Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 841/2021-T
Data da decisão: 2022-07-27  IRC  
Valor do pedido: € 153.635,86
Tema: IRC e retenção na fonte de IRS dos sócios; rendimentos da categoria E; “colocação à disposição”
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Sumário:

I.               A obtenção, pelos sócios, de vantagens económicas à custa do património social obriga a sociedade a proceder à devida retenção na fonte; 

II.             Na compensação, com fundos da sociedade, de dívidas à sociedade que foram sendo paulatinamente acumuladas pelo sócio está em causa uma forma jurídica de “colocação à disposição” de uma vantagem económica, mesmo não havendo, nessa altura, movimentação de dinheiro;

III.           Caso não tenha havido prévia retenção na fonte sobre as vantagens económicas concedidas pela sociedade ao sócio, haverá que o fazer no momento em que a deliberação da sociedade produz efeitos. 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I.              RELATÓRIO

 

1.     No dia 21 de Dezembro de 2021, a sociedade A... Lda., com o NIF ... e com sede na Rua ..., ...-... ... (Requerente), apresentou requerimento de constituição de tribunal arbitral, sendo aplicáveis os artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).

2.     Pretendia que fossem “anuladas as liquidações em sede de IRS, retenções na Fonte e juros compensatórios, referente ao exercício de 2018 no montante de € 135.727,30 e € 17.908,56, respetivamente”, num valor global de € 153.635,86. 

3.     Nomeados os árbitros que constituem o presente colectivo, que aceitaram a designação no prazo aplicável, e não tendo a Requerente, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 2 de Março de 2022.

4.     Seguindo-se os normais trâmites, em 22 de Abril do corrente ano a AT apresentou resposta e juntou o processo administrativo (PA).

5.     Em 26 de Maio foi proferido despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, a dispensar a produção de alegações – sujeita à não oposição das Partes – e a fixar a data previsível para a pronúncia da decisão arbitral em caso de não oposição a essa dispensa.  

6.     Como as Partes nada disseram no prazo fixado, ficaram os autos prontos para decisão. 

7.     Em 27 de Junho, por impossibilidade pessoal de cumprir o prazo que se propusera e que terminava nesse dia, o presente Relator proferiu despacho a dar sem efeito a data marcada e a fixar como nova data limite o dia 27 de Julho. 

 

 

II.            PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

8.     O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.

 

9.     A Requerente e a Autoridade Tributária gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.

 

10.  Não foram suscitadas excepções nem as há de conhecimento oficioso que obstem ao conhecimento do mérito.

 

III.          MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

A.    A Requerente é uma sociedade por quotas, constituída em 5 de Novembro de 2009 com um capital social de € 5.000,00, com actividade de prestação de serviços médicos de clínica geral, ortopedia e outras especialidades médicas cirúrgicas, exploração de consultórios médicos e prestação de serviços de enfermagem (CAE 86906 – Outras Actividades de Saúde Humana); 

B.    Os únicos sócios da empresa, com igual participação no seu capital, são B... e C...;

C.    A Acta n.º 11, referente à reunião das 14 horas da Assembleia Geral da sociedade de 30 de Dezembro de 2017, regista a deliberação unânime dos sócios de “transferir € 300.000,00 (trezentos mil euros) da conta 2665001 para a conta de Resultados Transitados e € 184.740,36 (cento e oitenta e quatro mil setecentos e quarenta euros e trinta e seis cêntimos), da conta 2685001 também para a conta de Resultados Transitados”; 

D.   A conta 2665001 “Acionistas/Sócios - Financiamentos concedidos - empresa mãe -A...” passou a ser designada, a partir de 2018, conta 26601 “Acionistas/Sócios - Financiamentos concedidos - empresa mãe -A...” e refere-se ao activo corrente da sociedade; 

E.    A conta 2668001 “Acionistas/Sócios - Outras operações - Restantes acionistas /sócios -B...” passou a ser designada, a partir de 2018, conta 26801 “Acionistas/Sócios - Outras operações - Restantes acionistas /sócios -B...” e refere-se ao activo não corrente da sociedade;

F.    A Conta de Resultados Transitados tem o código 561 e representa os valores que não foram objecto de aplicação específica; 

G.   Em consequência da referida deliberação, em 31 de Janeiro de 2018 a conta 561 da Requerente foi movimentada a débito no valor de € 300.000 e a conta 26601 foi movimentada a crédito no mesmo valor, passando esta a apresentar um resultado nulo;

H.   Em consequência da mesma deliberação, em 31 de Janeiro de 2018 a conta 561 da Requerente foi movimentada a débito no valor de € 184.740,36 e a conta 26601 movimentada a crédito no mesmo valor;

I.      A movimentação das contas da sociedade na sequência da deliberação da Assembleia Geral determinou a extinção da dívida do sócio B... à sociedade;

J.     A Requerente foi alvo de uma acção inspectiva interna sobre o IRC e a retenção na fonte de IRS de 2016 e 2017 ao abrigo das Ordens de Serviço OI2019... e OI2019..., que foram encerradas sem correcções;

K.    A Requerente foi também alvo de uma acção inspectiva interna sobre o IRC e a retenção na fonte de IRS de 2018, efectuada a partir de 17 de Fevereiro de 2021 pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de ... ao abrigo da Ordem de Serviço OI2019...;

L.    Notificada do projecto de relatório (RIT) desta inspecção, exerceu, sem sucesso, o seu direito de audição; 

M.   Não se conformando com a liquidação n.º 2021..., no valor de € 135.727,30 decorrentes da correcção de € 484.740,36 relativo a distribuição de lucros no exercício de 2018, e com a liquidação n.º 2021..., no valor de € 17.908,56 de juros compensatórios – num total de € 153.635,86 –, a Requerente apresentou reclamação em 31 de Janeiro de 2021;

N.    Foi emitida nota de liquidação no valor de € 153.635,86, com data limite de pagamento em 20 de Setembro de 2021, que foi paga a 13 desse mês;

O.   Por carta registada com data de 8 de Novembro de 2021, foi o mandatário da Requerente notificado da decisão final de indeferimento da reclamação;

P.    No dia 21 de Dezembro de 2021 o Requerente apresentou o Pedido de Pronúncia Arbitral no CAAD. 

 

            III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

            Tendo em conta as posições das partes e, consequentemente, a matéria relevante para a decisão da presente causa, não há factos não provados. 

 

            III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO

Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos e não foram controvertidos. 

 

IV.          DIREITO

IV.1. Questões a decidir 

A questão essencial a decidir é a da possibilidade de se considerar um facto tributário autónomo a deliberação dos sócios, tomada em Dezembro de 2017 e concretizada em Janeiro de 2018, no sentido de compensar, com os valores da conta de Resultados Transitados da sociedade, os valores em dívida nas contas do sócio gerente perante a sociedade (quanto a activos correntes e não correntes desta) que se tinham acumulado em períodos anteriores.

            Como se verá, a resposta a essa questão prejudica a questão da caducidade do direito à liquidação e, igualmente, a da atribuição de juros indemnizatórios. 

 

IV.2. Posição da Requerente

A Requerente entendeu, essencialmente, que:

a)    A “regularização contabilística de € 300.000,00 e € 184.740,36, efetuada no ano de 2018” se referia a operações efectuadas em 2009 a 2013;

b)    a eventual tributação em sede de IRS como adiantamento por conta de lucros teria de ser feita na data da ocorrência dos factos e no ano em que era possível fazê-lo ou seja no ano de 2011.”;

c)     Como a alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do Código do IRS considera “rendimentos de capitais” (nos termos do seu n.º 1) “Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º;” e como a subalínea 2) da alínea a) do n.º 3 do artigo 7.º do mesmo código determina que “Quanto ao n.º 2 do artigo 5.º:” se considera que a tributação é devida desde “A colocação à disposição, para os rendimentos referidos nas alíneas h) (…)”, defende a Requerente que “era naquele momento, naquele período que os eventuais rendimentos ficariam sujeitos a tributação”;

d)    Entende que “Há que separar a sujeição a tributação para efeitos de retenção na fonte em sede de IRS e a movimentação contabilística que é feita formalmente e que em nada afeta os Resultados Líquidos da contabilidade.”;

e)     Precisa que a Acta n.º 11 não se refere à distribuição de lucros e que o “que foi decidido e aprovado” foi “a transferência de saldos da conta 2665001 para a conta de Resultados Transitados” e “da conta 2685001 para a conta de Resultados Transitados”;

f)      Explica que “O valor de € 300.000,00 transferidos para a conta 56.1 no ano de 2018, provém da transferência do saldo do mesmo montante da conta 2665001 do sócio B... . Este saldo já vem de anos anteriores, conforme se prova pelos extratos c/c (…)” e que “Conforme se verifica pelo extrato c/c contabilístico da ... em 31/12/3013, era e € (188.973,34) (…) e o saldo real era de € 4.232,98 (…), daí que se tenha feito aquela regularização para acerto de contas e para que o saldo da c/c e o saldo da ... estivessem corretos.”;

g)    Também invoca a impossibilidade de se criarem “quaisquer outras presunções além daquelas que o legislador expressamente consagrou” e que “A presunção da veracidade das declarações e da contabilidade estabelecida no artigo 75.º da LGT, é afastada nos termos da alínea a) do seu número 2 quando resulta da prova produzida que a escrita não está devidamente organizada com todos os lançamentos que deviam ter sido efetuados e respetivos documentos justificativos, como exige o artigo 123,º n.ºs 1 e 2 do CIRC.

h)    Face ao prazo geral de caducidade “de 4 anos por força do artigo 45.º da LGT”, contado desde a “ocorrência do facto tributário ou seja no nascimento da obrigação jurídica”, e à decisão proferida pelo CAAD no processo n.º 182/2017 de 14 de Novembro de 2017 num caso “precisamente igual”, deve ter-se por inviável a tributação imposta à Requerente;

i)      Acrescenta referência ao Acórdão do STA de 30 de Janeiro de 2019 no processo 01457/17.6BALSB que, alega, ao ter recusado o recurso de uniformização de jurisprudência interposto pela AT contra a referida decisão do CAAD, “mantém a decisão do CAAD quanto ao prazo de caducidade do direito de liquidação.”  

 

 

IV.3. Posição da Requerida

Em contrapartida a Requerida defendeu, em resposta:

i.      Que “do ponto de vista jurídico, contabilístico e económico a distribuição dos lucros ou o adiantamento por conta de lucros ocorreu a 31.01.2018, data do lançamento na conta resultados transitados, que provocou, em definitivo, uma redução do capital próprio da sociedade e um acréscimo patrimonial na esfera do sócio”;

ii.    “que a deliberação da assembleia-geral (cfr., Acta N.º 11) determinou a anulação das dívidas do sócio-gerente B... à sociedade, resultantes dos montantes que já se encontravam na sua esfera patrimonial do sócio, por contrapartida da distribuição dos lucros ou de adiantamentos por conta de lucros que se encontravam retidos na conta 561- Resultados Transitados.”;

iii.   Que, “independentemente de a deliberação expressa na acta n.º 11 apenas fazer referência a uma transferência de determinadas importâncias entre contas, em lugar de ter assumido de forma clara que se tratava de uma efectiva distribuição de lucros, certo é que, em substância, o efeito de tal transferência da conta de resultados transitados tendo como destino a esfera jurídico-patrimonial do sócio, não deixa de revestir essa natureza com as respectivas consequências tributárias.”;

iv.   Que “o momento da colocação à disposição do sócio-gerente dos lucros ou dos adiantamento por conta de lucros ocorreu justamente no momento em que, de uma forma objectiva, foi feito o correspondente reconhecimento contabilístico,

in casu, materializado, nos lançamentos a crédito das contas que evidenciavam as suas dívidas para com a sociedade, anulando-as por compensação com os lucros acumulados transferidos ou retirados da conta 561- Resultados Transitados.”;

v.     Que “Antes dos lançamentos realizados a 31.01.2018, as quantias que foram apropriadas pelo sócio-gerente, apesar de reflectidas, nos exercícios de 2011 e de 2013, nas contas que reflectem as relações financeiras com os sócios, a título de financiamento e de outras operações, para todos os efeitos, não afectaram negativamente o património social e, perante tal reconhecimento, a Requerente terá considerado, apesar de agora defender tese contrária, que não se verificou o facto tributário previsto no artigo 5.º, n.º 2, alínea h) do Código do iRS, que desencadeasse a tributação em IRS, por retenção na fonte.”;

vi.   Invocou ainda anteriores decisões do CAAD: as proferidas nos processos 3/2017-T e 508/2020-T.

 

IV.4. Fundamentação 

            Como resulta dos Factos Provados, a situação patrimonial da Requerente no que diz respeito às suas relações com os sócios só sofreu alterações significativas em 2018: até esse ano, parte dos activos líquidos da sociedade tinham sido colocados à disposição do seu sócio gerente, mas tinham sido registados como dívidas deste à sociedade (“Financiamentos concedidos” no activo corrente da sociedade, ou “Outras operações - Restantes acionistas /sócios” no activo não corrente da sociedade[1]). Essa troca de liquidez por créditos – que poderia ter sido, mas não foi, objecto de atempada sindicância tributária – não descapitalizava a sociedade (supondo a solvência do devedor) e permaneceu indetectada até à inspecção que analisou o ano de 2018 (as inspecções de IRC de 2016 e 2017 foram encerradas sem correcções, como informa o Relatório da Inspecção Tributária [RIT]). 

            Com base na primeira das actas da Assembleia Geral da sociedade de 30 de Dezembro de 2017 (Acta 11), porém, a Requerente procedeu a alterações contabilísticas que empobreceram o seu património (na medida em que anularam os créditos que detinha sobre o seu sócio) e enriqueceram o património desse sócio (na medida em que anularam as dívidas que este tinha perante a sociedade). Uma tal operação não é, de todo – ao contrário da tese da Requerente – uma “movimentação contabilística que é feita formalmente e que em nada afeta os Resultados Líquidos da contabilidade” e corresponde, com toda a evidência, a um facto tributário para efeitos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º Código do IRS (“lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros” enquanto, como se refere no n.º 1, “frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação”). 

Dispondo sobre o “Momento a partir do qual ficam sujeitos a tributação os rendimentos da categoria E”, o artigo 7.º do Código do IRS determina que, para efeitos do disposto nessa alínea h) (entre outras), conta o momento da “colocação à disposição” desses rendimentos. Ora, sem prejuízo de a disponibilização dos valores concretos que o sócio gerente obteve da sociedade ao longo dos anos poderem ser abrangidos por uma das presunções do artigo 6.º do Código do IRS[2], ou ser sujeita a uma avaliação material ad hoc[3]na compensação de dívidas do sócio à sociedade com fundos acumulados pela sociedade está em causa uma outra forma de “colocação à disposição” do sócio de uma vantagem económica – uma forma puramente jurídica.[4]

A não distinção de situações diferentes, com possibilidade de ajustamento da fórmula “colocação à disposição” a essas diferentes situações, explica em grande medida a convocação de jurisprudência que não tem relação directa com a dos presentes autos. Ora, parece claro que a “colocação à disposição” não pode ter os mesmos contornos quando, por exemplo, receitas da sociedade entram directamente na esfera patrimonial do(s) sócio(s); quando entram na caixa da sociedade e saem dela sem qualquer registo; quando são contabilizadas como receitas da sociedade e como empréstimos concedidos aos sócios; ou quando, qualquer que fosse a forma de “externalizar” para os sócios as receitas da sociedade, estes deliberam – para evitar ou minorar consequências dessas práticas inadequadas – “internalizar” (ou “anular”) essas anteriores transferências. O facto de as acções de “externalização” poderem implicar a “colocação à disposição” dos sócios de vantagens económicas (na forma de rendimentos da categoria E) não obsta a que as acções que visam a sua “internalização” no âmbito da sociedade possam também ter esse efeito. 

Naturalmente, se estas acções de internalização (como a alegada “regularização para acerto de contas” que é invocada no caso) visam apenas revestir de uma forma jurídica mais adequada aquelas formas de externalização para os sócios de vantagens económicas que cabem à sociedade (como a compensação das dívidas dos sócios com os resultados transitados), não podem umas e outras – ainda que colocando ambas à disposição dos sócios vantagens económicas – dar origem a tributação. Tal constituiria uma duplicação de tributação[5]

Em contrapartida, parece meridianamente claro a este Tribunal que não é o facto de algo ter sido colocado à disposição de alguém de uma certa maneira (oculta, precária, sem título, transitória…) que impede que possa ser colocado à disposição desse alguém de uma outra maneira (pública, estável, titulada, definitiva…). E, consequentemente, poder ser aferido quanto à primeira forma e quanto à segunda – desde que, evidentemente, o não seja por duas vezes. Logo, a possibilidade de um facto tributário ter permanecido oculto para lá do seu prazo de caducidade não obsta a que se possa invocar outro facto tributário relacionado com o primeiro, se o houver.

Consequentemente, e com o devido respeito, a questão da caducidade que foi colocada ao Tribunal é uma não-questão, justamente porque assenta nessa presumida indiferenciação, univocidade e irrepetibilidade do que seja “colocar à disposição”. Mesmo que, como admite a AT, “as quantias que foram apropriadas pelo sócio-gerente” o tenham sido em anteriores exercícios, não é isso que está em causa. É, como também refere a AT na sequência do que ficou consignado no Relatório de Inspecção Tributária e no indeferimento da reclamação graciosa, o “o momento da colocação à disposição do sócio-gerente dos lucros ou dos adiantamento por conta de lucros” que “ocorreu justamente no momento em que, de uma forma objectiva, foi feito o correspondente reconhecimento contabilístico in casu, materializado, nos lançamentos a crédito das contas que evidenciavam as suas dívidas para com a sociedade, anulando-as por compensação com os lucros acumulados transferidos ou retirados da conta 561- Resultados Transitados.

Esse mesmo entendimento, que é também o do presente Tribunal, foi já adoptado pelo CAAD na decisão do Processo n.º 508/2020-T[6], de que se cita o seu parágrafo 22:

Expostas, nas suas linhas essenciais, as posições assumidas pelas Partes, constata-se estar em causa o tratamento jurídico-tributário da regularização contabilística, no valor de € 88 498,05, efetuada em 2016. Esta regularização, tendo como objeto movimentos efetuados em anos anteriores, mormente em 2014, traduzidos na retirada de valores monetários, a título de empréstimo, efetua-se, de conformidade com deliberação da assembleia geral da Requerente, através da sua contabilização como “outras variações de Capital Próprio”, por forma a desonerar os sócios da dívida para com a sociedade. Conforme assinala a AT, em termos práticos, na aplicação para “outras variações de Capital Próprio” houve uma distribuição de lucros em favor dos sócios, consubstanciada pela não reposição de meios monetários ou equivalentes da empresa antes desviados do património desta, e que constituíram um “lucro” efetivo dos beneficiários (sócios) reconhecido no ano de 2016.

            Ainda que tal seja irrelevante, deixe-se uma nota final: a decisão tomada pelo STA em sede de recusa do recurso de uniformização de jurisprudência intentado pela AT contra a decisão tomada no Processo n.º 182/2017-T, em nada reforça tal decisão, ao contrário do que a Requerente parece entender na sua argumentação. E, como invocado pela AT, essa decisão não é pertinente para o caso dos autos, uma vez que o facto tributário aí considerado não tinha correspondência com o que já se viu ser aqui relevante.

 

IV.5. Juros indemnizatórios

No pedido, embora sem argumentação prévia, a Requerente solicitava o pagamento de juros indemnizatórios por pagamento indevido. Na medida que improcedeu o pedido de anulação das liquidações impugnadas, decai em consequência o pedido derivado.  

 

V.            DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e Processo Tributário, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em € 153.635,86 (cento e cinquenta e três mil seiscentos e trinta e cinco euros e oitenta e seis cêntimos), que foi o valor indicado pela Requerente e não contraditado pela AT. 

 

VII.        CUSTAS

Custas a cargo da Requerente, no montante de € 3 672,00 (três mil seiscentos e dois euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que o presente pedido foi julgado inteiramente improcedente. 

Lisboa, 27 de Julho de 2022

 

O Árbitro Presidente e Relator

 

 

Victor Calvete

 

 

O Árbitro Adjunto

 

 

Manuel Faustino, com declaração de voto

 

 

O Árbitro Adjunto

 

 

Júlio Tormenta

 

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 execepto em transcrições que o sigam. 

 

 

DECLARAÇAO DE VOTO

 

Votei vencido a presente decisão arbitral na parte em que não reconhece a caducidade do direito à liquidação quanto ao montante regularizado na conta 26801 - Outras operações. Em meu entender, e considerando a centralidade do facto tributário e o seu cunho constitucional, por oposição à complementaridade do ato tributário  e do seu cunho administrativista, se aceito que os lançamentos na Conta 26601-Financiamentos tenham sido feito a título de mútuos e o facto tributário se tenha verificado com a sua regularização por contrapartida de resultados transitados, já não posso, convictamente, aceitar que, tendo a Requerente instalado a fundada dúvida sobre o facto tributário quanto aos lançamentos na conta 26801-Outras operações e não tendo a IT comprovado que eles provinham de mútuos, de trabalho ou do exercício de cargos sociais, já em saldo em 2013 e, consequentemente, também com o prazo de caducidade já verificado, se não decida nos termos do disposto no artigo 100.º do CPPT, isto é, anulando-se, nessa parte o ato impugnado.

Lisboa, 26 de julho de 2022

 

 

Manuel Faustino

 

 

 

 



[1] O tempo de duração dos empréstimos parece ter sido a diferença considerada relevante para a distribuição entre os activos correntes (curto prazo) e não correntes (médio/longo prazo). Irreleva se tal distinção e distribuição por contas era apropriada.

[2] Embora não pela do seu n.º 4, em resultado da exclusão aí expressamente prevista: “Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros. Faço notar que, como mútuos, apenas podem ser tidas as importâncias debitadas na conta 261, considerando que de acordo com a opinião do Colega Prof. Júlio Tormenta, as microentidades não têm qualquer obstáculo legal na utilização dessa conta

 

[3] Como terá de acontecer fora do âmbito de aplicação das presunções do artigo 6.º, e poderá acontecer no domínio destas, quando sejam contestadas.

 

[4] A possibilidade de o facto tributário ser recortado pela sua componente “jurídica” ou “material” tem ampla tradição (mas, em regra, antecipando a verificação do facto na vida real). No Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, a data da conclusão dos prédios urbanos pode depender de um de quatro índices diversos (concessão da licença camarária, data de conclusão das obras constante da inscrição na matriz, data de uma qualquer utilização que não seja a título precário, ou data em que se torne possível a sua utilização para os fins a que se destina – artigo 10.º, n.º 1). 

No Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, o imposto incide sobre as transmissões, mas ficciona-se que a generalidade das promessas de aquisição e alienação com tradição do bem, ou em que o promitente adquirente possa alienar a sua posição a terceiro, ou os contratos de arrendamento com a cláusula de que os bens arrendados passam para a propriedade do arrendatário depois de satisfeitas todas as rendas acordadas, ou os contratos de arrendamento com duração superior a 30 anos, também constituem “transmissão onerosa”. 

No Código do Imposto do Selo, a obrigação tributária por sucessão por morte nasce na data de abertura da sucessão (alínea p) do n.º 1 do artigo 5.º), mas no Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões, o imposto que incidia sobre a transmissão de bens só era devido com “a transferência real e efectiva dos bens; e, assim, não se verificará a transmissão nas disposições sob condição suspensiva, sem se realizar a condição, nas doações por morte e nas doações entre casados, enquanto não falecer o doador ou, no último caso, o donatário não alienar os bens, e nas sucessões ou doações de propriedade separada do usufruto, sem este acabar ou sem a propriedade ser alienada.” - §1.º do Art. 3.º).  

Escusado será dizer que em qualquer desses exemplos a data do índice material de tributação podia distar muito da data do seu índice jurídico. Salvo melhor opinião, não se trata de uma segunda verificação de um mesmo facto tributário, trata-se – como no caso dos autos – de definir índices alternativos para dar relevância a alterações jurídicas ou materiais que, estando normalmente ligadas no tempo, podem diferir nele. 

 

[5] A este propósito, escreveu-se na decisão do Processo n.º 3/2017-T: 

Caso tivesse sido feita pela Requerente a retenção de IRS na fonte ao longo dos exercícios em que os sócios gerentes se foram apropriando de valores gerados pela atividade da Requerente, como deveria ter ocorrido, este facto tributário ulterior, quando das deliberações de distribuição, embora realmente existente, não importaria nova liquidação de imposto. No limite, uma nova liquidação de imposto geraria duplicação de coleta, nos termos do n.º 1 do artigo 205.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), com efeito de ilegalidade do ato tributário.

Inversamente, deliberações de distribuição de lucros (ou reservas), como as adotadas pelos sócios da Requerente em 2012 ou 2103, geram um facto tributário na data em que tais saídas de caixa são contabilizadas, sobre o qual – não tendo havido anteriormente liquidação de IRS, quando das apropriações ou levantamentos – deve haver liquidação, ou por retenção na fonte feita pelo substituto tributário, ou administrativa, na verificação da falta daquela, sem que se gere duplicação de coleta, pois que a Requerente incumpriu a obrigação de retenção na fonte do IRS devido em função de factos tributários que se tinham verificado nos exercícios anteriores.”  

[6] E, como resulta logo do último parágrafo do trecho transcrito na nota anterior, também na Decisão do Processo n.º 3/2017-T.