento parcial da respetiva reclamação graciosa até à data do processamento da respetiva nota de crédito,
  5. Determinar que seja a Requerida a suportar as custas deste processo.

 

V – Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 4.264,45, (quatro mil duzentos e sessenta e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VI – Custas

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerida.

 

Lisboa, 27 de julho de 2022

 

A Árbitra

 

 

(Raquel Franco)

 

 

 

 

 



[1] A redação anterior era a seguinte:

“1 -São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”