Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 134/2022-T
Data da decisão: 2022-07-15  IMI  
Valor do pedido: € 1.962,73
Tema: IMI -Impossibilidade da Lide – Juros Indemnizatórios
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Sumário:

 

I - Tendo a Autoridade Tributária anulado administrativamente os atos de liquidação impugnados ainda antes da constituição do tribunal arbitral, verifica-se a inutilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC;

II – Havendo lugar à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, não pode o processo prosseguir para a apreciação do pedido de pagamento de juros indemnizatórios por pagamento indevido da prestação tributária, que, constituindo uma pretensão acessória e consequencial relativamente ao pedido principal, só poderia ser conhecida se o Tribunal tivesse apreciado o mérito da causa e declarado ilegal a liquidação impugnada.

 

DECISÃO ARBITRAL

I. RELATÓRIO 

 

  1. Em 04 de março de 2022 a contribuinte A..., S.A., NIF..., com sede na ..., n.º ..., ... Andar, ...‐... Lisboa, requereu, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral Singular com designação dos árbitros pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do referido diploma.
  2. No pedido de pronúncia arbitral pretendia a Requerente que o Tribunal Arbitral declarasse a ilegalidade e consequente anulação parcial dos atos tributários de liquidação de Imposto Municipal sobre os Imóveis (“IMI”) n.os 2020 ..., 2020 ... e 2020 ..., referentes ao ano de 2020 e efetuado o respetivo reembolso dos montantes de imposto liquidado e pago em excesso de € 1.962,73, acrescido de juros indemnizatórios.

3.     O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 15 de março de 2022.

4.     A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea a) e b) e artigo 6.º, n.º 1 do RJAT, o signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.

5.     Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 17.05.2022.

6.     Após o despacho de 17 de maio de 2022, a Requerida apresentou a sua resposta em 20 de junho de 2022.

7.     Na sua resposta a Requerida veio invocar a inutilidade superveniente da lide em virtude da anulação administrativa do ato impugnado. 

8.     A Requerente foi convidada para se pronunciar através de despacho proferido em 20.06.2022 e nada veio aduzir aos autos. 

 

II – SANEAMENTO

 

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias.

As partes são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. 

O processo é o próprio.

Não sendo requerida a produção de prova testemunhal não se vê utilidade na realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT. Assim, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º2, do RJAT) dispensa-se a realização da reunião prevista no artigo 18.º e a produção de alegações.

Suscitando-se a questão-prévia da inutilidade da lide, será esta apreciada prioritariamente.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

III.1. Factos provados 

 

Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

1.     A contribuinte foi notificada das liquidações de IMI n.º 2020 ... (datada de 07/04/2021), 2020... (datada de 03/07/2021) e 2020 ... (datada de 05/08/2021), referentes ao ano de 2020.

2.     A Requerente procedeu ao pagamento das liquidações impugnadas.

3.     A Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral em 04.03.2022.

4.     A Requerida foi notificada da apresentação do pedido de pronúncia arbitral em 15.03.2022.

5.     Os atos impugnados foram anulados por despacho de 27.04.2022, da Subdiretora-geral para os Impostos sobre o Património.

6.     No dia 28.04.2018 a requerida comunicou ao Presidente do CAAD a anulação dos autos impugnados.

7.     No mesmo dia a Requerente foi notificada da comunicação da Requerida.

8.     No dia 16.05.2022 a Requerente informou que mantinha o interesse no prosseguimento do procedimento em curso.

9.     O Tribunal Arbitral foi constituído em 17.05.2022.

10.  A Requerida apresentou a sua resposta 06.04.2022.

 

Os factos que constam dos números 1 a 10 são dados como assentes pela análise do procedimento arbitral, pela análise dos documentos juntos pela Requerente (docs. 1 a 5 do pedido de constituição do Tribunal), pela Requerida (Doc. 1 da resposta) e pela posição assumida pelas partes em relação à matéria de facto.

 

III.2. Factos não provados

 

Não existem factos essenciais não provados, uma vez que todos os factos alegados relevantes para a apreciação da competência material do Tribunal e do mérito da causa foram considerados provados. 

 

IV. DIREITO 

IV.1.Inutilidade da lide

 

Os atos tributários sindicados, que constituem o objeto do pedido de pronúncia arbitral no presente processo, foram anulados por despacho de 27.04.2022, da Subdiretora-geral para os Impostos sobre o Património.

O artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, dispõe o seguinte: “A instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.

A impossibilidade da lide ocorre em caso de morte ou extinção de uma das partes, por desaparecimento ou perecimento do objeto do processo ou por extinção de um dos interesses em conflito. 

A inutilidade superveniente da lide tem lugar quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não tem qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o fim visado com a ação foi atingido por outro meio.

À data da constituição do tribunal arbitral (17.05.2022) a lide já era inútil porque os atos tributários já haviam sido anulados previamente (27.04.2022). Pelo que, na verdade não estamos perante uma inutilidade superveniente da lide, mas sim de uma inutilidade originária.

Em qualquer dos casos, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide traduz-se, assim, numa impossibilidade ou inutilidade jurídica, cuja determinação tem por referência o estatuído na lei.

Segundo José Lebre de Freitas, Rui Pinto e João Redinha[1]“a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio”.

Volvendo ao caso concreto, temos que a AT satisfez por inteiro e de modo voluntário as pretensões que a Requerente formulou nestes autos.

Nessa medida, os resultados que a Requerente visava com o presente processo arbitral foram já integralmente atingidos, pelo que a decisão arbitral que, normalmente, seria proferida, conhecendo do mérito das pretensões deduzidas, se afigura destituída de qualquer efeito útil, pelo que não se justifica a sua prolação.

No caso em apreço, a legalidade da liquidação não pode ser apreciada porque o ato tributário foi anulado antes da constituição do tribunal arbitrário. Destarte, verifica-se uma impossibilidade da lide.   

            Sem necessidade de maiores considerações, julga-se, pois, verificada a impossibilidade da lide que determina a extinção da instância arbitral (art. 277º, al. e) do CPC).

 

IV.2. Juros Indemnizatórios

 

A requerente, não obstante ter sido notificada da anulação dos atos impugnados, persiste no prosseguimento do procedimento, sendo assim necessário analisar o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

No que diz respeito à possibilidade de apreciar este pedido acessório, aderimos à fundamentação exarada na decisão arbitral proferida em 16.11.2018, no processo n.º215/2018-T, que passamos a reproduzir:  

 

“Importa ter presente a este propósito que a anulação administrativa é de iniciativa oficiosa da Administração e, constituindo um acto unilateral, os seus efeitos não dependem da manifestação de vontade do interessado particular. Por outro lado, o pedido arbitral referente aos juros indemnizatórios apenas pode ser entendido com uma pretensão condenatória de natureza acessória ou consequencial relativamente ao pedido principal, implicando que o processo devesse prosseguir para a apreciação incidental da legalidade do acto impugnado apenas para o efeito de saber se há lugar ao pretendido ressarcimento a título de juros indemnizatórios.

O certo é que a anulação administrativa determina a destruição dos efeitos do acto administrativo anulado (artigo 165.º, n.º 2, do CPA), com a sua consequente eliminação da ordem jurídica, pelo que se verifica uma situação de impossibilidade superveniente da lide por falta de objecto processual.

Acresce que o artigo 172.º do CPA, sob a epígrafe “Consequências da anulação administrativa”, reproduz o disposto no artigo 173.º do CPTA, aplicável à execução de sentenças de anulação de actos administrativos, estipulando um conjunto de deveres de executar relativamente ao acto anulado administrativamente que correspondem aos que igualmente se impõem à Administração se houver lugar a anulação contenciosa no âmbito de um processo impugnatório. O que faz supor que as consequências resultantes da anulação de um acto administrativo são fundamentalmente idênticas, independentemente da anulação resultar de um acto da própria Administração ou de decisão jurisdicional proferida em processo impugnatório (nestes precisos termos, CARLOS FERNANDES CADILHA, “Implicações do Novo Regime do Código de Procedimento Administrativo no Direito Processual Administrativo”, in Julgar n.º 26, maio-agosto 2015, pág. 31). 

Sendo um dos deveres em que a Administração fica constituída, por efeito da anulação administrativa do acto, a reconstituição da situação que existiria se o acto  não tivesse sido praticado, mediante a execução do efeito repristinatório da anulação, nada impede que nesse âmbito sejam devidos juros indemnizatórios por pagamento indevido de prestação tributária, em consonância com o também estabelecido no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

E não está excluído, em qualquer caso, que a Requerente possa deduzir um pedido indemnizatório em acção de responsabilidade civil autónoma.

O que não pode deixar de reconhecer-se é que o presente processo arbitral por efeito da anulação administrativa dos actos impugnados não pode prosseguir por impossibilidade superveniente da lide.”

            Destarte, aqui, verifica-se também uma inutilidade da lide que impede que se aprecie o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios por pagamento indevido da prestação tributária.

 

IV.3. Custas processuais

 

A Requerida foi notificada do pedido de constituição do Tribunal Arbitral no dia 15.03.2022. 

No dia 27.04.2022 os atos sindicados foram anulados. A anulação administrativa ocorreu dentro do prazo de 30 dias previsto no art. 13º, n.º 1 do RJAT, contados nos termos do previsto nos no art. 87º do CPA (art. 3ºA, n.º1 do RJAT). No dia 28.04.2022 a Requerente foi notificada para os efeitos previstos no art. 13º, n.º 2 do RJAT, tendo de seguida informado que pretendia prosseguir com o procedimento. Por fim, a Requerente convidada (despacho de 20.06.2022) para se pronunciar sobre a inutilidade da lide, em virtude da anulação administrativa do ato, nada veio aduzir aos autos.

O prosseguimento do processo (rectius, do procedimento arbitral), só à Requerente pode ser imputável.

Nos termos previstos no artigo 536.º, n.º 3 do CPC, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas.

Tendo em conta que, não obstante a anulação dos atos antes da constituição deste Tribunal, a Requerente indicou que pretendia o prosseguimento do procedimento de um ato já previamente anulado e cujo pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios é impossível pelas razões atrás referidas, o prosseguimento do processo só à Requerente pode ser imputável.

As custas devem, por isso, ser totalmente imputáveis à Requerente.

 

V. DECISÃO

 

Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se julgar extinta a instância por impossibilidade da lide e condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

 

Fixa-se o valor do processo em € 1.962,73, indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €306,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 15 de julho de 2022.  

 

O Árbitro

 

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(André Festas da Silva)



[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 555