Sumário:
I. As noções de “residência fiscal” e de “domicílio fiscal” são diferentes, pois, enquanto o conceito de residência integra a hipótese de normas tributárias substantivas, determinantes da existência e da extensão da obrigação de imposto, a questão do domicílio fiscal projeta-se em consequências processuais.
II. O dever de comunicação, previsto no artigo 19.º, n.º 3, da LGT, não se trata de formalidade ad substanciam, pelo que a sua preterição não tem necessária e definitivamente impacto em termos de tributação.
III. O conceito de não residência fiscal resulta a contrario do próprio Código do IRS, uma vez que todos aqueles que não preencherem um dos critérios de residência fiscal previstos no artigo 16.º do Código do IRS deverão ser considerados não residentes fiscais em Portugal.
IV. Não existe qualquer norma legal, nomeadamente no Código do IRS, que condicione/limite os meios de prova de que o contribuinte se pode servir para comprovar a sua residência fiscal, designadamente exigindo a apresentação de um certificado de residência fiscal emitido pelas autoridades fiscais de outro país.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. No dia 22 de janeiro de 2022, A..., NIF..., residente na Rua ..., ..., ..., ...-... Portimão (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante, abreviadamente designado RJAT), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade e anulação:
(i) do ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2021...; e
(ii) do ato de liquidação de IRS n.º 2021..., respeitante ao ano de 2017 e do qual resultou o valor a pagar de € 1.993,92.
O Requerente juntou prova documental, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas.
É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).
2. Como resulta do pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA), o Requerente alega, essencialmente, o seguinte que passamos a citar:
“- De Novembro de 2014 a Janeiro de 2018 o requerente sempre residiu em Inglaterra e aí pagou os seus impostos sobre o rendimento (Income Tax) e efetuou os descontos para a Segurança Social (National Insurance) bem como para um Plano de Poupança Reforma privado.
- Tendo regressado a Portugal em Janeiro de 2018 e comunicado tal facto ao HMRC.
- Dado que o ano fiscal no Reino Unido é de Abril a Abril, ou seja de 06/04/2017 a 05/04/2018 e atendendo à comunicação de alteração de residência ao HMRC por parte do requerente, aquele organismo procedeu ao acerto fiscal em 20/02/2018 e, dado que a empresa onde o requerente prestou serviço havia feito retenções na fonte no valor de £2.669,40 e o valor apurado de imposto a pagar foi de £2.287,60, o HMRC reembolsou ao requerente o valor de £381,80, (…).
- Sucede que em Maio de 2018, ao preencher o Mod. 3 do IRS relativo ao ano de 2017, o requerente declarou apenas os rendimentos auferidos em Portugal e que foram apenas relativos às categorias G e F, pela venda de 12,5% de um imóvel herdado de uma tia, no valor de 250€ (Anexo G) e 25% das rendas de um imóvel herdado dos seus pais, no valor de €402,50 (Anexo F).
- Tendo feito de acordo com n.º 2 do art. 5.º do CIRS (…), uma vez que à data da declaração já estar a residir novamente em Portugal, por lapso, o requerente colocou na seção relativa a “Residência” a cruz em “Continente” em vez de “Não Residente”.
- Em 31/08/2021 o requerente foi notificado pela AT para preencher a declaração de alterações e o respetivo anexo J relativamente aos rendimentos obtidos no Reino Unido durante o ano de 2017 no valor de 24.289,53€ e impostos lá pagos no valor de 2.833,61€.
- E nesse sentido o requerente procedeu ao preenchimento de uma declaração de alterações, preenchendo o anexo J com os valores fornecidos pela AT, assinalando que passou no estrangeiro mais de 183 dias nesse ano de 2017.
- Foi novamente notificado pela AT para fazer a liquidação adicional de IRS n.º 2021... no valor de €1.776,24 acrescidos de €217,68 de juros de mora, tributando-o como residente em Portugal durante o ano de 2017.
- (…), considera-se que neste caso deveria ser aplicável o art. 15.º/1 da convenção entre Portugal e o R.U. de modo a evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de IRS.
- Daqui se retira que se este for considerado “residente fiscal” no R.U. nos anos de 2015 a 2017, só aí os seus rendimentos podem ser tributados e foi o que aconteceu em 2015 e 2016.
- Portanto não se percebe porque são tratados de maneira diferente os rendimentos da categoria A aí auferidos durante o ano de 2017.
- De 2015 a Dezembro de 2017 o requerente teve contrato de trabalho com uma entidade sediada no R.U. de norma B..., LTD, (…).
(…)
- Ao contrário do que a AT fundamenta, a falta de alteração do registo do domicílio fiscal em Portugal não é determinante do estatuto de residência, o qual é sim determinado pelo artigo 16.º do Código do IRS e no seu n.º 1 (…).
- Considerando ilegais os atos de liquidação, por erro quanto aos pressupostos de direito, foi solicitado por parte do requerente junto da AT a anulação dos mesmos, mediante a apresentação da Reclamação Graciosa n.º ...2021... (…).
(…)
- É convicção do requerente que a decisão da AT em admitir apenas como prova da sua residência fiscal no estrangeiro, a apresentação do Certificado de Residência Fiscal emitido pelas autoridades fiscais do Reino Unido viola não só o art. 72.º da LGT, (…), como também o n.º 1 do art. 365.º do Código Civil.
- No dia 10/12/2021 o requerente recebeu finalmente a carta de confirmação de residência fiscal solicitada ao HMRC que havia sido solicitada no dia 01/10/2021, tendo-a reencaminhado de imediato para a AT, (…).
(…)
- A isto respondeu a AT 20/10/2021, que da troca de informação com as Autoridades Fiscais do Reino Unido, este havia sido tratado fiscalmente como não residente no Reino Unido e residente em Portugal. (…), vem agora a AT questionar a forma e não o conteúdo da informação oficial facultada pelas Autoridades Fiscais daquele país.”
3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 26 de janeiro de 2022.
4. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 11 de março de 2022, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 29 de março de 2022.
5. No dia 17 de maio de 2022, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou os argumentos aduzidos pelo Requerente, tendo concluído pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
A Requerida não requereu a produção de quaisquer provas, tendo apenas procedido à junção do processo administrativo (doravante, PA).
A Requerida alicerçou a sua Resposta, essencialmente, na seguinte argumentação que passamos a citar:
“- Por consulta ao Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes, verificou-se que o requerente:
- O contribuinte é residente fiscal em Portugal desde, pelo menos, 13/03/2012, situação que se mantém até à presente data;
- Em 20/10/2017 efetuou pedido de liquidação de IMT relativa a aquisição onerosa de imóvel, mediante a apresentação de declaração Modelo 1 de IMT, na qual declarou ser residente em território nacional;
- Em 06/05/2018, na declaração de rendimentos relativa ao ano de 2017, o contribuinte qualificou-se como residente fiscal em Portugal.
(…)
- (…) o alegado erro quanto à declaração de residência em território português por parte do Requerente, no ano de 2017, nunca seria imputável à AT, por se tratar duma declaração do próprio, que a AT toma como verdadeira e de boa-fé, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º da LGT (…).
(…)
- (…), foi o contribuinte que inicialmente declarou ser residente fiscal em Portugal, pelo que pretendendo a alteração do estatuto de residente para o de não residente em território português e consequentemente a tributação como não residente em território nacional, é ao mesmo que compete o ónus da prova do alegado, de acordo com o que dispõe o artigo 74.º, n.º 1 da LGT.
- De facto, (…), é sobre o Requerente que recai o ónus de provar a sua condição de não residente em Portugal / residente no Reino Unido no ano de 2017, uma vez que foi ele que a invocou contrariando o seu cadastro fiscal à data.
- Sendo que tal prova deveria ter sido efetuada mediante a apresentação de um certificado de residência fiscal emitido pelas autoridades fiscais inglesas, (…).
(…)
- Embora o requerente alegue que foi residente no Reino Unido a totalidade do ano de 2017, tendo junto ao pedido um documento denominado Letter of confirmation of residence, como refere a DSRI este não pode ser qualificado como um certificado de residência fiscal para efeitos do artigo 4.º da Convenção celebrada entre Portugal e Espanha [tratar-se-á certamente de um lapso, querendo dizer-se Reino Unido] no referido ano.
- E, da análise aos documentos enviados (…) como comprovativos da sua residência fiscal no Reino Unido, os mesmos não devem ser aceites.
- Pois, ao contrário do alegado pelo sujeito passivo, ora Requerente, os documentos apresentados segundo as autoridades fiscais do Reino Unido, não configuram um certificado de residência fiscal nos termos da CDT celebrada entre Portugal e aquele país, sendo que os mesmos apenas comprovam a residência para efeitos de tributação naquele país.
(…)
- (…) o documento emitido pelas autoridades fiscais do Reino Unido, ainda que não se trata em termos formais de um certificado de residência fiscal nos termos da CDT citada, comprova que o sujeito passivo foi considerado residente para efeitos de tributação no Reino Unido.
- Mais, na carta que o sujeito passivo juntou proveniente das autoridades fiscais do Reino Unido, é explicitamente dito ao sujeito passivo que a “letter of confirmation” não se trata de um certificado de residência fiscal para ter benefícios nos termos da CDT celebrada entre Portugal e aquele país.
(…)
- Assim, não tendo o Requerente procedido à apresentação de certificado de residência fiscal emitido ao abrigo do artigo 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Reino Unido, documento que visa comprovar a residência fiscal no Reino Unido, e concomitantemente, que nesse país é sujeito a tributação pela universalidade dos seus rendimentos (full tax liability).
- O que é coerente com o facto de a autoridade fiscal do Reino Unido ter comunicado à AT os rendimentos auferidos pelo contribuinte naquele país, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 8.º da Diretiva 2011/16/UE do Conselho, de 15 de fevereiro de 2011, e, portanto, considerando que o contribuinte é residente fiscal em Portugal.
- Ora, atendendo à informação que consta do documento, deve-se considerar o sujeito passivo como residente fiscal em Portugal para o ano 2017, estando sujeito a tributação pela universalidade dos rendimentos auferidos incluindo os provenientes do Reino Unido de acordo com o n.º 1 do artigo 15.º do CIRS.
- Aliás, (…), pelo menos desde 2012 que o requerente é considerado residente em Portugal.
- Consequentemente, e considerando que:
- O contribuinte não procedeu à alteração da sua residência fiscal para o estrangeiro; e,
- O domicílio fiscal, para as pessoas singulares, é o local da sua residência habitual, sendo ineficaz a sua mudança enquanto não for comunicada à administração tributária;
- Conclui-se que, nos termos da lei interna, o contribuinte é considerado residente fiscal em Portugal no ano de 2017, em conformidade com o que dispõe o artigo 19.º, n.ºs 1, al. a), 3, 4 e 5 da LGT.”
6. Por despacho arbitral, datado de 26 de maio de 2022, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações, tendo sido indicado o dia 29 de setembro de 2022 como data limite para a prolação da decisão arbitral.
II. Saneamento
7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
Não existem quaisquer exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e que cumpra conhecer.
III. Fundamentação
III.1. De Facto
§1. Factos Provados
8. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
a) Em 23 de março de 2015, o Requerente celebrou um Contrato de Trabalho com a empresa “B... Limited”, com sede em ..., Reino Unido, no qual foi, além do mais, estipulado o seguinte entre as partes [cf. documento n.º 3 anexo ao PPA]:
“1. Nome do Emprego e Local de Trabalho
Está contratado como Supervisor de Sucursal com sede em ..., Brighton. Este é o seu local de trabalho habitual.
(…)
3. Data de Início
O seu período de trabalho na B... Limited terá início a 23 de março de 2015.”
b) Nesse mesmo Contrato de Trabalho, é indicada a seguinte morada do Requerente: “..., United Kingdom”. [cf. documento n.º 3 anexo ao PPA]
c) O Requerente trabalhou na empresa “B... Limited” até 31 de dezembro de 2017.
d) O Requerente permaneceu no Reino Unido, aí dispondo de habitação onde residia, pelo menos, entre 23 de março de 2015 e 31 de dezembro de 2017, período durante o qual cumpriu o aludido Contrato de Trabalho. [cf. documentos n.ºs 2 e 3 e o documento intitulado “Letter of confirmation of residence”, todos anexos ao PPA e PA]
e) O Requerente foi residente do Reino Unido entre 23 de março de 2015 e 31 de dezembro de 2017, para efeitos fiscais. [cf. documento intitulado “Letter of confirmation of residence” anexo ao PPA e PA]
f) Em 31.12.2017, a situação cadastral do Requerente no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes da AT era a seguinte quanto aos aspetos que aqui importa considerar [cf. PA]:
Ø “País de residência PORTUGAL”
Ø “Residente no Estrangeiro: Não”
Ø “Residente não Habitual: Não”
Ø “Residência (Morada Portuguesa)
Morada: R ...
Localidade: PORTIMÃO
Distrito: FARO
Concelho: PORTIMÃO
Freguesia: ...
Código Postal: ...-... ...
S.F: Competente: ... – ...”
g) O ano fiscal no Reino Unido é entre 06 de abril do ano n e 05 de abril do ano n+1. [cf. documento n.º 2 anexo ao PPA]
h) No decurso do ano fiscal 2017-2018 (06.04.2017 – 05.04.2018), o Requerente auferiu rendimentos do trabalho no Reino Unido, pagos pela empresa “B... Limited”, no montante total de £22938,33, tendo pago de imposto sobre esses rendimentos, no Reino Unido (“Income Tax”), o valor de £2287,60. [cf. documento n.º 2 anexo ao PPA]
i) A liquidação do referido imposto pago pelo Requerente no Reino Unido foi efetuada pelo “HM Revenue & Customs” (autoridade tributária britânica) e notificada ao Requerente em 20.02.2018. [cf. documento n.º 2 anexo ao PPA]
j) Em 06.05.2018, o Requerente apresentou a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, atinente ao ano de 2017, que se encontra registada sob o n.º ...-2017-..., na qual declarou ser residente fiscal em Portugal, no ano de 2017, tendo declarado rendimentos nos respetivos Anexo F (rendimentos prediais respeitantes a 25% das rendas de um imóvel herdado dos seus pais, no valor de € 402,50) e Anexo G (mais-valias provenientes da venda de 12,5% de um imóvel herdado de uma tia, no valor de € 250,00). [cf. PA]
k) Em 31.08.2021, a Direção de Serviços de Relações Internacionais da AT remeteu ao Requerente, por correio eletrónico, um ofício em que, além do mais, é afirmado o seguinte [cf. documento anexo ao PPA]:
l) Em 31.08.2021, o Requerente procedeu à apresentação de uma declaração de substituição Modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2017, que se encontra registada sob o n.º ...-2017-..., na qual voltou a declarar ser residente fiscal em Portugal e acrescentou o respetivo Anexo J (Rendimentos obtidos no estrangeiro), no qual declarou € 24.289,53 de rendimento bruto, € 3.416,49 de contribuições para regimes de proteção social e € 2.833,61 de imposto pago no estrangeiro; ademais, nas respetivas “Informações complementares para a Categoria A”, o Requerente declarou que o período de permanência no país do exercício do emprego foi superior a 183 dias. [cf. PA]
m) Nessa sequência, a AT emitiu e notificou ao Requerente os seguintes atos tributários [cf. documentos anexos ao PPA e PA]:
Ø A liquidação de IRS n.º 2021 ..., respeitante ao ano de 2017, da qual resultou o valor a pagar de € 1.993,92;
Ø A liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., no valor de € 217,68; e
Ø A demonstração de acerto de contas n.º 2021..., da qual resultou o valor a pagar de € 1.891,10, com data limite de pagamento a 28.10.2021.
n) No dia 20.09.2021, o Requerente deduziu reclamação graciosa contra os aludidos atos tributários – cujo requerimento inicial consta do PA e aqui se dá por inteiramente reproduzido –, a qual foi autuada sob o n.º ...2021..., no Serviço de Finanças de ... . [cf. PA]
o) No dia 20.10.2021, o Requerente efetuou o pagamento integral e tempestivo do aludido montante de € 1.891,10 (mil oitocentos e noventa e um euros e dez cêntimos). [cf. documento anexo ao PPA]
p) No âmbito do sobredito procedimento de reclamação graciosa, o Requerente foi notificado pelo ofício n.º ..., datado de 28.09.2021, do Serviço de Finanças de ..., remetido por correio registado, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, para “apresentar o Certificado de Residência Fiscal emitido pela Autoridade Fiscal do Reino Unido, comprovativo de que no ano de 2017 era residente fiscal naquele Estado”. [cf. PA]
q) Nessa sequência e após diligências do Requerente nesse sentido, em 11.11.2021, o “HM Revenue & Customs” emitiu e remeteu ao Requerente um documento intitulado “Letter of confirmation of residence” que foi junto ao dito procedimento de reclamação graciosa e do qual consta o seguinte [cf. documento anexo ao PPA]:
“To whom it may concern
This is not a certificate of residence for the purpose of claiming benefits under any Double Taxation Agreement with the UK.
I confirm that to the best of HM Revenue and Customs’ knowledge and belief, that Mr. A… of Rua …, Portimão, …-… Portugal from 23 March 2015 to 31 December 2017 was a resident of the UK for tax purposes.”
“A quem possa interessar
Este não é um certificado de residência para efeitos de reivindicação de benefícios ao abrigo de qualquer Acordo de Dupla Tributação com o Reino Unido.
Confirmo, que em conformidade com o conhecimento da Autoridade Aduaneira de Sua Majestade, que o Sr. A... da Rua ..., Portimão, ...-... Portugal, foi residente do Reino Unido de 23 de Março de 2015 a 31 de Dezembro de 2017, para efeitos fiscais.”
r) Posteriormente, foi elaborado o projeto de decisão da aludida reclamação graciosa, no sentido do respetivo indeferimento, com a fundamentação aduzida na informação ali lavrada que mereceu despacho concordante do Chefe de Finanças e que aqui se dá por inteiramente reproduzida, tendo o Requerente sido notificado, por ofício do Serviço de Finanças de ..., datado de 21.01.2022, para, querendo, exercer o direito de audição prévia, o que ele não fez. [cf. PA]
s) No dia 22.01.2022, o Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD]
t) Até à data desta decisão arbitral, não foi comunicada, nem junta aos autos, qualquer decisão que tenha sido proferida na referenciada reclamação graciosa.
§2. Factos não Provados
9. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham por provados.
§3. Motivação quanto à Matéria de Facto
10. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consubstanciadas em afirmações meramente conclusivas e, por isso, insuscetíveis de prova e cuja veracidade terá de ser aquilatada em face da concreta matéria de facto consolidada.
A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e no acervo probatório carreado para os autos (incluindo o processo administrativo), o qual foi objeto de uma análise crítica e de adequada ponderação à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
III.2. De Direito
§1. O thema decidendum
11. A questão jurídico-tributária que está no epicentro do dissídio entre as partes e que, por isso, o Tribunal é chamado a apreciar e decidir, é atinente à residência fiscal do Requerente, no ano de 2017, havendo que determinar se este deverá, ou não, ser considerado residente em Portugal, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 15.º, n.ºs 1 e 2, e 16.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), 2 e 3, do Código do IRS.
§2. Enquadramento normativo
12. A análise da enunciada questão jurídico-tributária deve principiar pela convocação do bloco normativo aplicável, obviamente, na redação vigente à data dos factos.
O artigo 19.º da LGT, estatuindo sobre o domicílio fiscal, contém diversas regras que importa aqui ter em consideração, a saber: o domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário, para as pessoas singulares, o local da residência habitual (cf. n.º 1, alínea a)); é obrigatória a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária (cf. n.º 3); é ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária (cf. n.º 4); e, sempre que seja alterado o estatuto de residência de um sujeito passivo, este deve comunicar tal alteração à administração tributária (cf. n.º 5).
Por seu turno, do Código do IRS cumpre convocar as seguintes normas:
Ø Artigo 13.º, n.º 1: “Ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos.”
Ø Artigo 15.º, n.º 1: “Sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.”
Ø Artigo 15.º, n.º 2: “Tratando-se de não residentes, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português.”
Ø Artigo 16.º, n.º 1: “São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:
a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;
b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;”
Ø Artigo 16.º, n.º 2: “Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se como de presença em território português qualquer dia, completo ou parcial, que inclua dormida no mesmo.”
Ø Artigo 16.º, n.º 3: “As pessoas que preencham as condições previstas nas alíneas a) ou b) do n.º 1 tornam-se residentes desde o primeiro dia do período de permanência em território português, salvo quando tenham aí sido residentes em qualquer dia do ano anterior, caso em que se consideram residentes neste território desde o primeiro dia do ano em que se verifique qualquer uma das condições previstas no n.º 1.”
13. Como salienta Rui Duarte Morais[1], “são diferentes as noções de residência e domicílio fiscal, ainda que relativamente aos residentes o local do domicílio fiscal coincida com o da sua residência habitual (art. 19.º, n.º 1, al. a) da Lei Geral Tributária).
Enquanto o conceito de residência integra a hipótese de normas tributárias substantivas, determinantes da existência e da extensão da obrigação de imposto, a questão do domicílio fiscal projecta-se em consequências processuais24. [24A questão de saber se alguém é ou não residente em Portugal é independente da do domicílio fiscal. Aquele que efectivamente transferiu a sua residência para o estrangeiro não pode mais ser considerado residente em Portugal, mesmo que nos registos da administração fiscal continue a figurar como domiciliado em Portugal (mesmo que por omissão dele, sujeito passivo, em promover a necessária alteração). A nosso ver, o domicílio fiscal não constitui, no plano internacional, qualquer presunção de residência.”]
A este propósito, afigura-se também pertinente considerar o seguinte posicionamento de Pedro Roma[2]:
“(…) o conceito de “não residência fiscal” não se encontra expressamente contemplado no ordenamento jurídico-fiscal português.
Tal como analisado por José Calejo Guerra [Cf. José Calejo Guerra – A (não) residência fiscal no Código do IRS e seus requisitos: do conceito legal À distorção administrativa, Cadernos de Justiça Tributária, n.º 6, outubro-dezembro 2014, pp. 16-22], também entendemos que o conceito de não residência fiscal resulta a contrario do próprio Código do IRS, uma vez que todos aqueles que não preencherem um dos critérios de residência fiscal previstos no artigo 16.º do Código do IRS deverão ser considerados não residentes fiscais em Portugal.
Este Autor acrescenta, ainda, que a não residência fiscal é, pois, uma definição legal não escrita que se encontra sob a alçada da reserva relativa de lei da Assembleia da República, que resulta do artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP. Nesta medida, é defendido que a administração tributária não pode introduzir, através da sua atuação (ainda que baseada em orientações administrativas), quaisquer exigências que, de algum modo, dificultem ou impeçam que um qualquer sujeito passivo, que não preencha nenhum critério de residência fiscal em Portugal, seja considerado não residente fiscal.
Na verdade, de acordo com a atual prática administrativa, a administração tributária exige a apresentação de um comprovativo de residência no estrangeiro para proceder à alteração do estatuto de residência fiscal dos sujeitos passivos para não residentes em Portugal, (…). À luz daquele entendimento, que subscrevemos, entendemos que esta prática da administração tributária apenas se poderá reputar de ilegal, por violação do princípio da legalidade tributária, que encontra cobertura legal no artigo 8.º da LGT e cobertura constitucional no já citado artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP.”
Os citados entendimentos doutrinais encontram acolhimento na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, sendo disso exemplo, entre outros, os seguintes arestos:
Ø Acórdão do TCAS, de 11.11.2021, proferido no processo n.º 2369/09.7BELRS, assim sumariado (na parte que aqui importa reter):
“(…)
II. Os conceitos de domicílio fiscal (previsto no art. 19.º da LGT) e de residente fiscal para efeitos de IRS não são sinónimos.
III. O dever de comunicação, previsto quer no n.º 1 do art. 43.º do CPPT quer no então art. 19.º, n.º 2, da LGT (atual n.º 3), não se trata de formalidade ad substanciam, pelo que a sua preterição não tem necessária e definitivamente impacto em termos de tributação.
(…)
V. Não obstante o domicílio fiscal do Impugnante, previsto no art.º 19.º da LGT, contemplar uma morada em Lisboa, esta circunstância distingue-se do conceito de residência fiscal para efeitos de IRS e não consubstancia qualquer presunção inilidível de que a residência fiscal é na morada ali constante.”
Ø Acórdão do TCAS, de 08.07.2021, proferido no processo n.º 803/05.0BESNT, assim sumariado (na parte que aqui importa reter):
“(…)
III. Saber de alguém é ou não residente em Portugal não está dependente do domicílio fiscal, por este não constituir, no plano internacional, qualquer presunção de residência.
IV. O conceito de residência integra a hipótese de normas tributárias substantivas, determinantes da existência e da extensão da obrigação de imposto, enquanto o domicílio fiscal projecta-se em consequências processuais.”
14. Noutra ordem de considerações, importa chamar à colação os seguintes ensinamentos de Paula Rosado Pereira[3]:
“Temos, portanto, no IRS, uma distinção essencial entre sujeitos passivos residentes e sujeitos passivos não residentes.
A residência é, a par da fonte do rendimento, um dos elementos de conexão que definem os termos da aplicação da lei fiscal no espaço, quando nos encontramos perante situações com um elemento internacional relevante.
Reportando-nos ao já aludido artigo 13.º, n.º 1 do CIRS, a tributação em Portugal dos rendimentos obtidos por pessoas singulares que residam em território português reflete o elemento de conexão “residência”, ao passo que a tributação dos não residentes quanto aos rendimentos considerados como obtidos em território português concretiza a aplicação do elemento de conexão “fonte”.
(…)
A definição de residência em território português é dada pelo artigo 16.º do CIRS, prevendo-se que sejam residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:
a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;
b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual.
(…)
Para além de corresponder, como vimos, a um dos elementos de conexão para a aplicação da lei fiscal no espaço, a residência é também um conceito essencial para determinar o âmbito de sujeição pessoal ao IRS, uma vez que este tende a ser bastante distinto para residentes e não residentes.
Relativamente aos residentes, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora de território português (artigo 15.º, n.º 1 do CIRS). Os residentes encontram-se, portanto, sujeitos a um princípio da universalidade ou da tributação universal ou ilimitada pelo Estado da residência. Assim, podem ser tributados em Portugal todos os rendimentos obtidos por um residente, independentemente do local onde tais rendimentos sejam obtidos.
(…)
Em contrapartida, um não residente – pessoa singular que não preencha nenhum dos critérios de residência fiscal previstos no artigo 16.º do CIRS – encontra-se sujeito a IRS unicamente quanto aos rendimentos obtidos em território português (artigo 15.º, n.º 2 do CIRS). Os não residentes são tributados ao abrigo do elemento de conexão fonte do rendimento. O artigo 18.º elenca os rendimentos que se consideram obtidos em território português e que, como tal, podem ser tributados em sede de IRS mesmo quando auferidos por um não residente.”
Neste conspecto, afirma Pedro Roma[4] o seguinte:
“Assim, tendo em conta estas três normas [artigo 16.º, n.ºs 1, alínea a), 2 e 3, do Código do IRS], julgamos que se poderá formular este critério de residência fiscal [a permanência por mais de 183 dias num período de 12 meses] do seguinte modo: (i) um sujeito passivo é considerado residente fiscal se, em qualquer período de 12 meses, permanecer mais de 183 dias (que incluam dormida) em Portugal e (ii) será considerado residente fiscal em Portugal desde o primeiro dia de permanência daquele período de 183 dias.
(…)
(…), a mera disposição de uma habitação não é suficiente para que se possa concluir pelo preenchimento deste critério de residência fiscal em Portugal [critério previsto no artigo 16.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS], pois é necessária a existência de “condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual”.
Em primeiro lugar, deverá tratar-se de uma residência habitual, o que significa que não basta a existência de um imóvel em Portugal que é ocupado ocasionalmente (e.g. em período de férias ou fins-de-semana) para que o mesmo qualifique para este efeito.
Por outro lado, veio a nova redação desta norma esclarecer que temos que estar perante uma intenção “atual”, o que significa que o imóvel em questão até pode ter sido adquirido para que no futuro venha a ser utilizado como residência habitual do sujeito passivo – contudo, se no momento em questão o mesmo não estiver a ser ocupado com esse propósito, não poderá ser considerado uma residência habitual para este efeito.
Por último, no que respeita às “condições que [fazem] supor” a intenção de manter e ocupar uma habitação, como residência habitual, verificamos que o legislador decidiu não concretizar que condições são essas, deixando-as ao critério do intérprete.
(…)
Uma vez que a ocupação da habitação como residência habitual não é objeto de prova direta, a mesma resulta das condições objetivas e subjetivas que a façam supor.
(…) Não obstante, (…), uma análise casuística impor-se-á sempre.
(…)
Por último, (…) os critérios de residência fiscal previstos nas alíneas a) e b) do artigo 16.º, n.º 1 do Código do IRS são alternativos, (…)”
Destarte, temos, pois, que o critério previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS se cinge à presença física (corpus), em Portugal, considerando residentes, de forma automática, os indivíduos que permaneçam mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, num período de 12 meses, no território nacional. Por seu turno, a alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS, exigindo uma ligação física menos qualificada, impõe uma análise casuística que permita, ainda assim, assegurar que existe uma conexão efetiva com o território; esta conexão tem-se por verificada através de um elemento subjetivo mediato, a intenção de ser residente (animus), que deve ser analisado de uma perspetiva objetiva, ou seja, através de elementos imediatos que permitam a reconstrução da vontade do indivíduo a partir dos indícios por si revelados.
§3. O caso concreto: subsunção normativa
15. Volvendo ao caso sub judice e tendo em vista aquilatar a (i)legalidade dos atos tributários controvertidos, importa então determinar se o Requerente deve, ou não, ser considerado residente fiscal em Portugal, no ano de 2017, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 15.º, n.ºs 1 e 2, e 16.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), 2 e 3, do Código do IRS.
Apreciando e decidindo.
16. Na sequência do périplo normativo, doutrinal e jurisprudencial que acima fizemos, importa aqui principiar por sublinhar que a circunstância de o Requerente não ter comunicado à AT nem a mudança do seu domicílio fiscal, nem a alteração do seu estatuto de residência – no ano de 2017, o Requerente estava registado no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes da AT como residente em Portimão, Portugal (cf. facto provado f)) –, não pode fundar qualquer tributação, nem pode substituir-se às regras que definem a residência fiscal. A “ineficácia” da mudança de domicílio – repare-se que se diz “domicílio” e não “residência” – referida no artigo 19.º, n.º 4, da LGT não tem, por si só, o alcance de converter o contribuinte em residente para efeitos fiscais, se o mesmo fizer prova em sentido contrário; e, no caso concreto, como resulta da factualidade provada (cf. factos provados d) e e)), o Requerente logrou fazer essa mesma prova, designadamente através dos documentos n.ºs 2 e 3 e do documento intitulado “Letter of confirmation of residence”, todos anexos ao PPA.
Não tem assim razão a Requerida quando afirma que a prova da residência fiscal do Requerente, no ano de 2017, teria de ser feita através de um “certificado de residência fiscal emitido pelas autoridades fiscais do Reino Unido nos termos do art. 4.º da CDT celebrada entre Portugal e aquele país”, sendo que, ainda na perspetiva da Requerida, o “documento denominado Letter of confirmation of residence (…) não pode ser qualificado como um certificado de residência fiscal para efeitos do artigo 4.º da Convenção”; trata-se de um argumento absolutamente formalista e carecido de respaldo legal, pois inexiste qualquer norma legal, nomeadamente no Código do IRS, que condicione/limite os meios de prova de que o contribuinte se pode servir para comprovar a sua residência fiscal, designadamente exigindo a apresentação de um certificado de residência fiscal emitido pelas autoridades fiscais de outro país. Aliás, não podemos deixar de realçar que é a própria Requerida quem afirma “que o documento emitido pelas autoridades fiscais do Reino Unido, ainda que não se trata em termos formais de um certificado de residência fiscal nos termos da CDT citada, comprova que o sujeito passivo foi considerado residente para efeitos de tributação no Reino Unido”.
Por outro lado, também entendemos que não tem qualquer relevância para a determinação da residência fiscal do Requerente o facto de este ter declarado ser residente em território nacional nas declarações de rendimentos Modelo 3 de IRS, respeitantes ao ano de 2017, apresentadas em 06.05.2018 e 31.08.2021 (cf. factos provados j) e l)). Antes de mais, como o próprio Requerente afirma no pedido de pronúncia arbitral e nos parece bastante plausível, tratou-se de um lapso originado pelo facto de ele já estar a residir em Portugal quando apresentou aquelas declarações fiscais, não tendo pois percecionado que deveria ter indicado o estatuto de residência que tinha no ano de 2017. Acresce que, apenas o preenchimento dos pressupostos de cada um dos critérios de residência fiscal decorrentes do artigo 16.º do Código do IRS, maxime das alíneas a) e b) do seu n.º 1, permite que uma pessoa seja considerada residente fiscal em Portugal; ou seja, a mera declaração do sujeito passivo não tem a virtualidade de determinar, seja em que sentido for, a sua residência fiscal ou, visto doutra perspetiva, um erro declarativo como o existente no caso concreto não é suscetível de transformar/alterar, seja em que sentido for, uma situação factual subjacente que resulte comprovada.
Acresce, ainda, referir que também o facto de terem sido as autoridades fiscais do Reino Unido a comunicar à Requerida que, no ano de 2017, o Requerente tinha auferido rendimentos naquele país – o que aconteceu no âmbito de uma troca automática de informações realizada ao abrigo da Diretiva 2011/16/UE do Conselho, de 15 de fevereiro de 2011 (DAC 1), relativa à cooperação no domínio da fiscalidade e que foi transposta para a ordem jurídica nacional através do Decreto-Lei n.º 61/2013, de 10 de maio –, não tem qualquer influência quanto ao estatuto de residência fiscal que deve ser reconhecido ao Requerente, no ano de 2017, pois a “definição de residente é feita, unilateralmente, pela lei de cada Estado”[5]e, no caso português, os respetivos critérios são os constantes do artigo 16.º do Código do IRS. Ademais, são as próprias autoridades fiscais do Reino Unido que atestam que o Requerente “foi residente do Reino Unido de 23 de Março de 2015 a 31 de Dezembro de 2017, para efeitos fiscais” (cf. facto provado q)).
17. Atenta a factualidade que resultou comprovada, designadamente a vertida nos factos provados a) – “Em 23 de março de 2015, o Requerente celebrou um Contrato de Trabalho com a empresa “B... Limited”, com sede em ..., Reino Unido, (…)” –, b) – “Nesse mesmo Contrato de Trabalho, é indicada a seguinte morada do Requerente: “..., United Kingdom.” –, c) – “O Requerente trabalhou na empresa “B...UK Limited” até 31 de dezembro de 2017.” –, d) – “O Requerente permaneceu no Reino Unido, aí dispondo de habitação onde residia, pelo menos, entre 23 de março de 2015 e 31 de dezembro de 2017, período durante o qual cumpriu o aludido Contrato de Trabalho.” – e e) – “O Requerente foi residente do Reino Unido entre 23 de março de 2015 e 31 de dezembro de 2017, para efeitos fiscais.” –, impõe-se concluir que não se mostram verificados os critérios de residência fiscal previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS.
Efetivamente, em face daquela factualidade, nada há que permita sustentar, ainda que perfunctoriamente, por um lado, que o Requerente tenha permanecido em território português mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano de 2017 e, por outro lado, que o Requerente não tenha residido no Reino Unido no mesmo período temporal. Por consequência, não se mostra verificado o critério de residência estatuído na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS.
Centrando-nos agora na alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS, é pacífica a afirmação de que esta norma impõe três requisitos, de cuja verificação cumulativa depende a qualificação como residente: (i) a permanência em Portugal; (ii) a disposição de uma habitação; e (iii) a verificação de condições que façam supor que a habitação será mantida e ocupada como residência habitual; obviamente, tendo por base o corpo do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, a verificação dos referidos requisitos deve ter por referência o “ano a que respeitam os rendimentos”, sendo este o espectro temporal durante o qual deve ser verificada a residência.
Como acima foi já mencionado, o legislador não densifica como deve ser aferida a intenção do indivíduo, não fornecendo critérios a partir dos quais o aplicador do direito deva formar a sua convicção a esse respeito. Na falta de uma parametrização legal será necessário efetuar uma análise casuística, devendo o elemento volitivo (a intenção de manter e ocupar um determinado local como residência habitual) ser aferido através de manifestações externas de vontade. A intenção de manter e ocupar uma dada habitação enquanto residência habitual deve, pois, ser reconstituída a partir de elementos objetivos que façam supor, com clareza, a vontade do indivíduo. Ora, no caso concreto, para além de não resultar dos autos que, no ano de 2017, o Requerente tenha permanecido algum período de tempo em Portugal, também nada foi apurado que aponte no sentido de que o Requerente tinha a intenção de manter e ocupar como residência habitual, no decurso daquele mesmo ano, uma habitação em Portugal.
Nesta conformidade, à luz dos critérios de residência estatuídos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS, o Requerente não pode ser considerado fiscalmente residente em Portugal, no ano de 2017, o que obsta a que aqui seja tributado relativamente aos rendimentos auferidos, nesse mesmo ano, no Reino Unido (cf. artigo 15.º, n.º 2, do Código do IRS).
18. Atento o exposto, o ato de liquidação de IRS n.º 2021..., respeitante ao ano de 2017 e do qual resultou o valor a pagar de € 1.993,92, padece de vício de violação de lei, por erros sobre os pressupostos de facto e de direito, consubstanciado na errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 15.º, n.ºs 1 e 2, e 16.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código do IRS; consequentemente, aquele ato de liquidação de IRS é inválido e deve, por isso, ser anulado (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).
19. O artigo 35.º, n.º 1, da LGT estatui que “[s]ão devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.
Na situação sub judice, concluiu-se que o ato de liquidação de IRS controvertido é inválido por vício de violação de lei, gerador de anulabilidade.
Atento o pressuposto subjacente à liquidação de juros compensatórios controvertida, esta enferma de idêntico vício invalidante e, por consequência, deve ser anulada.
20. No concernente à reclamação graciosa n.º ...2021..., instaurada contra os atos de liquidação de imposto e de juros compensatórios controvertidos, importa dizer o seguinte: foi apresentada, em 20.09.2021, no Serviço de Finanças de ... (cf. facto provado n)) e deveria ter sido concluída no prazo de quatro meses (cf. artigo 57.º, n.º 1, da LGT), sendo que, o incumprimento desse prazo, contado a partir da entrada da petição do contribuinte no competente serviço da administração tributária – in casu, 20.09.2021 –, faz presumir o respetivo indeferimento para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial (cf. artigo 57.º, n.º 5, da LGT). Uma vez que, no procedimento tributário, os prazos são contínuos e contam-se nos termos do artigo 279.º do CC (cf. artigo 57.º, n.º 3, da LGT), a reclamação graciosa deveria ter sido decidida até ao dia 20.01.2022; não o tendo sido, como não foi (cf. facto provado t)), presume-se a mesma tacitamente indeferida, o que já se verificava aquando da apresentação do pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo, no dia 22.01.2022 (cf. facto provado s)).
O indeferimento tácito não é um ato, mas uma ficção destinada a possibilitar o uso dos meios de impugnação administrativos e contenciosos, como decorre do preceituado no artigo 57.º, n.º 5, da LGT.
No entendimento de Jorge Lopes de Sousa[6], “[a]pesar de o artigo 2.º, n.º 1, do RJAT fazer referência apenas a declaração de ilegalidade de atos, é inequívoco que nela se abrange a declaração de ilegalidade de indeferimentos tácitos, pois o n.º 1 do artigo 10.º do RJAT faz referência aos «factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» e a «formação da presunção de indeferimento tácito» vem indicada na alínea d) do n.º 1 deste artigo 102.º (…)
O indeferimento tácito presume-se que se baseia em razões de mérito e não em obstáculos processuais.”
No mesmo sentido, Carla Castelo Trindade[7] afirma que “na medida em que o indeferimento tácito consiste apenas numa ficção de acto, aquela apreciação da (i)legalidade do acto de primeiro grau não existe – de facto – nestes casos. Em rigor, presume-se.»; sendo que, quanto «à questão de saber se se inclui ou não no âmbito material da arbitragem tributária a apreciação de acto de indeferimento tácito”, a mesma é perentória a afirmar que “[a] resposta é sim”.
Dito isto e atento o acima afirmado quanto à ilegalidade dos atos de liquidação de imposto e de juros compensatórios controvertidos, há que concluir também pela invalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2021... .
21. A finalizar, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou cuja apreciação seria inútil (cf. artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
IV. Decisão
Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:
a) Declarar ilegal e anular:
(i) A liquidação de IRS n.º 2021..., respeitante ao ano de 2017 e da qual resultou o valor a pagar de € 1.993,92, com as legais consequências;
(ii) A liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., no valor de € 217,68, com as legais consequências;
(iii) A demonstração de acerto de contas n.º 2021..., da qual resultou o valor a pagar de € 1.891,10, com as legais consequências;
b) Declarar ilegal o indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2021..., com as legais consequências;
c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas processuais.
V. Valor do Processo
Atento o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 1.993,92 (mil novecentos e noventa e três euros e noventa e dois cêntimos).
VI. Custas
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 306,00 (trezentos e seis euros), cujo pagamento fica a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique.
Lisboa, 13 de julho de 2022.
O Árbitro,
(Ricardo Rodrigues Pereira)
[1] Sobre o IRS, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 17 e 18.
[2] Residência Fiscal Parcial em IRS, Almedina, Coimbra, 2018, pp. 120-121.
[3] Manual de IRS, Almedina, Coimbra, 2018, pp. 56 a 59.
[4] Ibidem, pp. 131 a 145.
[5] Rui Duarte Morais, ob. cit., p. 14.
[6] Guia da Arbitragem Tributária, Nuno de Villa-Lobos e Tânia Carvalhais Pereira (Coordenação), 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 130 e 135.
[7] Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Anotado, Almedina, Coimbra, 2016, p. 72.