DECISÃO ARBITRAL
O Tribunal Arbitral, composto pelo Árbitro Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia (Relator), designado pelo Conselho Deontológico do CAAD para formar o Tribunal Arbitral (TA) em 28 de setembro de 2022, acorda no seguinte:
I – RELATÓRIO
1. A Requerente, A... LDA, com o NIF ..., e domicílio fiscal na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ..., apresentou um pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração da ilegalidade parcial do ato de liquidação n.º 2020-..., datada de 07.04.2021, referente a imposto municipal de imóveis, relativo ao período de 2020.
O fundamento de tal pretensão prendeu-se com a verificação de um erro nos pressupostos de facto de tal liquidação, uma vez que a Requerente, em 31 de dezembro de 2020, já não era proprietária do imóvel em questão, o qual fora transmitido em 17 de outubro de 2019, não obstante essa sua titularidade ainda ter permanecido, dando origem à liquidação em IMI objeto de impugnação, translação de propriedade atempadamente comunicada às finanças pelos serviços notariais.
2. A Requerida, a AT – Administração Tributária e Aduaneira, na sua resposta, retorquiu dizendo que a tributação havia sido bem feita, pois que em tal data do registo matricial de que dispunha ainda constava a Requerente como titular do bem.
Por outro lado, à Requerente competiria um dever de colaboração no esclarecimento da Requerida quanto à titularidade do imóvel, tendo essa sua comunicação apenas sido feita em 22 de maio de 2020.
3. Em 28 de abril de 2022, a Requerida fez saber junto do TA que a parte do ato de liquidação em crise havia sido objeto de revisão oficiosa pela AT, para tanto juntando documento comprovativo, com o consequente reembolso da importância pretendida.
Notificada para responder em 29 de abril de 2022, a AT nada disse, se bem que esteja provado o seu conhecimento de tal requerimento pela receção do comprovativo da leitura do teor de tal notificação, que ocorreu em 18 de maio de 2022.
II – DESPACHO SANEADOR
4. Não foram suscitadas exceções.
5. A apresentação do pedido para a constituição de tribunal arbitral é tempestiva.
6. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, nos termos do disposto nos arts. 4º e 10º do RJAT e do art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
7. Não se verificam nulidades, pelo que se impõe conhecer do mérito.
III – OS FACTOS RELEVANTES
8. Dos elementos processuais disponíveis, é possível considerar os seguintes factos como relevantes para a presente decisão:
a) A Requerente é A... LDA, com o NIF ..., e domicílio fiscal na Rua ..., n.º..., ..., ...-... ...;
b) A Requerente foi notificada do ato de liquidação n.º 2020-..., datado de 07.04.2021, referente a imposto municipal de imóveis, relativa ao período de 2020, no valor de 2634,88 euros;
c) A Requerente, em 17.10.2019, por escritura pública, vendeu à sociedade B..., LDA, com o NIF ..., o imóvel com a inscrição matricial nº ...-P, de natureza urbana, sito na freguesia de ... e ..., indicações que constam daquele ato de escritura pública;
d) De seguida, essa transmissão de propriedade foi comunicada pelos serviços notariais à autoridade de finanças respetiva, para a consequente alteração na caderneta predial;
e) Mas, em 7.4.2021 a Requerente foi notificada do ato de liquidação em IMI nº 2020-..., no qual a propriedade daquele imóvel era ainda imputada à Requerente, a despeito de já não lhe pertencer por efeito da realização do aludido contrato de compra e venda, que tem efeitos translativos intrínsecos;
f) Perante tal facto, apenas “descoberto” após a notificação deste ato de liquidação, a Requerente, em 24.5.2021, requereu à AT a alteração da titularidade da propriedade do imóvel transmitido, ao que se seguiu a apresentação deste pedido de pronúncia arbitral;
g) Em 13 de janeiro de 2022, a Requerida fez, nos termos do art. 115º do CIMI, a revisão oficiosa da liquidação em causa, com a emissão do documento nº 2020-..., e procedeu ao reembolso à requerente do valor de 2.634,88 euros (pago nas suas diversas prestações), mas sem a atribuição de juros indemnizatórios, ainda que os mesmos tivessem sido propostos nas informações internas;
h) Em 28 de abril de 2022, a Requerente deu a conhecer ao TA o teor de tal ato de revisão tributária e do seu montante, solicitando a pronúncia por parte da Requerida, que não se realizou;
i) Mais solicitou ao TA a ponderação da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide no tocante ao pedido de anulação parcial do ato de liquidação em IMI em apreço, com o pagamento integral das custas por parte da Requerida, e sem esquecer a matéria referente aos juros indemnizatórios.
9. Não há factos não provados relevantes para a decisão.
IV – A EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA POR INUTILIDADE
SUPERVENIENTE DA LIDE
a) A satisfação do pedido arbitral de anulação parcial do ato de liquidação em IMI através da sua revisão oficiosa e o consequente reembolso do valor pago como causa da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide
10. O thema decidendum prende-se com a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide e a respetiva repercussão no pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente processo arbitral.
Assim é porque, apesar da ausência de resposta por parte da Requerida durante tanto tempo, foi praticado pela Diretora-Geral da AT um ato de revisão oficiosa da parte da liquidação em IMI sub iudice, com o resultado de a Requerida ser reembolsada do respetivo valor.
11. Poder-se-ia contestar este entendimento por a Requerida, devidamente notificada para o efeito, nada ter dito nos autos, nem sequer expressamente ter pedido a pertinente a extinção da instância.
Tal silêncio por parte da Requerida não se afigura problemático, porquanto o facto que determinou a extinção da instância é de conhecimento oficioso, se bem que, neste caso, por impulso da Requerente e, além do mais, até foi praticado pelo órgão máximo da Requerida, a sua Diretora-Geral.
Nem poderia o exercício da instância estar depende do comportamento omissivo das partes naquilo que ao mesmo se referisse em termos fundamentais, ou seja, o da sua própria existência.
12. Nem parece que seja relevante para contrariar esta conclusão a circunstância de aquela revisão oficiosa – que satisfez a Requerida quanto ao pedido formulado de anulação parcial do ato de liquidação indevida de IMI – tivesse sido feita em momento posterior ao que processualmente possibilita a revogação ou a anulação de atos administrativos em apreciação.
É que o conceito de impossibilidade superveniente da lide opera por si próprio, a partir da sua natureza, e torna-se irrelevante o momento processual da sua prática desde que, quando o TA é chamado a decidir, este verifica a sua existência e dela tomando conhecimento, com a inexorável consequência de não ser possível qualquer decisão judicial sua por inutilidade do exercício do correspondente poder jurisdicional.
13. A verdade é que a prática do ato de revisão oficiosa da liquidação, com o reembolso do valor questionado, coincide com o sentido do pedido arbitral quanto à anulação do ato de liquidação indevida de IMI, tornando-o inútil porque por essa outra via a Requerente alcançou a satisfação dessa sua pretensão processual.
Ora, nos termos do art. 277.º, al. e), do CPC [aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT], a anulação do ato contestado que satisfaça o pedido formulado na pretensão arbitral conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância, tal como referido pelo Supremo Tribunal Administrativo nos seguintes termos: “A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância – al. e) do art. 277º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio” (cfr. Acórdão de 30.7.2014, proferido no processo n.º 0875/14).
Assim sendo, julga-se a instância extinta nos termos do art. 277.º, al. e), do CPC [aplicável ex vi o art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT] no tocante ao pedido de anulação parcial do ato de liquidação indevida de IMI.
b) O pagamento de juros indemnizatórios que não foram contemplados pela Requerida na emissão do ato de revisão oficiosa da liquidação indevida em IMI que deu causa à extinção da instância
14. A intervenção da Requerida, ao ter reembolsado a Requerente do pagamento indevido em sede de IMI da parte da liquidação que continha um erro de facto não foi, porém, acompanhada do pagamento de juros indemnizatórios.
Essa matéria, ainda que em relação de acessoriedade com o pedido de pronúncia arbitral, integra-o, pelo que o mesmo não pode deixar de ser objeto de apreciação por parte do TA.
15. É verdade que, no âmbito das diversas informações que foram preparadas pelos serviços desconcentrados da AT, a certo passo, propõe-se o reconhecimento do pagamento de juros indemnizatórios – como consequência do proposto e decidido reembolso do valor erroneamente pago pela Requerente em sede de liquidação de IMI.
Só que o ato final de revisão oficiosa, o que foi confirmado pela Requerente, não contemplou a decisão da atribuição de juros indemnizatórios desde o momento do pagamento erróneo do IMI até ao seu efetivo reembolso.
16. Ora, nos termos do art. 43º, nº 1, da LGT, “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Como foi o caso, determina-se que a Requerida proceda ao pagamento à Requerente de juros indemnizatórios, à taxa de 4%, contabilizados sobre o valor de IMI indevidamente liquidado, desde o pagamento efetivo do imposto até ao momento em que ocorreu o seu reembolso.
c) Efeito da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide no âmbito das custas processuais
17. Tema subsequente ao da verificação da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide é o da determinação das consequências de tal conclusão em matéria de cálculo das custas processuais.
18. É certo que o presente processo arbitral tem como objeto a anulação parcial de um ato de liquidação em IMI supostamente ilegal praticado pela Requerida.
Ora, a partir do momento em que é a própria a Requerida a dar razão à Requerente no âmbito da revisão oficiosa daquele ato tributário, é inquestionável que lhe é imputável a circunstância que propiciou a presente situação de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
Eis uma conclusão que se confirma por a Requerida ter aceitado reconhecer o lapso na liquidação efetuada e assumindo a responsabilidade por tal erro.
19. Destarte, as custas decorrentes do presente processo arbitral ficam a cargo da Requerida, nos termos do art. 536.º, n.º 3, do CPC [aplicável ex vi o art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT9.
IV – DECISÃO
20. Termos em que o Tribunal Arbitral decide:
a) Determinar a extinção da instância com fundamento na impossibilidade superveniente da lide, segundo os fundamentos expostos, no que tange ao pedido de anulação parcial do ato de liquidação indevida de IMI;
b) Condenar a Requerida no pagamento à Requerente de juros indemnizatórios, à taxa de 4%, contabilizados sobre o valor indevidamente pago, desde o pagamento efetivo do imposto até ao momento em que ocorreu o reembolso;
c) Condenar a Requerida nas custas do processo.
V – VALOR DO PROCESSO
21. Fixa-se ao processo o valor global de €2634,88, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa de 4%, desde o pagamento indevido até ao momento do reembolso, nos termos do disposto nos arts. 32.º do CPTA e 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, al. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI – CUSTAS
22. Custas no montante de €612,00, a suportar pela Requerida, em conformidade com a Tabela I, anexa ao RCPAT, nos termos do art. 536.º, nº 3, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
Notifique-se.
O Árbitro Singular
Jorge Bacelar Gouveia
Lisboa, 26 de julho de 2022.