Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 152/2022-T
Data da decisão: 2022-07-14  IRC  
Valor do pedido: € 1.655,00
Tema: IRC - declaração de rendimentos intempestiva; liquidação oficiosa; ónus da prova; presunção de verdade das declarações dos contribuinte.
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SUMÁRIO: 

I – Nos termos do artigo 75.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da LGT, compete ao contribuinte cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, fornecendo à AT os elementos solicitados, sob pena de a presunção de verdade e boa fé das suas declarações deixar de se verificar

II – Decorre do princípio constitucional da tributação das empresas sobre o rendimento real, do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, não apenas que a AT tenha acesso à contabilidade do sujeito passivo como também que lhe seja facultada, quando solicitada, a informação que lhe permita confirmar que os gastos suportados pelo sujeito passivo estão comprovados documentalmente. 

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Jónatas Eduardo Mendes Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão: 

 

1    RELATÓRIO

1. A... LDA (“Requerente”), titular do NIPC..., com sede social sita na..., Rua..., ...-... ..., abrangida no âmbito territorial do Serviço de Finanças de ...(C.R. ...), tendo sido notificada pela Direção de Finanças do Porto - Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), através do ofício n.º 2021..., de 30 de novembro de 2021, da decisão de indeferimento do procedimento tributário de recurso hierárquico identificado sob o n.º ...2021..., e que adveio do prévio indeferimento expresso do procedimento tributário de reclamação graciosa que correu termos junto do Serviço de Finanças de ... com o n.º ...2020..., e que aquele teve como objeto imediato a liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), exercício fiscal de 2018, identificada sob o n.º 2019 ..., de 20 de dezembro de 2019, no valor total a pagar de € 1.655,00 (mil seiscentos e cinquenta e cinco euros), incluindo aqui os juros compensatórios liquidados sob o n.º 2019..., vem, nos termos do disposto na alínea a) do n.1 do artigo 2.º, na alínea a) do n.2 do artigo 5.º, no n.1 do artigo 6.º, e nos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na sua redação legal atual, diploma este que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com o artigo 95.º da Lei Geral Tributária (LGT) e com o artigo 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), e com base nos fundamentos de facto e de direito que infra se desenvolvem, apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular com vista à obtenção da declaração de ilegalidade do ato de liquidação oficiosa de IRC/2018, melhor identificado supra, com a consequente anulação total e respetiva restituição do montante em causa, porquanto indevidamente pago pela Requerente, acrescidos dos exigíveis juros indemnizatórios à taxa legal aplicável. 

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 09.03.2022. 

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) nomeou como árbitro singular o Professor Doutor Jónatas Machado, em 03.05.2022. 

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 23.05.2022. 

 

6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta por impugnação em 27.06.2022. 

 

7. Por não ter sido requerida pelas partes e ser considerada desnecessária, o Tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e determinou o prosseguimento do processo com alegações escritas facultativas, a apresentar pelas partes no prazo simultâneo de 20 dias, conforme previsto no artigo 120.º, n.º 1, do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT. 

 

8. A Requerente apresentou as suas alegações finais em 11.07.2022, reiterando o essencial da sua argumentação na petição inicial, tendo a Requerida, em 13.07.2022, remetido para a posição inicialmente expressa na resposta. 

            

1.1.Apresentação dos factos

 

9. Tendo a AT verificado que a Requerente não havia procedido à entrega da IES e da DR MOD 22, respeitantes ao PT de 2018 e, consequentemente, não tinha efetuado a autoliquidação legalmente devida, a mesma notificou a Requerente sobre as obrigações em falta, bem como da possibilidade e prazos para a sua regularização, notificando-a no dia 24.10.2019, por entrega de um ofício na caixa postal eletrónica do ViaCTT, para vir suprir a falta e concedendo-lhe o prazo administrativo de 15 dias para o efeito. 

 

10. A AT notificou ainda a Requerente de que, não dando cumprimento ao dever de autoliquidação, a liquidação seria efetuada nos termos previstos pela al. b) do n.º 1 do art.º 90.º, vindo a Matéria Coletável a ser fixada pelo maior dos três valores previstos no referido normativo.

 

11. No dia 08.01.2020 a Requerente apresentou a sua declaração de rendimentos (Modelo 22 de IRC), referente ao exercício fiscal de 2018, quando o respetivo prazo era até 30.06.2019, que não avançou para a fase da liquidação, porquanto a AT tinha, a 20.12.2019, promovido a emissão da liquidação oficiosa em causa, com um valor total a pagar, incluindo juros compensatórios, de € 1.655,00, tendo sido fixada, como data-limite para esse pagamento, o dia 13.02.2020. 

 

12. Por não concordar com esta liquidação oficiosa de IRC/2018 e respetivos juros compensatórios, a Requerente decidiu apresentar reclamação graciosa no dia  07.02.2020, com vista a obter a anulação total da liquidação em causa e respetivos juros compensatórios, tendo em 08.10.2020, sido proferido pela AT um projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que viria a ser confirmado, a 30.11.200,  em sede de indeferimento de recurso hierárquico, com entendimento de que não é de anular a liquidação oficiosa de IRC/2018 pela simples entrega da declaração Modelo 22 de IRC em falta, carecendo esta de força probatória. 

 

1.2.Argumentos das partes  

13. Na petição inicial e nas alegações finais a Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido com base nos argumentos que aqui se sintetizam:

a)     Nos termos do artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real, prevendo o artigo 17.º, n.º 1, do CIRC, que o lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código; 

b)    Uma liquidação oficiosa decorrente da falta de entrega da declaração de rendimentos assenta, por definição, num rendimento presumido, sendo certo, contudo, que a tributação deve nortear-se, em regra, pelo princípio do rendimento real; 

c)     A Requerente apresentou os diversos elementos contabilísticos que foram solicitados pela AT e que depois foram totalmente desconsiderados com base em alusões avulsas e suspeições destituídas de sentido; 

d)    A AT reconheceu que, tendo sido analisado o balancete analítico do exercício de 2018, não foram detetadas divergências entre os valores contabilizados e os declarados, quer em sede de declaração Modelo 22 de IRC, quer em sede de IES/Declaração Anual; 

e)     A análise, pela AT, da estrutura de gastos da Requerente, considerando a sua evolução por comparação aos rendimentos e questionado a sua necessidade dos gastos para a obtenção dos rendimentos, baseia-se na quantidade de movimentos bancários existentes ou nas relações existente; 

f)     A AT violou o princípio constitucional de liberdade de gestão das empresas e não observou o seu ónus probatório, limitando-se a lançar um manto de suspeição sem qualquer base para tal e olvidando que a Requerente manifestou, no seu exercício do direito de audição, total disponibilidade para esclarecimento de eventuais dúvidas, incorrendo também na violação do princípio da tributação pelo lucro real, privilegiando a tributação por estimativas, quando diversos e extensos elementos contabilísticos foram disponibilizados pela Recorrente;

g)    A AT revela total desconhecimento do ciclo económico de uma pequena empresa familiar dedicada ao imobiliário, na qual o ciclo assenta, em regra, na compra de um bem imóvel num determinado ano, seguido de obras nesse e no ano seguinte, e colocação no mercado, terminadas as mesmas, pelo que o ano de 2018 foi um ano sem vendas realizadas, mas apenas de investimento para a venda ocorrida em 2019, com o respetivo lucro emergente; 

h)    Tendo sido apresentada declaração de rendimentos após a emissão de liquidação oficiosa, mas dentro do prazo de caducidade e mediante a faculdade consignada no artigo 76.º, n.º4, do CIRS, o princípio da tributação pelo rendimento real impõe diligências por parte da AT, designadamente, a realização de ação inspetiva para aferição dos valores declarados, sendo que uma das componentes para o cálculo do rendimento real é precisamente a consideração dos gastos incorridos; 

i)      A AT não goza de poder discricionário sobre quais as despesas passíveis, ou não, de serem consideradas fiscalmente dedutíveis em IRC, apenas se admitindo o afastamento da veracidade das declarações apresentadas quando a AT demonstre inequivocamente a existência de um facto tributário não refletido nessas declarações ou divergente do declarado, através de elementos carreados para o procedimento, tendo em vista ilidir a presunção da veracidade das mesmas; 

j)      A AT recusando, com uma argumentação ligeira, a realidade contabilística da Requerente, ultrapassa ostensivamente o quadro legal aplicável, porquanto, qual reminiscência do passado, assenta numa discricionariedade total e absoluta de quais os gastos fiscalmente aceites ou não; 

k)    Competindo à AT a prova dos factos constitutivos do direito de tributar, nos termos do artigo 74º, nº 1, da LGT, e não tendo a mesma recolhido prova suficiente da existência de que a dimensão do facto tributário é diferente da declarada, não poderia a mesma proceder à correção da matéria tributável cuja declaração respeita os termos legais nem à consequente liquidação adicional, pelo que a mesma é ilegal; 

l)      É incontestável ser esta liquidação oficiosa ilegal, pelo que deve ser totalmente anulada, tal como se aduz do artigo 100.º, n.º1, do CPPT, quando preceitua: “Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado”; 

m)   A manutenção da vigência da liquidação oficiosa sem quaisquer fundamentos para isso assume foros de punição que atentam com o facto de a Requerente já ter sido visada com a instauração de um procedimento contraordenacional, e respetiva aplicação de uma coima, por falta de apresentação atempada da declaração de rendimentos aqui em causa. 

13.1. Com base nestes argumentos, a Requerente pede, a título imediato, a obtenção da declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento expresso do procedimento tributário de recurso hierárquico que correu termos junto da AT sob o n.º ...2021... e, a título mediato, enquanto objeto daquele recurso hierárquico, a obtenção da declaração de ilegalidade da liquidação oficiosa de IRC, ano de 2018, identificada sob o n.º 2019..., efetuada pela AT a 20 de dezembro de 2019, com o valor total a pagar de imposto, incluindo juros compensatórios, fixado em € 1.655,00, com a consequente anulação total e respetiva restituição do montante em causa, porquanto indevidamente pago, acrescidos dos exigíveis juros indemnizatórios à taxa legal aplicável

 

14.A Requerida respondeu sustentando a sua posição, por impugnação, com os argumentos que em seguida se sintetizam: 

 

a)    A Requerente é um sujeito passivo de IRC, incidindo o imposto sobre o seu lucro, face ao disposto pela al. a) do n.º 1 do art.º 3.º do CIRC, encontrando-se enquadrada no regime geral de determinação do lucro tributável, pelo que este é determinado nos termos do art.º 17.º do CIRC;  

b)    No que concerne aos atos de liquidações oficiosa, na alínea b), do n.º 1, do art.º 90.º do CIRC, o legislador dispõe taxativamente que a quantificação da matéria coletável terá «por base o maior dos seguintes montantes»: 1) a matéria coletável determinada, com base nos elementos de que a administração tributária e aduaneira disponha, de acordo com as regras do regime simplificado, com aplicação do coeficiente de 0,75; 2) a totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada; 3) O valor anual da retribuição mínima mensal; 

c)    A Requerente foi avisada de que, mantendo-se o incumprimento, por falta de entrega da DR MOD 22 e da consequente falta de autoliquidação, a matéria coletável seria determinada de harmonia com as referidas regras; 

d)    Sendo conhecido que o valor anual da retribuição mínima mensal vigente no ano de 2018 ascendia a EUR 8.120,00, correspondente ao produto de 14 vezes o valor mensal de EUR 580,00, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 156/2017 de 28 de dezembro, em obediência a tais regras, a AT fixou a matéria coletável em € 38.689,14, que corresponde à matéria coletável de 2017, por ser esse o mais próximo, tendo aquela sido quantificada pela própria Requerente e, ainda, por ser esse o maior dos três valores previstos na alínea b), do n.º 1, do art.º 90.º do CIRC; 

e)    Todos os erros e eventuais vícios apontados à atuação da AT se subsumem, não ao ato de liquidação oficiosa em concreto, mas, outrossim, ao procedimento de autoliquidação por si concretizado com a apresentação intempestiva da DR MOD 22 e, as consequências decorrentes desse ato intempestivo; 

f)     Da intempestividade da entrega da DR MOD 22 decorre que a mesma deixa de beneficiar da presunção de veracidade prevista pelo n.º 1 do art.º 75.º da LGT, na medida em que o legislador refere expressamente que, para poderem beneficiar de tal presunção, as declarações dos contribuintes terão de ser apresentadas nos termos previsto na lei, o que implica que a sua apresentação seja concretizada dentro dos prazos legalmente fixados para o efeito; 

g)    Passou a impender sobre a Requerente, nos termos do art.º 74.º da LGT o ónus da prova dos factos que permitam à AT dar cumprimento ao dever que lhe é exigido de proceder à análise, verificação e controlo dos valores declarados, como se encontra expresso no n.º 1 do art.º 16.º em conjugação com o art.º 123.º, ambos do CIRC; 

h)    Os elementos contabilísticos disponibilizados não foram acompanhados nem dos recibos nem das faturas que sustentam os rendimentos obtidos ou os gastos suportados, ónus que à Requerente cabia, na medida em que estão em causa factos que respeitam à causa de pedir – a existência dos rendimentos obtidos e validade dos gastos suportados – os elementos que constituem as parcelas positiva e negativa do lucro tributável, base de determinação da matéria coletável. 

 

14.1. Com base nos argumentos expostos entende a Requerida dever o pedido ser julgado improcedente, com as devidas consequências legais. 

1.3. Saneamento   

 

15. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

16. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra.  

 

17. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão da causa. 

 

2    FUNDAMENTAÇÃO

2.1       Factos dados como provados

18. Com base nos documentos 1 a 16 trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

a)     A Requerente não procedeu à entrega da IES e da DR MOD 22, respeitantes ao PT de 2018 não tendo efetuado a autoliquidação legalmente devida; 

b)    A AT notificou a Requerente sobre as obrigações em falta no dia 24.10.2019, por entrega de um ofício na caixa postal eletrónica do ViaCTT; 

c)     A AT notificou a Requerente de que, não dando cumprimento ao dever de autoliquidação, a liquidação seria efetuada nos termos previstos pela al. b) do n.º 1 do art.º 90.º e a matéria coletável fixada pelo maior dos três valores previstos; 

d)    A 20.12.2019 a AT emitiu liquidação oficiosa em causa com um valor total a pagar, incluindo juros compensatórios, de € 1.655,00, tendo sido estabelecida, como data-limite para esse pagamento, o dia 13.02.2020; (cf. documentos 3 e 4) 

e)     A 08.01.2020 a Requerente entregou a sua declaração de rendimentos (Modelo 22 de IRC), referente ao exercício fiscal de 2018; (documento 5) 

f)     A Requerente apresentou os elementos contabilísticos constantes do Balancete analítico antes de resultados, do Balancete analítico após resultados, do Balancete geral, dos Extratos de conta de conferência, do Balanço - FY 2019/2018, do DR - FY 2019/2018 e da Ata de aprovação de contas, juntamente com declaração assinada, e com vinheta profissional aposta, atestando que os documentos apresentados fazem parte integrante da contabilidade da Requerente, e estão conformes às normas contabilísticas aplicáveis; (docs. 9 a 16)

g)    À Requerente foi instaurado um procedimento contraordenacional, e respetiva aplicação de coima, por falta de apresentação atempada da declaração de rendimentos; (cf. documento n.º 17).

h)    A Requerente apresentou reclamação graciosa (v.g. Documento 6); 

i)      Em 08.10.2020 foi proferido pela AT um projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa (cf. documento n.º 7).

j)      Não tendo sido exercido o direito de audição por parte da Requerente, em 30.11.2020 foi proferida decisão definitiva de indeferimento de recuso hierárquico comunicada à Requerente, mediante o ofício n.º 2021S... . (cf. documentos n.º 1 e 2 ).

 

 

2.2          Factos não provados

 

19. Com relevo para a decisão sobre o mérito não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.

 

2.3          Motivação

20. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

21. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

22. Assim, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

2.4              Questão decidenda

 

23. No caso em apreço trata-se de sujeito passivo de IRC, incidindo o imposto sobre o seu lucro, face ao disposto pela al. a) do n.º 1 do art.º 3.º do CIRC, encontrando-se enquadrado no regime geral de determinação do lucro tributável, pelo que este é determinado nos termos do art.º 17.º do CIRC.   Na alínea b), do n.º 1, do art.º 90.º do CIRC dispõe-se taxativamente, no que concerne aos atos de liquidações oficiosa, que a quantificação da matéria coletável terá «por base o maior dos seguintes montantes»: 1) a matéria coletável determinada, com base nos elementos de que a administração tributária e aduaneira disponha, de acordo com as regras do regime simplificado, com aplicação do coeficiente de 0,75; 2) a totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada; 3) O valor anual da retribuição mínima mensal. Não tendo a Requerente entregue dentro do prazo a Declaração de Rendimentos Modelo 22, e mantendo-se o incumprimento, a matéria coletável foi determinada de harmonia com as referidas regras. 

 

24. Sendo conhecido que o valor anual da retribuição mínima mensal vigente no ano de 2018 ascendia a EUR 8.120,00, correspondente ao produto de 14 vezes o valor mensal de EUR 580,00, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 156/2017 de 28 de dezembro, em obediência a tais regras, a AT fixou a matéria coletável em € 38.689,14, que corresponde à matéria coletável de 2017, por ser esse o mais próximo, tendo aquela sido quantificada pela própria Requerente e, ainda, por ser esse o maior dos três valores previstos na alínea b), do n.º 1, do art.º 90.º do CIRC.

 

25. Da intempestividade da entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC decorre que a mesma deixa de beneficiar da presunção de veracidade prevista pelo n.º 1 do art.º 75.º da LGT, na medida em que o legislador refere expressamente que, para poderem beneficiar de tal presunção, as declarações dos contribuintes terão de ser apresentadas nos termos previsto na lei, o que implica que a sua apresentação seja concretizada dentro dos prazos legalmente fixados para o efeito. 

 

26. A apresentação de declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC fora do prazo legal, mas dentro do prazo de caducidade, não implica, por si só, a anulação da liquidação oficiosa, desde logo, porque a aludida declaração não goza da presunção de verdade declarativa, sem prejuízo de essa falta de presunção de verdade declarativa não se estender à contabilidade, desde que devidamente organizada[1]. Isto, sem prejuízo de, nos termos do artigo 75.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da LGT, compete ao contribuinte cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, fornecendo à AT os elementos solicitados, sob pena de a presunção de verdade e boa fé das suas declarações deixar de se verificar. 

 

27. Quando, por incumprimento do dever de apresentação da declaração de rendimentos por parte do sujeito passivo, a AT lança mão do mecanismo da alínea b), do n.º 1, do art.º 90.º do CIRC, para efeitos de emissão de liquidação oficiosa, a mesma está, na realidade, a recorrer a uma matéria tributável ficcionada – matéria coletável do exercício mais próximo – o que se traduz numa avaliação indireta da matéria tributável, procedimento que, no caso, se encontra suficientemente fundamentado nos termos legais e cujos pressupostos não foram postos em causa pela Requerente[2].

 

28. Tendo sido utilizados métodos indiretos de determinação da matéria coletável, passou a impender sobre a Requerente, nos termos do art.º 74.º, n.º3, da LGT, o ónus da prova da existência de excesso na  respetiva quantificação, ónus esse que deve ser satisfeito em termos que permitam à AT dar cumprimento ao dever que sobre ela impende de proceder à análise, verificação e controlo dos valores declarados, como se encontra expresso no n.º 1, do art.º 16.º, em conjugação com o art.º 123.º, ambos do CIRC.

 

29. A liquidação oficiosa impugnada reveste uma natureza provisória, tendo por base um rendimento presumido por inexistirem, no prazo legal, elementos declarados pelo sujeito passivo, constituindo uma compressão ao princípio da tributação de acordo com o rendimento real, a qual deve ser adequada, necessária e proporcional em sentido estrito para salvaguardar o interesse público, constitucional e legalmente protegido, de arrecadação da receita fiscal e prevenção da erosão da base tributária. 

 

30. Após a apresentação da declaração de rendimentos após a emissão de liquidação oficiosa, mas dentro do prazo de caducidade, o princípio da tributação de acordo com o rendimento real impõe à AT outras diligências que lhe permitam a aferição de todos os elementos ulteriormente apresentados pelo contribuinte na sequência de respetiva pronúncia, sob pena de ocorrência de excesso de quantificação de rendimentos[3].

 

31. No caso em apreço, a Requerente apresentou os elementos contabilísticos constantes do Balancete analítico antes de resultados, do Balancete analítico após resultados, do Balancete geral, dos Extratos de conta de conferência, do Balanço - FY 2019/2018, do DR - FY 2019/2018 e da Ata de aprovação de contas, juntamente com declaração assinada, e com vinheta profissional aposta, atestando que os documentos apresentados fazem parte integrante da contabilidade da Requerente, e estão conformes às normas contabilísticas aplicáveis. 

 

32. Todos os elementos que a Requerente trouxe ao conhecimento da AT foram devidamente analisados por forma a observar a sua situação tributária declarada, poderemos concluir que, materialmente, já foram realizados atos inspetivos, embora interno. No entanto, os elementos contabilísticos disponibilizados não foram acompanhados nem dos recibos nem das faturas que sustentam os rendimentos obtidos ou os gastos suportados, em tempo solicitados pela AT,  ónus que à Requerente cabia, na medida em que estão em causa factos que respeitam à causa de pedir – a existência dos rendimentos obtidos e validade dos gastos suportados – os elementos que constituem as parcelas positiva e negativa do lucro tributável, base de determinação da matéria coletável, essenciais à determinação do rendimento real. 

 

33. Quer dizer, não foi realizada a cabal demonstração e certificação do lucro tributável declarado, com os respetivos e suportes contabilísticos e documentais necessários à inspeção e aferição, por parte da AT, da realidade dos rendimentos declarados. Ora, como decorre do já citado artigo 75.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da LGT, se o contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, fornecendo à AT os elementos solicitados, a presunção de verdade e boa fé das suas declarações deixa de se verificar.

 

34. Nos termos do artigo 31.º, n.º 2, da LGT, “[s]ão obrigações acessórias do sujeito passivo, designadamente, as que visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações.” Essas obrigações assessórias devem ser cumpridas no quadro de um dever geral de boa prática tributária, revelando-se a apresentação, atempada e rigorosa, da contabilidade financeira, nos termos dos artigos 120.º, 121.º e 123.º, nº2, alínea a), do CIRC, necessária à publicidade e disponibilidade de toda a informação financeira relevante, devendo todos os lançamentos estar apoiados em documentação financeira justificativa sobre o histórico das operações da empresa, devidamente identificadas, reconhecidas e mensuradas, suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário. 

35. Do ponto de vista do princípio constitucional da tributação das empresas sobre o rendimento real, do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, importa não apenas que a AT tenha acesso à contabilidade do sujeito passivo como também que lhe seja facultado o acesso, quando solicitado, à informação que lhe permita confirmar que os gastos suportados pelo sujeito passivo estão comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito, nos termos do artigo 23.º do CIRC, sendo que, se tal não ocorrer, o resultado fiscal negativo que consta da declaração de rendimentos apresentada não poderá ser validado, o que significa, no caso em apreço, a manutenção da matéria coletável de € 38.689,14 que consta da liquidação oficiosa impugnada e o imposto correspondente, no montante de € 1.655,00.

 

36. Segundo o disposto no artigo 123.º, n.º 2 e 3, do CIRC, todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário, devendo as operações devem ser registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras, devendo quaisquer erros ser objeto de regularização contabilística logo que descobertos. Aí se dispõe, igualmente, que não são permitidos atrasos na execução da contabilidade superiores a 90 dias, contados do último dia do mês a que as operações respeitam. 

 

37. Sendo esta informação contabilística indispensável para a tomada de decisões esclarecidas e racionais de investidores, financiadores, trabalhadores, fornecedores ou clientes, é também com base nela que as entidades públicas em geral levam a cabo as suas funções de regulação e controlo da atividade económica e que a AT, em especial, realiza a sua indeclinável missão de verificação da ocorrência de factos tributários e liquidação e cobrança dos impostos legalmente correspondentes. 

 

38. As demonstrações financeiras e a correspondente documentação (i.e. recibos e faturas) da Requerente assumem, para a AT, uma relevância primordial, não tendo a Requerente fornecido o necessário suporte documental para, nos termos dos arts.º 74.º e 75.º, n.º2, alínea a), da LGT, satisfazer o ónus da prova dos factos em termos que permitam à AT dar cumprimento ao dever que lhe é exigido de proceder à análise, verificação e controlo dos valores declarados, como se encontra expresso no n.º 1 do art.º 16.º em conjugação com o art.º 123.º, ambos do CIRC. 

 

39. Cabe à Requerente o dever de comprovar que os resultados fiscais intempestivamente declarados correspondem efetivamente aos obtidos, devendo as operações relevadas contabilisticamente estar suportadas por documentos que permitam conhecer a sua natureza, os intervenientes e se foram ou não realizadas na prossecução do seu objeto social e para a obtenção dos rendimentos sujeitos a tributação, os quais devem ser facultados à AT quando esta os solicitar, no âmbito do dever de colaboração (art. 59.º, n.º4 e 75.º, n.º 2, alínea a), da LGT), para que a AT tenha possibilidade de verificar se o lucro declarado corresponde ao lucro real.

 

40. O acolhimento da posição da Requerente constituiria um indesejável incentivo a uma prática contabilística pouco exigente, incompatível com as funções da AT de garantia da legalidade, igualdade e justiça tributária e com o princípio, subjacente ao artigo 74.º da LGT, de que não basta afirmar contabilisticamente, há que estar preparado para provar documentalmente. É necessário que, quando solicitado, a Requerente comprove o que alega, cabendo-lhe que cabe justificar documentalmente os seus registos contabilísticos, sem que a esta exigência probatória possa ser adscrita qualquer intenção sancionatória. Não o tendo feito, em sede audição, deve o pedido ser julgado improcedente, com as devidas consequências legais, ficando prejudicados os demais pedidos.  

 

3. DECISÃO 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar improcedente o pedido mantendo-se na ordem jurídica o ato impugnado e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.

4    VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 1.655,00, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT. 

 

5           CUSTAS 

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 306.00, a cargo da Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

Notifique-se.

Lisboa, 14 de julho 2022

O Árbitro

 

 

Jónatas E. M. Machado

 

 

 

 



[1] Cfr., neste sentido, TCAS, Processo n.º 2072/07.8BELSB, 04.06.2020. 

[2] Cfr., neste sentido, Acórdão do STA, Proc.º n.º 0416/09.7BECBR, 03.02.2021. 

[3] Cfr., neste sentido, TCAS, Processo n.º 2072/07.8BELSB, 04.06.2020.