Sumário:
Ao circunscrever o regime de tributação de dividendos constante nos n.ºs 1, 3 e 10 do artigo 22.º do EBF aos OIC que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, isto é, ao sujeitar a retenção na fonte os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, o artigo 22.º do EBF procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes incompatível com a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Carla Castelo Trindade (árbitra-presidente), Miguel Patrício e António Pragal Colaço (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A... LIMITED, sociedade de direito irlandês, com sede em ..., Irlanda, ..., titular do número de identificação fiscal irlandês IE... e português ... (“Requerente”), na qualidade de entidade gestora do fundo e subfundos da B... LIMITED, sociedade de investimento de capital variável (“SICAV”), com sede em ..., Luxemburgo, titular do número de identificação fiscal luxemburguês ... (“Fundo”), vem requerer a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e d), da Lei Geral Tributária (“LGT”), 99.º, alíneas a) e d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à ilegalidade e consequente anulação dos actos tributários de retenção na fonte respeitantes ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”), referentes aos dividendos pagos nos meses de Abril, Maio, e Setembro do ano de 2019, no montante global de € 764.185,39, e, bem assim, da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa contra aqueles actos apresentada.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”), aqui Requerida, em 7 de Dezembro de 2021.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a)e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 24 de Janeiro de 2022, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4. Em 27 de Janeiro de 2021 a Requerente apresentou requerimento no evidenciou a existência de um lapso na identificação do Fundo objecto dos actos de retenção na fonte contestados, solicitando a rectificação dos elementos “B..., SICAV, com o número de identificação fiscal luxemburguês...” para os elementos “B..., SICAV, com o número de identificação fiscal luxemburguês...”.
5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 11 de Fevereiro de 2022.
6. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:
Começou a Requerente por referir que é uma sociedade comercial de direito irlandês que se dedica à gestão do Fundo, o qual reveste a forma jurídica de SICAV. O Fundo, que é residente no Luxemburgo, auferiu em 2019 dividendos de fonte portuguesa que foram sujeitos a retenção na fonte e que não deram lugar a qualquer crédito de imposto, parcial ou total, no Estado de residência.
De acordo com a Requerente, os dividendos pagos por entidades localizadas em Portugal estão sujeitos de tributação em sede de IRC, independentemente do local da sede ou direcção efectiva da entidade beneficiária, nos termos do artigo 4.º, n.ºs 2 e 3, alínea c), subalínea 3), do Código do IRC. Estes dividendos serão tributados através do mecanismo da retenção na fonte, que terá carácter liberatório e definitivo ou será feito por conta do imposto devido a final, em função de estarem em causa entidades não residentes sem estabelecimento estável ou entidades residentes, conforme decorre do artigo 94.º do Código do IRC.
Acontece que, no entender da Requerente, os organismos de investimento colectivo (“OIC”) não residentes são sujeitos a uma tributação mais gravosa, já que os OIC residentes estão excluídos de tributação sobre os rendimentos de capitais, os rendimentos prediais e as mais-valias, não lhes sendo aplicado no momento do pagamento ou colocação à disposição qualquer taxa através do mecanismo da retenção na fonte, conforme resulta do artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”).
Para a Requerente, este regime concretiza uma discriminação, que não era afastada pelo facto de apenas os OIC residentes estarem sujeitos a tributação em sede de Imposto do Selo, na medida em que não se trata do mesmo imposto ou, sequer, do mesmo objecto ou lógica tributária. Para além de que, no entender da Requerente, se esta tivesse sido tributada de acordo com a verba 29 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”), a sua tributação global seria quase dezanove vezes inferior àquela que suportou em sede de IRC quanto aos dividendos auferidos e tributados pelos actos de retenção na fonte objecto do presente processo.
Nestes termos, considerou a Requerente que foi objecto de uma discriminação injustificada em função da nacionalidade/lugar da residência, violadora da liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) e que é proibida pelo artigo 18.º TFUE. Por conseguinte, concluiu a Requerente que se verificou uma violação do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito interno, que implica a anulação das liquidações por retenção na fonte contestadas, em conformidade com o disposto no artigo 163.º do CPA, com a consequente restituição do imposto indevidamente suportado acrescido dos juros indemnizatórios legalmente devidos.
7. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo (“PA”), em 23 e 24 de Março, respectivamente, tendo-se defendido por excepção e por impugnação, peticionando a final a absolvição de parte da instância e a improcedência e consequente absolvição do pedido de pronúncia arbitral, o que fez, em síntese, com base nos seguintes argumentos:
Por excepção, começou a Requerida por alegar que o montante de IRC impugnado inclui valores que foram objecto de pedido de reembolso deferido pela Direcção de Serviços de Relações Internacionais (“DSRI”) por cumprirem os requisitos previstos na Convenção para Evitar a Dupla Tributação (“CDT”) celebrada entre Portugal e o Luxemburgo. Por conseguinte, no entender da Requerida, a presente acção arbitral carece parcialmente de objecto, já que parte dos actos de retenção na fonte de IRC contestados foram eliminados da ordem jurídica, verificando‑se dessa forma a sua inimpugnabilidade parcial que consiste numa excepção dilatória nos termos conjugados do artigo 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da LGT, da alínea i), do n.º 4, do artigo 89.º do CPTA e do artigo 576.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.
Por impugnação, a Requerida iniciou por evidenciar que, na sua perspectiva, existiam divergências e incongruências quanto à identificação da Requerente e do Fundo por ela gerido que não permitiam certificar a residência do fundo B..., SICAV. Alegou também a Requerida a existência de divergências e incongruências entre os rendimentos declarados pelo titular do NIF ... na modelo 30 e os rendimentos e valores sujeitos a retenção referidos no pedido arbitral e declarados pelo C..., SA. No entender da Requerida, estas divergências não permitem comprovar qual o valor que foi efectivamente auferido e retido ao fundo, não tendo a Requerente demostrado o pagamento/retenção na fonte ao fundo propriamente dito tal como exigido nos termos do artigo 74.º da LGT, devendo o pedido arbitral ser julgado improcedente.
Prosseguiu a Requerida por defender que a Requerente omitiu alguns aspectos de grande relevância para a apreensão integral do regime fiscal aplicável aos OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional. Um primeiro aspecto respeita, de acordo com a Requerida, ao facto de o “alívio” de tributação em sede de IRC daquelas entidades ter sido acompanhado de uma tributação “substitutiva” em sede de Imposto do Selo, que para além de incluir os investimentos de que provêm os dividendos e os juros pode incluir igualmente os dividendos e juros acumulados até à sua atribuição aos investidores ou detentores das unidades de participação. Um segundo aspecto respeita, segundo a Requerida, ao facto de aquelas entidades estarem sujeitas às taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC, o que revelaria a intenção do legislador de subsumir os dividendos obtidos por estes organismos ao disposto no n.º 11 daquele mesmo artigo.
De acordo com a Requerida, não só o tratamento diferenciado entre OIC residentes e não residentes não significa necessariamente uma maior oneração tributária dos OIC não residentes, que não estão sujeitos a tributação autónoma sobre os dividendos nem ao Imposto do Selo, como também a Requerente não teve em consideração a possibilidade de imputação do imposto retido sobre os rendimentos obtidos pelo OIC em Portugal na esfera dos participantes no fundo a título de crédito de imposto. Na perspectiva da Requerida, o exercício deste direito por parte dos investidores assegura que não há qualquer tributação dos rendimentos à saída do fundo, pelo que a tributação dos OIC não residentes em Portugal não constitui um factor de dissuasão determinante nas opções de canalização de poupanças pelos investidores para esses OIC. E este aspecto é essencial, para a Requerida, já que apesar de o Fundo poder estar sujeito e não isento, sem possibilidade deduzir o imposto pago em Portugal, no Estado de residência (Luxemburgo), nada é dito sobre a possibilidade do exercício desse direito por parte dos investidores.
Por fim, referiu a Requerida que a tributação do património líquido global dos OIC residentes em sede de Imposto do Selo recorta-se na lógica de tributação aplicável só a sujeitos passivos residentes, uma vez que, regra geral, só o Estado da residência reúne condições e dispõe de competência para determinar e tributar a globalidade do património.
A concluir, registou a Requerida que os OIC residentes e não residentes não estavam em situações objectivamente comparáveis, sendo justificado o diferente regime fiscal que lhes era aplicável e que assentava em técnicas de tributação diferenciadas, que não sujeitavam os OIC não residentes a uma carga fiscal mais gravosa face à aplicável aos OIC residentes, inexistindo assim uma restrição à liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.º do TFUE e não justificada em razões imperiosas de interesse geral. Por esta razão, concluiu a Requerida que os actos tributários impugnados não padeciam de qualquer erro ou vício, impondo-se a sua manutenção na ordem jurídica.
8. Em 30 de Março de 2022 foi proferido despacho arbitral no qual se concedeu à Requerente a faculdade de, querendo, pronunciar-se no prazo de 10 dias sobre a excepção invocada pela Requerida na sua resposta. Em 18 de Abril de 2022, mediante requerimento, veio a Requerente exercer aquele direito referindo para o efeito, e em síntese, o seguinte:
A título prévio, mencionou a Requerente que no pedido de pronúncia arbitral a identificação do Fundo por si gerido padecia de lapso, o qual foi corrigido através do requerimento apresentado em 27 de Janeiro de 2022.
Quanto à concreta excepção dilatória invocada pela Requerida na sua resposta, sublinhou a Requerente que apesar de ter apresentado os pedidos de reembolso parcial de IRC ao abrigo da CDT celebrada entre Portugal e Luxemburgo, nunca chegou a ser notificada dos respectivos deferimentos por parte da AT, não constando do PA evidência da efectivação de quaisquer notificações nesse sentido nem de quaisquer reembolsos do IRC suportado. Assim sendo, e por considerar que o ónus probatório de tais factos impende sobre a AT, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, concluiu a Requerente pela improcedência da excepção invocada pela Requerida.
Neste requerimento peticionou ainda a Requerente a redução do pedido de pronúncia arbitral em virtude de ter detectado discrepâncias entre os rendimentos que efectivamente auferiu e que foram sujeitos a retenção na fonte e a informação veiculada pelo banco C... (substituto tributário) no que respeita aos dividendos pagos à Requerente e ao IRC retido na fonte sobre tais rendimentos. Tais discrepâncias deveram-se, segundo a Requerente, ao facto de a declaração junta com o pedido arbitral reflectir quer o IRC retido na fonte à Requerente, quer o IRC retido na fonte a outras entidades, igualmente detentoras de participações sociais nas mencionadas sociedades e que, por via disso, auferiram dividendos sujeitos a retenção na fonte.
Assim sendo, e tendo por base a informação constante de documento que juntou com o requerimento de resposta à matéria de excepção, afirmou a Requerente que apenas auferiu dividendos no valor global de € 445.073,86 ao invés do montante de € 2.292.556,15 que havia anteriormente mencionado no pedido arbitral, razão pela qual peticionou a Requerente a redução do pedido que formulou relativo aos actos de retenção na fonte de € 764.185,39 para € 109.049,96.
Por fim, aludiu a Requerente ao entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) expresso no acórdão proferido no âmbito do processo n.º C‑545/19, em 17 de Março de 2022, e que cujas conclusões entendeu serem aplicáveis ao presente caso.
9. Por despacho proferido em 27 de Abril de 2022, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais, previstos nos artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2, ambos do RJAT. Naquele despacho foi também concedido à Requerida um prazo adicional de 10 dias para, querendo, proceder à junção aos autos de prova adicional quanto ao reembolso parcial dos valores constantes das guias de retenção na fonte objecto de impugnação pela Requerente, tendo-se ainda concedido às partes a faculdade de, querendo, apresentarem alegações escritas.
10. Em 23 de Maio de 2022, a Requerida apresentou Requerimento no qual requereu que fosse concedido novo prazo para a junção aos autos da informação da Direcção de Serviços de Cobrança sobre a concretização da decisão de deferimento dos pedidos de reembolso.
11. Mediante requerimento apresentado em 7 de Junho de 2022, veio a Requerente peticionar ao Tribunal Arbitral a admissão aos autos das suas alegações que, em virtude de lapso, foram juntas em 27 de Maio de 2022 ao processo arbitral n.º 131/2021-T. Nas alegações a Requerente sintetizou os argumentos anteriormente apresentados, tendo esclarecido as divergências e incongruências anteriormente suscitadas pela Requerida no decurso do processo relativamente aos seus elementos de identificação e aos do Fundo por si gerido, juntando para o efeito aos autos elementos probatórios adicionais dos factos por si alegados.
12. Por despacho proferido em 23 de Junho de 2022 foi deferido o requerimento apresentado pela Requerente quanto à junção aos autos das respectivas alegações. Naquele despacho foi ainda deferido o requerimento apresentado pela Requerida e concedido um novo prazo adicional de 10 dias para que esta apresentasse prova adicional quanto ao reembolso parcial dos valores constantes das guias de retenção na fonte objecto do pedido arbitral, tendo-se pronunciado a este respeito a Requerida através de requerimento apresentado em 6 de Junho de 2022.
II. SANEAMENTO
13. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
14. Cumpre no entanto apreciar a excepção dilatória de inimpugnabilidade parcial dos actos de retenção na fonte invocada pela Requerida na sua resposta.
A este respeito cumpre, no essencial, determinar se parte dos montantes contestados no pedido arbitral foram ou não objecto de um pedido de reembolso por parte da Requerente, ao abrigo da CDT celebrada entre Portugal e o Luxemburgo, e se esse pedido foi ou não deferido e notificado, com o consequente processamento do reembolso.
Conforme resulta da matéria de facto dada como provada infra, consta do processo administrativo junto aos autos uma comunicação entre os serviços da AT na qual se faz menção ao deferimento do pedido de reembolso apresentado pela Requerente. Não obstante, não existam no PA nem foram juntos aos autos elementos de prova que certifiquem a sua ocorrência. Tanto assim é que foi a própria Requerida que confirmou, no âmbito do requerimento apresentado em 6 de Junho de 2022, que os montantes de imposto objecto dos pedidos de reembolso ainda não tinham sido restituídos à Requerente.
Uma vez que a prova do deferimento, da respectiva notificação e do consequente processamento do pedido de reembolso apresentado pela Requerente quanto a parte dos montantes objecto dos actos de retenção na fonte impugnados nos presentes autos incumbia à Requerida, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, que invocou a excepção ora em análise, e tendo em consideração que foi a própria Requerida que contrariou e negou os factos por si anteriormente alegados, afirmando não se ter concretizado o reembolso, não se pode considerar verificada a excepção dilatória por esta invocada na sua resposta, sendo a mesma necessariamente improcedente.
15. Ainda para efeitos de saneamento cumpre apreciar o requerimento apresentado pela Requerente, em 18 de Abril de 2022, no qual solicitou a redução do pedido arbitral de € 764.185,39 para € 109.049,96, de forma a conformar o objecto do processo com os montantes de retenção na fonte de IRC efectivamente suportados pela Requerente nos termos já acima enunciados.
A este respeito dispõe-se no artigo 265.º, n.º 2, do CPC aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1, alínea e), do RJAT que “[o] autor [Requerente no processo arbitral] pode, em qualquer altura, reduzir o pedido”, não ficando tal redução dependente da aceitação da Requerida, que vê consequentemente reduzida a pretensão contra si exercida.
Por conseguinte, defere-se a redução do pedido arbitral requerida pela Requerente, o que terá consequências na determinação do valor do processo e do montante de custas a fixar conforme oportunamente se verá.
16. Dito isto, conclui-se que não existem obstáculos ou quaisquer outros entraves à apreciação do mérito da causa e que cumpra conhecer em sede de saneamento do processo.
III. DIREITO
III.1. MATÉRIA DE FACTO
III.1.1. Factos provados
17. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente tem como designação social “A...) Limited”, tem morada em ..., Irlanda, ... e tem o número de identificação fiscal irlandês E...– cfr. documentos juntos pela Requerente com o pedido arbitral sob os n.ºs 2 e 4 e documentos juntos com as suas alegações sob os n.ºs 4 e 5;
b) A Requerente é uma sociedade comercial que, no exercício da respectiva actividade, se dedica à gestão de um fundo que tem como designação social “ B..., SICAV”, que tem morada em ..., Luxemburgo, que tem o número de identificação fiscal luxemburguês ... e que tem o número de identificação fiscal português...– cfr. documento junto pela Requerente com o pedido arbitral sob o n.º 3 e documentos juntos com as suas alegações sob os n.ºs 1 a 3;
c) O Fundo reveste a forma jurídica de SICAV, equiparável no ordenamento jurídico português a um OIC – cfr. documento junto pela Requerente com o pedido arbitral sob o n.º 2;
d) O Fundo não dispõe de sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável em território nacional, sendo residente para efeitos fiscais no Luxemburgo, encontrando-se aí sujeito e não isento, sem possibilidade de opção, ao imposto luxemburguês sobre o rendimento de sociedades – cfr. documento junto pela Requerente com o pedido arbitral sob o n.º 3;
e) No ano de 2019 a Requerente detinha participações sociais nas seguintes sociedades:
Sociedade residente
|
ISIN
|
N.º de acções
|
D...
|
PTSE...
|
39.873
|
E...
|
PTP...
|
21.368
|
F...
|
PTG...
|
4.045.685
|
G...
|
PTJ...
|
18.227
|
G...
|
PTJ...
|
333.040
|
G...
|
PTJ...
|
10.975
|
H...
|
PTC...
|
10.975
|
I...
|
PTE...
|
2.909.216
|
F...
|
PTG...
|
2.725.698
|
– cfr. documento junto pela Requerente com o pedido arbitral sob o n.º 4;
f) No ano de 2019, e por referência às participações sociais enunciadas no ponto anterior da matéria de facto, a Requerente auferiu dividendos de fonte portuguesa no valor total bruto de € 445.073,86, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte à taxa liberatória de 25%, o que perfez um valor de imposto pago de € 109.049,96, conforme evidenciado nos seguintes termos:
Entidade
|
Código ISIN
|
Data de retenção na fonte
|
Data de
pagamento
|
Dividendos
(valor bruto)
|
Montante
retido na fonte
(25%)
|
Dividendos
(valor líquido)
|
E...
|
PTP...
|
18-04-2019
|
24-09-2019
|
5.595,59
|
1.398,90
|
4.196,69
|
E...
|
PTP...
|
18-04-2019
|
24-04-2019
|
375,27
|
93,82
|
281,45
|
D...
|
PTS...
|
25-04-2019
|
29-04-2019
|
573,44
|
143,36
|
430,08
|
F...
|
PTG...
|
07-05-2019
|
09-05-2019
|
26.565,83
|
6.641,46
|
19.924,37
|
G...
|
PTJ...
|
07-05-2019
|
09-05-2019
|
108.238,00
|
27.059,50
|
81.178,50
|
G...
|
PTJ...
|
07-05-2019
|
09-05-2019
|
74.350,25
|
18.587,56
|
55.762,69
|
G...
|
PTJ...
|
07-05-2019
|
09-05-2019
|
1.048,78
|
262,19
|
786,59
|
G...
|
PTJ...
|
07-05-2019
|
09-05-2019
|
294.809,78
|
44.221,47
|
250.588,36
|
I...
|
PTE...
|
13-05-2019
|
15-05-2019
|
600,02
|
150,00
|
450,02
|
H...
|
PTC...
|
15-05-2019
|
17-05-2019
|
1.043,90
|
260,97
|
782,93
|
H...
|
PTC...
|
15-05-2019
|
17-05-2019
|
53,60
|
13,40
|
40,20
|
F...
|
PTG...
|
06-09-2019
|
10-09-2019
|
40.869,31
|
10.217,33
|
30.651,98
|
– cfr. documento junto pela Requerente com o pedido arbitral sob o n.º 1 e documento junto com o requerimento apresentado em 18 de Abril de 2022 sob o n.º 1;
g) As retenções na fonte relativas aos dividendos auferidos em Portugal não deram lugar a crédito de imposto, parcial ou total, no Estado de residência do Fundo, seja na esfera deste ou dos seus participantes – cfr. documentos juntos pela Requerente com o pedido arbitral sob os n.ºs 2 e 5;
h) Em 4 de Maio de 2021 a Requerente apresentou reclamação graciosa tendente à apreciação dos actos de liquidação de IRC através de retenção na fonte a título definitivo que incidiram sobre os dividendos por si auferidos em Portugal no ano de 2019, a qual foi tramitada sob o n.º ...2021... – cfr. PA junto pela Requerida aos autos com a sua resposta;
i) A reclamação graciosa não foi decidida pela AT no prazo previsto para o efeito;
j) Em 7 de Dezembro de 2021 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral no qual reagiu contra o indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa anteriormente apresentado;
k) Em 18 de Abril de 2022 a Requerente apresentou um requerimento de redução do pedido arbitral de € 764.185,39 para € 109.049,96;
l) A Requerente efectuou pedidos de reembolso, parcialmente coincidentes com os actos tributários objecto do presente processo arbitral, tendo em vista a devolução do montante correspondente à diferença entre a taxa de retenção na fonte suportada em Portugal e a taxa reduzida de retenção na fonte prevista na CDT celebrada entre Portugal e o Luxemburgo – cfr. PA junto pela Requerida aos autos com a sua resposta;
m) No processo administrativo consta uma comunicação da DS Relações Internacionais dirigida à Chefe da Divisão de Justiça Administrativa da Direcção de Finanças de Lisboa, de 17 de Dezembro de 2021, na qual se refere o seguinte a respeito dos pedidos de reembolso apresentados pela Requerente:
“Exma. Senhora Chefe da Divisão de Justiça Admnistrativa da Direção de Finanças de Lisboa Foram instaurados nesta Direção de Serviços os pedidos de reembolso de imposto português sobre dividendos de ações abaixo discriminados, apresentados ao abrigo da CDT celebrada entre Portugal e o Luxemburgo, pelo requerente B..., NIF ...
(…)
Como verificámos que existe um processo de Reclamação Graciosa, com o n.º ...2021..., onde esta entidade figura como responsável solidário, cujo objecto são pagamentos antecipados efetuados através das mesmas guias de retenção que estão na base dos aludidos pedidos de reembolso, informamos que estes foram deferidos por cumprirem os requisitos previstos na CDT celebrada entre Portugal e o Luxemburgo e que iremos solicitar à Direção de Serviços de Reembolsos o respetivo reembolso das importâncias solicitadas, que deverão ser abatidas ao saldo das referidas guias.” – cfr. PA junto pela Requerida aos autos com a sua resposta;
n) No seguimento de despacho arbitral a Requerida apresentou um requerimento, em 6 de Junho de 2022, no qual se refere o seguinte:
“1. No seguimento da notificação do despacho, foi solicitado aos serviços da AT o envio de informação sobre a concretização de diligências de execução da decisão de deferimento dos pedidos de reembolso, ao abrigo da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e o Luxemburgo, ao requerente B... Funds.
2. Por email datado de 30/06/2022, informou a Direção de Serviços de Cobrança que «ainda não se encontra disponível no Interface da Cobrança a que a DSR tem acesso, a listagem dos pedidos de reembolso decididos na aplicação de reembolsos internacionais», pelo que ainda não foram restituídos à Requerente os valores constantes das guias de retenção na fonte objeto do pedido arbitral.”.
o) A Requerente não foi notificada do deferimento dos pedidos de reembolso que apresentou, não lhe tendo sido restituídos os valores objecto desses pedidos.
III.1.2. Factos não provados
18. Com relevo para a decisão da causa, não existem outros factos que devam ser considerados provados ou não provados.
III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
19. O Tribunal Arbitral não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria de facto alegada pelas partes, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa à decisão, admitindo a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo Requerente, e decidir se a considera provada ou não provada, conforme resulta do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT.
Face às posições assumidas nas peças processuais apresentadas no decurso da instância, à prova documental e à cópia do processo administrativo juntos aos autos para comprovação dos factos alegados pelas partes, tendo sido todos eles objecto de exame e avaliação cuidada por este Tribunal, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
A matéria de facto atinente à identificação da Requerente e do Fundo por esta gerido, bem como a relativa aos dividendos efectivamente auferidos e sujeitos a tributação em Portugal, foi fixada com base nos factos invocados pelas partes e com base na concreta prova documental junta pela Requerente com o pedido arbitral, com o requerimento apresentado em 18 de Abril de 2022 e com as alegações finais, tal como individualizado no probatório acima fixado. Ainda que o pedido arbitral pudesse conter incongruências derivadas de lapsos materiais, conforme invocou a Requerida na sua resposta, a verdade é que parte desses lapsos foram desde logo corrigidos em momento anterior à constituição do tribunal arbitral e à notificação da Requerida para apresentar a sua resposta, sendo certo que os demais lapsos materiais foram corrigidos e sanados no decurso dos autos, não tendo tais correcções sido objecto de contestação especificada pela Requerida, estando a valoração de tal conduta sujeita ao princípio da livre apreciação pelo Tribunal nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT.
Por fim, cumpre precisar que não se consideraram provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
20. No presente processo cabe apreciar a ilegalidade invocada pela Requerente resultante da alegada incompatibilidade do regime português de tributação de dividendos em sede de IRC, auferidos por OIC, com o princípio de livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE. Em concreto, cabe apreciar se os OIC não residentes são objecto de uma discriminação que impõe um tratamento menos favorável relativamente ao concedido aos OIC que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional. Para o efeito, cabe antes de mais fixar a base legal vigente à data dos factos para os OIC residentes e não residentes, ainda que de forma sucinta e limitada ao necessário à presente decisão.
Quanto aos OIC residentes, a tributação dos dividendos por si auferidos era essencialmente conformada pelo disposto no artigo 22.º do EBF na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de Janeiro. Ao que aqui importa, dispunha-se o seguinte no referido artigo:
“Artigo 22.º
Organismos de Investimento Coletivo
1 - São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
2 - O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 - Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.
4 - Os prejuízos fiscais apurados nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis nos termos do disposto nos n.º 1 e 2 do artigo 52.º do Código do IRC.
5 - Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica-se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.
6 - As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.
(…)
8 - As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime.
(…)
10 - Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.”.
Portanto, do regime previsto no artigo 22.º do EBF resultava que os dividendos auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional não eram considerados como rendimento para efeitos de apuramento do lucro tributável em sede de IRC, prevendo-se a exclusão de retenção na fonte daquele imposto bem como a isenção de derrama municipal e de derrama estadual.
Em todo o caso, os OIC residentes continuavam sujeitos às taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do código do IRC, conforme previsto no n.º 8, do artigo 22.º do EBF.
Isto sem contar com a tributação dos dividendos auferidos em sede de Imposto do Selo, por via da sua potencial inclusão no âmbito da verba 29 da TGIS, onde se determinava o seguinte:
“29 Valor líquido global dos organismos de investimento coletivo abrangidos pelo artigo 22.º do EBF:
29.1 Organismos de investimento coletivo que invistam, exclusivamente, em instrumentos do mercado monetário e depósitos - sobre o referido valor, por cada trimestre 0,0025 %
29.2 Outros organismos de investimento coletivo - sobre o referido valor, por cada trimestre 0,0125 %”.
Conforme se compreende da leitura dos artigos acabados de citar, a exclusão de tributação em sede de IRC dos dividendos auferidos por OIC apenas se aplicava àqueles que fossem constituídos e operassem de acordo com a legislação nacional.
Já os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC não residentes – como sucede no presente caso –, eram sujeitos a tributação em sede de IRC através de retenção na fonte à taxa liberatória de 25%, ao abrigo do artigo 4.º, n.º 2, do artigo 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b), e n.º 5, e do artigo 87.º, n.º 4, todos do código do IRC.
No concreto caso do Fundo, aquela taxa de 25% podia ser objecto de limitação ao abrigo da CDT celebrada entre Portugal e o Luxemburgo que fixa em 15% a taxa aplicável aos dividendos, sendo que o montante efectivo de tributação suportado não podia beneficiar de crédito de imposto no Estado da residência (Luxemburgo).
Assentes que estão os diferentes métodos aplicáveis à tributação dos dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC residentes e não residentes, cumpre então aferir se assiste razão à Requerente quando alega a existência de uma discriminação violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE.
21. Uma vez que “[n]as decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, em conformidade com o disposto no n.º 3, do artigo 8.º do Código Civil, e tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da União tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, enquanto corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, cabe tomar em consideração as considerações do TJUE que versaram questão idêntica à dos presentes autos, designadamente ao acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido no processo C‑545/19, em 17 de Março de 2022.
No âmbito do mencionado acórdão considerou o TJUE, ao que aqui importa, quanto à eventual existência de uma discriminação nos termos acima descritos que:
“36 Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.º, n.º 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.º 49 e jurisprudência referida).
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida)”.
Ora, concluiu então o TJUE que a legislação portuguesa acima sumariamente enunciada implicava uma restrição à livre circulação de capitais, resultante do tratamento mais desfavorável imposto na tributação dos dividendos pagos aos OIC não residentes, sendo a mesma proibida pelo princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE.
22. Em todo o caso, não deixou o TJUE de ressalvar que aquela era uma proibição prima facie, já que a mesma apenas se verificava se se considerasse que os OIC residentes e não residentes estavam numa situação objectivamente comparável ou caso se considerasse que a eventual restrição não se encontrava justificada por razões imperiosas de interesse geral. Nas palavras do TJUE:
“40 Não obstante, segundo o artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.º TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
41 Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 29 e jurisprudência referida].
42 O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.º, n.º 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 30 e jurisprudência referida]”.
23. Quanto à análise da comparabilidade das situações em que se encontravam os OIC residentes e não residentes, sublinhou o TJUE no mencionado acórdão que:
“49 Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.º 47 e jurisprudência referida).
(…) a legislação nacional em causa no processo principal não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes (v., por analogia, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.º 44 e jurisprudência referida).
(…) 53 A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.
54 Além disso, como salientou a advogada‑geral no n.º 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C‑252/14, EU:C:2016:402).
55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente.
56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.
57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa”.
(…)
“60 Por outro lado, apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença de situação objetiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 49 e jurisprudência referida).
(…) na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.º 60 do presente acórdão, há que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.
72 Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.º 58 e jurisprudência referida).
73 Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.
74 Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.”.
Portanto, considerou o TJUE que o facto de os OIC residentes não estarem sujeitos a tributação sobre os dividendos de fonte portuguesa ao abrigo do artigo 22.º do EBF e de estarem sujeitos à tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 11, do código do IRC e à tributação prevista na TGIS, enquanto que os OIC não residentes não estavam sujeitos a esta duas últimas formas de tributação mas apenas a retenção na fonte definitiva e liberatória em sede de IRC sobre os dividendos de fonte portuguesa, não era motivo bastante para considerar que não se encontravam em situações objectivamente comparáveis.
24. A circunstância de se considerar que estão em causa situações objectivamente comparáveis implica, consequentemente, que os dividendos auferidos por OIC não residentes devem ser objecto de um tratamento idêntico ao conferido aos OIC residentes que estejam em situação análoga. Apenas assim não será, conforme salientou o TJUE no acórdão que se tem vindo a citar, se existirem razões imperiosas de interesse geral – tais como a necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal ou a necessidade de preservar uma repartição equilibrada da tributação entre os Estados Membros –, que justifiquem a imposição de um tratamento diferenciado a situações idênticas, isto é, que justifique a existência da restrição acima assinalada.
Quanto à eventual justificação da restrição operada pela legislação portuguesa, em virtude da necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal, registou o TJUE que:
“78 A este respeito, há que recordar que, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado que a necessidade de preservar a coerência de um regime fiscal nacional pode justificar uma regulamentação nacional suscetível de restringir as liberdades fundamentais (…), precisou, contudo, que, para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal (…).
79 Ora, no presente processo, como resulta do n.º 71 do presente acórdão, a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte (…).
80 Consequentemente, não há uma relação direta, na aceção da jurisprudência referida no n.º 78 do presente acórdão, entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo.
81 A necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal”.
Já em relação à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados Membros, referiu o TJUE no citado acórdão que:
“82 No que diz respeito, em segundo lugar, à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha, há que recordar que, como o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente, a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros pode ser admitida quando o regime em causa visa prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território (…)
83 No entanto, como o Tribunal de Justiça também já declarou, quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos (…).
84 Daqui resulta que a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros também não pode ser acolhida”.
25. Tendo por base todas estas considerações, decidiu o TJUE no citado acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN que:
“O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.
26. Ora, tendo por base a jurisprudência do TJUE constante do acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido no processo C‑545/19, em 17 de Março de 2022, cujo teor foi transcrito de forma extensa, e tendo em conta a similitude da matéria de facto e de direito dos presentes autos com aquele processo, considera‑se que à data dos factos a legislação interna aplicável à tributação de dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC implicava uma restrição ao princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, na medida em que impunha um tratamento menos favorável aos OIC não residentes sem que existisse para o efeito um motivo válido e legítimo que justificasse essa diferença de tratamento.
Em face do exposto, julga este Tribunal Arbitral procedente a ilegalidade invocada quanto aos actos de retenção na fonte impugnados e quanto à decisão de indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa que sobre eles versou, impondo-se a devolução do montante de IRC indevidamente pago pela Requerente.
IV.2. Juros indemnizatórios
27. No pedido arbitral peticionou ainda a Requerente que o reembolso do montante de imposto indevidamente pago fosse acrescido de juros indemnizatórios, por se verificar um erro imputável aos serviços da AT, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT. Isto ainda que tenha referido simultaneamente que o direito a juros indemnizatórios resultava da alínea d), do n.º 2, do artigo 43.º da LGT, que prevê o direito a juros nos casos de “(…) decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.
Já em sede de alegações veio a Requerente reforçar este pedido, referindo que “os atos de retenção na fonte sub judice são ilegais na medida em que decorrem da aplicação de normas legislativas contrárias ao direito europeu e, em consequência, violadoras do princípio do primado estabelecido no artigo 8.º, n.º 4, da CRP” e que “(…) padecendo as normas em referência de inconstitucionalidade, inquinando necessariamente os atos tributários na origem dos presentes autos do vício de violação de lei, é inequívoco o direito da Requerente à perceção de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 100.º e 43.º, n.o 3, alínea d), da LGT e 61.º, n.º 5, do CPP”.
Fundamentou também a Requerente naquela sede que sempre teria direito a juros indemnizatórios de acordo com o artigo 43.º, n.º 1, da LGT por se verificar erro imputável aos serviços da AT, já que “(…) o substituto tributário exerce verdadeiros poderes públicos no domínio tributário, materialmente idênticos aos cometidos à Autoridade Tributária quando, sob as suas vestes jurídico-públicas, procede à liquidação e cobrança do imposto” razão pela qual “(…) não se justifica que os atos por ele praticados, quando considerados ilegais, sejam objeto de um tratamento distinto dos demais atos tributários,
nomeadamente dos praticados pela própria Autoridade Tributária, quando é certo que o substituto tributário age, para este efeito, de modo absolutamente semelhante ao de um verdadeiro agente administrativo”.
Por fim, alegou ainda a Requerente, ex novo, que “(…) a retenção na fonte operada pelo substituto tributário no caso dos autos teve por base as orientações genéricas indicadas na Circular n.º 6/2015, de 17 de junho, o que torna absolutamente inquestionável a imputabilidade do erro aos serviços para efeitos de aplicação do artigo 43.º, n.º 1, da LGT”.
Já a Requerida referiu na sua resposta quanto ao direito a juros indemnizatórios que “(…) a liquidação em causa não provém de qualquer erro dos Serviços (…) [s]endo certo de que, a existir um erro – o que de resto, não se verifica – e tal como se demonstrou, o mesmo seria única e exclusivamente imputável à Requerente”. Isto na medida em que, segunda a Requerida, “[n]a situação dos autos, o apuramento do imposto foi efetuado pela Requerente”. Por fim, referiu a Requerida que na eventualidade de se considerar serem devidos juros indemnizatórios “(…) estando em causa a correção de erro na autoliquidação do contribuinte, que promove a sua revisão por via de reclamação graciosa, então, não é aplicável o disposto no artigo 43.º, n.º 1 da LGT, mas sim na norma especial vertida na alínea c) do n.º 3 do referido artigo 43.º.” de tal modo que “(…) tendo sido apresentado o pedido de reclamação graciosa em 04-05-2021, nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, os mesmos apenas seriam devidos um ano após essa data e não, como sustenta o Requerente, desde a data do pagamento indevido”.
28. Aqui chegados, cumpre então aferir se a Requerente tem ou não direito a juros indemnizatórios, tendo para o efeito presente os diferentes argumentos invocados a este respeito.
Quanto à aplicação da alínea d), do n.º 2, do artigo 43.º da LGT, entendeu-se no acórdão arbitral proferido em 10 de Novembro de 2021, no âmbito do processo tramitado no CAAD com o número 189/2021-T, o seguinte:
“Ao referir como fundamento do direito a juros indemnizatórios decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução, o legislador da Lei nº 9/2019, reportou-se diretamente ao mecanismo de fiscalização abstrata da inconstitucionalidade ou ilegalidade regulado no art. 281º da CRP e não à recusa de aplicação em casos concretos por qualquer tribunal de normas legislativas ou regulamentares com fundamento na sua ilegalidade ou inconstitucionalidade que, aliás, está sempre sujeita ao controlo do Tribunal Constitucional., nos termos dos nºs 1 e 2 do art.º 280º da CRP.
Ora, como se referiu, a incompatibilidade de norma de direito nacional com norma de direito internacional, incluindo o TFUE e o próprio direito derivado da União Europeia, vinculativa do Estado português, não está sujeita à fiscalização abstrata do TC, sendo apenas a recusa da sua aplicação pelos tribunais nacionais – e não a sua aplicação por estes- passível de recurso para o TC.
Tal Lei nº 9/2019, como explica o referido Acórdão do STA de 23/10/2019, segue-se à prolação do Acórdão n.º 848/2017, do Tribunal Constitucional, de 13/12/2017 que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do Regulamento Geral de Taxas, Preços e Outras Receitas do Município de Lisboa, ao abrigo das quais foram efetuadas as liquidações impugnadas, por violação do disposto no n.º 2 do art.º 103.° e na alínea i) do n.º 1 do art.º 165º, da CRP, bem como do nº 1 do art.º 43.º da LGT.
Tal possibilidade de declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral não é aplicável, porque o não prevê, o nº 1 do art.º 281º da CRP, às normas de direito nacional incompatíveis com o TFUE e o direito derivado, apenas passíveis da fiscalização concreta, em caso de recusa da sua aplicação, prevista na alínea i) do nº 1 do art.º 70º da LOTC.
As referidas decisões do CAAD, da autoria de tribunais arbitrais e não de tribunais judiciais, não têm caráter geral e o respetivo caso julgado limita‑se ao processo em que foram proferidas, não podendo ser consideradas para efeitos do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, nos termos da alínea d) do nº 3 do art.º 43º da LGT. Do mesmo modo, o Acórdão do TJUE no proc. C-169/2020 limita-se à verificação do incumprimento pelo Estado português das obrigações previstas no art.º 110º do TFUE, não contendo qualquer declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade do art.º 217º da Lei nº 42/2016, reservada aos tribunais nacionais”.
Por se concordar com o entendimento expresso no citado acórdão, entende‑se que não assiste à Requerente direito a juros indemnizatórios com fundamento na alínea d), do n.º 2, do artigo 43.º da LGT, já que a ilegalidade julgada procedente nos presentes autos não teve como fundamento uma anterior decisão judicial que, com carácter geral e abstracto, julgou inconstitucional ou ilegais as normas em juízo.
Em todo o caso, a verdade é que tal como se referiu no acórdão arbitral proferido em 28 de Março de 2022, no âmbito do processo tramitado no CAAD com o número 625/2020-T:
“(…) há muito vem entendendo o Supremo Tribunal Administrativo, a imputabilidade para efeitos de juros indemnizatórios apenas depende da prática de um acto ilegal, por iniciativa da Administração Tributária, mesmo em situações em que a ilegalidade deriva apenas do direito da União Europeia:
– «em geral, pode afirmar-se que o erro imputável aos serviços, que operaram a liquidação, entendidos estes num sentido global, fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou impugnação dessa mesma liquidação» ( [1] );
– «Para efeitos da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, imposta à administração tributária pelo art. 43.º da L.G.T., havendo um erro de direito na liquidação e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte.
Esta imputabilidade do erro aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro, podendo servir de base à responsabilidade por juros indemnizatórios a falta do próprio serviço, globalmente considerado» ( [2] );
– «há erro nos pressupostos de direito, imputável aos serviços, de modo a preencher o pressuposto da obrigação da Administração de indemnizar aquele a quem exigiu imposto indevido, quando na liquidação é aplicada uma norma nacional incompatível com uma Directiva comunitária» ( [3] ).
– «os juros indemnizatórios previstos no art. 43ºda LGT são devidos sempre que possa afirmar-se, como no caso sub judicibus, que ocorreu erro imputável aos serviços demonstrado, desde logo e sem necessidade de mais, pela procedência de reclamação graciosa ou impugnação judicial da correspondente liquidação» ( [4] )”.
Portanto, o facto de a ilegalidade decorrer da violação do Direito da União Europeia não obsta a que se considere verificado um erro que confira o direito a juros indemnizatórios, bastando para o efeito que tal erro seja imputável aos serviços. No presente caso o IRC contestado pela Requerente foi apurado e liquidado através do mecanismo da retenção na fonte, não tendo existido em tal operação uma intervenção directa da AT. Sem prejuízo, e tal como entendeu o STA no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0890/16, em 18 de Janeiro de 2017:
“[e]m caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) o erro passa a ser imputável à AT depois de eventual indeferimento da pretensão deduzida pelo contribuinte”.
Ora, uma vez que nos presentes autos o imposto retido na fonte foi objecto de reclamação graciosa por parte da Requerente, tendo tal pedido sido tacitamente indeferido, verifica-se que a partir dessa data o erro que inquinou as liquidações contestadas passou a ser imputável à AT. Por conseguinte, são devidos juros indemnizatórios à Requerente nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT a partir da data daquele indeferimento. Neste preciso sentido, pronunciou-se o STA no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0360/11.8BELRS, em 7 de Abril de 2021, onde se referiu o seguinte:
“(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando‑se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.
Neste ponto, apenas, resta problematizar se, na situação versada (ou equiparáveis), o dies a quo deve corresponder ao da data da apresentação da impugnação administrativa (reclamação graciosa e/ou recurso hierárquico) ou ao do momento em que os competentes serviços da AT se pronunciam/comunicam o resultado da pronúncia ao contribuinte.
(…) julgamos, justo, adequado e seguro, assumir como marco, para identificar e fixar o disputado dies a quo, o prazo, fixado por lei, para a decisão do procedimento de reclamação graciosa (Em caso de recurso hierárquico, 60 dias – art. 66.º n.º 5 do CPPT.), isto é, o período, atualmente, de 4 meses”.
Aplicando a jurisprudência citada aos presentes autos, julga-se que são devidos juros indemnizatórios à Requerente desde 6 de Setembro de 2021, data da formação do indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa, e até ao integral e efectivo reembolso do imposto pago em excesso, calculados à taxa legal supletiva, nos termos conjugados dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, devendo o concreto montante de juros devidos ser apurado em sede de execução do presente acórdão.
Por fim, registe-se que o direitos a juros indemnizatórios invocado pela Requerente com fundamento no artigo 43.º, n.º 2, da LGT não se poderá considerar procedente, já que esta se limitou a alegar com carácter inovatório nas respectivas alegações que o substituto tributário terá seguido nos actos de retenção na fonte que efectuou a Circular n.º 6/2015, de 17 de Junho, sem provar tal facto nem demonstrar e concretizar de que forma é que tal circular eventualmente influenciou e inquinou em erro os actos contestados.
V. DECISÃO
Nestes termos, acorda este Tribunal Arbitral em:
a) Admitir a redução do pedido arbitral;
b) Julgar procedente o pedido arbitral e anular os actos de liquidação de IRC impugnados nos presentes autos;
c) Condenar a Requerida a restituir à Requerente o montante de imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios;
d) Condenar as partes nas custas do processo arbitral na medida do respectivo decaimento.
VI. VALOR DO PROCESSO
Apesar de a Requerente ter peticionado a redução do pedido de pronúncia arbitral e apesar de tal pedido ter sido deferido por este Tribunal, a verdade é que “(…) na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a ação é proposta, exceto quando haja reconvenção ou intervenção principal”, conforme resulta do disposto no n.º 1, do artigo 299.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Por conseguinte, e de harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 764.185,39.
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e tendo em conta o valor do processo, fixa-se o montante das custas em € 11.016,00.
Quanto ao respectivo decaimento, cumpre ter em consideração que a redução do pedido arbitral produz efeitos materialmente equivalentes à desistência parcial do pedido, porquanto se verifica a “absolvição” da Requerida de parte do montante contestado e peticionado pela Requerente. A este respeito, dispõe-se no artigo 537.º, n.º 1, do CPC que “[q]uando a causa termine por desistência ou confissão, as custas são pagas pela parte que desistir ou confessar; e se a desistência ou confissão for parcial, a responsabilidade pelas custas é proporcional à parte de que se desistiu ou que se confessou”, regra esta que concretiza a norma geral de repartição de custas constante do artigo 527.º do CPC. Significa isto que a Requerente será responsável pelas custas correspondentes à parte do pedido objecto de redução.
Nestes termos, decide este Tribunal que o valor das custas deverá ser repartido por ambas as partes, fixando-se em € 9.473,76 a parte a cargo da Requerente e em € 1.542,24 a parte a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 28 de Julho de 2022.
Os Árbitros,
Carla Castelo Trindade
(relatora)
Miguel Patrício
António Pragal Colaço