SUMÁRIO: I - Não há lugar a tributação em sede de IRS, da mais-valia obtida em virtude da alienação, em 2017, de uma quota do capital social de sociedade comercial que havia sido adquirida pelo alienante antes de 1 de janeiro de 1989. II - No caso, é aplicável o regime transitório previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 488-A/88, de 30 de novembro (diploma que aprovou o CIRS), considerando que, para além da mencionada aquisição ter ocorrido em data anterior a 1 de janeiro de 1989, o ganho obtido não estava também já sujeito a tributação em sede do anterior Imposto de Mais-Valias. III - Este mesmo regime se aplicará nos casos em que ocorram aumentos de capital posteriores a 1 de janeiro de 1989, com impacto no valor da quota detida pelo contribuinte e alienante.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Dr. Álvaro Caneira e Dr. David Oliveira Silva Nunes Fernandes (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 20-04-2022, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., titular do número de identificação fiscal..., residente na Rua ..., n.º ..., ...-... Porto, apresentou, em 7 de fevereiro de 2022, pedido de constituição de tribunal e de pronúncia arbitral respeitante ao ato de liquidação de IRS n.º 2021 ..., de 5 de novembro de 2021, no valor de 64.196,90 EUR (sessenta e quatro mil cento e noventa e seis euros e noventa cêntimos), respeitante ao ano de 2017, ao qual corresponde a demonstração de acerto de contas n.º 2021 ..., no valor de 64.452,27 EUR (sessenta e quatro mil quatrocentos e cinquenta e dois euros e vinte e sete cêntimos), pedindo, a final, a anulação da identificada liquidação com fundamento em ilegalidade, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), e no artigo 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
2. O presente tribunal arbitral foi constituído no dia 20 de abril de 2022.
3. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º, nºs 1 e 2, do RJAT, a Requerida foi notificada em 21 de abril de 2022, para, no prazo de 30 (trinta) dias, (i) apresentar resposta, (ii) juntar cópia do processo administrativo e (iii) requerer, querendo, a produção de prova adicional.
4. Em 13 de maio de 2022, a Requerida apresentou a sua resposta, no âmbito da qual pugna pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, mais tendo junto aos autos o processo administrativo.
5. Ao abrigo do disposto no artigo 16.º, alínea c), do RJAT, bem como do princípio da proibição de atos inúteis, entendeu o Tribunal Arbitral, por despacho exarado a 19 de maio de 2022, dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, por considerar (i) que se trata de processo não passível de uma definição de trâmites processuais específicos, diferentes dos comummente seguidos pelo CAAD na generalidade dos processos arbitrais e (ii) que não existem exceções ou outras questões prévias a apreciar.
6. Por intermédio do mesmo despacho, foi encerrada a fase instrutória do processo e fixado um prazo simultâneo de 20 (vinte) dias para alegações escritas, de facto e de direito.
7. Em observância do disposto no artigo 18.º, n.º 2, do RJAT, mais se designou naquela sede o dia 15 de julho de 2022 como data limite previsível para a prolação e notificação da decisão arbitral final.
8. O supra aludido despacho foi notificado às partes no dia 20 de maio de 2022.
9. A Requerida apresentou as suas alegações finais escritas no dia 8 de junho de 2022, tendo a Requerente procedido de igual modo no dia 9 de junho de 2022.
10. Naquela sede, ambas as partes reiteraram as posições anteriormente plasmadas nos respetivos articulados, sem juntar qualquer documento aos autos.
II. POSIÇÃO DAS PARTES
11. A Requerente sustenta a ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2021 ..., de 5 de novembro de 2021, no valor de 64.196,90 EUR (sessenta e quatro mil cento e noventa e seis euros e noventa cêntimos), respeitante ao ano de 2017, por entender que a mesma contende com o disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, diploma que aprovou o Código do IRS (CIRS).
12. Essencialmente, a Requerente considera que a totalidade da mais-valia por si auferida, em 2017, em virtude da alienação onerosa de uma quota representativa de parte do capital social de uma sociedade por quotas constituída em 1974, não se encontra sujeita a tributação em sede de IRS, por força do disposto no regime transitório ínsito no mencionado artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.
13. Do ponto de vista da Requerente, a circunstância de terem ocorridos sucessivos aumentos de capital após 1 de janeiro de 1989 (data de entrada em vigor do CIRS), mais concretamente em 1991 e 2001, quer por entradas de capital, quer por incorporação de reservas livres, não contende com a aplicabilidade do regime transitório previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.
14. A Requerente ancora o seu entendimento no disposto no artigo 43.º, n.º 6, a), do CIRS, cujo enunciado normativo dispõe que, “[p]ara efeitos do número anterior, considera-se que: [a] data de aquisição dos valores mobiliários cuja propriedade tenha sido adquirida pelo sujeito passivo por incorporação de reservas ou por substituição daqueles, designadamente por alteração do valor nominal ou modificação do objeto social da sociedade emitente, é a data de aquisição dos valores mobiliários que lhes deram origem;”.
15. A Requerida, no âmbito da sua resposta, argumenta que o enunciado normativo supra citado não se aplica nos casos de aumento de capital por entradas em dinheiro ou espécie, considerando justificada a distinção na medida em que nos aumentos de capital por novas entradas (em dinheiro ou em espécie) existe um incremento efetivo do património da sociedade a que corresponde um efetivo dispêndio (de dinheiro ou bens) por parte dos sócios, ao passo que na incorporação de reservas não se verifica um aumento do património da sociedade.
16. Donde, conclui a Requerida que existem diferentes momentos de aquisição, determinados pela realização das entradas, razão pela qual o valor da respetiva transmissão deverá ser dividido em várias parcelas, sendo uma correspondente ao momento constitutivo da sociedade comercial por quotas – 1974 – e outra correspondente ao aumento de capital por entradas em dinheiro – 1991, ficando a primeira sujeita ao regime transitório previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, e a segunda sujeita a tributação em sede de IRS, nos termos gerais.
17. Pelo exposto, entende a Requerida que a liquidação controvertida não merce qualquer censura, devendo manter-se integralmente na ordem jurídica.
III. QUESTÕES A DECIDIR
Compulsando a posição vertida pelas partes nas respetivas peças processuais, a questão que o Tribunal Arbitral deve apreciar consiste em saber se o ato de liquidação de IRS n.º 2021 ..., de 5 de novembro de 2021, no valor de 64.196,90 EUR (sessenta e quatro mil cento e noventa e seis euros e noventa cêntimos), respeitante ao ano de 2017, é ilegal, por violação do disposto nos artigos 43.º, n.º 6, a), do CIRS e 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.
IV. SANEAMENTO
O processo não enferma de nulidades, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer e decidir o pedido, e as partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas, verificando-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.
V. FUNDAMENTAÇÃO
a. Factos provados com relevância para os autos e respetiva fundamentação
1.1. A sociedade comercial B..., Lda., titular do NIPC..., foi constituída em 18 de dezembro de 1974, com o capital social de 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos), o que corresponde a 24.939,89 EUR (vinte e quatro mil novecentos e trinta e nove euros e oitenta e nove cêntimos) – cfr. documento n.º 1 e documento n.º 2 juntos com o pedido de pronúncia arbitral.
1.2. No âmbito do ato constitutivo da supra identificada sociedade comercial, a Requerente, à data casada no regime de comunhão geral de bens com C..., tornou-se titular de uma quota com o valor nominal de 500.000$00 (quinhentos mil escudos), o que corresponde a 2.493,98 EUR (dois mil quatrocentos e noventa e três euros e noventa e oito cêntimos), representativa de 10% do capital social – cfr. documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral.
1.3. Por escritura pública outorgada em 4 de junho de 1991 realizou-se um aumento de capital social da referida sociedade, por entradas em dinheiro no valor de 28.000.000$00 (vinte e oito milhões de escudos), o que corresponde a 139.663,41 EUR (cento e trinta e nove mil seiscentos e sessenta e três euros e quarenta e um cêntimos) – cfr. documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral.
1.4. No quadro daquele aumento de capital, a Requerente subscreveu a importância de 4.000.000$00 (quatro milhões de escudos), o que corresponde a 19.951,91 EUR (dezanove mil novecentos e cinquenta e um euros e noventa e um cêntimos) – cfr. documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral.
1.5. Após o aumento de capital, o total do capital social da sociedade ascendia a 33.000.000$00 (trinta e três milhões de escudos), o que corresponde a 164.603,30 EUR (cento e sessenta e quatro mil seiscentos e três euros e trinta cêntimos), passando a Requerente a ser titular de uma quota com o valor nominal de 4.500.000$00 (quatro milhões e quinhentos mil escudos), o que corresponde a 22.445,90 EUR (vinte e dois mil quatrocentos e quarenta e cinco euros e noventa cêntimos) – cfr. documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral.
1.6. Em 24 de fevereiro de 2017, a Requerente, juntamente com C...– embora no estado civil de divorciados – cedeu onerosamente a quota com o valor nominal de 22.500,00 EUR (vinte e dois mil e quinhentos euros) que detinha na sociedade comercial B..., Lda., pelo valor de 500.000,00 € (quinhentos mil euros) à sociedade D..., SGPS, S.A., titular do NIPC...– cfr. documento n.º 1 e documento n.º 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral.
1.7. Em 29 de maio de 2018, a Requerente submeteu a respetiva declaração Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2017, tendo declarado a mais-valia auferida no Anexo G-1 – cfr. documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral.
1.8. No seguimento do procedimento inspetivo promovido em cumprimento da ordem de serviço OI2019..., a Requerida notificou a Requerente das correções resultantes da ação de inspeção, em virtude das quais se acresceu ao rendimento coletável desta o valor de 202.425,00 EUR (duzentos e dois mil quatrocentos e vinte e cinco euros), passando aquele a ascender, na totalidade, a EUR 220.291,23 (duzentos e vinte mil duzentos e noventa e um euros e vinte e três cêntimos), e se determinou imposto em falta, em sede de IRS, no valor de 56.679,00 EUR (cinquenta e seis mil seiscentos e setenta e nove euros) – cfr. documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral.
1.9. Subsequentemente, a Requerida emitiu a liquidação de IRS n.º 2021 ..., de 5 de novembro de 2021, no valor de 64.196,90 EUR (sessenta e quatro mil cento e noventa e seis euros e noventa cêntimos), respeitante ao ano de 2017, a qual foi notificada à Requerente – cfr. documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral.
1.10. A Requerida notificou igualmente a Requerente da demonstração de liquidação de juros n.º 2021..., de 15 de novembro de 2021, e da demonstração de acerto de contas n.º 2021 ... – cfr. documento n.º 8 e documento n.º 9 juntos com o pedido de pronúncia arbitral.
A convicção do Tribunal Arbitral relativamente aos factos supra considerados como provados baseia-se nos elementos documentais referidos quanto a cada um deles, mais se salientando que a correspondência dos mesmos à realidade não é contestada pela Requerida.
b. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
Inexistem nos autos elementos que demonstrem ter ocorrido, em 21 de dezembro de 2001, novo aumento de capital da sociedade comercial B..., Lda., mediante incorporação de reservas livres no valor de 396,70 EUR (trezentos e noventa e seis euros e setenta cêntimos), em virtude da qual a quota da Requerente passou a ter o valor nominal de EUR 22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros), tal como alegado pela Requerente no âmbito do pedido de pronúncia arbitral.
Por outro lado, a Requerida alega na sua resposta que a alteração daquele valor – a qual, saliente-se, não é posta em crise, dando-se em si mesma como provada –, terá resultado da redenominação do capital social de escudos para euros.
Neste sentido, e embora esteja demonstrada a alteração do valor nominal da quota detida pela Requerente (nomeadamente em face da documentação carreada para os autos), não foi possível a este Tribunal Arbitral determinar a circunstância subjacente a essa alteração, sendo certo, de todo o modo, que tal circunstância não releva para efeitos de decisão da causa, nomeadamente tendo presente o pedido formulado pela Requerente e a posição assumida pelas partes nas respetivas peças processuais.
c. O DIREITO
O cerne da questão controvertida no âmbito dos presentes autos consiste em saber se à mais-valia auferida pela Requerente em virtude da alienação, em 2017, de uma quota representativa do capital social da B..., Lda., é, ou não, aplicável o regime transitório vertido no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 488-A/88, de 30 de novembro (diploma que aprovou o CIRS).
A referida norma de incidência tributária procede a uma delimitação quanto à sujeição, ou não, a IRS dos ganhos que não eram sujeitos ao Imposto de Mais-Valias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 673, de 9 de junho de 1965. Por relevante, transcreve-se o respetivo enunciando normativo (com indicação, sendo caso disso, da fonte da atual redação):
“1 - Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 673, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afetos ao exercício de uma atividade agrícola ou da afetação destes a uma atividade comercial ou industrial, exercida pelo respetivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efetuada depois da entrada em vigor deste Código. [redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 141/92, de 17 de julho]
2 - Cabe ao contribuinte a prova de que os bens ou valores foram adquiridos em data anterior à entrada em vigor deste Código, devendo a mesma ser efetuada, quanto aos valores mobiliários, mediante registo nos termos legalmente previstos, depósito em instituição financeira ou outra prova documental adequada e através de qualquer meio de prova legalmente aceite nos restantes casos.
3 - Quando, nos termos dos n.ºs 8 e 10 do artigo 10.º do Código do IRS, haja lugar à valorização das participações sociais recebidas pelo mesmo valor das antigas, considera-se, para efeitos do disposto no n.º 1, data de aquisição das primeiras a que corresponder à das últimas [aditado pelo Decreto-Lei n.º 6/93, de 9 de janeiro]”
Donde, atento o elemento literal da norma, conclui-se que a sujeição daqueles ganhos a IRS apenas se verifica se a aquisição dos bens ou direitos subjacentes pelo sujeito passivo tiver sido efetuada após a entrada do CIRS – ou seja, após 1 de janeiro de 1989, nos termos do disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 488-A/88, de 30 de novembro. Caso a aquisição dos bens ou direitos seja anterior àquela data, e contanto que o ganho não fosse já sujeito a tributação em sede de Imposto de Mais-Valias, não haverá lugar a tributação em sede de IRS, mesmo o facto gerador do ganho ocorra em momento posterior à entrada em vigor do CIRS.
Em face do exposto, haverá que atender ao normativo legal em vigor, em sede de IRS, acerca da determinação do momento de aquisição de participações sociais. Como tal, in casu, o regime transitório supra referido deverá ser conjugado com o disposto no artigo 43.º, n.º 6, alínea a), do CIRS, o qual contempla uma norma de determinação da matéria coletável, na qual se dispõe que, para apuramento do saldo entre mais e menos valias se considera que:
“a) A data de aquisição dos valores mobiliários cuja propriedade tenha sido adquirida pelo sujeito passivo por incorporação de reservas ou por substituição daqueles, designadamente por alteração do valor nominal ou modificação do objeto social da sociedade emitente, é a data de aquisição dos valores mobiliários que lhes deram origem”.
Aludindo a lei expressamente à incorporação de reservas, a controvérsia cinge-se à questão de saber se o mesmo regime se aplicará nos casos em que existem aumentos de capital ocorridos posteriormente a 1 de janeiro de 1989, com impacto no valor das quotas detidas pelos sócios, como é o caso dos presentes autos. Embora não sendo as quotas valores mobiliários stricto sensu, por força do disposto no artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários, deverá interpretar-se extensivamente o enunciado em apreço, tanto mais que inexiste qualquer razão para distinguir, neste particular, os titulares de quotas e os titulares de outros valores mobiliários. Dir-se-á, inclusivamente, uma tal distinção sempre contenderia com o mais elementar princípio da igualdade. Adicionalmente, trata-se da interpretação mais consentânea com o artigo 10.º. n.º 1, alínea b), do CIRS, norma de incidência tributária que, definindo o conceito de mais-valias, alude à “alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários”.
Por outro lado, importará notar que o enunciado normativo vertido no artigo 43.º, n.º 6, alínea a), apresenta uma redação exemplificativa, na medida em que ali se emprega o advérbio de modo “designadamente”, o que permite inferir que o legislador pretendeu abranger todas as situações de alteração do valor nominal, sem distinguir entre situações de incorporação de reservas e situações de aumento de capital, em dinheiro ou espécie, materializadas no reforço de quotas pré-existentes.
A temática em apreço, atinente à consideração ou desconsideração dos aumentos de capital para efeitos do disposto no artigo 43.º, n.º 6, alínea a), do CIRS, tem vindo a ser amplamente discutida em sede judicial e arbitral, merecendo especial referência a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, decorrente do acórdão proferido no processo n.º 0149/17, de 7 de março de 2018, que ora se transcreve no segmento relevante:
“A legislação comercial prevê a possibilidade de serem efectuados aumentos de capital. Por regra, tal operação funciona como uma fonte de financiamento para a empresa, para desenvolver novos projetos, um plano de expansão da organização, ou para fazer uma restruturação da atividade da empresa com a utilização de novos capitais próprios da organização que podem provir dos atuais acionistas ou sócios das empresas ou ser aberta a novos investidores.
O aumento de capital de uma empresa assume duas diversas formas, ou se realiza por incorporação de reservas, implicando uma mera operação contabilística, na qual as reservas (ou seja, nos lucros obtidos no passado e ainda detidos) se transferem para o capital social da organização, sem mudança da situação líquida da empresa, ou por novas entradas.
Quando, como na situação em análise, o aumento de capital assume a forma de novas entradas, em dinheiro ou em bens, a operação implica um processo diferente, com uma alteração da situação líquida da empresa, devido à entrada de dinheiro (ou de bens) na empresa. Neste caso, ou os sócios/acionistas das empresas adquirem as novas quotas/ações emitidas pela empresa, ou não há criação de novas quotas/acções mas é aumentado o valor nominal das existentes e, em ambas estas situações o resultado dessa operação serve para reforçar o capital social da organização.
Quando há emissão de novas quotas/ações esta é feita a um preço definido e, na maioria das vezes, as novas quotas/ações encontram-se reservadas aos anteriores sócios/acionistas, podendo ainda verificar-se a aquisição de novas quotas/acções por novos sócios. De acordo com o disposto no art.º 92.º, n.º 4 do CSC «A deliberação de aumento de capital deve indicar se são criadas novas quotas ou acções ou se é aumentado o valor nominal das existentes, caso exista, sendo que na falta de indicação, se mantém inalterado o número de acções».
Este entendimento, ao qual se adere, tem sido acolhido pela jurisprudência do CAAD, sendo disso exemplo as decisões proferidas no âmbito dos processos n.º 594/2019-T, 689/2019-T, 394/2020-T, 526/2020-T e 335/2021-T. Por se entender que tal é o entendimento mais convergente com as normas legais aplicáveis, e em face da necessidade de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito, como resulta do disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, seguir-se-á o mesmo nos presentes autos.
No presente caso, constata-se que a Requerente não adquiriu qualquer quota nova no quadro do aumento de capital concretizado em 4 de junho de 1991; diferentemente, o que sucedeu naquela data foi a alteração do valor nominal da quota que havia já por si sido adquirida em 18 de dezembro de 1974. O que, de resto, encontra respaldo direto e inequívoco na documentação que serviu de base ao aumento de capital de 4 de junho de 1991, na medida em que ali se verteu que o mesmo seria subscrito e realizado por “cada um dos sócios titulares de uma quota de quinhentos mil escudos (…), com a importância de QUATRO MILHÕES DE ESCUDOS, que vão adicionar às suas actuais quotas, elevando-as assim, cada uma para QUATRO MILHÕES E QUINHENTOS MIL ESCUDOS;”. Donde, este aumento de capital não afasta a relevância da data de aquisição da quota pela Requerente, devendo aquela considerar-se adquirida em 18 de dezembro de 1974. De resto, sempre se dirá que a documentação que serviu de base à transmissão da quota detida pela Requerente é coerente com esta factualidade, porquanto alude, no mesmo sentido, à transmissão de uma quota.
Consequentemente, e na medida em que (i) os ganhos decorrentes da transmissão de quotas representativas do capital social de sociedades comerciais não estavam sujeitos a tributação em sede de Imposto de Mais-Valias (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de junho de 1965) e (ii) a quota alienada pela Requerente, da qual resulta a mais-valia controvertida, foi adquirida antes da entrada em vigor do CIRS, impõe-se a conclusão de que o rendimento auferido pela Requerente não está sujeito a tributação em sede de IRS, ainda que tenha sido gerado em momento posterior à entrada em vigor do CIRS.
VI. DECISÃO
Considerando o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
1) Julgar integralmente procedente o pedido de pronúncia arbitral aduzido pela Requerente;
2) Anular a liquidação de IRS n.º 2021 ..., de 5 de novembro de 2021, no valor de 64.196,90 EUR (sessenta e quatro mil cento e noventa e seis euros e noventa cêntimos), respeitante ao ano de 2017, com a inerente anulação da correspondente liquidação de juros n.º 2021 ..., de 15 de novembro de 2021, bem como da demonstração de acerto de contas n.º 2021 ... .
VII. VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, e 306.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, bem como no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 64.196,90 EUR (sessenta e quatro mil cento e noventa e seis euros e noventa cêntimos).
VIII. CUSTAS
Nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 2.448,00 EUR (dois mil quatrocentos e quarenta e oito euros), nos termos do previsto na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
§ Notifique-se.
Lisboa, 14-07-2022
O Tribunal Arbitral Coletivo
(José Poças Falcão)
(Álvaro Caneira)
(David Oliveira Silva Nunes Fernandes)