SUMÁRIO:
I – Constituem “incrementos patrimoniais”, entre outros indicados no artigo 9.º, as mais-valias, tal como definidas no artigo 10.º, do Código do IRS, designadamente “os ganhos” que não sendo enquadrados noutras categorias de rendimentos, resultem da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (n.º 1, línea a)), sendo “o ganho” sujeito a imposto constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição (n.º 4, alínea a)).
II – A tributação do rendimento pessoal assenta, essencialmente, em rendimentos reais (não ficcionados ou regulares, ligados a certas categorias de rendimentos, típicos da conceção do rendimento-produto), que na situação em análise se não prova terem sido obtidos pelo Requerente.
III – As liquidações que incidem sobre rendimentos não comprovadamente obtidos, afrontam o princípio da capacidade contributiva, não podendo subsistir na ordem jurídica.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
Em 31 de janeiro de 2022, A..., com o NIF ... e domicílio fiscal na Rua ... Lisboa (adiante designado por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com os artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.
A. Objeto do pedido:
O Requerente pretende a declaração de ilegalidade e a consequente anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2014... na qual contestou a legalidade das liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e juros compensatórios n.ºs 2021..., no valor de € 10 336,10 e 2021..., no valor de € 2 902,24, ambas referentes ao ano 2018 (objeto imediato), bem como das mesmas liquidações de IRS (objeto mediato).
Mais pede a Requerente a condenação da Requerida no reembolso da quantia de € 13 238,34, por si indevidamente paga em 20 de abril de 2021, acrescida de juros indemnizatórios nos termos legais.
B. Síntese da posição das Partes
a. Do Requerente:
O Requerente fundamento o pedido nos seguintes termos:
As liquidações identificadas resultaram de declarações de substituição apresentadas na sequência da decisão desfavorável a pedido de informação vinculativa sobre a forma de cálculo dos eventuais rendimentos de mais-valias resultantes da alienação, no âmbito de processo de insolvência de seu irmão, de uma fração autónoma de que com aquele era comproprietário e sobre a qual havia sido constituída hipoteca voluntária para garantia das dívidas do insolvente.
O seu direito de propriedade foi adquirido faseadamente entre 1994, 2008 e 2017, primeiro quanto à aquisição onerosa da nua-propriedade e, por fim, pela extinção do usufruto que a onerava, aquisição gratuita por sucessão mortis causa.
Considera o Requerente que não se tendo a alienação da sua quota parte na fração autónoma traduzido em qualquer acréscimo patrimonial na sua esfera jurídica dado não lhe terem sido graduados os créditos reclamados e ter sido decretada ao insolvente seu irmão a exoneração do passivo restante, o produto da venda não constitui rendimento suscetível de tributação em sede de IRS na sua esfera jurídica, face ao disposto no artigo 268.º, do CIRE.
Não tendo obtido, no ano a que respeita o imposto, rendimentos de mais-valias, considera o Requerente que as liquidações em causa violam o princípio da capacidade contributiva.
Subsidiariamente, sindica o Requerente a forma de determinação das mais-valias resultantes da alienação da referida fração autónoma, tendo em consideração os valores das aquisições onerosas da nua-propriedade em 1994 e em 2007 e o valor patrimonial inscrito na respetiva matriz predial à data da extinção do usufruto e respetiva aquisição mortis causa, bem como a não aceitação pela AT das despesas e encargos declarados.
O Requerente invoca ainda vícios da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, por falta de fundamentação e de notificação para exercício do direito de audição prévia sobre o projeto de decisão.
Termina o Requerente com o pedido de restituição do imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios.
b. Da Requerida
Notificada por despacho arbitral de 11 de abril de 2022, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou Resposta na qual veio defender a legalidade e a manutenção dos atos de liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:
Não se verifica preterição do direito de audição pois que, no caso em análise, o Requerente, antes da emissão das liquidações controvertidas, exerceu o direito de participação no âmbito dos procedimentos de gestão e análise de divergências, bem como no pedido de informação vinculativa.
Desta forma, a ausência de audição prévia no procedimento de reclamação graciosa não
consubstancia um vício de preterição de formalidade essencial que possa afetar a validade das
liquidações em apreço ou o próprio despacho de indeferimento da reclamação graciosa.
Tal decisão de indeferimento encontra-se devidamente fundamentada ao sintetizar a posição do Requerente, enunciando os motivos que determinaram ao proferimento da decisão
com um concreto conteúdo: “5 – Assim, havendo já uma decisão relativa ao pedido efetuado, com base numa informação vinculativa, elaborada pela Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, com o respetivo despacho da Diretora de Serviços, e considerado o disposto no artigo 51º do CIRS, parece que a liquidação vigente se encontra liquidada de acordo com as normas legais.”
As liquidações emitidas em nome do Requerente na sequência da apresentação de declarações de substituição, não são violadoras do princípio da capacidade contributiva, cuja medida se afere, no IRS, em função dos rendimentos tributáveis obtidos em dado ano fiscal, após a dedução das despesas pessoais permitidas pela legislação em vigor, independentemente de outras eventuais responsabilidades do sujeito passivo e da capacidade de pagamento do contribuinte.
No caso em análise, o prédio alienado não deixou de ser propriedade do Requerente (quota parte de 50%), mesmo após a declaração de insolvência do irmão, ou seja, não se verificou qualquer alteração da relação jurídica tributária, continuando o Requerente a ser comproprietário do prédio e sujeito passivo do imposto até ao momento em que ocorreu a venda do mesmo, sendo irrelevante o destino dado ao produto da venda, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu (tudo conforme declaração fiscal apresentada pelo Requerente).
Assim, embora essa diferença entre os valores de realização e aquisição não tenha entrado material e fisicamente na posse do requerente, não deixou de entrar na sua esfera jurídica, o que quer dizer que não está em causa qualquer rendimento ficcionado, mas uma vantagem patrimonial efetiva, diretamente subsumível na previsão do identificado artigo 10º nº 1 al. a), do Código do IRS, o que afasta a possibilidade de procedência da argumentação de violação do citado princípio da capacidade contributiva.
Por outro lado, o n.º 1 do artigo 268.º, do CIRE, não terá aplicação ao caso em análise,
ao contrário do pretendido pelo Requerente, porque refere expressamente “matéria coletável do devedor”, estatuto que o Requerente não tem.
Quanto à alegada incorreção na determinação do valor de aquisição na parte correspondente à aquisição da propriedade plena do imóvel por consolidação do usufruto com a nua propriedade, a Requerida remete para a decisão arbitral proferida no processo n.º 178/2021-T, que tratou de uma situação semelhante à dos autos.
O Requerente vem ainda alegar que as despesas e encargos inscritos na declaração de substituição, por si entregue, deveriam acrescer ao valor de realização; contudo, analisados os respetivos documentos de suporte, verificou-se que não cumpriam os requisitos previstos no artigo 51.º, do Código do IRS.
Termos em que requer a AT seja julgado improcedente o pedido de pronuncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação impugnado, absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido.
*
Pelo despacho arbitral de 23 de maio de 2022, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, e as Partes convidadas à apresentação de alegações escritas, pelo prazo simultâneo de 15 dias, tendo sido designado o dia 4 de julho de 2022 como data provável para prolação da decisão arbitral, devendo o Requerente, até essa data, proceder ao pagamento da taxa arbitral remanescente.
Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as respetivas posições iniciais.
II. SANEAMENTO
1. O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 11 de abril de 2022, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março;
3. O processo não padece de vícios que o invalidem;
4. Não foram invocadas exceções que ao tribunal arbitral cumpra apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as
suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral
tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e do processo administrativo (PA), fixa-se como segue:
A – Factos provados:
1. Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de ... em 20 de outubro de 1994, o Requerente e sua ex-mulher, casados no regime de comunhão de adquiridos, adquiriram metade indivisa da nua-propriedade da fração autónoma designada pela letra “G” do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de ..., concelho de Cascais, sob o artigo ... (atual artigo ... da União de Freguesias de ... e ...), sendo a outra metade da nua-propriedade adquirida pelo irmão do Requerente e o usufruto vitalício pela mãe de ambos, à data, de 71 anos de idade (Cfr. Doc. 1 junto ao PA e PPA);
2. As aquisições referidas em 1. foram efetuadas pelos valores de 10 000 000$00 a nua propriedade e de 2 500 000$00 o usufruto, tendo a fração autónoma antes identificada o valor patrimonial de 12 542 400$00, correspondendo à nua-propriedade o valor de 10 033 920$00 e ao usufruto o valor de 2 508 480$00 (Cfr. Doc. 1 junto ao PA e PPA);
3. Por escritura pública do Cartório Notarial de ..., de 19 de setembro de 2007, o Requerente, sua ex-mulher, sua mãe e seu irmão, constituíram hipoteca sobre a nua propriedade e usufruto da referida fração autónoma, cujo valor patrimonial era àquela data de € 82 480,72, para garantia de um mútuo contraído por este último junto do Banco B..., SA (Cfr. Doc. n.º 5 junto ao PPA e PA);
4. Em 28 de novembro de 2008, por escritura de Partilha/Doação lavrada no Cartório Notarial de Lisboa na sequência de divórcio, foi adjudicada ao Requerente a nua- propriedade da metade da fração autónoma já identificada, a que correspondia o valor patrimonial tributário de € 37 116,32, calculado nos termos do artigo 13.º, alínea a), do CIMT, valor que lhe foi atribuído (Doc. n.º 6 junto ao PPA e PA);
5. O irmão do Requerente foi declarado insolvente por sentença proferida em 4 de janeiro de 2013, no processo que correu termos sob o n.º.../12...T2SNT – Comarca da Grande Lisboa - Noroeste – Sintra - Juízo do Comércio, sendo apreendida neste processo a metade indivisa que lhe cabia na nua-propriedade da fração autónoma identificada em 1. (Cfr. Doc. n.º 8, junto ao PPA);
6. Da relação dos créditos reconhecidos pelo Administrador da Insolvência no processo n.º .../12...T2SNT consta, em primeiro lugar, o crédito garantido, detido pelo Banco B..., SA, à data no valor de € 248 133,31 e, em quarto lugar, o crédito não garantido do Requerente, pelo valor de € 63 697,69 (cfr. Doc. n.º 9 junto ao PPA);
7. Na execução cível que correu termos sob o n.º .../13...TBCSC – Tribunal de Família e Menores, Comarca de Cascais, 2.º Juízo Cível, em que foi exequente o mesmo credor, o Banco B..., SA, que em 2016 viria a ceder o seu crédito a X…, SARL, e executados o Requerente e sua mãe, falecida em 2017 (Doc. n.º 7 junto ao PPA e PA), foram penhorados (Cfr. Doc. n.º 8, junto ao PPA):
a. “O direito que cabe ao executado na nua propriedade da fração G do prédio urbano (…) da freguesia de ..., e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o Artigo n.º ..., este deu origem ao Artigo Matricial n.º ..., da união das freguesias de ... e ...”, com o valor de € 51 915,00;
b. “O direito de Usufruto da fração G do prédio urbano (…) da freguesia de Parede, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o Artigo n.º..., este deu origem ao Artigo Matricial n.º ..., da união das freguesias de ... e...”, com o valor de € 51 915,00;
8. A totalidade da fração autónoma identificada, com o valor patrimonial de € 103 830,00, foi alienada a terceiros pelo valor global de € 200 000,00, por escritura pública de “COMPRAS E VENDAS E MÚTUO COM HIPOTECA”, celebrada em 29 de outubro de 2018, no Cartório Notarial sito na Avenida..., em que, de entre outros, foram outorgantes (Cfr. Doc. 7 junto ao PPA e PA):
a. O liquidatário judicial da massa falida do irmão do Requerente, designado no processo de insolvência n.º .../12...T2SNT;
b. A agente de execução que declarou que “por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste Oeiras – Juízo de Execução – Juiz 1, foi determinado proceder à venda extrajudicial por negociação particular do bem abaixo identificado, no processo de execução n.º.../13...TBCSC, em que é executado (…)” o Requerente;
9. Consta ainda da escritura mencionada no ponto anterior, que a sociedade adquirente procedeu ao pagamento do preço da seguinte forma (Cfr. Doc. 7 junto ao PPA e PA):
a. Em 05.07.2018, a quantia de € 40 000,00, a título de sinal, por transferência bancária, para a conta da massa insolvente;
b. Na data da escritura, através de cheque bancário sacado sobre o Banco C... à ordem da massa insolvente, o remanescente, da quantia de € 60 000,00 e,
c. Na mesma data anterior, através de cheque bancário sacado sobre o Banco C..., no valor de € 100 000,00, à ordem da agente de execução;
10. O irmão do Requerente pediu e foi-lhe concedida a exoneração do passivo restante, nos termos do despacho judicial proferido no processo de insolvência n.º .../12...T2SNT em 18 de fevereiro de 2019 (Cfr. Doc. n.º 10 junto ao PPA);
11. Na informação prestada ao processo de insolvência n.º .../12...T2SNT pelo Fiduciário designado, em 15 de março de 2021, foi dito que “No período em análise (fev´2020 a jan´2021) os insolventes não efetuaram qualquer entrega (nem tinham que o fazer), visto os seus rendimentos não terem ultrapassado o montante que lhe foi fixado pelo Tribunal como montante indispensável à sua subsistência (…)” – sublinhado no original (cfr. Doc. n.º 20 junto ao PPA);
12. Na primeira declaração de IRS referente aos rendimentos do ano de 2018, o Requerente declarou rendimentos de mais-valias no valor de € 13 710,54, que considerou isentos de tributação nos termos do artigo 268.º, do CIRE (facto não contestado);
13. Em 16 de agosto de 2019, o Requerente apresentou perante a AT um pedido de informação vinculativa, a que juntou dois anexos contendo a descrição dos factos, para esclarecimento das seguintes questões (Doc. n.º 11 junto ao PPA):
a. “Para efeitos do disposto no artigo 45.º, n.º 1 do Código do Imposto sobre o Rendimentos das pessoas Singulares, numa situação em que está em causa a consolidação do usufruto na nua propriedade, determinar a forma correta de calcular o valor de aquisição relativo a essa mesma consolidação”
b. “Determinar que o regime previsto no artigo 268.º, n.º 1 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas se aplica, indistintamente, à venda de quaisquer bens ou direitos que ocorra em processo de insolvência que prossiga para liquidação e que, por conseguinte, se aplica à mais-valia realizada e que melhor se descreve no Anexo II”;
14. Em dezembro de 2020 a AT viria a decidir desfavoravelmente a pretensão do Requerente quanto a ambas as indicadas questões (cfr. Doc. n.º 12 junto ao PPA, que transcreve parcialmente a informação da DSIRS a que se faz alusão na decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente contra as liquidações identificadas);
15. Nesta sequência, o Requerente apresentou, em 8 de março de 2021, uma primeira declaração modelo 3 de substituição, por referência aos rendimentos do ano de 2018, na qual evidenciou o entendimento da AT quanto ao cálculo do valor de aquisição da sua quota-parte na fração autónoma citada, declarando ainda diversas despesas que entendeu inerentes à alienação (cfr. Doc. n.º 15 junto ao PPA);
16. Desta declaração de substituição resultou a liquidação de IRS n.º 2021... e demonstração de acerto de contas n.º 2021..., que apurou imposto e juros compensatórios a pagar da quantia de € 10 336,10 (Docs. n.ºs 1 e 13 juntos ao PPA);
17. Por mensagem de correio eletrónico emitida pelo Serviço de Finanças de Lisboa 7 em 22 de março de 2021, no âmbito de um procedimento de gestão de divergências, foi dado conhecimento ao Requerente de que, no prazo de 10 dias, deveria substituir o anexo G à declaração modelo 3 mencionada no ponto anterior, daí retirando os elementos inscritos no quadro despesas e encargos, dado que se referiam “a despesas que não poderão ser contabilizadas, para efeitos de mais-valias, (aconselhamento jurídico e despesas judiciais” (cfr. Doc. n.º 15 junto ao PPA);
18. Em 29 de março de 2021, o Requerente apresentou nova declaração de substituição da qual expurgou os valores referentes a despesas e encargos com a alienação do imóvel, de que resultou a liquidação n.º 2021... e a demonstração de acerto de constas n.º 2021 ..., que apurou imposto e juros compensatórios a pagar no valor de € 2 902,24 (cfr. Docs. n.ºs 3 e 16 juntos ao PPA);
19. As liquidações antes mencionadas foram pagas em 20 de abril de 2022 (cfr. Docs. n.ºs 3 e 18 juntos ao PPA);
20. O Requerente apresentou reclamação graciosa tendo em vista a anulação das liquidações de IRS do ano de 2018 que, instaurada sob o n.º ...2021..., foi objeto de decisão de indeferimento, conforme a notificação que lhe expedida a coberto do ofício n.º ... do Serviço de Finanças de Lisboa ..., datado de 27 de outubro de 2021 (Cfr. Docs. n.ºs 1 e 19 juntos ao PPA e PA).
B – Factos não provados:
Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.
C – Fundamentação da matéria de facto provada e não provada:
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos dados como provados decorrem da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral, e da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados, face princípio da livre valoração da prova (artigo 110.º, n.º 7, do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
III.2 DO DIREITO
1. As questões a decidir
As questões que o tribunal arbitral é chamado a apreciar e decidir são as de saber (i) se as liquidações de IRS impugnadas violam o princípio da capacidade contributiva, por o Requerente não ter obtido, no ano de 2018, rendimentos de mais-valias e, em caso negativo, (ii) se está correto o cálculo das mais-valias tributadas, efetuado pela AT, na origem daquelas liquidações de IRS (pedido subsidiário), bem como (iii) se a decisão de indeferimento da reclamação graciosa padece dos vícios formais de preterição do direito de audição prévia do Requerente, da omissão do dever de decisão e de falta da fundamentação legalmente exigida.
2. Ordem de apreciação dos vícios
Impõe o artigo 124.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, que, quanto aos vícios geradores de anulabilidade do ato impugnado, o tribunal aprecie prioritariamente os “vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos”.
Justifica-se, assim, a apreciação prioritária do vício de violação de lei, por erro nos pressupostos, uma vez que a anulação fundada em vícios de forma não impede a renovação do ato anulado, com supressão do vício.
2.1. Da isenção prevista no artigo 268.º, n.º 1, do CIRE
Um dos fundamentos do pedido de declaração de ilegalidade das liquidações de IRS do ano de 2018 emitidas em nome do Requerente é o da não aplicação ao caso concreto da isenção prevista no artigo 268.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, em vigor à data da alienação da fração autónoma de que era comproprietário, segundo o qual,
“Artigo 268.º - Benefícios relativos a impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas
1 - Os rendimentos e ganhos apurados e as variações patrimoniais positivas não refletidas no resultado líquido, verificadas por efeito da dação em cumprimento de bens e direitos do devedor, da cessão de bens e direitos dos credores e da venda de bens e direitos, em processo de insolvência que prossiga para liquidação, estão isentos de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas, não concorrendo para a determinação da matéria coletável do devedor.
(…)”,
em contraposição à anterior redação da norma, em que se previa:
“Artigo 268.º Benefícios relativos a impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas
1 - As mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento de bens do devedor e da cessão de bens aos credores estão isentas de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas, não concorrendo para a determinação da matéria coletável do devedor.
(…)”.
A este respeito, alega o Requerente que, atualmente, resulta da lei que “qualquer venda de bens ou direitos, nomeadamente (mas sem limitar) por credor do insolvente, desde que verificada em processo de insolvência que prossiga para liquidação, é suscetível de beneficiar daquele regime jurídico” e que, tendo reclamado outros créditos no mesmo processo de insolvência, o Requerente é indubitavelmente credor do devedor.
A esta argumentação contrapõe a AT, embora com base na anterior redação da norma do n.º 1 do artigo 268.º, do CIRE, que esta não tem aplicação ao caso em análise, dado que refere expressamente a “matéria coletável do devedor”, estatuto que o Requerente não tem (artigos 35.º a 37.º da Resposta).
A questão da aplicabilidade da isenção prevista no n.º 1 do artigo 268.º, do CIRE, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, já foi abundantemente tratada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo[1], que, sempre por referência à pessoa do insolvente, decidiu, designadamente que[2]:
“Tem decidido este STA não padecer de ilegalidade a liquidação de IRS efectuada aos proprietários (insolventes) de bens imóveis integrados na massa insolvente cuja alienação, pelo administrador de insolvência, gere mais-valia, pois que são estes, nos termos legais, e não a massa insolvente, os proprietários dos bens e sujeitos passivos do imposto. Como tem decidido não ser de interpretar extensivamente a norma de isenção prevista no n.º 1 do artigo 268.º do CIRE (na redação anterior à que resultou da Lei do Orçamento do Estado para 2018, que deu nova redacção ao n.º 1 do artigo 268.º do CIRE) por forma a nela abarcar, para além da sua letra, IRS incidente sobre mais-valias geradas pela venda de bens imóveis que integrem a massa insolvente – cfr. o nosso Acórdão de 10 de Maio de 2017, proferido no recurso n.º 669/17, cujo entendimento foi reiterado, mais recentemente, por Acórdãos de 11 de Outubro último, proferido no recurso n.º 504/17, e de 30 de Maio último, proferido no recurso n.º 144/17.
Isto porque, como se tem consignado, e que com a devida vénia se transcreve:
«O art. 268.º do CIRE, que tem como epígrafe «Benefícios relativos a impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e colectivas», prevê no seu n.º 1 uma isenção relativamente aos impostos sobre o rendimento nos seguintes termos: «As mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento de bens do devedor e da cessão de bens aos credores estão isentas de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e colectivas, não concorrendo para a determinação da matéria coletável do devedor».
Como resulta da letra da lei apenas estão abrangidas pela isenção de IRS, as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do insolvente e da cessão desses bens aos credores e já não as resultantes da venda desses bens – figuras jurídicas inequivocamente distintas e tratadas autonomamente no Código Civil (CC) –, ainda que o seu produto seja aplicado no pagamento aos credores.
Antes do mais, cumpre ter presente que, em matéria de isenções, há que observar o princípio constitucional da legalidade tributária, na sua vertente de tipicidade, que veda a integração analógica de normas de isenção de imposto, embora consinta na sua interpretação extensiva, como, aliás, reconhece o legislador ordinário (cfr. art. 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais). A interpretação extensiva pressupõe que, por via interpretativa, se conclua que o legislador minus dixit quam voluit, que o legislador disse menos do que aquilo que se pretendia dizer (Sobre a questão, vide o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:- de 23 de Novembro de 2011, proferido no processo n.º 592/11, disponível em (http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/276fb5605d95722d8025795d00445be9.), ou seja, que quando isentou de IRS as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do devedor aos credores ou da cessão de bens aos credores pretendia igualmente abranger no âmbito da isenção as mais-valias realizadas com a venda a terceiros desses bens, pelo menos na parte em que o produto dessa venda fosse utilizado no pagamento aos credores. Mas, salvo o devido respeito, qualquer que seja o juízo sobre a bondade da opção legislativa, não pode é sustentar-se que o legislador pretendia também abranger na isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE as mais-valias resultantes da venda de bens do devedor. Na verdade, a ser assim, por certo o teria dito expressamente (cfr. art. 9.º, n.º 3, do CC), tanto mais que as situações de venda serão mais vulgares que as de dação em pagamento ou cessão de bens aos credores. Por outro lado, nada permite concluir, designadamente a ratio legis, que o legislador quisesse aplicar às situações em que há venda de bens (transferência de bens do insolvente para terceiros) tratamento idêntico àquele em que há uma transferência directa de bens da esfera patrimonial do insolvente para a dos credores, sendo legítimo concluir que pretendeu estimular este modo de extinção das dívidas do insolvente.
Concluímos, pois, que as mais-valias resultantes da venda de bens do insolvente não estão abrangidas pela isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE. Mas será que, como sustentou o Juiz do Tribunal a quo, que o insolvente não obteve qualquer rendimento com a alienação do imóvel?
Atento o disposto nos arts. 1.º e 2.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e, designadamente, a repartição do produto obtido pelos credores, podendo ser objecto de tal processo quaisquer pessoas singulares ou colectivas, sendo que, no caso, apenas nos interessa considerar a insolvência de pessoa singular.
(…)
Aliás, nem sequer pode dizer-se que não haja benefício para o insolvente, pois esse acréscimo patrimonial beneficiou o insolvente embora na parte do seu património separada para a massa, traduzindo-se numa diminuição do seu passivo.
Neste sentido, aponta também, a contrario, o disposto no art. 268.º do CIRE, ao prever uma isenção de IRS para as mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento (realização de uma prestação, diferente da que é devida, com o fim de extinguir imediatamente a obrigação) de bens do devedor e da cessão de bens aos credores (em que o devedor encarrega os credores de liquidar o seu património ou parte dele e de repartirem entre si o respectivo produto para satisfação dos seus créditos); o que significa que, se as mais-valias não resultarem de um desses negócios previstos nesta norma de isenção, designadamente se resultarem da venda de bens da massa insolvente, e a menos que gerem rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais (Ou seja, pressupomos que os imóveis pertencem ao património particular do sujeito passivo, isto é, que não estavam afectos a qualquer actividade empresarial e/ou profissional.), estão abrangidas pelo IRS, concorrendo para a determinação da matéria colectável em sede deste imposto [art. 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS] (…)”
Do confronto entre o excerto transcrito e os factos dados como provados resulta que a questão que nos ocupa é substancialmente diversa, a vários níveis, da que ali foi tratada: não só a alteração legislativa introduzida ao n.º 1 do artigo 268.º, do CIRE, pela Lei do Orçamento do Estado para 2018, passou a contemplar a isenção de impostos sobre o rendimento para as mais-valias resultantes de venda, como passou também a abranger a venda e a cessão de bens dos credores, desde que, evidentemente, essa venda ou cessão ocorra no âmbito de um processo de insolvência.
No entanto, ainda que se possa aceitar a interpretação dada pelo Requerente à nova redação daquela norma, na perspetiva de que o produto da venda de bens ou direitos dos credores, em processo de insolvência, não contribui para a determinação da matéria coletável destes, maxime, das mais-valias tributáveis decorrentes dessa venda, estamos em crer que a isenção ali prevista não poderá ter aplicação no caso dos autos, pois, de acordo com a factualidade dada como provada, a venda da sua quota parte na fração autónoma alienada não ocorreu no processo de insolvência que correu termos sob o n.º .../12...T2SNT.
Tal decorre, por um lado, do disposto no artigo 159.º, do CIRE, nos termos do qual só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre os bens em contitularidade.
Tendo o Requerente e sua falecida mãe constituído hipoteca voluntária sobre os direitos que detinham na referida fração autónoma, para garantia da dívida exigida pelo credor do insolvente, deveria este demandá-los em execução autónoma, como viria a fazer através do processo de execução n.º .../13...TBCSC, em que promoveu a penhora daqueles direitos.
Por outro lado, quer o título da escritura de “COMPRAS E VENDAS E MUTUO COM HIPOTECA” celebrada em 9 de outubro de 2018, quer da forma de pagamento do preço de aquisição da referida fração autónoma, indicam que houve efetivamente duas vendas, ainda que ambas para satisfação do direito do mesmo credor quanto à mesma dívida do mesmo devedor, no caso, o irmão do Requerente: uma no âmbito do processo de insolvência, quanto à parte do prédio de que o insolvente era proprietário e outra, no âmbito do processo de execução em que havia sido penhorada a parte do Requerente.
Da conclusão de que o direito de propriedade do Requerente sobre a fração autónoma identificada não foi vendido em processo de insolvência resulta a inaplicabilidade à situação sub judice da isenção prevista no n.º 1 do artigo 268.º, do CIRE.
2.2 Da violação do princípio da capacidade contributiva
Um dos fundamentos aduzidos pelo Supremo Tribunal Administrativo na jurisprudência antes citada para não julgar ilegais as liquidações de IRS em que eram englobados rendimentos de mais-valias decorrentes da venda de imóveis em processos de insolvência, foi o de que não se poderia dizer que tal venda se não tivesse traduzido num acréscimo patrimonial para o insolvente, pois que ainda que o respetivo produto se destinasse à satisfação dos credores da insolvência, “não deixou de entrar na sua esfera jurídica, o qual foi destinado à diminuição do respetivo passivo, o que quer dizer que não está em causa qualquer rendimento ficcionado, mas uma vantagem patrimonial efetiva, diretamente subsumível na previsão do identificado art. 10º nº 1 al. a), do C.I.R.S., o que arreda, igualmente, a possibilidade de procedência da argumentação de violação do citado princípio da capacidade contributiva”[3].
No caso dos autos, também o Requerente invoca a violação do princípio da capacidade contributiva como fundamento da ilegalidade das liquidações de IRS do ano de 2018, asseverando que da venda do seu direito de propriedade sobre a metade indivisa da fração autónoma, onerada com hipoteca voluntária constituída para garantia da dívida do irmão insolvente e posteriormente penhorada na execução movida pelo credor hipotecário, não lhe adveio qualquer acréscimo patrimonial.
Na sua Resposta, refere a Requerida que o princípio da capacidade contributiva, enquanto exprime ou concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária opera como pressuposto ou condição da tributação, visto que impede que a mesma atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe e que “No caso em análise, o prédio alienado não deixou de ser propriedade do Requerente (quota-parte de 50%), mesmo após a declaração de insolvência do irmão, ou seja, não se verificou qualquer alteração da relação jurídica tributária, continuando o Requerente a ser comproprietário do prédio e sujeito passivo do imposto até ao momento em que ocorreu a venda do mesmo, mais sendo irrelevante o destino dado ao produto da venda, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu (tudo conforme declaração fiscal apresentada pelo Requerente)”.
Diga-se, desde logo, que a apresentação de uma declaração de substituição, mormente quanto a mesma é preenchida de acordo com instruções emanadas da Autoridade Tributária e Aduaneira (neste caso a decisão desfavorável no pedido de informação vinculativa e o procedimento de gestão de divergências indicados no probatório), não constitui confissão de dívida que impeça o contribuinte de impugnar a liquidação com base nos valores nela declarados[4].
Por outro lado, de acordo com o preâmbulo do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei 442-A/88, de 30 de novembro, “Na construção do conceito de rendimento tributável, contrapõe-se a conceção da fonte, que leva a tributar o fluxo regular de rendimentos ligados às categorias tradicionais da distribuição funcional (rendimento-produto) à conceção de acréscimo patrimonial, que alarga a base da incidência a todo o aumento do poder aquisitivo, incluindo nela as mais-valias e, de um modo geral, as receitas irregulares e ganhos fortuitos (rendimento-acréscimo)”, alargando-se, no CIRS, a tributação a “ganhos (…) tais como os gerados pela transmissão onerosa de qualquer forma de propriedade imóvel”.
Constituem “incrementos patrimoniais”, entre outros indicados no artigo 9.º, as mais-valias, tal como definidas no artigo 10.º, do Código do IRS, designadamente “os ganhos” que não sendo enquadrados noutras categorias de rendimentos, resultem da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (n.º 1, línea a)), sendo “o ganho” sujeito imposto constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição (n.º 4, alínea a)).
Ou seja, vigora nesta sede o princípio da realização, que depende da obtenção de um ganho que se traduza num incremento ou acréscimo patrimonial na esfera jurídica do sujeito passivo, sem o que não pode ser considerada a existência de um rendimento de mais-valias.
No caso de venda de direitos reais sobre bens imóveis, este valor de realização é, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, alínea f), do Código do IRS, o valor da respetiva contraprestação. A contraprestação típica num contrato de compra e venda é o pagamento do preço correspetivo.
Em face dos contornos factuais da situação em análise, importa aferir da existência de tal ganho na esfera do Requerente.
Como resulta dos factos levados ao probatório, em 2007, o Requerente e sua mãe constituíram hipoteca voluntária sobre os direitos reais menores que detinham na fração autónoma identificada: um quarto indiviso da nua-propriedade e o usufruto vitalício, respetivamente, para garantia de uma dívida de seu irmão.
Em 2008, na partilha por divórcio, foi adjudicada ao Requerente um quarto da nua propriedade do imóvel, ficando este, assim, titular de metade da mesma.
Em 2013, o irmão do Requerente foi declarado insolvente no processo que lhe foi movido pelo credor beneficiário da hipoteca constituída sobre o mesmo prédio, também exequente no processo em que foram executados o Requerente e sua mãe e em que foram penhorados os direitos que nele detinham.
Em 2018, após falecimento da mãe do Requerente e consolidação da nua-propriedade com o usufruto, o imóvel foi vendido, na sua totalidade, nos termos da escritura de “COMPRAS E VENDAS E MUTUO COM HIPOTECA”, de 9 de outubro de 2018, para satisfação do direito do credor do insolvente, simultaneamente exequente beneficiário de garantias reais (hipotecas e penhoras).
O adquirente da referida fração autónoma efetuou o pagamento do preço separadamente, tendo em consideração a existência de dois processos autónomos, de insolvência e de execução, embora, repete-se, para satisfação da mesma dívida do insolvente.
Na sequência da venda do prédio referido, o irmão do Requerente pediu e foi-lhe concedida a exoneração do passivo restante[5], com a consequência prevista no n.º 1 do artigo 245.º, do CIRE, de “a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida”, e com cessão do rendimento disponível, nos termos do artigo 239.º, do mesmo Código.
Ainda que o Requerente tivesse reclamado o seu crédito sobre o produto da venda, este não seria graduado, não só por não beneficiar de garantia real e existirem créditos privilegiados, como ainda por se tratar de um crédito subordinado, na aceção dos artigos 48.º, alínea a) e 49.º, n.º 1, alínea b), do CIRE, dado o grau de parentesco com o insolvente.
É, portanto, legítima a conclusão de que a venda da metade da fração autónoma propriedade do Requerente se não tenha traduzido para este num acréscimo patrimonial, nem por via da obtenção de um qualquer fluxo pecuniário ou aumento de riqueza, nem pela diminuição do seu passivo, que configure um ganho sujeito a mais-valias.
Neste contexto, porque a tributação do rendimento pessoal assenta, essencialmente, em rendimentos reais (não ficcionados ou regulares, ligados a certas categorias de rendimentos, típicos da conceção do rendimento-produto), que na situação em análise se não prova terem sido obtidos pelo Requerente, as liquidações que incidem sobre rendimentos não comprovadamente obtidos, afrontam o princípio da capacidade contributiva[6], não podendo subsistir na ordem jurídica.
Justifica-se, pelos motivos expostos, a anulação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT, das liquidações de IRS n.ºs 2021... e 2021..., referentes ao ano de 2018, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2014..., que as manteve.
2.3. Questões de conhecimento prejudicado
Concluindo-se que se justifica a anulação das liquidações impugnadas, com fundamento que impede a sua renovação com o mesmo sentido, assim se assegurando a eficaz tutela dos interesses do Requerente, tal como se determina no artigo 124.º, do CPPT, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios invocados pelo Requerente, quer das mesmas liquidações, quer do procedimento de reclamação graciosa.
3. Da restituição do indevido, acrescido de juros indemnizatórios
Determina a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária
a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse
sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que incluiu “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”.
De igual modo, o n.º 1 do artigo 100.º, da LGT, aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º, do RJAT, estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.
O restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral não enfermasse de erro na determinação do VPT subjacente, obriga, por um lado, à restituição do imposto indevidamente pago pela Requerente e, por outro, ao pagamento de juros indemnizatórios, sendo caso disso.
O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º, da LGT, cujo n.º 1 estabelece que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.
No caso dos autos e pelos motivos já expostos, embora as liquidações de IRS impugnadas tivessem sido emitidas com base em declarações de substituição apresentadas pelo Requerente, não pode deixar de imputar-se à AT o erro sobre os pressupostos de facto, que levou ao erro sobre os pressupostos de direito de que as mesmas enfermam.
Reconhece-se, por isso, o direito do Requerente a juros indemnizatórios sobre o valor da prestação tributária indevidamente paga, desde a data do pagamento, até à data da emissão da respetiva nota de crédito.
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando procedente o presente pedido de pronúncia arbitral:
a. Declarar a ilegalidade e determinar a consequente anulação das liquidações de IRS n.ºs 2021... e 2021..., referentes ao ano de 2018, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2014..., que as manteve;
b. Condenar a Requerida na restituição ao Requerente do IRS apurado nas liquidações anuladas, no valor global de € 13 238,34;
c. Reconhecer o direito a Requerente a juros indemnizatórios sobre a prestação tributária indevidamente paga, desde a data do pagamento até ao processamento da respetiva nota de crédito.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 13 238,34 (treze mil, duzentos e trinta e oito euros e trinta e quatro cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 918,00 (novecentos e dezoito euros), a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 4 de julho de 2022.
O Árbitro,
/Mariana Vargas/
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.
[1] Citam-se, a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 08.03.2017, Processo n.º 01660/15; de 11-10-2017, Processo n.º 0504/17; de 30.05.2018, Processo n.º 0144/17; de 06.06.2018, Processo n.º 01136/17; de 24.04.2019, Processo n.º 0260/15.2BEFUN; de 21.11.2019, Processo n.º 01646/13.2BELRA, de 06.05.2020, Processo n.º 03357/16.8BELRS e de 08.09.2021, Processo n.º 0243/21.3BELLE.
[2] Cfr. o Acórdão do STA, de 06.06.2018, Processo n.º 01136/17.
[3] Acórdão do STA, de 08.09.2021, Processo n.º 0243/21.3BELLE.
[4] Cfr. neste sentido, embora em contexto diverso, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 04.11.2015, Processo n.º 0712/14 – 2.ª Secção e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 11.01.2019, Processo n.º 2160/13.1BELRS.
[5] Sobre a exoneração do passivo restante escreve Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência”, Volume I, 4.ª Edição, Almedina, 2022, págs. 605 e 606, que este se justifica pelo facto de as pessoas singulares serem pessoas humanas e merecerem um tratamento diferente do que é dado às pessoas coletivas, “assim facultando ao devedor (e, muitas vezes, à sua família) a possibilidade de não viver o resto da sua existência (ou, pelo menos, até ao decurso do prazo de prescrição) sob o peso de dívidas que tornariam impossível o retomar de uma vida financeiramente equilibrada”.
[6] Na formulação do Prof. Teixeira Ribeiro, “Lições de Finanças Públicas”, 5.º Edição, Coimbra Editora, 1995, pág. 264, o princípio da capacidade contributiva ou princípio da capacidade de pagar exige não só que devam “satisfazer o mesmo imposto os que têm a mesma capacidade de pagar” e que devam “satisfazer diferente imposto, os que têm capacidade de pagar diferente”, mas porque “(…) o Estado exige impostos todos os anos; ora, uma economia só pode suportar um encargo anual se esse encargo for satisfeito com recursos que anualmente se renovem. Tais recursos constituem, como se sabe, o rendimento: logo, a capacidade de pagar impostos depende do rendimento [anual] de cada contribuinte.”