SUMÁRIO
I. Para a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, o legislador consagrou a regra específica constante do artigo 45.º do Código do IMI, onde se tem em conta o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à construção bem como as características de acessibilidade, proximidade, serviços e localização descritas no artigo 42.º, n.º 3, do Código do IMI, mas não os coeficientes previstos na expressão matemática contida no artigo 38.º do Código do IMI.
II. A fórmula consagrada no artigo 38.º do Código do IMI não é aplicável na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção.
III. A errada fixação do valor patrimonial tributário pode ser arguida através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de IMI emitidos com base no mesmo (nos termos conjugados dos artigos 78.º, n.º 1, da LGT e 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI), não obstante os atos de fixação do valor patrimonial tributário constituírem “atos destacáveis” e serem suscetíveis de impugnação autónoma.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Doutora Ana Teixeira de Sousa e Doutora Rita Guerra Alves (árbitras vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 11-04-2022, acordam no seguinte:
I - RELATÓRIO
A - Identificação das Partes
1. Requerente: FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO A..., com o número de identificação fiscal ... (doravante designado por “Requerente” ou “Sujeito Passivo”), representado pela Sociedade Gestora B..., S.A., com sede na ... Lisboa.
2. Requerida: Autoridade Tributaria e Aduaneira (doravante designada por “Requerida” ou “AT”).
B – Constituição do Tribunal Arbitral e Saneador
3. Em 01-02-2022, o Requerente requereu a constituição de Tribunal Arbitral Tributário e apresentou pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), contra o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado em 23-09-2021 (objeto imediato do PPA), e contra as liquidações de IMI a ele subjacentes, referentes aos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, na parte relativa aos terrenos para construção inscritos na matriz predial sob o n.ºs U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-..., da freguesia de ... (doravante designadas por “Liquidações Contestadas”), contestando o valor de € 569.603,06 (objeto mediato do PPA).
4. O PPA é tempestivo porque apresentado no prazo de 90 dias referido no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a contar do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa (apresentado a 23-09-2021), que se formou em 23-01-2022, nos termos do artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT.
5. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 03-02-2022 pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, e, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, subsequentemente notificado à AT.
6. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou as ora signatárias como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
7. Em 22-03-2022, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
8. O Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 11-04-2022, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alíneas a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio.
9. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e são legítimas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
10. Em 11-05-2022, a Requerida apresentou resposta, sem juntar o processo administrativo.
11. Por Despacho Arbitral de 17-05-2022, foi concedido prazo para o Requerente, querendo, responder às exceções e questões prévias suscitadas pela Requerida na sua resposta, e para as partes se pronunciarem sobre a necessidade de realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e da apresentação de alegações finais.
12. Não tendo nenhumas das partes se pronunciado relativamente a este Despacho Arbitral, em 03-06-2022, o Tribunal proferiu novo Despacho dispensando a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações finais escritas, e indicando a data prevista para a prolação da decisão arbitral.
13. O processo não enferma de nulidades.
C – Pedido
14. O Requerente pretende a declaração de ilegalidade e anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa formado em 23-01-2022 (objeto imediato do PPA), e da liquidação de IMI n.º ..., de 08-11-2017, relativa ao ano de 2016, liquidação de IMI n.º..., de 19-02-2018, relativa ao ano de 2017, liquidação de IMI n.º ..., de 09-03-2019, relativa ao ano de 2018, liquidação de IMI n.º ..., de 18-03-2020, relativa ao ano de 2019, na parte relativa aos terrenos para construção inscritos na matriz predial sob os n.ºs U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-..., da freguesia de ..., que deram origem às notas de cobrança que o Requerente juntou ao PPA (objeto mediato do PPA), por terem dado origem a um IMI superior ao legalmente devido, no montante global de € 569.603,06, bem como a condenação da AT no reembolso deste valor, acrescido de juros indemnizatórios.
15. Mais peticiona o Requerente, a titulo subsidiário, que seja desaplicada, no caso concreto, a norma pretensamente extraída do artigo 45.º do Código do IMI, na redação vigente à data da verificação do facto tributário, no sentido de que os coeficientes de avaliação consagrados no artigo 38.º do mesmo compêndio legal deveriam ter aplicação na determinação do valor patrimonial tributário (“VPT”) de terrenos para construção, por manifesta inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade tributária, no sentido de reserva de lei formal, ínsito na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e no n.º 2 do artigo 103.º, ambos da CRP e, consequentemente, seja declarada a ilegalidade e anulados os atos tributários de liquidação de IMI sub judice, porque assentes em normas inconstitucionais.
D – Causa de pedir
16. A fundamentar o PPA, o Requerente alegou o seguinte:
a. As Liquidações Contestadas são parcialmente ilegais porque tiveram por base VPTs erroneamente fixados pela AT, que aplicou coeficientes de (i) localização, (ii) de afetação e / ou (iii) de qualidade e conforto a terrenos para construção, em violação do disposto no artigo 45.º do Código do IMI.
b. Os coeficientes de afetação (estabelecidos no artigo 41.º), de localização (definidos no artigo 42.º), de qualidade e conforto (regulados no artigo 43.º) e de vetustez (consagrados no artigo 44.º) não são aplicáveis a terrenos para construção, visto que não fazem parte da fórmula de cálculo consagrada no n.º 1 do artigo 45.º do Código do IMI, na redação vigente à data dos factos tributários relevantes para efeitos dos atos tributários de liquidação de IMI sub judice.
c. E conforme o disposto na redação conferida ao n.º 3 do artigo 45.º do Código do IMI que se encontrava em vigor em 2016, 2017, 2018 e 2019, a fixação da percentagem do valor do terreno de implantação – esta sim um dos elementos legais para efeitos de cálculo dos VPTs de terrenos para construção – tem em consideração as características referidas no n.º 3 do artigo 42.º, disposição normativa esta que diz respeito à fixação do coeficiente de localização, estipulando que deve ter‐ se em consideração certas características tais como: a acessibilidade; a proximidade de equipamentos sociais, designadamente escolas, serviços públicos e comércio; os serviços de transporte públicos; a localização em zonas de elevado valor de mercado imobiliário.
d. Não obstante a AT ter corrigido o VPT dos terrenos de construção em causa em 2020, não anulou as liquidações de IMI dos anos anteriores.
e. Deste modo, nos anos 2016, 2017, 2018 e 2019, a AT liquidou um montante de IMI superior ao montante legalmente devido nos termos do artigo 45.º do Código do IMI relativamente aos terrenos para construção em apreço.
f. Assim, as Liquidações Contestadas deverão ser parcialmente anuladas, assim como deverá ser anulado o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentada em 23-09-2021, e, consequentemente, condenada a Requerida na restituição do montante de € 569.603,06, acrescido de juros indemnizatórios.
E - Resposta da Requerida
17. Em resposta, a Requerida defendeu-se por exceção, alegando, em síntese, o seguinte:
a. O Requerente pretende a anulação dos atos de liquidação de IMI com fundamento em vícios, não dos atos de liquidação, mas dos atos que fixaram o VPT dos terrenos para construção em apreço.
b. Aos atos impugnados não é imputado qualquer vício específico da operação de liquidação ou do seu procedimento, nem da decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.
c. O que está em causa são, apenas e só, atos destacáveis de fixação do VPT.
d. Todavia, os vícios dos atos que definiram o VPT dos terrenos para construção não são suscetíveis de ser impugnados nos atos de liquidação que sejam praticados com base nos mesmos.
e. Não estando legalmente prevista a revisão oficiosa de atos de fixação do VPT, é inadmissível de revisão oficiosa dos atos de avaliação dos VPTs dos terrenos para construção em apreço.
f. O pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente em 23-09-2021 é intempestivo, por o prazo para ser autorizada a revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço é de três anos posteriores ao do ato tributário, tal como previsto no n.º 4 do artigo 78.º da LGT.
g. Os atos tributários que determinaram os VPTs dos terrenos para construção em causa consolidaram-se na ordem jurídica, por o Requerente não ter colocado em causa o respetivo VPT obtido pela 1.ª avaliação, ou requerido uma 2.ª avaliação, não sendo, assim, possível conhecer, em posteriores liquidações, eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação.
h. Os atos de liquidação de IMI contestados são inimpugnáveis por vícios próprios e exclusivos na fixação do VPT, visto que os atos que fixam VPTs constituem “atos destacáveis”.
II. MATÉRIA DE FACTO
F – Factos provados
18. Em 2016, 2017, 2018 e 2019, o Requerente era proprietário dos terrenos para construção inscritos na matriz predial sob os n.ºs U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-..., todos da freguesia de ... (cfr. resulta das notas de cobrança juntas ao PPA como documento 2, e das cadernetas prediais juntas ao PPA como documento 3).
19. O Requerente foi notificado das liquidações de IMI dos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, que incluíam o imposto devido pelos terrenos para construção identificados no número anterior, com os seguintes montantes:
i. € 115.350,63, relativamente ao IMI de 2016 (cfr. nota de cobrança n.º 2016..., de 25-10-2017, junta ao PPA como documento 2);
ii. € 260.001,48, relativamente ao IMI de 2017 (cfr. notas de cobrança n.ºs 2017..., de 20-03-2018, 2017..., de 19-06-2018, 2017 68221503, de 22-10-2018, juntas ao PPA como documento 2);
iii. € 260.001,48, relativamente ao IMI de 2018 (cfr. notas de cobrança n.ºs 2018..., de 04-04-2019, 2018..., de 17-07-2019, 2018..., de 17-10-2019, juntas ao PPA como documento 2);
iv. € 263.901,48, relativamente ao IMI de 2019 (cfr. notas de cobrança n.ºs 2019..., de 20-04-2020, 2019 ..., de 23-07-2020, 2019 ..., de 04-10-2020, juntas ao PPA como documento 2).
20. A nota de cobrança n.º 2016..., de 25-10-2017, referente à última prestação do IMI devido pelo ano de 2016, indica o dia 30-11-2017 como prazo limite de pagamento (cfr. documento 2 junto ao PPA).
21. As Liquidações Contestadas tiveram por base os VPTs dos terrenos para construção fixados segundo uma fórmula que incluía coeficientes de localização, de afetação, e de qualidade e conforto (cfr. cadernetas prediais urbanas juntas ao PPA como documento 3).
22. A consideração destes coeficientes na fixação do VPT dos terremos para construção resultou num acréscimo de IMI a pagar pelos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, no montante total de € 569.603,06 (cfr. documento 5 junto ao PPA), que corresponde à soma dos seguintes montantes:
i. € 72.385,32, relativamente ao IMI de 2016;
ii. € 164.439,24, relativamente ao IMI de 2017;
iii. € 164.439,24, relativamente ao IMI de 2018;
iv. € 168.339,26, relativamente ao IMI de 2019.
23. O Requerente procedeu ao pagamento, integral e atempado, das notas de cobrança acima identificadas (cfr. alegado no artigo 24.º do PPA e não contestado pela Requerida).
24. Em 2020, a AT reavaliou os terrenos para construção em causa e fixou os respetivos VPTs sem considerar os coeficientes supra referidos (cfr. cadernetas prediais urbanas juntas ao PPA como documento 4).
25. O Requerente apresentou, em 23-09-2021, ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, pedido de revisão oficiosa contra as Liquidações Contestadas, não tendo sido notificado de qualquer decisão até 23-01-2022.
26. Em 01-02-2022, o Requerente apresentou o PPA.
G - Factos não provados
27. Não se consideram não provados quaisquer factos relevantes para o conhecimento da causa.
H – Fundamentação da matéria de facto
28. Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
29. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, quanto à matéria de facto, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
30. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação da prova produzida, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
31. Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados.
32. Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
III – MATÉRIA DE DIREITO
I - Questões Decidendas
33. O PPA tem por objeto imediato a apreciação da legalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente em 23-09-2021, ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, e por objeto mediato a apreciação da legalidade das Liquidações Contestadas.
34. Tendo a Requerida suscitado exceções dilatórias e questões prévias suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa e determinar a absolvição da instância, o Tribunal apreciará primeiramente tais questões e, seguidamente, caso se pronuncie pela improcedência das mesmas, os vícios alegados pelo Requerente suscetíveis de determinar a ilegalidade e consequente anulação do referido indeferimento tácito e das Liquidações Contestadas (cfr. artigo 89.º do CPTA e artigos 278.º e 608.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas d) e e), do RJAT).
35. Tendo em consideração a posição das partes e a matéria de facto dada como assente, as questões a decidir são as seguintes:
A) Exceções dilatórias e questões prévias:
- Da inadmissibilidade de revisão oficiosa dos atos de avaliação patrimoniais e da consolidação dos atos tributários que determinaram o VPT dos terrenos para construção;
- Da inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI com fundamento em vícios do ato de fixação do VPT;
- Da intempestividade do pedido de revisão oficiosa.
B) Da ilegalidade do indeferimento tácito e das Liquidações Contestadas, por erro no cálculo do VPT dos terrenos para construção.
C) A título subsidiário: Da inconstitucionalidade do artigo 45.º do Código do IMI, interpretado no sentido de que os coeficientes de avaliação consagrados no artigo 38.º do Código do IMI têm aplicação na determinação do VPT de terrenos para construção, por violação do princípio da legalidade tributária, no sentido de reserva de lei formal, ínsito na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e no n.º 2 do artigo 103.º, ambos da CRP.
D) Do reembolso acrescido de juros indemnizatórios.
J - Da inadmissibilidade de revisão oficiosa dos atos de avaliação patrimoniais e da consolidação dos atos tributários que determinaram o VPT dos terrenos para construção
36. Tal como referido pela Requerida na sua Resposta, quando um ato de fixação de VPT de um imóvel se consolida na ordem jurídica por inércia do sujeito passivo, o respetivo VPT serve de base à emissão de liquidações de IMI e de outros impostos, até eventual alteração do seu valor.
37. Isto significa que, caso o sujeito passivo, por inércia, não impugne um ato de fixação do VPT, fica com o ónus de impugnar, sucessivamente, ao longo dos anos, cada uma das liquidações nele baseadas (mas não significa que está impedido de o fazer).
38. No caso sub judice, não está em causa a declaração de ilegalidade e anulação de atos de fixação de VPT, mas a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de IMI (não relevando, assim, o prazo de cinco anos referido no artigo 158.º do CPA, aplicável à anulação administrativa de atos que fixam o VPT de imóveis, subsidiariamente aplicável por força do artigo 79.º da LGT).
39. Defende a Requerida que admitir a impugnação de liquidações de IMI com fundamento na errónea fixação do VPT poria em causa a validade dos efeitos jurídicos de diferentes atos tributários que, para diferentes efeitos, assumem como referencial o VPT de um imóvel constante da matriz predial, e que resultaria na coexistência, no mesmo período, de dois ou mais VPTs, criando uma situação caótica, com prejuízo para o princípio da certeza e segurança jurídica, enquanto princípio basilar de um Estado de Direito.
40. Ora, num Estado de Direito assente no princípio da legalidade em matéria tributária (ínsito no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que exige que a AT arrecade as quantias de imposto exigíveis nos termos da lei), no princípio da justiça e no princípio da tutela jurisdicional efetiva (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP), temos que a coerência entre os atos de liquidação de IMI, AIMI, IMT, e Imposto do Selo emitidos relativamente a um mesmo imóvel (que pressupõe que os mesmos se baseiem no mesmo VPT) deverá ser assegurada através do cumprimento, por parte da AT, do seu dever de sanar oficiosamente os eventuais vícios no cálculo do VPT à luz da lei (como aliás impõe o adequado funcionamento da AT), e não através de uma restrição ao princípio da tutela jurisdicional efetiva e ao princípio da justiça consubstanciada na obliteração da possibilidade do sujeito passivo de se socorrer a um meio processual previsto na lei (o pedido de revisão oficiosa) para reagir contra atos de liquidação de imposto contaminados por uma determinação da matéria coletável incorreta e ilegal, por erro exclusivamente imputável à AT.
41. A “estabilidade” na ordem jurídica assegurada por uma tal restrição ao princípio da tutela jurisdicional efetiva e ao princípio da justiça resultaria em nada mais do que permitir à AT que continue a arrecadar quantias de imposto que não são exigíveis nos termos da lei (em violação do princípio da legalidade em matéria tributária ínsito no artigo 103.º, n.º 3, da CRP), o que não é de aceitar.
42. Improcede, assim, a primeira exceção suscitada pela Requerida.
K - Da inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI com fundamento em vícios do ato de fixação do VPT
43. Relativamente a esta exceção, cumpre sublinhar que, no caso sub judice, cabe ao Tribunal Arbitral decidir sobre a impugnabilidade da decisão de indeferimento tácito relativa a um pedido de revisão oficiosa, estando em causa a admissibilidade de impugnabilidade indireta, através de um pedido de revisão oficiosa, das Liquidações Contestadas com fundamento em erro no cálculo do VPT.
44. Questão diferente, e fora do âmbito to presente processo arbitral, é a impugnabilidade direta de atos de liquidação de IMI com fundamento em erro no cálculo do VPT, a que se refere o Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão de 27-4-2010, no processo n.º 03586/09, e no Acórdão de 12-2-2008, no processo n.º 02125/07.[1] Esta distinção é reconhecida na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 676/2021, de 15-2-2022, na qual se pode ler:
“São meios processuais diferentes, com efeitos distintos, a impugnabilidade directa de actos de liquidação, com os efeitos retroactivos próprios da declaração de anulabilidade e direito a juros indemnizatórios, e a possibilidade de revisão oficiosa, com os fundamentos previstos no artigo 78.º da LGT, com efeitos mais limitados, não retroactivos, designadamente a nível de direito a juros indemnizatórios, como resulta do disposto no artigo 43.º, n.ºs 1 e 3 da LGT.”
45. Retomando o caso em apreço, a questão decidenda prende-se com saber se é admissível a revisão de atos de liquidação de IMI com fundamento na errónea fixação do VPT em que se baseiam (nos termos do artigo 78.º da LGT), ou dito de outra forma: se o sujeito passivo pode arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação emitidos com base no mesmo.
46. Neste contexto, importa atentar ao disposto nas seguintes disposições legais:
Artigo 78.º da LGT
Revisão dos actos tributários
“1 — A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços. (…)
4 — O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.
5 — Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional. (…)”
Artigo 115.º do Código do IMI
Revisão oficiosa da liquidação e anulação
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária, as liquidações são oficiosamente revistas:
(…)
c) Quando tenha havido erro de que tenha resultado colecta de montante diferente do legalmente devido; (…)”
47. Antes de passarmos a uma análise mais detalhada da questão decidenda acima enunciada, importa realçar que, ainda que por vias e mecanismos diversos, os tribunais têm vindo a anular atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa, juntamente com os correspondentes atos de liquidação, com fundamento na errónea fixação do VPT: Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 31-10-2019, processo n.º 2765/12.BELRS; Decisão Arbitral de 10-05-2021, processo n.º 487/2020-T; Decisão Arbitral de 10-05-2021, processo n.º 254/2021-T; Decisão Arbitral de 24-06-2021, processo n.º 500/2020-T; Decisão Arbitral de 27-07-2021, processo n.º 41/2021-T; Decisão Arbitral de 10-12-2021, processo n.º 253/2021-T; Decisão Arbitral de 15-02-2022, processo n.º 676/2021-T; Decisão de 14-03-2022, processo n.º 541/2021-T; Decisão Arbitral de 05-05-2022, processo n.º 835/2021-T; Decisão Arbitral de 04-05-2022, processo n.º 497/2021-T; Decisão Arbitral de 06-05-2022, processo n.º 411/2021-T; Decisão Arbitral de 23-05-2022, processo n.º 753/2021-T; Decisão Arbitral de 21-06-2022, processo n.º 55/2022-T.
48. Para efeitos de análise da dita questão decidenda, importa distinguir entre (i) a questão de saber se o sujeito passivo pode arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de IMI emitidos com base no mesmo, e (ii) a questão de saber em que condições e limite temporal será de admitir tal pedido de revisão oficiosa.
(i) Pode o sujeito passivo arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de IMI emitidos com base no mesmo?
49. Relativamente a esta primeira questão e atendendo à posição das partes, afigura-se-nos importante salientar que a exceção ao princípio da impugnação unitária contido no artigo 54.º do CPPT aplicável a “atos destacáveis” (ou seja, a atos que, embora inseridos no procedimento tributário, e anteriores à decisão final, são direta e autonomamente impugnáveis pelo contribuinte por tal resultar expressamente da lei)[2] foi criada com o objetivo de concretizar e ampliar o princípio da tutela jurisdicional efetiva (ínsito no artigo 268.º, n.º 4, da CRP), e não de limitar ou restringir o mesmo.
50. A consideração dos atos de fixação do VPT como “atos destacáveis” têm uma razão de ser: evitar a necessidade de o sujeito passivo ter de impugnar, sucessivamente, ao longo dos anos, cada uma das liquidações neles baseadas (cfr. Decisão Arbitral de 14-03-2022, processo n.º 541/2021-T).
51. Como se pode ler no artigo 54.º do CPPT, do mesmo não resulta qualquer limitação para a impugnabilidade da decisão final (no caso em apreço, atos de liquidação de IMI) com fundamento em ilegalidade de ato interlocutório (no caso em apreço, atos de fixação de VPT):
“Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”
52. Desta norma resulta apenas e tão só que (a) em regra, os atos interlocutórios não são impugnáveis autonomamente e que os vícios dos mesmos poderem ser invocados na impugnação da decisão final, e (b) a título excecional, os atos interlocutórios podem ser impugnados autonomamente. Os atos de fixação de VPT caem nesta exceção por força do artigo 134.º, n.º 1, do CPPT (em sintonia com o artigo 86.º, n.º 1, da LGT).
53. Assim, não é controvertida a questão de saber se os atos de fixação de VPT constituem “atos destacáveis”, ou se são suscetíveis de impugnação contenciosa autónoma. Os artigos 134.º, n.º 1, do CPPT e 86.º, n.º 1, da LGT são claros a este respeito.
54. A questão relevante para o caso sub judice é a de saber se estas disposições, ao estabelecer que os atos de fixação de VPT são suscetíveis de impugnação contenciosa autónoma, têm o efeito de (1) precludir a possibilidade de o sujeito passivo arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de IMI emitidos com base no mesmo (caso em que a impugnação autónoma dos atos de fixação de VPT se torna num verdadeiro ónus), ou (2) conferir ao sujeito passivo a possibilidade de impugnar os atos de fixação de VPT de forma autónoma, a que acresce a possibilidade de posteriormente contestar a validade das liquidações baseadas no VPT erradamente fixado através de pedido de revisão oficiosa.
55. Quanto a esta questão, considera o Tribunal que os artigos 134.º, n.º 1, do CPPT e 86.º, n.º 1, da LGT (que permitem a impugnação autónoma dos atos de fixação do VPT) devem ser entendidos, não como uma restrição às garantias dos contribuintes, ou como um ónus sobre o sujeito passivo, o que seria a consequência da posição sustentada pela Requerida, mas antes como uma ampliação dessas garantias, uma ampliação materializada no reconhecimento aos contribuintes de uma defesa adicional contra um ato ilegal (no mesmo sentido: Decisão Arbitral de 02-07-2021, processo n.º 760/2020-T). Senão vejamos.
56. Por um lado, interessa sublinhar que a interpretação contrária (subscrita pela Requerida) não resulta expressamente na lei processual e seria ela mesma contrária ao disposto no artigo 7.º do CPTA (aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT), no qual se pode ler que “Para efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”.
57. Por outro lado, parece-nos que a interpretação da lei processual subscrita pela Requerida ofende o princípio da justiça e o princípio da tutela jurisdicional efetiva (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP).
58. A este respeito, importa recordar que, no Acórdão n.º 410/2015, de 29-09-2015, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do CPPT que, qualificando a impugnação de “atos destacáveis” como um ónus e não como uma faculdade do sujeito passivo, impede a impugnação das liquidações de imposto com fundamento em vícios dos “atos destacáveis”, por a mesma desproteger gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo o princípio da justiça e o princípio da tutela judicial efetiva (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP). Segundo o Tribunal Constitucional, de tal interpretação resultaria “uma consequência muito onerosa para o contribuinte, permitindo a consolidação na ordem jurídica de atos que o prejudicam gravemente”.
59. Por último, uma nota relativamente à relevância do princípio da segurança jurídica e da figura do caso decidido dos atos administrativos que nele se alicerça.
60. É inquestionável que este princípio é não só essencial como constitutivo do Estado de Direito. Todavia, importa lembrar que o princípio da segurança jurídica, nas suas diversas vertentes (incluindo o caso decidido dos atos administrativos), tem em vista primordialmente a proteção dos cidadãos contra a arbitrariedade e abusos de poder por parte do poder legislativo, executivo e judicial.
61. A este propósito, escreveu o Professor Gomes Canotilho:
“O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito”.[3]
“Relativamente aos actos da administração, o princípio geral da segurança jurídica aponta para a idea de força de caso decidido dos actos administrativos. Embora não haja uma paralelismo entre sentença judicial e força de caso julgado e acto administrativo e força de caso decidido (...) entende-se que o acto administrativo goza de uma tendencial imutabilidade que se traduz: (1) na autovinculação da administração (...) na qualidade de autora do acto e como consequência da obrigatoriedade do acto; (2) na tendencial irrevogabilidade do acto administrativo a fim de salvaguardar os interesses dos particulares destinatários do acto (protecção da confiança e da segurança)”.[4]
“Tendo em conta as exigências resultantes dos princípios de protecção da confiança e da segurança jurídica (direitos dos particulares directamente interessados, direitos de terceiros) não se vê como é que a anulação de actos inválidos possa ser uma faculdade discricionária. Os princípios da constitucionalidade e da legalidade não se compaginam com uma “arrogância” da administração sobre os próprios vícios. Ela deverá anular ou sanar os vícios nos termos da lei”. [5]
62. Resulta assim claro que a tendencial imutabilidade dos atos administrativos associada à força de caso decidido dos mesmos deverá ser entendida como um mecanismo tendente à salvaguarda dos interesses dos particulares, e não como um argumento usado para a AT se recusar a sanar os vícios dos atos que pratica.
63. A mesma vertente de proteção dos cidadãos do princípio da segurança jurídica foi referida no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-11-2017, no processo n.º 0164ª/64, no qual se pode ler:
“Os citados princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado.”
64. Temos que o princípio da segurança jurídica, orientado para a proteção dos cidadãos, não deverá ser interpretado ou utilizado como fundamento para negar aos cidadãos um direito ou uma garantia processual prevista na lei, ou, relativamente à questão em apreço, como fundamento para negar ao sujeito passivo a possibilidade de arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação emitidos com base no mesmo (ao abrigo do artigo 78.º da LGT). Tal interpretação, para além de carecer de base legal, seria ofensiva do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do princípio da justiça (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP).
65. À luz de todas estas considerações, temos que o princípio da legalidade, o princípio da tutela jurisdicional efetiva e o princípio da justiça ínsitos na nossa Constituição impõem afastar a interpretação do artigo 54.º do CPPT, conjugado com o artigo 134.º, n.º 1, do CPPT, segundo a qual a possibilidade de impugnação autónoma e imediata dos atos de fixação de VPT (enquanto “atos destacáveis”) constituiria um ónus cujo incumprimento inviabilizaria o pedido de revisão oficiosa das liquidações de IMI emitidas posteriormente, com fundamento em erro no cálculo do VPT que serviu de base às mesmas liquidações.
66. Conclui-se, assim, que os sujeitos passivos podem arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de IMI emitidos com base no mesmo, e que o indeferimento (expresso ou tácito) do pedido de revisão oficiosa faz nascer na esfera jurídica do sujeito passivo o direito a impugnar este indeferimento. O pedido de pronúncia arbitral constitui meio adequado para o efeito.
(ii) Em que condições e limite temporal será de admitir um pedido de revisão oficiosa de um ato de liquidação de IMI com fundamento na errónea fixação do VPT?
67. Tal como resulta do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul e das Decisões Arbitrais referidas supra, a jurisprudência mais recente tem vindo a confirmar a admissibilidade da sindicância da ilegalidade de atos de liquidação de IMI com fundamento na errónea fixação do VPT, por via de pedido de revisão oficiosa.
68. A jurisprudência não é uniforme, no entanto, relativamente às condições e limite temporal em que tal pedido de revisão oficiosa será de admitir: (a) no prazo de quatro anos, ao abrigo dos artigos 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI, e 78.º, n.º 1, da LGT, ou (b) no prazo de três anos, ao abrigo do artigo 78.º, n.ºs 4 e 5, da LGT.
69. A este respeito, temos que, no âmbito da ponderação dos pressupostos processuais dos mecanismos invocados pelas partes, os princípios antiformalista, “pro actione” e “in dubio pro favoritate instanciae” impõem uma interpretação que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva.
70. Assim, suscitando-se quaisquer dúvidas interpretativas nesta área, temos que se deverá optar por aquela que favoreça a ação e assim se apresente como a mais capaz de garantir a real tutela jurisdicional dos direitos invocados pelo sujeito passivo.
71. Com este fundamento, entendemos ser de reconhecer ao Requerente o direito de apresentar um pedido de revisão oficiosa contra as Liquidações Contestadas com fundamento na incorreta fixação dos VPTs dos terrenos em construção identificados supra, ao abrigo dos artigos 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI, e 78.º, n.º 1, da LGT, por erro imputável à AT no âmbito do procedimento de fixação dos VPTs em causa.
72. Esta posição foi, aliás, acolhida pelo Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão proferido no processo n.º 2765/12.BELRS, em 31-10-2019, que se transcreve parcialmente abaixo:
“É verdade que uma vez firmada a fixação do VPT, por não ter sido utilizado qualquer dos meios de defesa ao dispor do contribuinte, nos termos do artigo 20.º do Decreto-Lei 267/2003, esse VPT servirá de base às liquidações de IMI subsequentes, até eventual alteração do seu valor.
De facto, deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o VPT, nem assim fica impossibilitado de arguir a ilegalidade do VPT fixado, embora com efeitos restritos às liquidações posteriores à reclamação. Defender o contrário é o mesmo que defender a perpetuidade da conduta ilegal da Administração, o que repugna ao bom senso e ao Direito admitir.
Assim, no plano do Direito o artigo 115.º do CIMI constitui uma válvula de escape para tais situações, devendo o respectivo mecanismo ser desencadeado pela Administração, por sua iniciativa ou a impulso do interessado.
Ora, uma das hipóteses contempladas neste normativo é a eliminação de erros de que resulte uma colecta de montante superior ao devido [al. c) do n.º 1].
Por conseguinte, não se pode falar em verdadeira impropriedade do meio, sendo certo que ainda que se admita essa hipótese, como a administração apreciou o direito da recorrida, tal apreciação fez nascer na esfera jurídica desta o direito à impugnabilidade da decisão, nos termos do artigo 268.º, n.º 4, da CRP.
Restringir ou eliminar essa impugnabilidade constituiria, outrossim, uma agressão manifesta ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, plasmado nessa norma constitucional. (...)
A fixação do VPT constitui, como se disse, um acto administrativo em matéria tributária, destacável e, por isso, passível de impugnação autónoma. A impugnação autónoma dos actos destacáveis tem como propósito oferecer uma maior garantia aos administrados, permitindo-lhes reagir atempadamente de molde a evitar a produção de efeitos lesivos, que se projectam no acto final do procedimento ou em actos externos a este.
A impugnabilidade autónoma constitui um desvio ao princípio da impugnação unitária (cfr. artigo 54.º do CPPT), que postula que em princípio só é possível impugnar o acto final do procedimento tributário, por só este apresentar efeitos lesivos na esfera jurídica do contribuinte. Este artigo prevê a possibilidade de impugnabilidade autónoma dos actos imediatamente lesivos e a possibilidade de, na impugnação do acto final de liquidação, serem invocados todos os vícios de que padeçam os actos prévios a essa liquidação (actos instrumentais, preparatórios ou prodrómicos dessa decisão final).
Como assim, sendo a fixação do VPT um acto destacável, ele goza de possibilidade de impugnação autónoma, independentemente da existência ou não de liquidação, impugnação essa que no caso era permitida pelo artigo 20.º do Dec.-Lei 287/2003.
Portanto, não tendo sido impugnada a fixação do VPT, facto que a recorrida aceita, parece que a consequência seria a de aceitar que as liquidações feitas a coberto desse VPT, enquanto não fosse alterado, não podiam também ser alteradas com tal fundamento.
Mas o problema pode ser olhado de outro prisma.
Em regra, os actos da Administração, com excepção dos actos viciados de nulidade, consolidam-se juridicamente se não forem impugnados nos prazos estabelecidos na lei.
Todavia, mesmo fora das situações de nulidade o legislador tributário, ciente da natureza agressiva das leis fiscais, que afectam coercivamente o património dos contribuintes, criou válvulas de escape para as situações de ilegalidade, permitindo que a própria Administração reveja as suas decisões, a fim de corrigir as ilegalidades que porventura tenha cometido.
É o que sucede com o artigo 78.º da LGT, que prevê a possibilidade de revisão dos actos tributários com fundamento em ilegalidade ou erro, mecanismo que se encontra presente na legislação tributária de outros países, como sucede em Espanha com o artigo 219.º da Ley General Tributária.
O artigo 78.º da LGT consagra um verdadeiro direito do contribuinte, permitindo-lhe exigir da administração tributária que expurgue da ordem jurídica, total ou parcialmente, um acto ilegal, bem como a restituição do que tenha sido ilegalmente cobrado, com base no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que não permite a cobrança de tributos, nem os respectivos montantes, que não estejam previstos na lei.
Todavia, como já se disse, o artigo 78.º é inaplicável aos actos de fixação do VPT (actos administrativos em matéria fiscal), na medida em que visa apenas os actos tributários stricto sensu, incluindo o acto de determinação da matéria tributável, quando não dê lugar à liquidação e qualquer tributo. O que não quer dizer que seja de todo imprestável para o caso sub judice, visto que a coberto de um VPT ilegal foram produzidas liquidações de tributo (IMI) que foram exigidas à recorrida.
Ora, ultrapassada que está actualmente a questão de saber se a iniciativa de revisão pela administração pode ser desencadeada a impulso do interessado, da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo 78.º da LGT com o disposto no artigo 115.º, n.º 1, alínea c), do CIMI, resulta que a revisão oficiosa das liquidações deve ser realizada pela administração tributária, ainda que sob impulso inicial do contribuinte, quando tenha ocorrido erro imputável aos serviços.
O que se verifica, precisamente, no caso em apreço, erro esse que se traduziu até numa injustiça grave e notória concretizada na fixação de um VPT em valor claramente superior ao que resultaria das disposições legais que deveriam ter sido aplicadas.
Erro esse que, independente da inércia impugnatória da recorrida após a notificação do VPT, não pode ser imputável a qualquer comportamento negligente desta, visto que o erro no cálculo e fixação do VPT ocorre num procedimento desencadeado e concretizado pela administração e que sempre justificaria a revisão ao abrigo do n.º 4 do normativo em questão, se o n.º 1 não fosse inteiramente aplicável.
O que reforça o entendimento de que o direito que a recorrida reclamou, de ver as últimas quatro liquidações anteriores à reclamação serem anuladas, ter pleno apoio legal.”
73. A mesma posição foi também acolhida pelo Tribunal Arbitral no âmbito do processo n.º 297/2021-T, por Decisão de 22-02-2022, na qual se pode ler:
“O ato de fixação do VPT é regulado no artigo 134.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), que estabelece a possibilidade de impugnação contenciosa “depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação” (n.º 7).
Importa, contudo, saber se o condicionamento da impugnação ao esgotamento dos meios graciosos tem como consequência a consolidação das liquidações efetuadas ao abrigo desse VPT, isto é, a impossibilidade (jurídica) de estas serem alteradas com fundamento no VPT (só o podendo ser as geradas depois da alteração do VPT, com efeitos apenas para o futuro). Antecipamos já uma resposta negativa a esta questão, com os fundamentos que se aduzem de seguida.
Em primeiro lugar, recordam-se as palavras do TCA Sul, no acórdão de 31 de outubro de 2019, processo n.º 2765/12.8BELRS: “o legislador tributário, ciente da natureza agressiva das leis fiscais, que afectam coercivamente o património dos contribuintes, criou válvulas de escape para as situações de ilegalidade, permitindo que a própria Administração reveja as suas decisões, a fim de corrigir as ilegalidades que porventura tenha cometido.”
É a esta luz que tem de apreciar-se o mecanismo de revisão dos atos tributários, conformado, em geral, pelo artigo 78.º da LGT, e, em matéria de IMI, pelo preceituado no artigo 115.º do CIMI. A inclusão de normas deste tipo nos compêndios tributários é justificada pelo reforço das garantias de defesa dos contribuintes e elevação dos meios de tutela das respetivas posições substantivas, sem que tal colida com o princípio fundamental da segurança jurídica, inerente ao Estado de Direito, pois é circunscrita a um quadro temporal pré-definido, de 4 ou 3 anos, consoante esteja em causa a aplicação do n.º 1 ou do n.º 4 do artigo 78.º da LGT. (...)
Estamos perante “um verdadeiro direito do contribuinte, permitindo-lhe exigir da administração tributária que expurgue da ordem jurídica, total ou parcialmente, um ato ilegal, bem como a restituição do que tenha sido ilegalmente cobrado, com base no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que não permite a cobrança de tributos, nem os respetivos montantes, que não estejam previstos na lei.” – v. acórdão do TCA Sul, processo n.º 2765/12.8BELRS.
Quer em relação ao artigo 78.º, n.º 1 da LGT, quer ao artigo 115.º, n.º 1, alínea c) do Código do IMT, a revisão oficiosa reporta-se, no seu sentido literal, a ilegalidades dos atos tributários stricto sensu - atos de liquidação de IMI2 - e não à avaliação (ou a atos de avaliação) de valores patrimoniais, que consubstanciam atos administrativos em matéria fiscal. Já no que se refere ao n.º 4 do artigo 78.º da LGT, este faz referência à “revisão da matéria coletável” e não a “atos tributários”, pelo que abrange, sem dúvida, atos de fixação de valores patrimoniais. Aqui, não constitui requisito constitutivo do direito à revisão a ocorrência de “erro imputável aos serviços”, porém, requer-se o fundamento de “injustiça grave ou notória”, sendo o prazo encurtado para três anos (posteriores ao do ato tributário). Relativamente a este ponto – do enquadramento da situação em análise no n.º 1 ou no n.º 4 do artigo 78.º da LGT – a jurisprudência diverge. O acórdão do TCA Sul, que se acompanha, preconiza uma interpretação extensiva, segundo a qual o artigo 78.º, n.º 1 da LGT é invocável também no domínio dos atos de fixação de valores patrimoniais, não obstante estar em causa matéria de avaliação de VPT, “visto que a coberto de um VPT ilegal foram produzidas liquidações de tributo (IMI) que foram exigidas à recorrida.” Assim, na medida em que esses atos de avaliação se repercutem em liquidações de imposto de valor superior ao que resultaria da correta aferição da base de incidência, não existe razão para que não mereçam um nível de tutela similar. (...)
Efetivamente a fixação do VPT foi efetuada pela Requerida, não sendo alegado nem demonstrado que o Requerente tivesse declarado algum elemento de informação errado em relação aos terrenos para construção avaliados, pelo que o eventual erro da fórmula aplicada não pode ser imputado a um comportamento negligente daquele. Esta é também a interpretação que, segundo entendemos, melhor se coordena com o nível de proteção acrescido dos contribuintes que está subjacente à instituição do regime de revisão oficiosa e ao princípio da legalidade e da tutela efetiva das posições substantivas que lhes assistem. Conclui-se, desta forma, pela admissibilidade e tempestividade da revisão oficiosa das liquidações de IMI impugnadas na presente ação arbitral pois mesmo relativamente aos atos praticados em 2016 (referentes ao ano de 2015), o prazo de 4 anos foi respeitado pois o pedido de revisão oficiosa foi apresentado ainda no ano de 2020 (…)”
74. Também no sentido da aplicação do n.º 1 do artigo 78.º da LGT foram as Decisões Arbitrais de 24-06-2021, processo n.º 500/2020-T; de 09-03-2022, processo n.º 540/2021-T; de 04-05-2022 processo n.º 497/2021-T; de 05-05-2022, processo n.º 835/2021-T; de 21-06-2022, processo n.º 55/2022-T.
75. À luz desta jurisprudência, que o presente Tribunal Arbitral acompanha, cumpre apenas referir que, no caso sub judice, caso se determine que o VPT foi fixado pela AT de forma incorreta, tal erro será de imputar à AT, que não alegou nem logrou provar que o Requerente declarou algum elemento de informação errado em relação aos terrenos para construção identificados supra.
76. Conclui-se, assim, que é admissível, nos termos dos artigos 115.º, n.º 1, alínea c), do Código do IMI, e 78.º, n.º 1, da LGT, o pedido de revisão oficiosa das Liquidações Contestadas apresentado pelo Requerente com fundamento em vícios de fixação do VPT, bem como o PPA do indeferimento tácito que se formou sobre o mesmo.
77. Nestes termos, improcede a exceção invocada pela Requerida relativa à inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI com base em vícios na fixação do VPT.
L - Da intempestividade do pedido de revisão oficiosa
78. A Requerida defende que o pedido de revisão oficiosa do ato de avaliação dos terrenos para construção só seria possível através do artigo 78.º, n.ºs 4 e 5, da LGT, no prazo de três anos.
79. Todavia, conforme resulta do referido anteriormente, considera o Tribunal Arbitral que o prazo de revisão oficiosa aplicável é o do n.º 1 do artigo 78.º da LGT (quatro anos).
80. Da leitura conjugada dos artigos 78.º, n.º 1, da LGT e 129.º, n.º 2, do Código do IMI resulta que o referido prazo de quatro anos começa a contar a partir do termo do prazo para pagamento voluntário da última prestação de IMI.
81. Visto que o prazo para pagamento voluntário da última prestação de IMI de 2016 terminou em 30-11-2017, e que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 23-09-2021, conclui-se que o mesmo é tempestivo em relação à liquidação de IMI do ano de 2016, bem como em relação às liquidações de IMI dos anos seguintes (2017, 2018 e 2019).
82. Improcede, assim, também esta exceção invocada pela Requerida.
M - Da ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e das Liquidações Contestadas, por erro no cálculo do VPT dos terrenos para construção
83. O Requerente alega que as Liquidações Contestadas são ilegais porque baseadas em VPTs de terrenos para construção fixados tendo em consideração os coeficientes de localização, de afetação e de qualidade e conforto referidos no 38.º do Código do IMI, que regula o cálculo do VPT de prédios urbanos.
84. Defende o Requerente que o VPT dos terrenos para construção é fixado nos termos do artigo 45.º do Código do IMI, que, na redação em vigor à data dos factos, estabelecia uma fórmula de cálculo que não incluía os coeficientes referidos no 38.º do Código do IMI.
85. Na Resposta que apresentou em 11-05-2022, a Requerida não contestou a correção da interpretação do artigo 45.º do Código do IMI proposta pelo Requerente no PPA.
86. Temos que assiste razão ao Requerente: para a determinação do VPT dos terrenos para construção, o legislador consagrou a regra específica constante do artigo 45.º do Código do IMI, onde se tem em conta o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à construção bem como as características de acessibilidade, proximidade, serviços e localização descritas no artigo 42.º, n.º 3, do Código do IMI, mas não os coeficientes previstos na expressão matemática contida no artigo 38.º do Código do IMI.
87. Esta interpretação resulta da leitura conjugada das normas previstas nos artigos 42.º, n.º 3, e 45.º do Código do IMI, na redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (vigente até à entrada em vigor da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro), que estabelecem o seguinte:
Artigo 42.º
Coeficiente de localização
3 - Na fixação do coeficiente de localização têm-se em consideração, nomeadamente, as seguintes características:
a) Acessibilidades, considerando-se como tais a qualidade e variedade das vias rodoviárias, ferroviárias, fluviais e marítimas;
b) Proximidade de equipamentos sociais, designadamente escolas, serviços públicos e comércio;
c) Serviços de transportes públicos;
d) Localização em zonas de elevado valor de mercado imobiliário.
Artigo 45.º
Valor patrimonial tributário dos terrenos para construção
1 - O valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é o somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor do terreno adjacente à implantação.
2 - O valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas.
3 - Na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação têm-se em consideração as características referidas no n.º 3 do artigo 42.º.
4 - O valor da área adjacente à construção é calculado nos termos do n.º 4 do artigo 40.º .
5 - Quando o documento comprovativo de viabilidade construtiva a que se refere o artigo 37.º apenas faça referência aos índices do PDM, devem os peritos avaliadores estimar, fundamentadamente, a respectiva área de construção, tendo em consideração, designadamente, as áreas médias de construção da zona envolvente. (aditado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30-12).
88. A interpretação avançada pelo Requerente tem suporte na jurisprudência dos Tribunais Superiores e dos Tribunais Arbitrais, que acompanhamos, nomeadamente nos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo uniformizadores de jurisprudência, de 03-07-2019, proferido no processo n.º 016/10.9BELLE, e de 21-09-2016, proferido no processo n.º 01083/13.
89. No Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 03-07-2019, proferido no processo n.º 016/10.9BELLE, pode ler-se:
“Na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não tem aplicação integral a fórmula matemática consagrada no artigo 38.º do CIMI onde expressamente se prevê, entre outros o coeficiente de qualidade e conforto.
Para a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, o legislador consagrou a regra específica constante do supra referido artigo 45.º do CIMI e não outra, onde se tem em conta o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à implantação bem como as caraterísticas de acessibilidade, proximidade, serviços e localização descritas no n.º 3 do artigo 42.º, tendo em conta o projeto de construção aprovado, quando exista, e o disposto no n.º 2 do artigo 45.º do CIMI, mas não outras caraterísticas ou coeficientes”.
90. Este entendimento encontra-se igualmente acolhida em outros acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, designadamente nos Acórdãos:
– de 04-05-2017, processo n.º 01107/16 (“Na fórmula final de cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse factor de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no nº 3 do art. 45º do CIMI”);
– de 28-06-2017, processo n.º 0897/16 (“Os coeficientes de afectação e conforto, factores multiplicadores do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto. III – Na fórmula final de cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse factor de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no nº 3 do art. 45º do CIMI”);
– de 16-05-2018, processo n.º 0986/16 (“O coeficiente de qualidade e conforto, factor multiplicador do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços e bem assim o coeficiente de afectação não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto (IMI)”;
– de 14-11-2018, processo n.º 0133/18.2BECTB (“No cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse fator de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no nº 3 do art. 45º do CIMI”);
– 23-10-2019, processo n.º 170/16.6BELRS 0684/17 (“os coeficientes de localização, qualidade e conforto, factores multiplicadores do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços e bem assim o coeficiente de afectação não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto (IMI)”);
– de 13-01-2021, processo n.º 0732/12.0BEALM 01348/17 (“Relativamente à avaliação de terrenos para construção, sobre o que regula o art. 45.º do C.I.M.I., não são de aplicar os coeficientes ou características não especificamente previstos, entre os quais o coeficiente de qualidade e conforto”).
91. No mesmo sentido, as Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 672/2021-T; 615/2021-T; 541/2021-T; 540/2021-T; 297/2021-T; 41/2021-T; 760/2020-T; 487/2020-T; 485/2020-T; 483/2020-T; 835/2021-T; 55/2022-T; 497/2021-T; 411/2021-T.
92. Conclui-se, assim, que a avaliação dos terrenos para construção em apreço devia ter sido efetuada sem aplicação dos coeficientes não especificamente previstos no artigo 45.º do Código do IMI, nomeadamente dos coeficientes de localização, de qualidade e conforto e de afetação referidos no artigo 38.º do Código do IMI.
93. Pelos motivos expostos, julga-se procedente o pedido de declaração de ilegalidade parcial das Liquidações Contestadas, na parte relativa aos terrenos para construção inscritos na matriz predial sob o n.ºs U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-..., da freguesia de ..., por enfermarem de vício de violação da lei por erro sobre os pressupostos de Direito, anulando-se o valor de € 569.603,06, e declarando-se ilegal o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente em 23-09-2021.
94. Face a tudo o que se expôs, torna-se evidente que o Tribunal Arbitral limita-se a apreciar questões de legalidade segundo o direito constituído, não tendo cabimento a invocação da Requerida do princípio da proibição legal do julgamento segundo a equidade.
N – Da inconstitucionalidade do artigo 45.º do Código do IMI
95. Face à solução a que se chega no plano do direito infraconstitucional, fica prejudicado o conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada pelo Requerente.
O – Do pedido de reembolso acrescido de juros indemnizatórios
96. O Requerente pede que a Requerida seja condenada a restituir-lhe o imposto indevidamente pago, no montante de € 569.603,06, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 24.º, n.ºs 1, alínea b), e 5, do RJAT, 43.º e 100.º da LGT.
97. Decorre do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT que a AT tem o dever de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado.
98. O n.º 5 do mesmo artigo reconhece ao sujeito passivo o direito a juros indemnizatórios, remetendo para os artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.
99. O artigo 43.º, n.º 1, da LGT refere que: “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”
100. O artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT institui uma disciplina específica para os casos de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, constituindo-se a obrigação de indemnizar na esfera da AT somente depois de decorrido um ano a contar do pedido de revisão, salvo se o atraso não for imputável à AT (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de uniformização de jurisprudência, de 11-12-2019, processo n.º 051/19.1BALSB; Decisão Arbitral de 09-03-2022, processo n.º 540/2021-T; Decisão Arbitral de 05-05-2022, processo n.º 835/2021-T).
101. No caso sub judice, tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado em 23-09-2021, os juros indemnizatórios só seriam devidos após 23-09-2022.
102. Improcede, com este fundamento, o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
103. Em suma, a restituição do montante de € 569.603,06 ao Requerente, devida em virtude da anulação das Liquidações Contestadas e do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, não deverá ser acompanhada do pagamento de juros indemnizatórios.
IV. DECISÃO
Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar improcedentes as exceções suscitadas pela Requerida.
b) Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, e consequentemente:
i) Declarar ilegal e anular o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente em 23-09-2021;
ii) Declarar ilegal e anular parcialmente as seguintes liquidações de IMI e respetivas notas de cobrança, na parte respeitante ao IMI ilegalmente liquidado com referência aos terrenos para construção inscritos na matriz predial sob os n.ºs U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-..., da freguesia de...:
- Liquidação de IMI n.º ..., de 08-11-2017, relativa ao ano de 2016, juntamente com a nota de cobrança n.º 2016 ..., de 25-10-2017;
- Liquidação de IMI n.º ..., de 19-02-2018, relativa ao ano de 2017, juntamente com as notas de cobrança n.ºs 2017..., de 20-03-2018, 2017..., de 19-06-2018, 2017..., de 22-10-2018;
- Liquidação de IMI n.º ..., de 09-03-2019, relativa ao ano de 2018, juntamente com as notas de cobrança n.ºs 2018 ..., de 04-04-2019, 2018 ..., de 17-07-2019, 2018 ..., de 17-10-2019;
- Liquidação de IMI n.º ..., de 18-03-2020, relativa ao ano de 2019, juntamente com as notas de cobrança n.ºs 2019..., de 20-04-2020, 2019..., de 23-07-2020, 2019..., de 04-10-2020.
iii) Condenar a Requerida no reembolso do montante de € 569.603,06.
c) Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, por o prazo de um ano a contar da apresentação do pedido de revisão oficiosa referido no artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT só terminar em 23-09-2022.
V. VALOR DO PROCESSO E CUSTAS ARBITRAIS
Fixa-se o valor do processo em € 569.603,06, correspondente ao valor contestado pelo Requerente (tal como indicado no PPA, e não contestado pela Requerida), e em conformidade fixam-se as custas arbitrais em € 8.568,00, a cargo da Requerida em razão do decaimento, de acordo com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, no n.º 2 do artigo 12.º do RJAT, no artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e da Tabela I anexa a este último.
Notifique-se.
Lisboa, 18 de julho de 2022
As árbitros,
Rita Correia da Cunha (presidente)
Ana Teixeira de Sousa (árbitra vogal)
Rita Guerra Alves (árbitra vogal)
[1] Não se percebe a referência da Requerida ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15/02/2017, proferido no processo n.º 0633/14, que não contém a citação referida pela Requerida, antes tratando de uma avaliação da matéria coletável por métodos indiretos, para efeitos de IRS, nos termos dos artigos 87.º e 89.º-A da LGT.
[2] Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado – vol I (5ª edição, Áreas Editora 2006), página 424 (anotação ao artigo 54.º do CPPT).
[3] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição (4ª ed., Almedina 2000), página 256.