Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 624/2021-T
Data da decisão: 2022-08-08  IRC  
Valor do pedido: € 13.475,00
Tema: IRC. Benefício fiscal. Fundo de investimento imobiliário não residente. Liberdade de circulação de capitais.
Versão em PDF

 

 

 

SUMÁRIO: 

 

As normas do n.º 1, parte final, e n.º 3 do artigo 22.º  do Estatuto dos Benefícios Fiscais, interpretadas conjugadamente, ao estabelecerem um tratamento fiscal mais favorável para os organismos de investimento coletivo que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa, em relação aos organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

1.          Relatório 

Em 27 de setembro de 2021, A..., na qualidade de Organismo de Investimento Coletivo (OIC), constituído de acordo com o direito alemão, com o número de identificação fiscal português ..., com sede em ..., Alemanha (adiante Requerente), à data dos factos representado por B... GMBH, na qualidade de sociedade gestora, com sede em ..., Alemanha, e atualmente representado por C... GMBH, na qualidade de sociedade gestora, com sede na mesma morada do Requerente, veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e de imediato notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitra do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

 

 

2.          Objeto do pedido

O Requerente intentou a presente ação arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade e a consequente anulação dos atos de retenção na fonte de IRC referentes ao ano de 2019, no valor global de EUR 13.475,00, por vício de violação de lei, dado que, no seu entender, as normas nacionais aplicáveis violam frontalmente o disposto no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), assim como o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, ínsito no artigo 18.º do TFUE. 

 

3.          Síntese da posição das Partes 

 

a)          Do Requerente: 

 

A fundamentar o pedido, o Requerente invoca os seguintes factos e argumentos: 

 

Os dividendos são considerados proveitos resultantes de rendimentos financeiros, nos termos da alínea c) do número 1 do artigo 20.º do Código do IRC. 

 

De acordo com os normativos nacionais, sempre que são pagos dividendos por uma entidade residente a um sujeito passivo também residente em Portugal, tais rendimentos estão sujeitos a retenção na fonte por conta do imposto devido a final a uma taxa de 25%. 

 

Contudo, no caso dos OIC constituídos de acordo com a legislação nacional, os mesmos estavam, à data dos factos tributários, isentos de IRC sobre os dividendos obtidos, nos termos do n.º 3 do artigo 22.º do EBF. 

 

A constituição de um fundo de investimento de acordo com a ordem jurídica nacional (Regime Geral dos OIC, aprovado pela Lei n.º 16/2015, alterada pelo Decreto-Lei n.º 124/2015, de 7 de julho) implica a sua residência em Portugal, estando, assim, vedada a possibilidade de um OIC residente noutro Estado-Membro da União Europeia (EU) estar constituído de acordo com a legislação nacional e beneficiar da norma de isenção prevista no artigo 22.º do EBF.

 

A constituição de um OIC em Portugal carece de autorização prévia da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), nos termos do n.º 1 do artigo 19.º do Regime Geral dos OIC, ficando aquele adstrito ao cumprimento de múltiplos requisitos, sob a supervisão da CMVM, o que não sucede no caso de um OIC constituído ao abrigo de legislação de um outro Estado-Membro da UE e aí sujeito aos poderes de supervisão da respetiva entidade reguladora. 

 

Um OIC constituído ao abrigo do Regime Geral dos OIC, aquando da distribuição de dividendos provenientes de sociedades sediadas em Portugal, estava sujeito, no ano de 2019 a um regime fiscal mais favorável do que o aplicável a um OIC constituído de acordo com a legislação de um qualquer outro Estado-Membro da UE, aquando da distribuição de dividendos de fonte portuguesa. 

 

Tal facto assume maior gravidade no caso do Requerente, que não consegue recuperar o imposto retido na fonte (Portugal) no seu estado de residência (Alemanha), em virtude do seu estatuto de entidade isenta de tributação. 

 

A distribuição de dividendos efetuada por sociedades residentes em Portugal ao Requerente é passível de ser qualificada como movimento de capitais na aceção do artigo 63.º do TFUE e da Diretiva 88/361/CEE, de 24 de junho, como se concluiu no Acórdão Verkooijen do TJUE no Processo n.º C-35/98. 

 

De acordo com a jurisprudência do TJUE, o conceito relevante de discriminação à luz do Direito da União Europeia significará que: 

 

(i)         Situações semelhantes não deverão ser tratadas de forma diferenciada a não ser nos casos em que tal tratamento diferenciado possa ser objetivamente justificado e seja proporcional ao objetivo prosseguido pela legislação nacional (Caso Ruckdeschel, Proc. n.º 16/77, ECR 1753; Caso Bachmann, Proc. N.º 204/90); 

 

(ii)       Uma aparência de discriminação na forma poderá corresponder a uma ausência de discriminação em substância (Proc. n.º 13/63, Refrigeradores Italianos, ECR 165); 

 

(iii)      A discriminação em razão da nacionalidade é proibida, pois restringe liberdades fundamentais previstas no TFUE, devendo a proibição abranger toda e qualquer forma de discriminação ou critérios de diferenciação que possam conduzir ao mesmo resultado (Acórdão Commerzbank, Proc. n.º C-330/91); 

 

(iv)      Para efeitos de determinar se uma norma interna é discriminatória, não será necessário que a mesma atinja um número relevante de nacionais de outros Estados-Membros (Caso O’Flynn, Proc. n.º C-237/94, 1996, ECR 2617). 

 

Da jurisprudência comunitária resulta que a proibição geral de discriminação, enquanto restrição injustificada à liberdade de estabelecimento prevista no artigo 63.º do TFUE abrange quer as restrições diretas, quer as restrições indiretas, incluindo as medidas administrativas e orientações administrativas em relação a qualquer tipo de investimento.

 

No caso concreto, poderíamos ser levados a sustentar que, por não ser uma entidade constituída em Portugal, o Requerente não estaria em condições semelhantes a um OIC nacional. Contudo, o que está em causa é um tratamento discriminatório na liberdade de circulação de capitais e no próprio acesso ao mercado de capitais, baseado exclusivamente no critério da nacionalidade, sendo que, para esse efeito, o Requerente e os OIC estabelecidos em Portugal estão em situações comparáveis.

 

Daqui resulta um tratamento discriminatório e uma clara restrição da liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.º do TFUE e pelo artigo 1.º da Diretiva 88/361, pois o ora Requerente está sujeito a tributação em Portugal sobre os dividendos aqui obtidos, ao passo que os OIC constituídos ao abrigo da lei portuguesa estão isentos sobre os mesmos rendimentos (cfr. a decisão do TJUE nos Processos C-338/11 a C-347/11 – Caso Santander Asset Management SGIIC, S.A. e no Processo C-480/16 – Caso Fidelity Funds). 

 

Termos em que o Requerente considera que a norma do artigo 22.º, do EBF, se mostra contrária ao Direito da União Europeia, uma vez que colide com as disposições do TFUE relativas ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como relativas à livre circulação de capitais previstas no seu artigo 63.º. 

 

b)         Da Requerida 

 

Notificada por despacho arbitral de 9 de dezembro de 2021, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou Resposta em 25 de janeiro de 2022, na qual veio defender a legalidade e a manutenção dos atos de retenção na fonte objeto do pedido de pronúncia arbitral, com os fundamentos a seguir referidos. 

 

O Requerente omite dois aspetos de grande relevância para a definição completa do quadro fiscal dos OIC: 

 

(i)         A opção legislativa de não tributar em IRC as OIC residentes, subtraindo à base tributável dos rendimentos típicos dos OIC, isto é, dos rendimentos de capitais (artigo 5.º do Código do IRS), prediais (artigo 8.º do Código do IRS) e das mais-valias (artigo 10.º do Código do IRS), conforme previsto no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, e ainda prevendo a isenção de derrama municipal e de derrama estadual, nos termos do n.º 6 do artigo 22.º do EBF, deslocando a tributação para a esfera do Imposto do Selo;

 

(ii)        A tributação autónoma, nos termos do n.º 11 do artigo 88.º, do Código do IRC e do n.º 8 do artigo 22.º, do EBF, à taxa de 23%, dos dividendos pagos a OIC com sede em Portugal, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. 

 

O artigo 63.º do TFUE, visa assegurar a liberalização da circulação de capitais dentro do mercado interno europeu e entre este e países terceiros, proibindo qualquer restrição ou discriminação resultante do tratamento fiscal diferenciado concedido pelas disposições da lei nacional a entidades de Estados-Membros ou de países terceiros, que crie condições financeiras mais desfavoráveis a estes últimos e seja suscetível de os dissuadir de investir em Portugal.

 

No caso concreto, não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente. 

 

O que existe é uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas a que não corresponde uma discriminação em substância. 

 

O regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, embora consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos, seja por tributação autónoma (IRC), seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos. Por isso, não pode afirmar-se que, em substância, as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis. 

 

4.          Estando em causa a interpretação de normas de direito da União Europeia, foi pedido pelas Partes a suspensão da instância até à decisão a proferir pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no âmbito do reenvio prejudicial suscitado no Processo n.º 93/2019-T, em que se colocam as mesmas questões que constituem objeto do litígio. 

 

O TJUE proferiu decisão (conforme Processo C-545/19, publicada em 17 de março de 2022 e disponível para consulta pública em --------------------------------------------------------------------------------------(https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=AED083FA8FA02CE95E7517CE8B347E6D?text=&docid=256021&pageIndex=0&doclang=pt&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=422856).

 

Pelo despacho arbitral de 28 de março de 2022, declarou-se cessada a suspensão da instância na presente ação arbitral e, por estar em causa matéria de direito, não haver factos controvertidos, não terem sido suscitadas exceções e não ter sido requerida a produção de prova adicional, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, podendo as Partes apresentar alegações escritas, o que veio a ocorrer em 11 de abril e em 6 de maio de 2022, respetivamente pela Requerente e pela Requerida.

 

Foram ainda as Partes notificadas de que a decisão arbitral seria proferida dentro do prazo estabelecido pelo n.º 1 do artigo 21.º, do RJAT, advertindo-se o Requerente para, até essa data, proceder ao pagamento da taxa arbitral remanescente.

 

5.      Saneamento 

 

a)          O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 7 de dezembro de 2021, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66- B/2012, de 31 de dezembro; 

 

b)         As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março;

 

c)          O processo não padece de vícios que o invalidem; 

 

d)         Não foram invocadas exceções que cumpra apreciar e decidir. 

 

6.      Fundamentação 

 

6.1       Matéria de facto

 

Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT). 

 

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e do processo administrativo (PA), fixa-se como segue: 

 

6.2    Factos provados

 

a)          O Requerente é um Organismo de Investimento Coletivo constituído sob a forma contratual, de acordo com a legislação alemã, com sede na Alemanha e gerido por uma entidade gestora de fundos de investimento, com sede na Alemanha, sendo também sujeito passivo de IRC, não residente e sem estabelecimento estável em Portugal;

 

b)          Trata-se de um fundo aberto autónomo baseado num contrato entre a entidade gestora, os investidores e o banco responsável pela guarda dos valores mobiliários, que tem exclusivamente por objeto a administração, gestão e investimento do seu património;

 

c)          Não revestindo forma societária, o Requerente não se encontra sujeito a qualquer obrigação de registo no Registo Comercial alemão, não podendo ser titular de direitos ou obrigações; 

 

d)         Ao abrigo das regras de direito alemão a que está sujeito, os ativos pertencentes ao Fundo estão num regime de compropriedade com os investidores, sendo o capital investido pela sociedade gestora, em seu próprio nome;

 

e)           As unidades de participação adquiridas pelos investidores não lhes conferem direito de voto ou de disposição dos ativos do Requerente, o que apenas compete à entidade gestora, ficando os direitos dos investidores limitados à perceção dos dividendos e ao resgate das unidades de participação, a qualquer momento;

 

f)          Tanto o Requerente como a sua entidade gestora estão sujeitos a supervisão do Bundesanstalt für Finanzdienstleistungsaufsicht (BaFin); 

 

g)         O Requerente é uma entidade fiscalmente residente na Alemanha, ali sujeito a imposto sobre as pessoas coletivas, embora dele isento, nos termos da Secção 1 parágrafo 1 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Sociedades Alemão – “German Corporate Income Tax Act” – e da secção 11 parágrafo 1,2 do Código Fiscal de Investimento Alemão – “German Investment Tax Act”), o que o impede de recuperar os impostos suportados no estrangeiro, a título de crédito por dupla tributação internacional, ou formular qualquer pedido de reembolso; 

 

h)         No ano de 2019, o Requerente era detentor de lotes de participações sociais numa sociedade residente em Portugal, sendo entidade responsável pela custódia dos títulos detidos em Portugal o D... GmbH.

 

i)           Os dividendos recebidos pelo Requerente no decorrer do ano de 2019 foram sujeitos a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25% prevista no artigo 87.º, número 4, alínea c) do Código do IRC, pelo valor total de EUR 13.475,00;

 

j)           Em 23 de fevereiro de 2021, o Requerente apresentou reclamação graciosa dos atos de retenção na fonte de IRC relativos ao ano de 2019, na qual solicitou a anulação dos mesmos por violação direta do Direito Comunitário, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal;

 

k)          A decisão de indeferimento da reclamação graciosa foi notificada ao Requerente em 28 de junho de 202; 

 

l)           O pedido de pronúncia arbitral deu entrada no CAAD em 27 de setembro de 2021;

 

m)         O Requerente pretende a anulação dos atos de retenção na fonte no montante de EUR 13.475,00.

 

6.3    Factos não provados

 

Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados. 

 

7.          Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada. 

 

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

 

Os factos dados como provados decorrem da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral e da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados, face ao princípio da livre valoração da prova (artigo 110.º, n.º 7, do Código de Procedimento e de Processo Tributário). 

 

8.          Do Direito

 

Sustenta a Requerente que o regime especial de tributação aplicável aos fundos de investimento que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, nos termos da parte final do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 22.º  do EBF, implicando a exclusão desse regime jurídico dos organismos equiparáveis que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa mas tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da UE, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE.

A AT contrapõe que o artigo 22.º do EBF, aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, estabelece uma exclusão na determinação do lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais-valias e uma isenção das derramas municipal e estadual, deslocando a tributação para a esfera do imposto do selo, além de que sujeita os OIC às taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC. 

Não podendo afirmar-se, neste condicionalismo, que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos rendimentos de capitais opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os rendimentos de capitais auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os rendimentos de capitais auferidos em Portugal pela Requerente.

 

Está, assim, em causa nos presentes autos aferir da compatibilidade entre os normativos nacionais que isentam de tributação, em sede de IRC, os dividendos pagos por entidades com sede em Portugal a OIC com sede neste país, constituídos e a operar de acordo com a legislação portuguesa, tributando por retenção na fonte a título definitivo, os dividendos distribuídos por entidades residentes a OIC com sede em outro Estado-Membro da UE, no caso, a Alemanha e, portanto, não constituídos de acordo com a legislação nacional, com as disposições do TFUE, maxime, com os seus artigos 56.º e 63.º que, respetivamente, consagram as liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais. 

 

A questão que nestes termos vem colocada foi analisada no citado acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, proferido em reenvio prejudicial no âmbito do Processo n.º C-545/19, e que determinou a suspensão da instância no presente processo arbitral, em que se extrai a seguinte conclusão:

 

-      O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

O citado artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de janeiro, na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:

 

Artigo 22.º 

Organismos de Investimento Coletivo

1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.

2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante  de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.

4 – Os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis, havendo-os, de um ou mais dos 12 períodos de tributação posteriores, aplicando -se o disposto no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC.

5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.

6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.

            (…).

 

Como resulta, em especial do disposto nos n.ºs 3 e 6, as entidades referidas no n.º 1 beneficiam de um regime consideravelmente mais favorável do que o regime geral de tributação em IRC, porquanto não são considerados, para efeitos do apuramento do lucro tributável, os rendimentos de capitais, os rendimentos prediais e as mais-valias, além de que essas entidades estão isentas de derrama municipal e de derrama estadual.  Por outro lado, nos termos do transcrito n.º 1, o benefício fiscal assim estabelecido aplica-se aos OIC que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, o que conduz a afastar, numa interpretação literal do preceito, os organismos equiparáveis que operem no território nacional segundo o direito interno, mas tenham sido constituídos segundo a legislação de um outro Estado-Membro da UE.

 

A questão carece de ser analisada, nestes termos, à luz da alegada violação do princípio da proibição da liberdade de circulação de capitais.

 

No caso, como resulta da matéria de facto tida como assente, o Requerente é um OIC constituído segundo o direito alemão.

 

Alega a Requerente, neste contexto, que a norma do artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF, se torna incompatível com o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE.

 

Conforme tem sido entendimento comum, o princípio da proibição de discriminação em razão da nacionalidade consagrado no artigo 18.º do TFUE apenas deve ser objeto de aplicação autónoma quando esse mesmo princípio se não encontre concretizado em disposições específicas do Tratado relativas às liberdades de circulação. E, nesse sentido, pode dizer-se que o princípio da não discriminação se realiza, designadamente, por via do direito à livre circulação de movimentos de capitais a que se refere o artigo 63.º do TFUE (cfr. Paula Rosado Pereira, Princípios do Direito Fiscal Internacional – Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu, Coimbra, 2011, pág. 254).

 

O artigo 63.º proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais, bem como todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. O artigo 65.º consigna, todavia, que o artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido (n.º 1), esclarecendo o n.º 3, em todo o caso, que essa possibilidade não deve constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.

 

Em relação à liberdade de circulação de capitais, o citado acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, proferido em reenvio prejudicial no âmbito do Processo n.º C-545/19, de 10 de Abril de 2014, esclarece o âmbito de aplicação desse princípio, formulando, na parte que mais interessa reter, os seguintes considerandos:

36      Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado-Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (-).

37      No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado-Membro não podem beneficiar dessa isenção.

38      Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

39      Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (-).

40      Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados-Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.

41      Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado-Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» (-).

42      O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral (-).

Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis, o TJUE concluiu que o “critério de distinção a que se refere a legislação nacional (…), que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes” (considerando 73), havendo de entender-se que, “no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis” (considerando 74). 

E não há motivo para que o tribunal arbitral, face aos elementos factuais conhecidos, deva dissentir do entendimento formulado, quanto a esta matéria, em sede de reenvio prejudicial. 

Em relação à possibilidade de uma restrição à livre circulação de capitais ser admitida por razões imperiosas de interesse geral, o TJUE declarou que, para esse efeito, “é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (considerando 78). Concluindo que, no caso, “não há uma relação direta (…) entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo” e a “necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional (…)” (considerandos 80 e 81).

Segundo o disposto no artigo 65.º, n.º 3, do TFUE, os Estados-Membros podem estabelecer distinções em matéria fiscal entre sujeitos passivos que não se encontrem em idêntica situação em função do lugar da nacionalidade ou residência desde que não implique uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.

 

Havendo de entender-se, tal como refere o acórdão do TJUE proferido no Processo n.º C-545/19, que a diferença de tratamento na legislação fiscal nacional, em relação à livre circulação de capitais, apenas é compatível com as disposições do Tratado se respeitarem a situações objetivamente não comparáveis ou se se justificar por razões imperiosas de interesse geral (cfr. ainda considerando 58 do acórdão de 10 de fevereiro de 2011, nos Processos C-436/08 e C-437/08).

 

De acordo com o disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições são aplicáveis na ordem interna, e nesse sentido prevalecem sobre as normas do direito nacional, motivo pelo qual os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu (cfr., entre outros, o acórdão do STA de 1 de julho de 2015, Processo n.º 0188/15).

 

Os atos de liquidação em IRC impugnados e a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa contra eles apresentada são assim ilegais por assentarem em disposição legal que viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE.

 

9.          Dos pedidos de restituição do indevido e juros indemnizatórios

 

Dispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, que a AT fica vinculada a, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”

 

De igual modo, o n.º 1 do artigo 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, estabelece que “1 - A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”

 

Assim, tendo o processo arbitral tributário sido concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 (primeira parte), da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), deverão entender-se incluídos na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD os poderes que, na impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, designadamente a competência para apreciar o direito a juros indemnizatórios. 

O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º da LGT, que fixa o momento a partir do qual os mesmos são devidos, por erro imputável aos serviços (n.ºs 1 e 2) ou por “outras circunstâncias” (n.º 3), bem como a respetiva taxa (n.º 4) e a consequência do atraso na execução da sentença transitada em julgado (n.º 5). 

 

Nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º, da LGT, aditada pela Lei n.º 9/2019, de 1 de fevereiro, com entrada em vigor no dia imediato ao da sua publicação e com efeitos retroativos a 1 de janeiro de 2011, “São também devidos juros indemnizatórios (…) d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”. 

 

No caso dos autos, estando em causa a declaração de ilegalidade da legislação nacional, maxime, do n.º 1 do artigo 22.º, do EBF, por violação do disposto no artigo 63.º, do TFUE e, reflexamente, do n.º 4 do artigo 8.º, da CRP, há que reconhecer o direito do Requerente a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea d), da LGT.

 

10.    Decisão

 

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se: 

 

a)          Julgar procedente o pedido arbitral e anular os atos de liquidação de IRC impugnados, referentes ao ano de 2019, nomontante global de EUR 13.475,00, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida;

 

b)      Condenar a Administração Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito. 

 

11.       Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de EUR 13.475,00, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

12.       Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em EUR 918,00, que fica a cargo da Requerida.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 8 de agosto de 2022

 

 

 

A árbitra singular

 

Adelaide Moura