DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Gonçalo Marquês de Menezes Estanque, designado pelo Conselho Deontológico do CAAD para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 22-03-2022, decide o seguinte:
1. Relatório
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A..., contribuinte n.º..., residente na Rua..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa (adiante designada por "Requerente"), veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), tendo em vista:
a. A ilicitude das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) de 2005; e
b. A condenação ao pagamento de juros indemnizatórios.
2. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT”).
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 14-01-2022.
4. Em 25-01-2022, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação do Árbitro, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT.
5. Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 22-03-2022.
6. A AT apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e suscitou excepções dilatórias, bem como a suspensão da instância, nos termos do n.º 1 do artigo 272.º do CPC ex vi alínea i) do artigo 29.º do RJAT.
7. Por despacho de 28-04-2022, foi a Requerente notificada para se pronunciar quanto ao teor das excepções invocadas pela AT. Em 12-05-2022, a Requerente apresentou a sua resposta às excepções.
8. Por despacho de 26-05-2022, este Tribunal dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e notificou as Partes para a produção de Alegações escritas por prazo, simultâneo, de 15 dias, conforme previsto no artigo 120.º, n.º 1 do CPPT (ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).
9. As partes não apresentaram alegações, apesar de notificadas para o efeito.
10. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
11. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
12. O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
13. Consideram-se provados os seguintes factos:
A. Relativamente ao IRS de 2005, a Requerente era casada com B... (contribuinte fiscal n.º...) e apresentaram, em 20-11-2009, Declaração Modelo 3 de IRS de substituição (documento n.º 1 junto com a Resposta da AT, cujo teor se dá como reproduzido).
B. Esta Declaração de IRS deu origem à liquidação de IRS n.º 2009.... com o valor a pagar de €96.871,30. (documento n.º 2 junto com a Resposta da AT, cujo teor se dá como reproduzido).
C. A liquidação de IRS n.º 2009... foi notificada em 30-11-2009 ao cônjuge da Requerente (artigo 8.º da Resposta da AT e documento n.º 3 junto com a Resposta da AT, cujo teor se dá como reproduzido).
D. Em 27-01-2010 foi instaurado Processo de Execução Fiscal n.º ...2010... com vista à cobrança coerciva do montante de €18.963,86 referente ao IRS de 2005, sendo que o cônjuge da Requerente requereu o respetivo pagamento em prestações (fls. 1, 2 e 3 do Processo de Execução Fiscal junto pela AT, cujo teor se dá como reproduzido).
E. A proposta de Plano de Insolvência faz referência ao “crédito vencido” relativo ao IRS de 2005 (documento n.º 2, fls. 28, junto com o pedido de pronúncia arbitral, o qual foi aperfeiçoado através de Requerimento datado de 14-01-2022, cujo teor se dá como reproduzido).
F. Em 10-01-2011 foi declarada a insolvência do cônjuge da Requerente por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Almeirim (Proc. n.º .../10...TBALR) - (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).
G. A Requerente foi citada, por via postal, em 14-10-2021, do Processo de Execução Fiscal n.º ...2010... . Da certidão de dívida consta que o Processo de Execução Fiscal foi instaurado para a cobrança coerciva de dívida referente ao Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (“IRS”) de 2005 (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).
H. A quantia exequente, à data da citação da Requerente, ascendia ao montante de €9.481,92, acrescido de juros de mora e custas processuais (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido).
I. A Requerente, na sequência da citação supra referida, apresentou, igualmente, Oposição à Execução Fiscal a qual corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco sob o n.º de processo 3/22.4BECTB (documentos n.º 5, 6 e 7 juntos com a Resposta da AT, cujos teores se dão como reproduzidos).
2.2. Factos não provados
13. Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a decisão da causa.
14. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pelo Requerente, bem como na Resposta e processo administrativo apresentado pela AT.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
15. Não existe um dever de pronúncia quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes. O Tribunal Arbitral tem, isso sim, o dever de selecionar a matéria de facto que releva para a decisão e decidir se a considera provada ou não provada, conforme resulta do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT.
3. Matéria de direito
3.1. Posição das Partes
16. Em suma, a Requerente alega que:
- Em sede do Plano de Insolvência relativo ao cônjuge da Requerente, foi deliberado e votado favoralmente pelos credores, inclusive a Fazenda Pública, que os créditos tributários comuns visados seriam objeto de perdão (o qual foi homolgado pelo Tribunal Judicial de Almeirim no âmbito do Processo n.º.../10...TBALR).
- Pelo que conclui a Requerente pela anulação do ato tributário de liquidação, porquanto não se compatibilizam com o perdão votado favoravelmente pela Autoridade Tributária em sede do plano de insolvência homologado.
- Os créditos têm origem na tributação de rendimentos exclusivamente auferidos através da atividade profissional do então cônjuge da Requerente, em sede de IRS quanto ao ano de 2005. Assim, atendendo a que a Requerente e o devedor originário casaram no regime matrimonial de separação de bens não pode a Requerente ser tida como devedora originária, ou responsável subsidiária pelas dívidas em questão.
- A Requerente conclui que independentemente da efetivação do perdão dos créditos tributários, legalmente as dívidas imputadas só poderiam ser da responsabilidade do cônjuge marido e não da Requerente.
- A liquidação de IRS ora em crise não foi dada a conhecer à Requerente dentro do prazo de caducidade, tendo a Requrente tomado conhecimento das mesmas apenas através de citação para o PEF identificado, e estando em causa o IRS referente ao ano de 2005 é evidente que o prazo de caducidade foi ultrapassado.
- É ainda invocada a prescrição com fundamento no facto da Requerente não ser a devedora originária das dívidas em apreço e, estando em causa liquidações respeitantes a 2005, as mesmas encontram-se há muito prescritas.
- Por fim, a Requerente invoca uma aplicação inconstitucional das normas em apreço no caso concreto, em contradição com o princípio da autonomia da vontade na escolha do regime de bens por parte dos cônjuges, implícito na segunda parte do n.º 1 do artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), e os princípios da capacidade contributiva, da igualdade e da proporcionalidade previstos nos artigos 103.º, 104.º, 13.º e 18.º da CRP.
- Razão pela qual, peticiona a final pela ilicitude das liquidações de IRS 2005 da qual a AT pretende responsabilizar a Requerente e pela condenação ao pagamento de juros indemnizatórios.
17. Por seu turno, a AT, em sede de Resposta, refere que:
- O que ressalta do pedido formulado pela Requerente e, especificamente, do documento que comprova o objeto do mesmo (citação pessoal efetuada no processo de execução fiscal, doc. n.º 1 junto ao PPA) é que aquilo que a Requerente pretende ver anulado é o ato de cobrança coercivo emitido no âmbito do PEF n.º ...2010... que lhe foi instaurado por não ter pago, no prazo legal, o IRS referente ao ano de 2005.
- Na realidade, a Requerente não imputa ao ato de liquidação subjacente ao PEF qualquer ilegalidade, centrando a sua impugnação arbitral na imputação de vícios ao PEF, como sejam a sua ilegitimidade e irresponsabilidade pelo pagamento da dívida decorrente do mesmo, a prescrição do direito à cobrança coerciva e a incompetência do órgão de execução fiscal (o Serviço de Finanças de ...).
- Assim, conforme se decidiu no proc. n.º 525/2016-T “entre as competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD definidas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, não se incluem competências para apreciar atos praticados em execução fiscal, mas apenas para declarar a ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, para além de atos de fixação da matéria tributável ou coletável e atos de fixação de valores patrimoniais”.
- Termos em que, sendo este tribunal arbitral incompetente em razão da matéria para apreciar e decidir o pedido objeto do presente litigio, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 2.º e do n.º 1 do art. 4.º, ambos do RJAT, está verificada a exceção dilatória prevista na alínea a) do art. 577.º do Código de Processo Civil ex vi alínea e) do art.2.º do CPPT e alíneas a) e e) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT, devendo, em consequência, ser a AT absolvida da instância.
- Ademais, a Requerente, em 15/11/2021, opôs-se à citação pessoal, nos termos do art. 203.º do CPPT, a qual está a correr termos no TAF de Castelo Branco e na qual são suscitados os mesmos vícios que no presente PPA. (cfr. Doc. 5), pelo que está verificada a excepção dilatória da litispendência prevista no n.º 2 do art. 576.º e alínea i) do art. 577.º do CPC, aplicáveis ex vi a alínea i) do art. 29.º do RJAT. Termos em que deve, em consequência, ser a AT absolvida da instância.
- Sem conceder, e caso assim se não entenda, sempre estaríamos perante uma situação prejudicial que determina a suspensão da instância arbitral, nos termos do n.º 1 do art. 272.º do CPC, ex vi alínea i) do art. 29.º do RJAT.
- Quanto ao mérito do pedido, alega a AT que desconhece a aprovação de qualquer perdão de dívida fiscal no âmbito do processo de insolvência do cônjuge da Requerente.
- O que está em causa nos presentes autos é uma dívida comum de ambos os cônjuges, e atento o disposto no art. 108.º do CPPT, foi extraída certidão de dívida, autuado e instaurado processo de execução fiscal contra os responsáveis executados (a Requerente e o seu cônjuge).
- Entre muitos outros, veja-se o acórdão do TCA Sul de 31/03/2016, Proc. n.º 07966/13, bem como a jurisprudência aí citada, no qual ficou sumarizado que: “As dívidas de I.R.S. são da responsabilidade de ambos os cônjuges desde que o agregado familiar seja integrado por consortes não separados de pessoas e bens, sendo que os pressupostos do facto tributário se verificam em relação a ambos e cumprindo-se a responsabilidade solidária dos cônjuges independentemente da titularidade de cada parcela do rendimento englobado para efeitos de tributação. Temos, assim, que o agregado familiar é a unidade económica relativamente à qual se afere a tributação, neste caso conjunta e não separada (cfr. artº.104, no.1, da CRP; arto.21, no.1, da LGT; arto.13, no.2, do CIRS)”.
- No caso dos autos, o cônjuge da Requerente foi notificado da liquidação n.º 2009.... por ofício registado de 30/11/2009 e, portanto, dentro do prazo legal para a prática do ato (cfr. Doc. no 3), ficando, por esta via, concretizada a notificação à Requerente
- Por fim, quanto à prescrição, refere a AT que a Requerente parte de uma premissa errada que é a de que é responsável subsidiária, quando, na verdade, a Requerente é co-executada. Tratando-se de uma dívida de IRS referente ao ano de 2005, o respectivo prazo prescricional iniciou-se em 01-01-2006, ficando suspenso nos termos legalmente previstos, detalhados no Doc. n.º 7.
18. Em resposta às excepções invocadas a Requerente veio referir que:
- Esta é uma citação que confere à Requerente a possibilidade de exercer, a partir da citação, todos os direitos processuais que foram atribuídos ao Executado originário, pelo que não está em causa uma oposição encapotada.
- Está em causa apenas a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, ao abrigo do artigo 2.º n.º 1 do RJAT e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
- Em segundo lugar, também não há qualquer litispendência. São famigerados os casos de necessidade de utilização de dois meios diferentes - veja-se o caso da reversão fiscal, se quiser fazer apreciar pelo tribunal a legalidade da liquidação do imposto terá de lançar mão do processo de impugnação, se pretender questionar a legalidade da reversão ou outras causas de inexigibilidade da obrigação, deverá socorrer-se da oposição à execução.
3.2. Apreciação da excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral
19. Importa começar pela apreciação da exceção da incompetência do tribunal, suscitada pela Requerida na sua resposta, porquanto, a verificar-se tal incompetência, o tribunal não será competente senão para declarar a sua incompetência[1].
20. Recorde-se que a AT refere que a Requerente não imputa ao ato de liquidação subjacente ao PEF qualquer ilegalidade, centrando a sua impugnação arbitral na imputação de vícios ao PEF, como sejam a sua ilegitimidade e irresponsabilidade pelo pagamento da dívida decorrente do mesmo, a prescrição do direito à cobrança coerciva e a incompetência do órgão de execução fiscal (o Serviço de Finanças de...).
21. Por seu turno a Requerente refere que apenas com a citação, em sede de PEF, a Requerente dispôs da possibilidade de exercer, a partir dessa citação, todos os direitos processuais que foram atribuídos ao Executado originário, pelo que não está em causa uma oposição encapotada mas, isso sim, a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, ao abrigo do artigo 2.º n.º 1 do RJAT e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
22. Cumpre decidir: em primeiro lugar, reitere-se que, em sintonia com muitas outras decisões proferidas pelos Tribunais Arbitrais, “o facto de a alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT fazer referência aos n.os 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT, em que se indicam os vários tipos de actos que dão origem ao prazo de impugnação judicial, inclusivamente a reclamação graciosa, deixa perceber que serão abrangidos no âmbito da jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD todos os tipos de actos passíveis de serem impugnados através processo de impugnação judicial, abrangidos por aqueles n.ºs 1 e 2, desde que tenham por objecto um acto de um dos tipos indicados naquele artigo 2.º do RJAT”[2] (Proc. n.º 809/2019-T).
23. Ou seja, significa isto que, em consonância com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, a opção do legislador foi no sentido de existir uma identidade entre os campos de aplicação do processo de impugnação judicial e do processo arbitral (veja-se, no mesmo sentido a decisão arbitral proferida no âmbito do Proc. 809/2019-T).
24. Ou seja, se um determinado ato é susceptível de ser impugnado em processo judicial tributário através de impugnação judicial, então o Tribunal Arbitral será competente para apreciar a legalidade desse mesmo. Do mesmo modo, se um determinado fundamento é passível de ser invocado em sede de impugnação judicial, então o Tribunal Arbitral terá, igualmente, competência para apreciar esse fundamento.
25. Vejamos, conforme se conclui no Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul (Proc. n.º 44/19.9BCLSB, datado de 28-11-2019) “a competência dos tribunais enquanto pressuposto processual, afere-se pelo pedido e pela causa de pedir, isto é, pela pretensão do autor e pelos factos com relevância jurídica, tal como são expostos pelo autor”.
26. Ora, analisando pedido de pronúncia arbitral verifica-se que são, no essencial, invocados pela Requerente os seguintes fundamentos de anulação do ato tributário de liquidação de IRS de 2005:
a. existência de um perdão de dívida concedido pela Fazenda Pública;
b. irresponsabilidade da Requerente pelas liquidações ora em crise;
c. caducidade do direito à liquidação;
d. prescrição da prestação tributária; e
e. existência de uma interpretação materialmente inconstitucional
27. Assim, importa analisar cada um dos fundamentos e verificar se os mesmos podem ser invocados em sede de Tribunal Arbitral, isto porque, conforme referem Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade “As ilegalidades que são fundamento da impugnação judicial serão apenas aquelas que afetam a validade do acto impugnado e não aquelas que afetam, por sua vez, a exigibilidade da dívida tributária ou que digam respeito à eficácia ou ineficácia do acto. Estas questões poderão ser conhecidas em sede de oposição à execução fiscal, mas já não no âmbito da impugnação judicial”[3]. No mesmo sentido, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo - Sul, datado de 28-02-2019, proferido no âmbito do Processo n.º 1735/15.9BELRS, no qual se conclui que “O processo de impugnação judicial[4] e o processo de oposição à execução fiscal têm campos de aplicação distintos, sendo que no processo de impugnação judicial se discute a legalidade dos atos indicados no artigo 97.º do CPPT, enquanto no processo de oposição à execução fiscal se discute a exigibilidade da dívida”.
28. Vejamos, pois, cada um dos fundamentos invocados pela Requerente para determinar se está em causa a discussão da legalidade do ato tributário de liquidação ou a exigibilidade da dívida.
Apreciação da excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral: do perdão de dívida
29. Relativamente ao perdão de dívida, alega a Requerente que tendo existido, em sede de processo de insolvência relativo ao cônjuge da Requerente, um perdão de dívida então a AT deveria anular a liquidação de IRS em crise e substituí-la por outra que reflita o valor remanescente após aplicação do perdão.
30. A Requerente começa por referir que “um perdão fiscal pressupõe o incumprimento de obrigações tributárias produzindo efeitos para o futuro, não eliminando o objeto ou o facto tributário” (artigo 28 do Pedido de Pronúncia Arbitral), porém não podemos acompanhar a conclusão de que a (eventual) concessão de um perdão de dívida pressupõe a anulação do ato tributário, in casu, de liquidação de IRS.
31. O ato tributário de liquidação mais não é do que a operação através da qual se aplica a taxa de imposto à matéria tributável, apurando-se assim o valor devido pelo contribuinte[5]. Ou seja, o ato tributário de liquidação define a dívida tributária[6] e, naturalmente, o que se decidiu em sede de Insolvência foi, independentemente da questão da indisponibilidade ou não do crédito tributário (art. 30.º da Lei Geral Tributária), isso sim, a eventual redução ou extinção dessa dívida e não a “anulação” do facto tributário ou do ato tributário que o materializa. Ou seja, o ato tributário de liquidação continua a existir, independentemente da existência ou não de um perdão de dívida e, em momento algum ao longo da invocação deste fundamento é colocada em causa a legalidade desse ato tributário de liquidação.
32. Uma vez mais, independentemente da questão da indisponibilidade ou não do crédito tributário (art. 30.º da Lei Geral Tributária), não poderia o Plano de Insolvência ter por efeito uma anulação do ato tributário, porquanto o que foi levado ao Processo de Insolvência foi um “crédito vencido” (i.e. uma dívida tributária materializada no Processo de Execução Fiscal n.º ...2010..., instaurado em 27-01-2010).
33. Tudo isto demonstra que, no fundo, o que a Requerente pretende discutir através da invocação do perdão de dívida é, isso sim, a exigibilidade da dívida objeto de cobrança coerciva através do PEF n.º ...2010... e não a legalidade do ato tributário de liquidação de IRS, razão pela qual não é o Tribunal Arbitral materialmente competente para apreciar essa questão, dado que, conforme referido acima, a exigibilidade da dívida é, isso sim, fundamento de oposição à execução[7]. Nestes termos, quanto a este fundamento, procede a excepção invocada.
Apreciação da excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral: a irresponsabilidade da Requerente
34. A mesma conclusão é extraída quando analisada a pretensa “irresponsabilidade da Requerente”. Neste particular, alega a Requerente que, por força do “regime matrimonial de separação de bens (...) não pode a Requerente ser tida como devedora originária ou responsável subsidiária pelas dívidas em questão” (artigo 63 do Pedido de Pronúncia Arbitral) e que, como tal, “a Requerente não poderá responder pelos créditos tributários em questão” (artigo 72 do Pedido de Pronúncia Arbitral).
35. Ademais, prossegue a Requerente: legalmente as dívidas imputadas só poderiam ser da responsabilidade do cônjuge da Requerente e não da Requerente atendendo, por um lado, ao regime matrimonial e, por outro lado, ao facto de (alegadamente) “as dívidas de IRS resultarem inquestionavelmente da atividade profissional do cônjuge marido”(artigos 65 a 68 do Pedido de Pronúncia Arbitral).
36. Uma vez mais, a Requerente vem, isso sim, colocar em crise a exigibilidade da dívida e não qualquer ilegalidade do ato de liquidação de IRS. Tal é bem patente pelo facto da Requerente questionar sempre a dívida (resultante do não pagamento da liquidação de IRS) e não a liquidação de IRS em si.
37. Ora, resulta dos autos que a Requerente e o cônjuge apresentaram a declaração Modelo 3 de IRS (de substituição) relativa a 2005 na qualidade de casados. Assim, conforme refere Rui Duarte Morais, “resulta do n.º 2 do art. 13.º do CIRS que esta qualidade de sujeitos passivos de ambos os cônjuges apenas acontecerá quando o imposto seja devido pelo conjunto de rendimentos das pessoas que o constituem. Tal só acontecerá quando for apresentada uma única declaração”[8].
38. Ora, naturalmente, a liquidação de IRS em crise não enferma de qualquer vício pelo facto de a AT não ter liquidado IRS à Requerente tomando em consideração apenas os seus rendimentos e uma outra liquidação ao seu cônjuge tomando em consideração os rendimentos deste. Ou seja, existe uma só liquidação de IRS para o conjunto dos rendimentos (e deduções). Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul (Proc. n.º 04559/11, datado de 15/03/2011) “(...) o caso de cônjuges não separados judicialmente de pessoas e bens, os pressupostos do facto tributário devem ter-se por verificados em relação a ambos, sem que se torne necessário estabelecer a titularidade de cada parcela do rendimento englobado para efeitos de tributação, do que deriva serem ambos, solidariamente, responsáveis pelo cumprimento da dívida tributária”.
39. Questão distinta que, esta sim, é suscitada pela Requerente, é saber se a dívida resultante do não pagamento dessa liquidação de IRS lhe pode ser imputada.
40. No entanto, uma vez mais, esta discussão está relacionada com a exigibilidade da dívida e, como tal, fundamento de oposição à execução e, consequentemente, o mesmo não pode ser apreciado nesta sede arbitral. Nestes termos, quanto a este fundamento, procede a excepção invocada.
Apreciação da excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral: da caducidade do direito à liquidação
41. Neste particular, invoca a Requerente que a liquidação de IRS ora em crise não foi dada a conhecer à Requerente dentro do prazo de caducidade, tendo a Requrente tomado conhecimento das mesmas apenas através de citação para o PEF identificado, e estando em causa o IRS referente ao ano de 2005 é evidente que o prazo de caducidade foi ultrapassado (artigo 74 do pedido de pronúncia arbitral).
42. A caducidade do direito à liquidação (art. 45.º da LGT) poderá ser fundamento de impugnação judicial (e consequentemente de pedido de pronúncia arbitral) ou de oposição à execução (art. 204.º, n.º 1, alínea e) do CPPT).
43. Não significa isto que a Requerente possa indistintamente optar entre lançar mão de um dos meios de reação ou do outro. De facto, tudo dependerá da forma de conhecimento da caducidade. Ou seja, conforme se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul (Proc. n.º 08736/15, datado de 10/07/2015):
“Em resumo, o regime processual da defesa do contribuinte, nestas situações será o seguinte:
1 - Se é instaurada uma execução fiscal e não foi efectuada notificação válida do acto de liquidação, o sujeito passivo pode sempre opor-se à execução ao abrigo da alínea i), do nº.1, do artº.204, do C.P.P.T., invocando a ineficácia do acto, que impede que a dívida seja exigível, sendo indiferente, para este efeito, que o acto de liquidação enferme de qualquer vício, inclusivamente o de extemporaneidade da liquidação;
2 - Já se foi instaurada uma execução e efectuada notificação válida do acto de liquidação, mas a notificação foi realizada fora do prazo de caducidade previsto no art. 45, nº.1, da L.G.T. (ou outro prazo especial que for aplicável), o contribuinte pode opor-se à execução ao abrigo da alínea e), do nº.1, deste artº.204, do C.P.P.T. (trata-se de situação que, no seu teor literal, poderia caber na mencionada alínea i), pois não se engloba nela a apreciação da legalidade da própria liquidação nem é matéria da exclusiva competência da entidade que emite o título, mas que era dela afastada à face do entendimento jurisprudencial referido formado na vigência do C.P.T., reconduzindo-se a utilidade da alínea e) ao afastamento da aplicabilidade deste entendimento; a possibilidade de oposição ao abrigo da alínea e) existirá independentemente de a própria liquidação ser extemporânea, isto é, de ela própria ser ilegal, pois não está em causa no processo de oposição à execução fiscal a apreciação da legalidade da liquidação, mas a sua oponibilidade ao seu destinatário);
3 - Por último, se foi efectuada uma liquidação fora do prazo de caducidade e, necessariamente, também a respectiva notificação foi efectuada fora do prazo, mas não foi ainda instaurada execução, o contribuinte pode impugnar judicialmente a liquidação, invocando a ilegalidade da sua extemporaneidade, porém, se o não fizer e não pagar a quantia liquidada, não ficará impedido de se opor à execução, ao abrigo da alínea e) referida, visto que, além da ilegalidade da liquidação, ocorre também a sua inexigibilidade por falta de tempestiva notificação (cfr. ac.S.T.A.-2ª.Secção, 28/9/2011, rec.473/11; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 2/10/2012, proc.5673/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 30/01/2014, proc.7016/13; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, III volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.489 e seg.).
Tanto à face do anterior C.P.T., como da actual L.G.T., o facto que obsta à caducidade do direito à liquidação e consequente inexigibilidade da dívida exequenda é a notificação do contribuinte ou sujeito passivo originário do tributo no prazo determinado na lei.”
44. Estamos, isso sim, perante uma eventual situação de ineficácia do ato de liquidação, porquanto a mesma não terá sido (alegadamente) efetuada junto da Requerente, a qual é, isso sim, fundamento de oposição à execução (ainda no mesmo sentido veja-se o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do Proc. n.º 0317/10, datado de 23-06-2010).
45. O mesmo entendimento é sufragado por Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade, as quais referem que “o devedor tributário que, citado para a execução fiscal, entenda que lhe está a ser exigida uma quantia cuja liquidação, embora efectuada dentro do prazo de caducidade, lhe foi notificada após o decurso desse prazo – factualidade que afecta a eficácia do mesmo acto de liquidação, e não a sua validade, assim não contendendo com a legalidade do acto tributário –, pode suscitar a questão na oposição à execução, submetendo-a ao escrutínio do Tribunal. Por seu turno, nas situações em que foi efectuada uma liquidação fora do prazo de caducidade e, necessariamente, também a respectiva notificação foi efectuada fora do prazo, o contribuinte deverá impugnar judicialmente a liquidação, invocando a ilegalidade da sua extemporaneidade”[9].
46. Assim, em função deste recorte jurisprudencial e doutrinário, atendendo a que, conforme consta dos autos, o ato tributário de liquidação foi emitido dentro do prazo de liquidação, o que está em causa é uma alegada ineficácia do mesmo. Como tal, in casu, a caducidade do direito à liquidação é, isso sim, fundamento de oposição à execução e, consequentemente, o mesmo não pode ser apreciado nesta sede arbitral. Nestes termos, quanto a este fundamento, procede a excepção invocada.
Apreciação da excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral: da prescrição
47. Ora, entende este tribunal arbitral, à semelhança dos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (e.g. Processos n.º 0980/06, de 07-02-2007, e n.º 01/99.0BUPRT de 08-01-2020), que a prescrição da dívida resultante do ato tributário de liquidação, apesar de não constituir um vício invalidante desse ato e, por isso, não servir de fundamento à respectiva impugnação (cfr. artigos. 99.º e 124.º do CPPT), deve ser conhecida em sede de impugnação judicial, em ordem a averiguar da utilidade da prossecução da lide, na medida em que será inútil apreciar a invalidade de um ato que titula uma obrigação tributária que está extinta por prescrição. No fundo, em termos estritamente processuais, visa-se aferir da utilidade da uma lide impugnatória cuja tramitação seria manifestamente inútil por insuscetível de produzir quaisquer efeitos na relação substancial respetiva. Entendimento este que tem vindo a ser acompanhado por outros Tribunais Arbitrais (veja-se, neste sentido, a decisão arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 559/2019-T).
48. Não obstante, in casu, este Tribunal Arbitral não poderá conhecer da alegada prescrição, isto porque a mesma está umbilicalmente ligada à responsabilidade (solidária ou não), a qual, enquanto fundamento da exigibilidade (ou inexigibilidade) da dívida apenas poderá ser conhecida em sede de oposição à execução. Veja-se, neste sentido e com uma factualidade em tudo semelhante à do caso sub judice, o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo - Sul (Proc. n.º 350/21.2BECTB, datado de 12/05/2022):
“A questão que cumpre apreciar prende-se com a interrupção da prescrição operada pela citação do cônjuge marido e o seu aproveitamento para a ora Reclamante, como entendeu a sentença recorrida, nos termos do preceituado no nº 2 do artigo 48º da LGT (...). No caso dos autos a responsabilidade aqui em causa é solidária (entre cônjuges), como detalhadamente se explicou na sentença recorrida, e não subsidiária, já que o regime matrimonial que vigora é o da separação de bens, como consta a alínea k) do probatório.
Tal que significa que a interrupção da contagem do prazo de prescrição operada pela citação do cônjuge marido aproveita à ora Recorrente. Pretendendo a Recorrente afastar a sua responsabilidade solidária no âmbito do PEF tinha que ter feito a prova de que os rendimentos que deram origem à tributação em sede de IRS não foram obtidos em proveito comum do casal, o que não logrou alegar nem demonstrar. Não basta invocar que tais rendimentos provinham da actividade profissional do cônjuge marido, já que, tal circunstância, por si só, é irrelevante para a prova exigida”.
49. Nestes termos, quanto a este fundamento, procede a excepção invocada porquanto o mesmo apenas pode ser apreciado em sede de oposição à execução (a qual, de resto, corre termos, sob o n.º de processo .../10...TBALR, no Tribunal Judicial de Almeirim).
Apreciação da excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral: da inconstitucionalidade
50. Nesta sede vem a Requerente “solicitar que seja apreciada a ilicitude da rejeição do pedido de reembolso por inconstitucionalidade emergente da violação dos princípios da proporcionalidade, da igualdade tributária e o seu corolário, o princípio da capacidade contributiva” (artigo 97 do Pedido de Pronúncia Arbitral).
51. Em face do supracitado, cumpre antes de mais referir que, não constando dos autos qualquer pedido de reembolso, e perante a inexistência de qualquer relevante explanação, não é de todo clara a razão pela qual é feita tal referência bem como o seu sentido e propósito
52. Apesar desta pouco clara referência, a Requerente parece concluir que a AT violou os princípios da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da proporcionalidade, previstos em sede dos artigos 13.º, 103.º, 104.º e 18.º da CRP “ao aplicar a norma que resulta das disposições referidas supra no caso em apreço, considerando a Requerente como devedora originária das dívidas de IRS, por via do regime imperativo da tributação conjunta do agregado familiar para cônjuges não separados judicialmente de pessoas e bens” (artigo 112 do Pedido de Pronúncia Arbitral).
53. Ora, uma vez mais, a Requerente questiona a exigibilidade ou inexigibilidade da dívida de IRS sendo que, conforme se expôs ao longo da presente decisão arbitral, o Tribunal Arbitral não é materialmente competente para esta apreciação.
4. Questões de conhecimento prejudicado
54. De harmonia com o exposto, é de julgar procedente a excepção de incompetência material deste Tribunal Arbitral. Sendo de julgar procedente a excepção de incompetência suscitada pela AT, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no processo, inclusive o conhecimento de outros vícios.
5. Decisão
55. De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral em:
a. Julgar procedente a exceção de incompetência do tribunal arbitral.
b. Absolver a Requerida da instância.
c. Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral formulado pela Requerente.
d. Condenar a Requerente nas custas do processo.
6. Valor do processo
56. De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €16.411,36, atribuído pelo Requerente, sem contestação da Autoridade Tributária e Aduaneira.
7. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €1.224,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, totalmente a cargo da Requerente.
Lisboa, 27-06-2022
O Árbitro,
(Gonçalo Marquês de Menezes Estanque)
[1] Também neste sentido, veja-se a decisão proferida no âmbito do Processo nº 432/2016-T.
[2] Sublinhado e negrito nossos.
[3] Cabrita Neto, Serena e Castelo Trindade, Carla, Contencioso Tributário II - Processo, Arbitragem e Execução. Almedina, 2017, pág. 226. Sublinhado e negrito nossos.
[4] Conforme referimos acima, o que se conclui quanto à Impugnação Judicial é, igualmente, aplicável no âmbito da Arbitragem Tributária.
[5] Cabrita Neto, Serena e Castelo Trindade, Carla, Contencioso Tributário I - Procedimento, Princípios e Garantias. Almedina, 2017, pág. 75
[6] Lopes de Sousa, Jorge, “Algumas notas sobre o regime da arbitragem tributária”, in A Arbitragem Administrativa e Tributária (coordenação Fonseca, Isabel Celeste M.), Almedina (2.ª Edição), 2018, pág. 233.
[7] Neste sentido, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo - Sul, datado de 28-02-2019, proferido no âmbito do Processo n.º 1735/15.9BELRS.
[8] Duarte Morais, Rui, A Execução Fiscal. Almedina, 2010, pág. 113.
[9] Cabrita Neto, Serena e Castelo Trindade, Carla, Contencioso Tributário I - Procedimento, Princípios e Garantias. Almedina, 2017, pág. 249 e 250.