SUMÁRIO
I. Da leitura conjugada das alíneas a), b) e c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC com o n.º 1 do mesmo artigo, resulta que as obrigações acessórias em causa visam permitir à AT fiscalizar: (a) a ocorrência de uma “causa anormal” que tenha resultado numa “desvalorização excecional” de um ativo não corrente; (b) a ocorrência do abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização de um ativo não corrente, e (c) a existência de valores recuperáveis, que devem ser deduzidos ao valor fiscal do ativo para efeitos de apuramento do valor da perda suportada pelo sujeito passivo.
II. A razão de ser, fim e intuito das alíneas a), b) e c) do n.º 3 do artigo 31.º-B, não foram observados no caso sub judice, não obstante a Requerente ter comprovado a demolição do edifício, visto que (a) a Requerente não comunicou à AT, com uma antecedência de 15 dias (ou outra), o local, datas e horas em que teve lugar a demolição do edifício, nem fez qualquer comunicação durante o período em que a demolição esteve em curso (retirando à AT a possibilidade de promover diligências no sentido de aferir se existiriam valores recuperáveis que deveriam ser deduzidos ao valor líquido fiscal do edifício para efeitos de apuramento do valor da perda sofrida pelo sujeito passivo); e (b) a Requerente não alegou nem comprovou, quer durante o procedimento inspetivo, quer no âmbito do processo arbitral, os factos (“causas anormais”) que originaram uma “desvalorização excecional” do edifício demolido (retirando à AT a possibilidade de aferir a verificação dos pressupostos materiais de aplicação do artigo 31.º-B do CIRC).
III. A interpretação restritiva das alíneas a), b) e c) do n.º 3 do artigo 31.º-B proposta pela Requerente (segundo a qual os requisitos contidos nas mesmas encontram-se verificados quando o sujeito passivo comprove que o edifício foi efetivamente demolido), não só não tem qualquer correspondência com a razão de ser, fim e intuito das obrigações acessórias previstas nas referidas alíneas, como também não encontra um mínimo de correspondência verbal com a letra das mesmas, não sendo, por isso, de admitir nos termos do artigo 9.º do Código Civil (aplicável a normas tributárias por força do artigo 11.º, n.º 1, da LGT).
IV. Dos princípios constitucionais da igualdade e da tributação das empresas fundamentalmente pelo seu rendimento real (contidos nos artigos 13.º e 104.º, n.º 2, da CRP) não resulta que os contribuintes estão dispensados de cumprir obrigações acessórias que permitem à AT fiscalizar a verificação dos pressupostos materiais do reconhecimento de um gasto ou dedução fiscal.
V. Admitindo o n.º 7 do artigo 31.º-B do CIRC a dedução de perdas por imparidade não aceites nos termos dos restantes números do mesmo artigo, devendo tal dedução ser efetuada nos períodos de tributação que decorram até ao período de tributação anterior àquele em que se verifica o abate físico, o desmantelamento, o abandono, ou a inutilização do ativo, e considerando que a demolição do edifício em apreço teve início em 2017, conclui-se que, nesse ano de 2017, o sujeito passivo já não poderia deduzir o valor líquido fiscal do edifício ao seu lucro tributável nos termos do n.º 7 do artigo 31.º-B do CIRC.
VI. O Tribunal Arbitral não decide com recurso à equidade, mas apenas de acordo com o direito constituído, e o direito constituído determina que o valor contabilístico do edifício demolido não é dedutível no exercício de 2017.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Doutora Alexandra Iglésias e Doutor José Alberto Pinheiro Pinto, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 15.3.2022, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., S.A., com o NIPC ... e sede no ..., ..., ..., ..., ...-... Lisboa (doravante “Requerente”), veio, em 3.1.2022, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de tribunal arbitral coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) contra a liquidação adicional de IRC n.º 2021..., referente ao exercício de 2017, que deu origem à demonstração de liquidação de juros n.º 2021 ..., e à nota de cobrança n.º 2021 ... com o valor a pagar de € 68.862,56 (doravante “Liquidação Contestada”), pretendendo a declaração de ilegalidade e anulação das mesmas, bem como o reembolso do imposto e juros compensatórios que pagou, no montante total de € 68.862,56, acrescido de juros indemnizatórios.
2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
3. A Requerente fundamenta o PPA, em síntese, nos seguintes termos:
(a) Tendo em conta que as obras de demolição total do F... se iniciaram em novembro de 2017, a Requerente deduziu o valor líquido do mesmo (€ 1.534.192,20) na declaração de IRC Modelo 22 desse ano.
(b) A AT reconhece que a demolição do F... teve início em 2017, mas desconsidera este montante, como componente negativa para apuramento do lucro tributável da Requerente no ano 2017, por a Requerente não ter apresentado a documentação referida nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC.
(c) Não obstante a Requerente não ter apresentado estes documentos, a Requerente apresentou outros documentos que comprovam a demolição do F... (incluindo o documento comprovativo do acompanhamento policial, alvará, autos de medição, ocupação de via pública, programa de trabalhos), não havendo dúvidas quanto à demolição do mesmo.
(d) Sendo a perda patrimonial relativa ao edifício objeto de demolição real, manifesta e incontestável, e não contestada pela AT, não deveria esta ter desconsiderado o respetivo valor exclusivamente por a Requerente não ter cumprido o disposto nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC.
(e) No âmbito do processo interpretativo, deve o interprete (i) reconstituir o pensamento do legislador tendo presente a unidade do sistema jurídico (cfr. artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil) e assumindo que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), (ii) considerar os elementos sistemático, histórico, e teleológico, e (iii) determinar o claro e verdadeiro sentido e alcance da lei, abstraindo do real legislador e assumindo o legislador razoável, quer na recolha da substância legal, quer na sua formulação técnica.
(f) Citando o Ilustre Jurista e Professor Cabral de Moncada: “sempre que haja conflito entre os resultados da interpretação gramatical e os da interpretação lógica, é ponto assente que será aos da segunda que deverá dar-se preferência, ponto de parte a letra da lei em homenagem ao seu espírito”.
(g) No caso sub judice, as alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC não devem ser interpretadas de forma literal, mas à luz da sua razão de ser, fim e intuito: impedir deduções fictícias que indevidamente subavaliem o lucro tributável e, simultaneamente, limitar a economia informal.
(h) Ora, nenhuma destas razões se encontram no caso sub judice, em que se trata do valor contabilístico de um edifício, que foi reconhecido e aceite pela AT.
(i) Da interpretação teleológica das disposições em causa resulta que o legislador disse mais do que queria dizer, o que exige uma interpretação restritiva das mesmas que (i) não ponha em causa princípios estruturantes do sistema fiscal, nomeadamente o princípio da tributação de acordo com a capacidade contributiva (artigo 4.º da LGT), (ii) não limite os deveres que impendem sobre a AT, assentes nos fins da tributação enunciados no artigo 5.º da LGT, e (iii) não viole o princípio da descoberta da verdade material que impende sobre a AT (artigo 58.º da LGT), ou o respetivo dever de colaboração, ou a presunção de boa-fé da atuação dos contribuintes (artigo 59.º, n.ºs 1 e 2, da LGT).
(j) Assim, o artigo 31.º-B do CIRC não pode ser interpretado como exigindo um requisito intransponível, mesmo quando a veracidade dos factos que visa provar não esteja em causa.
(k) Entender de outra forma seria contrário à unidade do sistema jurídico e resultaria em varias ilegalidades: (i) a atuação da AT constituiria um manifesto abuso de direito ao instrumentalizar uma norma probatória para forçar uma tributação que sabe não ser devida, ao arrepio dos princípio da tributação segundo a real capacidade contributiva, da verdade material e da cooperação; e (ii) a adoção de uma interpretação do artigo 31.º-B do CIRC contrária aos princípios constitucionais da igualdade e da tributação de acordo com a capacidade medida pelo rendimento real.
(l) É pacífico que, para o caso da norma comportar duas, ou mais, dimensões interpretativas, sendo uma delas compatíveis e as demais incompatíveis com os princípios constitucionais, é a primeira que deve prevalecer, procedendo-se assim a uma interpretação conforme à Constituição.
(m) Não podendo os requisitos do artigo 31.º-B, n.º 3, do CIRC ser exigidos no caso concreto, a Liquidação Contestada é anulável, por erro nos pressupostos de facto e de direito, errónea fundamentação, violação de lei e aplicação de norma por forma incompatível com a Constituição.
(n) Subsidiariamente, a Liquidação Contestada é anulável porque a AT ignorou o n.º 7 do artigo 31.º-B do CIRC, que determina que a perda registada em 2016 seria dedutível em 2017, 2016 e 2015, o que constitui vício de violação de lei e ausência da fundamentação legalmente exigível.
4. A Requerente juntou 6 documentos ao PPA e requereu a inquirição de cinco testemunhas.
5. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 4.1.2022 e notificado à Requerida.
6. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD nomeou os ora signatários como árbitros do presente Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
7. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
8. O presente Tribunal Arbitral foi constituído em 15.3.2022.
9. Notificada para o efeito, a Requerida juntou o processo administrativo e apresentou a sua resposta em 26.4.2022, defendendo-se por impugnação, em síntese, nos seguintes termos:
(a) Não tendo a Requerente observado o n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC, não pode a AT aceitar para efeitos fiscais a dedução de € 1.534.192,20 que a Requerente inscreveu no quadro 07 da declaração de IRC Modelo 22.
(b) Quando o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização dos ativos ocorra no mesmo período de tributação em que são reconhecidas contabilisticamente as perdas por imparidade, o valor líquido fiscal dos ativos, corrigido de eventuais valores recuperáveis, pode ser aceite como gasto do período, desde que o sujeito passivo observe as alíneas a) a c) do n.º 3 do referido artigo 31.º-B.
(c) Se bem que os documentos apresentados pela Requerente constituam prova de um facto que é evidente, a demolição do F..., a apresentação dos mesmos não dispensa a Requerente de cumprir as condições previstas no n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC para que a desvalorização excecional do imóvel possa ser aceite como gasto do período de tributação de 2017, ano do seu abate físico.
(d) Acresce que outros elementos constantes do processo administrativo cimentam a decisão tomada no procedimento de inspeção, nomeadamente (i) o facto de a Requerente ter adquirido o edifício em apreço (afeto à atividade hoteleira desde a década de trinta do século XX) em 13.12.2013, pelo valor de €2.475.000,00 (quando nessa data o mesmo deveria já estar totalmente depreciado), a uma empresa do mesmo grupo económico, a I..., Lda., o que, por sua vez, explica o facto de o edifício apresentar um valor líquido tão elevado no período de tributação de 2017, e (ii) o facto de, no momento em que a Requerente adquiriu o edifício, já era de conhecimento público que o mesmo seria demolido e na Câmara Municipal de ... já tinha dado entrada um projeto com vista à construção de uma nova unidade hoteleira.
(e) Ora, não é de aceitar como gasto fiscal a desvalorização excecional de um edifício adquirido com o fim de ser demolido e no seu lugar, ou seja, no terreno, construir uma nova unidade hoteleira.
(f) Acresce que a Requerente sabia que, ao atribuir ao valor do terreno 25% do valor da escritura de aquisição e ao edifício (hotel) os restantes 75%, estava a atribuir um custo de aquisição ao F... que não iria contribuir com benefícios económicos futuros pois o seu destino era a demolição total.
(g) Relativamente ao n.º 7 do artigo 31.º-B do CIRC invocado pela Requerente, o mesmo não lhe é aplicável na medida em que se refere a perdas por imparidade em ativos depreciáveis e, no caso, está em causa um ativo não depreciável (terreno).
(h) Conclui-se que não se pode aceitar como gasto fiscal o valor de € 1.534.192,20, correspondente ao valor líquido do “edifício”, e que a Liquidação Contestada deve manter-se, atenta à sua plena conformidade com a lei.
(i) A inquirição das testemunhas arroladas afigura-se, no caso concreto, como um ato inútil, por inexistir efetiva matéria de facto controvertida, pelo que, atendendo ao disposto no artigo 130.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, não deverá a mesma realizar-se.
10. Por despacho arbitral de 5.5.2022, o Tribunal indeferiu o pedido da Requerida de não inquirição das testemunhas arroladas no PPA, notificou as partes de que a reunião do artigo 18.º do RJAT se realizaria em 31.5.2022, e notificou a Requerente para indicar sobre que factos incidiria a inquirição das testemunhas arroladas.
11. Em 11.5.2022, a Requerente apresentou requerimento no qual requereu a alteração do rol de testemunhas e a notificação da Testemunha A (técnico tributário), e indicou os factos sobre os quais incidiria a inquirição das testemunhas arroladas.
12. Após a testemunha A (técnico tributário) ter sido notificada pelo CAAD e ter informado o Tribunal de que não estaria disponível no dia 31.5.2022, e após a Requerente ter comunicado ao Tribunal de que não prescindia da inquirição da referida testemunha, o Tribunal proferiu novo despacho arbitral, em 3.6.2022, adiando a reunião do artigo 18.º do RJAT para dia 21.6.2022, e ordenando a notificação da Testemunha A (técnico tributário) dessa data.
13. Em 15.6.2022, a testemunha A (técnico tributário) confirmou a sua presença nas instalações do CAAD em Lisboa em 21.6.2022.
14. A reunião prevista no artigo 18.º do RJAT teve lugar no dia 21.6.2022, pelas 10h30, nela tendo sido inquiridas quatro testemunhas arroladas pela Requerente.
15. Na mesma reunião, as partes foram notificadas para, querendo, apresentarem alegações finais escritas no prazo simultâneo de 5 dias, e de que decisão arbitral seria proferida até 15.9.2022.
16. Ainda na mesma reunião, foi a Requerente notificada para proceder ao pagamento da taxa de justiça subsequente até ao dia 30.6.2022.
17. Em 28.06.2022, a Requerente e a Requerida apresentaram as suas alegações finais escritas.
II. SANEAMENTO
18. O PPA apresentado em 3.1.2022 é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias a contar do termo do prazo de pagamento voluntário da Liquidação Contestada (2.11.2021), nos termos conjugados do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT.
19. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
20. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e estão devidamente representadas.
21. Não foram suscitadas exceções, nem se verificam nulidades, pelo que se impõe conhecer do mérito.
III. MATÉRIA DE FACTO
§1. Factos provados
22. Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
(a) A Requerente é uma sociedade comercial dedicada à hotelaria, integrando o Grupo hoteleiro G... (cfr. declarações das Testemunhas B, C e D).
(b) Em 2017, a Requerente era proprietária do F..., que esteve em operação desde meados do século XX até ao seu encerramento em 2017 (cfr. alegado no artigo 4.º do PPA e resulta das declarações das Testemunhas B e C).
(c) O edifício em que operava o F... resultava de uma série de alterações e acrescentos pontuais, que ao longo dos anos vinha perdendo a coerência arquitetónica e as funcionalidades pensadas para um estabelecimento hoteleiro (cfr. alegado no artigo 5.º do PPA e declarações das Testemunhas B e C).
(d) Obras do F... de tipo Construção / Alteração / Demolição foram objeto de aprovação por despacho do Vice-Presidente da Câmara de ..., em 27.5.2013 (cfr. documento 1 junto ao PPA).
(e) A demolição do F... foi discutida durante vários anos, tendo a decisão final de que o mesmo não seria objeto de obras de manutenção ou recuperação, mas demolido na totalidade, sido tomada em 2015 ou 2016 (cfr. declarações das Testemunhas B e C).
(f) Nessa altura, a Requerente decidiu construir no terreno do F... uma nova unidade hoteleira, totalmente modernizada e à imagem da cadeia de hotéis G... (cfr. alegado no artigo 6.º do PPA e declarações das Testemunhas B e C).
(g) O Alvará de Obras de Construção / Alteração / Demolição n.º..., de 22.2.2017, emitido em nome da Requerente, titulou a aprovação das obras sobre o edifício em que operava o F..., indicando as características, condições e prazo para conclusão das mesmas obras, bem como os requisitos necessários à emissão do alvará de autorização de utilização (cfr. documento 1 junto ao PPA).
(h) O F... encerrou em 2017 e as obras de demolição do respetivo edifício iniciaram em 16.11.2017, tendo-se prolongado pelo ano de 2018 (cfr. documento 4 junto ao PPA e declarações das Testemunhas B e C).
(i) Nos anos de 2017 e 2018, a Requerente não enviou à AT qualquer documentação relativa à demolição do F... (cfr. declarações das Testemunhas A e D).
(j) A AT não enviou técnico ao local nem antes nem no decorrer da demolição do F... (cfr. declarações da Testemunha A).
(k) Na declaração de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2017, a Requerente deduziu o valor de € 1.534.192,20 no campo 763 (depreciações e amortizações tributadas em períodos de tributação anteriores – art.º 20.º do DR 25/2009, de 14/9) do quadro 07 “Apuramento do lucro tributável” (cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo).
(l) A coberto da ordem de serviço n.º OI2019..., teve início, em 14.1.2021, um procedimento de inspeção externa de âmbito parcial relativa ao IRC e IVA da Requerente do ano 2017 (cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo).
(m) No âmbito deste procedimento inspetivo, a Requerente e o técnico responsável pelo mesmo (Testemunha A) trocaram vários emails no sentido de se esclarecer a dedução efetuada pela Requerente no valor de € 1.534.192,20 (cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo e respetivos anexos).
(n) Em 20.4.2021, a Requerente enviou à AT documentos que comprovam a demolição do F..., nomeadamente os referidos no seguinte trecho do Relatório de Inspeção Tributária:
(cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo e email em anexo ao mesmo).
(o) Posteriormente, a AT solicitou à Requerente que remetesse os documentos referidos no n.º 3, alíneas a), b) e c), do artigo 31.º-B do CIRC (cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo, respetivos anexos, e declarações da Testemunha A).
(p) A Requerente não remeteu à AT os documentos solicitados por esta em cumprimento do artigo 31.º-B, n.º 3, do CIRC, nem apresentou justificação para a falta de apresentação dos mesmos (cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo e declarações da Testemunha A).
(q) Em 12.5.2021, foi remetido à Requerente o Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, tendo a Requerente exercido o direito de audição, em 2.6.2021, na parte relevante, nos seguintes termos:
(cfr. requerimento junto ao processo administrativo).
(r) A Requerente foi notificada do Relatório de Inspeção Tributária, do qual resultou uma correção à matéria tributável da Requerente do exercício de 2017 no montante de € 1.534.192,00, com o seguinte fundamento:
(cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo).
(s) Relativamente ao alegado pela Requerente no exercício do direito de audição, pode ler-se no Relatório de Inspeção Tributária:
(cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo).
(t) Da correção à matéria tributável efetuada pela AT resultou que o prejuízo declarado pela Requerente de € 1.257.052,83 passou a um lucro tributável (corrigido) de € 277.139,37 (cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto ao processo administrativo).
(u) Na sequência do Relatório de Inspeção Tributária, foi emitida a Liquidação Contestada (cfr. demonstração de liquidação junta aos autos).
(v) Em 2.11.2021, a Requerente procedeu ao pagamento de € 68.862,56 (cfr. documento 6 junto ao PPA).
(w) Em 3.1.2022, a Requerente apresentou o PPA.
§2. Factos não provados
23. Com relevo para a decisão da causa, não se deram por não provados quaisquer factos.
§3. Fundamentação da matéria de facto
24. Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
25. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, quanto à matéria de facto, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vido artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
26. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação da prova produzida, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
27. Quanto ao valor probatório de Relatório de Inspeção Tributária, as asserções que dele constem podem ter força probatória se não forem impugnadas (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 26.06.2014, proferido no processo n.º 07148/13).
28. Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados, e da prova testemunhal produzida na reunião do artigo 18.º do RJAT que teve lugar no dia 21.6.2022.
29. A prova testemunhal produzida nesta reunião consistiu na inquirição de quatro testemunhas arroladas pela Requerente, a saber:
- Testemunha A: Inspetor da AT responsável pela elaboração do Relatório de Inspeção Tributária;
- Testemunha B: Diretor de Gestão e Organização no âmbito Grupo empresarial a que pertence a Requerente;
- Testemunha C: Diretor Executivo no âmbito do Grupo G..., responsável pela gestão hoteleira;
- Testemunha D: Sub-Diretor de Gestão e Organização no âmbito do Grupo G... .
30. A Testemunha A… (Inspetor da AT) testemunhou sobre o conteúdo do Relatório de Inspeção Tributária, e sobre as diligências encetadas no âmbito do procedimento inspetivo que deu origem à Liquidação Contestada.
31. As Testemunhas B, C e D (quadros de gestão do Grupo empresarial que a Requerente integra) testemunharam quanto (i) ao facto de a demolição do F... ter iniciado em 2017 e se ter prolongado por 2018, (ii) ao facto de, depois de vários anos em discussão, a decisão de demolição total do F... ter sido tomada cerca de dois anos antes de a mesma ter iniciado em 2017, e (iii) ao facto de a demolição do F... ter sido decidida por o edifício ser antigo, arquitetonicamente descaracterizado, e desadequado ao nível de serviço almejado pelo Grupo G..., e por já não ser possível a mera atualização ou renovação do mesmo edifício para os efeitos pretendidos pelo Grupo G... .
32. As quatro testemunhas referidas supra demonstraram ter conhecimento direto dos factos sobre os quais foram inquiridas, e o Tribunal considera que as mesmas prestaram os seus depoimentos com isenção, não havendo motivo para questionar a veracidade dos mesmos.
33. Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
§1. Questões decidendas
34. No processo sub judice, as partes contendem sobre dedutibilidade de € 1.534.192,20, enquanto gasto fiscal, para efeitos de determinação do lucro tributável da Requerente do exercício de 2017.
35. Considerando as posições assumidas pelas partes, os eventos e desenvolvimentos processuais acima descritos no Relatório de Inspeção Tributária, bem como a factualidade subjacente, cumpre ao Tribunal apreciar e decidir as seguintes questões:
(a) Se o valor líquido fiscal do edifício demolido em 2017 deverá ser aceite como gasto dedutível no exercício de 2017, enquanto perda por imparidade em ativo não corrente, nos termos do artigo 31.º-B, n.º 3, do CIRC, não obstante o sujeito passivo não ter observado os requisitos previstos nas alíneas a), b) e c) do mesmo preceito?
(b) Se as alíneas a), b) e c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC são inconstitucionais, por violação dos princípios da igualdade e da tributação das empresas fundamentalmente pelo seu rendimento real (contidos nos artigos 13.º e 104.º, n.º 2, da CRP)?
(c) Se o valor líquido fiscal do edifício demolido em 2017 deverá ser aceite como gasto fiscal, dedutível ao lucro tributável da Requerente do exercício de 2017, nos termos do artigo 31.º-B, n.º 7, do CIRC?
§2. Da dedutibilidade do valor líquido fiscal do edifício demolido, enquanto perda por imparidade em ativo não corrente, nos termos do artigo 31.º-B, n.º 3, do CIRC?
36. Conforme resulta do Relatório de Inspeção Tributária, a AT desconsiderou o valor de € 1.534.192,20 como componente negativa para apuramento do lucro tributável da Requerente do exercício de 2017, por a Requerente não ter cumprido o disposto nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC.
37. Por sua vez, a Requerente contesta a interpretação do artigo 31.º-B, n.º 3, do CIRC feita pela AT, defendendo uma interpretação restritiva do mesmo à luz da respetiva razão de ser, fim e intuito: impedir deduções fictícias que indevidamente subavaliem o lucro tributável.
38. Na perspetiva da Requerente, o facto de ter enviado à AT (em 2021, no âmbito de procedimento inspetivo) documentação comprovativa da demolição do F... (que terá iniciado em 2017), e o facto de a AT não contestar a demolição do F..., significam que não está em causa uma dedução fictícia que subavalie o lucro tributável: não há dúvida que o F... foi demolido e que a Requerente considerou o respetivo valor contabilístico na sua declaração de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2017.
39. Assim sendo, conclui a Requerente que a razão de ser, fim e intuito subjacentes às alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B CIRC foram observados no caso sub judice, e que o valor de € 1.534.192,20 deverá ser considerado como componente negativa para apuramento do lucro tributável da Requerente do exercício de 2017.
40. Resumida a posição da Requerente, interessa começar por explicitar em que medida está a Requerente equivocada quanto à razão de ser, fim e intuito das alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC, sendo necessário, para o efeito, ter em conta o âmbito de aplicação do regime das perdas por imparidade contido no artigo 31.º-B do CIRC, bem como os pressupostos materiais de aplicação do mesmo.
a) Âmbito e pressupostos materiais de aplicação do regime das perdas por imparidade contido no artigo 31.º-B do CIRC
41. Considerando que, na contabilidade da Requerente, o edifício demolido foi inscrito como um ativo tangível não corrente, cumpre sublinhar que (i) o regime das perdas por imparidade aplicável ao mesmo (contido no artigo 31.º-B do CIRC, introduzido pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro) tem o seu âmbito de aplicação restrito a perdas de valor excecionais, ou “desvalorizações excecionais”, provenientes de “causas anormais”, e que (ii) as perdas de valor decorrentes da respetiva “utilização ou do decurso de tempo” são dedutíveis enquanto “depreciações”(cfr. artigos 23.º, n.º 2, alínea g), e 29.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do CIRC), nos termos definidos pelo regime da depreciação de ativos (contido nos artigos 29.º, 31.º e 31.º-A do CIRC e no Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro).
42. Ao contrário do regime das perdas por imparidade contido no artigo 31.º-B do CIRC, este regime da depreciação de ativos parte dos efeitos de deperecimento criados pelo decurso do tempo e da utilização normal do bem.
43. Tal como observado pelo Exmo. Juiz Conselheiro, Professor Doutor Gustavo Lopes Courinha, tais depreciações respeitam a “perdas de valor que ocorrem com carácter sistemático: só as decorrentes da normal utilização e do simples decurso do tempo relevam. Ficam, assim, excluídas deste regime aquelas perdas de valor de natureza imprevista que resultem de outros fenómenos que não exclusivamente aquele: de tais excecionais oscilações negativas de valor ocupa-se, em termos bem limitativos, o regime das imparidades” (v. Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Almedina, 2019, pp. 80-81).
44. Nos termos do artigo 31.º-B, n.º 1, do CIRC, o regime das perdas por imparidade aplica-se a perdas de valor excecionais, ou “desvalorizações excecionais”, provenientes das “causas anormais” referidas no n.º 1 do mesmo artigo (“desastres, fenómenos naturais, inovações técnicas excecionalmente rápidas ou alterações significativas, com efeito adverso, no contexto legal”), ou de “causas anormais” de natureza similar.
45. O diferente âmbito de aplicação destes regimes é claro: “Se as depreciações/amortizações descrevem, contabilística e fiscalmente, as perdas sistemáticas de valor dos bens, as imparidades refletem as depreciações originadas por causas que não a normal utilização e decurso do tempo” (Exmo. Juiz Conselheiro, Professor Doutor Gustavo Lopes Courinha, Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Almedina, 2019, p. 86; no mesmo sentido, Rui Marques, Código do IRC – Anotado e Comentado, 2ª edição, Almedina 2020, p. 340).
46. Relativamente aos pressupostos materiais da aplicação do regime das perdas por imparidade previsto no artigo 31.º-B do CIRC (de cuja verificação e comprovação depende a aceitação, como gasto fiscal dedutível ao lucro tributável, de “desvalorizações excecionais” relativas a ativos não correntes), defende o Exmo. Juiz Conselheiro, Professor Doutor Gustavo Lopes Courinha que o dito artigo exige que se verifiquem cumulativamente os quatro pressupostos que se seguem:
i. Em primeiro lugar, é necessário que tenha ocorrido um evento que tenha desencadeado a imparidade e que possa encontrar apoio na lista exemplificativa constante da lei: “desastres, fenómenos naturais, inovações técnicas excecionalmente rápidas ou alterações significativas, com efeito adverso, no contexto legal”;
ii. Em segundo lugar, é necessário que ocorra uma “desvalorização excecional” provocada por essa “causa anormal”, com a necessária demonstração da respetiva relação causal, a qual tem de ser submetida, para aceitação, à AT;
iii. Em terceiro lugar, a “causa anormal” necessita de originar uma das seguintes consequências quanto ao ativo em causa: abate físico, desmantelamento, inutilização ou abandono;
iv. Em quarto lugar, o abate físico, desmantelamento, inutilização ou abandono terão de ocorrer no mesmo período ou em período ulterior ao evento gerador da “desvalorização extraordinária”, e são feitos depender de uma intervenção da AT (v. Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Almedina, 2019, pp. 88-89).
47. Estas considerações preliminares são relevantes não só para apurar a ratio legis das obrigações acessórias contidas nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC, mas também porque a Requerente parece confundir (i) a “causa anormal” que conduziu à “desvalorização extraordinária” do edifício demolido, com (ii) a demolição de um edifício em si mesma.
48. De acordo com a matéria de facto assente e conforme resulta do alegado nos artigos 4.º a 8.º do PPA e das declarações das Testemunhas B e C, após vários anos em que foi ponderada a demolição do edifício em que operava o F... em funcionamento desde meados do século XX), a Requerente tomou a decisão final em 2015 ou 2016, por entender que o edifício em causa tinha deixado de assegurar as funcionalidades pensadas para um estabelecimento hoteleiro moderno e à imagem da cadeia de hotéis G... .
49. Não se vislumbra, assim, no caso sub judice, a ocorrência de uma “causa anormal” de natureza similar a “desastres, fenómenos naturais, inovações técnicas excecionalmente rápidas ou alterações significativas, com efeito adverso, no contexto legal” (conforme exigido pelo n.º 1 do artigo 31.º-B do CIRC), que tenha determinado uma “desvalorização excecional” do edifício do F..., mas apenas o desgaste progressivo, ao longo das décadas, do edifício em que operava F... .
50. Cumpre também salientar que, no caso em análise, a AT nunca teve oportunidade de aferir se os pressupostos materiais de aplicação do artigo 31.º-B do CIRC se encontravam reunidos, ou de decidir se seria de aprovar ou rejeitar a dedução do valor líquido fiscal do edifício em causa ao lucro tributável da Requerente do ano de 2017.
51. De facto, em 2017, ano em que iniciou a demolição do F..., a Requerente não efetuou qualquer comunicação à AT.
52. Em 2021, no âmbito do procedimento inspetivo relativo ao IRC da Requerente do exercício de 2017, a Requerente limitou-se a remeter documentos comprovativos da demolição do F..., sem indicar ou comprovar que “causas anormais” teriam provocado uma “desvalorização excecional” do edifício.
53. Ora, ao pretender deduzir o valor líquido fiscal do edifício demolido ao seu lucro tributável, impendia sobre a Requerente, nos termos do artigo 74.º da LGT, o ónus de demonstrar que aquele valor deveria ser fiscalmente aceite nos termos do artigo 31.º-B, n.º 3, do CIRC, até porque a documentação requerida pela AT deveria constar do dossier fiscal da Requerente, nos termos do n.º 6 do mesmo artigo (“A documentação a que se refere o n.º 3 deve integrar o processo de documentação fiscal, nos termos do artigo 130.º”).
54. Em matéria de dedutibilidade de gastos, não se aplica a presunção de veracidade das declarações dos contribuintes, prevista no artigo 75.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova exigida para verificação dos restantes pressupostos materiais de aplicação do regime das perdas por imparidade, contidos no artigo 31.º-B do CIRC, deve aqui ser valorada contra o contribuinte.
55. Faz-se notar ainda que, a AT não considerou insuperável a falta dos requisitos formais apontados sem notificar previamente o sujeito passivo para prestar esclarecimentos, no cumprimento do dever de colaboração que lhe impõe a alínea d) do n.º 3 do artigo 59.º da LGT.
56. De todo o modo, atento ao teor do Relatório de Inspeção Tributária e à posição da Requerente, interessa apurar a razão de ser, fim e intuito das obrigações acessórias contidas nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC.
b) Razão de ser, fim e intuito das obrigações acessórias contidas nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC
57. O n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC aplica-se quando os factos (ou “causa anormais”) que determinaram a desvalorização excecional dos ativos não correntes ocorrem no mesmo período de tributação em que tem lugar o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização do ativo.
58. Nestas circunstâncias, o valor líquido fiscal dos ativos, corrigido de eventuais valores recuperáveis, pode ser aceite pela AT, desde que observadas as obrigações acessórias referidas nas alíneas a) a c) do referido n.º 3, que por sua vez exigem que:
i. O sujeito passivo comprove o abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização dos ativos, através do respetivo auto, assinado por duas testemunhas, acompanhado de relação discriminativa dos elementos em causa, contendo, relativamente a cada ativo, a descrição, o ano e o custo de aquisição, bem como o valor líquido contabilístico e o valor líquido fiscal (cfr. alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC);
ii. O sujeito passivo identifique e comprove os factos que originaram as desvalorizações excecionais (cfr. alínea a) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC);
iii. O sujeito passivo comunique ao serviço de finanças da área do local onde os ativos se encontrem, com uma antecedência mínima de 15 dias, o local, a data e a hora do abate físico, do desmantelamento, do abandono ou da inutilização dos ativos, bem como o respetivo total do valor líquido fiscal (cfr. alínea c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC).
59. A este respeito, Rui Marques (v. Código do IRC – Anotado e Comentado, 2ª edição, Almedina 2020, p. 341) refere o seguinte:
“(...) a referida aceitação está dependente de uma prévia comunicação à AT do local, da data e da hora do abate físico, do desmantelamento, do abandono ou da inutilização e do total do valor líquido fiscal dos ativos. Esta comunicação deverá ser endereçada ao serviço de finanças da área do local onde se encontrem os ativos, com uma antecedência mínima de 15 dias.
Posteriormente, o sujeito passivo deverá fazer a comprovação do abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização dos bens, através do respetivo auto. O auto, assinado por duas testemunhas, deverá conter a identificação e a comprovação dos factos que originaram as desvalorizações excepcionais, fazendo-se acompanhar de uma relação discriminativa dos elementos em causa com, relativamente a cada ativo, a descrição, o ano e o custo de aquisição, bem como o valor líquido contabilístico e o valor líquido fiscal.
Estas condições para a aceitação como gasto do período são cumulativas.”
60. Da leitura conjugada das alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC com o n.º 1 do mesmo artigo, resulta que as obrigações acessórias em causa visam permitir à AT fiscalizar:
a) a ocorrência de uma “causa anormal” que tenha resultado numa “desvalorização excecional” de um ativo não corrente,
b) a ocorrência do abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização de um ativo não corrente, e
c) a existência de valores recuperáveis, que devem ser deduzidos ao valor fiscal do ativo para efeitos de apuramento do valor da perda suportada pelo sujeito passivo.
61. Apurada a razão de ser, fim e intuito das obrigações acessórias contidas nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC, torna-se claro e evidente que é de rejeitar a interpretação restritiva proposta pela Requerente, bem como a conclusão da Requerente de que razão de ser, fim e intuito das obrigações acessórias em causa foram observadas no caso sub judice.
62. Na verdade, não só a interpretação restritiva do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC proposta pela Requerente não tem qualquer correspondência com a ratio legis do mesmo, como também não tem qualquer suporte na letra da lei, que é clara ao estabelecer que os requisitos contidos nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC são imperativos (“pode ser aceite como gasto do período, desde que...”).
63. A este propósito, cumpre salientar que, tal como referido pela Requerente, o artigo 9.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil (para o qual o artigo 11.º, n.º 1, da LGT remete) estabelece que, da consideração da unidade do sistema jurídico, das circunstâncias em que a lei foi elaborada, e das condições específicas do tempo em que é aplicada, não pode resultar uma interpretação “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal”.
64. Todavia, ao contrário do que alega a Requerente, a doutrina e jurisprudência portuguesas acolhem o princípio da preponderância da letra da lei na interpretação de normas legais, (i) aceitando a letra da lei não só como ponto de partida da interpretação, mas também como critério decisivo de exclusão e limite intransponível das possibilidades de interpretação, e (ii) reconhecendo à letra da lei uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos interpretativos que não tenham qualquer apoio ou ressonância nas palavras da lei (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29.11.2011, proferido no processo n.º 0701/10; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10.12.1998, proferido no processo n.º 032803; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7.11.1995, proferido no processo n.º 036487; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2015, de 2.6.2015; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 731/2021, de 22.9.2021; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 69/2009, de 11.9.2009; Professor Doutor Oliveira Ascensão: “a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação”, v. O Direito – Introdução e Teoria Geral, 6.ª edição, O Direito 1991, p. 3687); Professora Doutora Ana Paula Dourado: a “interpretação da lei fiscal tem como limite o sentido possível das palavras no contexto em que são utilizadas”, v. Direito Fiscal – Lições, 2.ª edição, Almedina 2017, p. 247).
65. Por último, importa notar que a Decisão Arbitral de 13.3.2019, proferida no processo n.º 549/2018-T, referida pela Requerente, não suporta a interpretação do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC proposta pela Requerente.
66. Nesta Decisão Arbitral, o Tribunal considerou que o sujeito passivo não logrou provar que tinha destruído os bens em causa, e analisou o n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC nesse contexto.
67. Esta questão não se coloca no caso sub judice, visto que não é controvertida a demolição do F... em 2017 e 2018.
68. Em suma: a interpretação restritiva (ou corretiva) das alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B proposta pela Requerente não só não tem qualquer correspondência com a razão de ser, fim e intuito das obrigações acessórias em causa, como também não encontra um mínimo de correspondência verbal com a letra das disposições em causa, não sendo, por isso, de admitir nos termos do artigo 9.º do Código Civil, aplicável a normas tributárias por força do artigo 11.º, n.º 1, da LGT.
69. À luz da razão de ser, fim e intuito das alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B, torna-se claro que a Requerente está equivocada quanto à respetiva observação no caso sub judice.
c) Aplicação das alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC no caso sub judice
70. A este respeito, importa sublinhar que a Requerente nunca requereu à AT que autorizasse / aceitasse o valor líquido fiscal do edifício demolido como gasto fiscal do período de 2017.
71. A AT não foi informada da demolição do edifício em 2017 ou 2018 (anos em que a mesma teve lugar) mas apenas em 2021, no decorrer de procedimento de inspeção tributária.
72. No âmbito deste procedimento inspetivo, a Requerente comprovou a demolição do edifício através do envio de vários documentos.
73. Quando, no âmbito do mesmo procedimento inspetivo, a AT solicitou à Requerente os restantes elementos referidos nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC, não obteve qualquer resposta.
74. Nestas circunstâncias, não se percebe a alegação da Requerente de que a AT violou os princípios da igualdade, da legalidade e da justiça material (previstos no n.º 2 do artigo 5.º da LGT), ou os seus deveres de colaboração e de atuar com boa-fé (previstos no artigo 59.º, n.º 1 e 2, da LGT), ou o seu dever de realizar as diligências necessárias à descoberta material (previsto no artigo 58.º da LGT).
75. Ao invés, dos documentos juntos aos autos e da prova testemunhal produzida, resulta que foi a Requerente que se recusou a colaborar com a AT na descoberta da verdade material.
76. Na verdade, a Requerente não elaborou a documentação exigida nos termos da lei, não procedeu à comunicação necessária nos termos da lei, e não se dignou a responder à AT quando interpelada para apresentar a documentação em falta, violando, assim, o dever de colaboração a que alude o artigo 59.º, n.º 4, da LGT.
77. Também não se percebe a alegação da Requerente de que a AT tem conhecimento da verdade material e que instrumentalizou as alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC para impor uma tributação que sabe que não é devida.
78. A AT reconheceu que o edifício em que operava o F... foi efetivamente demolido, mas a AT nunca dispôs de informação relativa à ocorrência de uma “causa anormal” que tenha resultado na “desvalorização excecional” do edifício em que operava o F..., informação esta essencial para decidir pela aprovação ou rejeição da dedução de € 1.534.192,20 ao lucro tributável da Requerente do exercício de 2017, limitando-se a desconsiderar este valor por inobservância das alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC.
79. Ao contrário do que alega a Requerente, a AT não tinha conhecimento dos factos relevantes para decidir sobre o mérito da pretensão da Requerente (deduzir € 1.534.192,20 ao seu lucro tributável do exercício de 2017).
80. Acresce que este desconhecimento é exclusivamente imputável à Requerente, que não só não efetuou qualquer comunicação à AT em 2017, como não identificou ou comprovou os factos (ou “causas anormais”) que determinaram a “desvalorização excecional” do edifício em causa até ao momento em que foi emitida a Liquidação Contestada.
81. Não obstante estas considerações preliminares, interessa saber se a razão de ser, fim e intuito das alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B, foram observados no caso sub judice, nomeadamente por a Requerente ter comprovado que a demolição do F... iniciou em 2017.
82. A resposta não poderá deixar de ser negativa.
83. Em primeiro lugar, a Requerente não comunicou à AT, com uma antecedência de 15 dias (ou outra), o local, datas e horas em que teve lugar a demolição do F..., nem fez qualquer comunicação durante o período em que a demolição esteve em curso.
84. Esta comunicação permitiria à AT promover diligências no sentido de verificar não só que o F... iria ser ou estaria a ser efetivamente demolido, como também aferir se existiriam valores recuperáveis que deveriam ser deduzidos ao valor líquido fiscal do edifício para efeitos de apuramento do valor da perda sofrida pela Requerente.
85. No Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 4.6.2020, proferido no processo n.º 2742/10.3BELRS, a questão principal consistia em saber se o facto de o sujeito passivo ter realizado a comunicação referida na alínea c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC dias antes do abate do ativo em causa (não tendo cumprido o prazo de 15 dias referido nesta disposição), constitui fundamento para a AT não aceitar o valor líquido fiscal do ativo como gasto fiscal nos termos do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC.
86. Neste caso, foram dados como provados os seguintes factos: (i) o sujeito passivo cumpriu os restantes requisitos referidos no n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC, tendo nomeadamente comprovado os factos que conduziram à desvalorização excecional dos ativos em causa, bem como o abate físico dos mesmos, (ii) o sujeito passivo apresentou todos os elementos solicitados pela AT, (iii) o sujeito passivo disponibilizou-se para as vistorias consideradas necessárias pela AT, (iv) a AT reconheceu a verificação material dos factos que conduziram à desvalorização excecional dos ativos em causa, bem como a completude dos elementos apresentados pelo sujeito passivo, (v) a alegada preterição da obrigação formal de comunicação do abate dos bens, com a antecedência de 15 dias, não pôs em causa a verificação dos pressupostos materiais de aplicação do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC , (vi) o exercício dos poderes de fiscalização da AT não foi objeto de qualquer preclusão, dado que, em face dos elementos fornecidos pela contribuinte (autos de abate com listas discriminativas dos ativos), a AT não contactou o sujeito passivo com vista à comprovação dos elementos fornecidos.
87. O Tribunal concluiu que, nestas circunstâncias, “a não aceitação dos custos em apreço, com base na preterição de obrigação de comunicação prévia, no prazo de 15 dias anterior ao abate dos bens, constitui uma consequência excessiva e desproporcionada”.
88. As circunstâncias do caso sub judice são radicalmente distintas.
89. Sendo certo que a preterição da obrigação formal de comunicação prévia prevista na alínea c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC em 2017 não impediu que a Requerente comprovasse, em 2021, que o edifício foi efetivamente demolido (em 2017 e 2018), a verdade é que a preterição da referida obrigação formal de comunicação prévia precludiu a AT de verificar e fiscalizar a existência de valores recuperáveis que deveriam ser deduzidos ao valor fiscal dos ativos para efeitos de apuramento do valor da perda sofrida pela Requerente.
90. Conclui-se, assim, que a comprovação, em 2021, da demolição do edifício (que teve lugar em 2017 e 2018) não supriu o incumprimento da obrigação formal de comunicação prévia prevista na alínea c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC.
91. Em segundo lugar, a Requerente não alegou nem comprovou, quer durante o procedimento inspetivo, quer no âmbito do presente processo arbitral, os factos (“causas anormais”) que originaram uma “desvalorização excecional” do F... (leia-se, uma desvalorização que não decorreu da utilização normal ou do mero decurso do tempo).
92. O incumprimento desta obrigação acessória prevista na alínea a) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC precludiu a AT de verificar se dois dos pressupostos materiais de aplicação do artigo 31.º-B do CIRC estariam preenchidos.
93. No âmbito do processo arbitral, a Requerente não alegou e não logrou provar que ocorreram “causas anormais” que conduziram a uma “desvalorização excecional” do edificou em que operava o F..., tendo apenas provado que a demolição do referido edifício.
94. Conclui-se, assim, que não se encontra sanado o incumprimento da obrigação formal de indicar e comprovar os factos que originaram as desvalorizações excecionais prevista na alínea a) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC.
95. Do exposto supra resulta que a razão de ser, fim e intuito das alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC, não foram observados no caso sub judice.
96. Note-se que não está em causa uma interpretação e aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC assente na exigência de requisitos formais intransponíveis que vedam à Requerente a dedução de um gasto fiscal a que a Requerente tem direito nos termos do artigo 31.º-B do CIRC.
97. O incumprimento das obrigações acessórias contidas no n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC por parte da Requerente não foi suprida pela apresentação de documentos comprovativos da demolição do F... e do respetivo valor líquido fiscal no decorrer do procedimento inspetivo que originou a Liquidação Contestada, ou pela prova produzida no âmbito do presente processo arbitral.
98. O que a Requerente parece pretender, com a interpretação e aplicação do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC que propõe, é que lhe seja permitido deduzir o montante de € 1.534.192,20 mediante a apresentação de documentos comprovativos de que a demolição do edifício ocorreu efetivamente, sem que lhe seja exigido comprovar a verificação dos restantes pressupostos materiais de aplicação do regime das perdas por imparidade contido no artigo 31.º-B do CIRC.
99. Ora, como resulta do exposto supra, para o valor líquido fiscal de um ativo não corrente ser dedutível ao lucro tributável, não é suficiente que o sujeito passivo comprove que o abate / demolição do mesmo ocorreu efetivamente.
100. Em conclusão: Não tendo a Requerente logrado provar que cumpriu as declarações acessórias exigidas pelas alíneas a), b) e c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC, ou demonstrado que o incumprimento das mesmas foi suprido através da comprovação de que o edifício em causa foi demolido, resta ao Tribunal manter na ordem jurídica a Liquidação Contestada.
101. Note-se que o ónus probandi deve aqui ser estabelecido nos termos do preceituado no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, face à exigência de apresentação da documentação relevante de apoio aos lançamentos em causa, não vingando a presunção de veracidade das declarações dos contribuintes prevista no artigo 75.º, n.º 1, da LGT (no qual se pode ler: “Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos”).
102. De facto, da leitura conjugada dos artigos 74.º, n.º 1, e 75.º, n.º 2, alíneas a) e b), da LGT resulta que, no caso sub judice, cabia à Requerente o ónus de provar a veracidade e a boa-fé da sua declaração de IRC do ano de 2017, e dos dados e apuramentos inscritos no quadro 07 da mesma, socorrendo-se do cumprimento dos requisitos impostos pelo artigo 31.º-B, n.º 3, alíneas a), b) e c), do CIRC.
103. Assim sendo, o incumprimento das obrigações declarativas referidas nestas alíneas por parte da Requerente só poderá ser contra ela valorada.
§3. Da inconstitucionalidade das alíneas a), b) e c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC, por violação dos princípios da igualdade e da tributação das empresas fundamentalmente pelo seu rendimento real (artigos 13.º e 104., n.º 2, da CRP)
104. Defende a Requerente que a interpretação do artigo 31.º-B, n.º 3, do CIRC feita pela AT é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da tributação de acordo com a capacidade medida pelo rendimento real, e que uma interpretação do artigo 31.º-B, n.º 3, do CIRC conforme à Constituição impõe uma interpretação restritiva do mesmo artigo, nos termos supra referidos.
105. Entende o Tribunal que dos princípios constitucionais da igualdade e da tributação das empresas fundamentalmente pelo seu rendimento real (contidos nos artigos 13.º e 104.º, n.º 2, da CRP) não resulta que os contribuintes não têm de cumprir obrigações acessórias que permitem à AT fiscalizar a verificação dos pressupostos materiais do reconhecimento de um gasto ou dedução fiscal.
106. Tal como referido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 517/2015, de 14.10.2015, “a prevalência do princípio da tributação das empresas segundo o seu lucro real acarreta um aumento da intensidade da cooperação exigida ao contribuinte, que se traduz numa acrescida exigência dos seus deveres declarativos. Esta exigência poderá, porém, determinar a restrição ou condicionamento de direitos, imposta pela necessidade de fiscalizar o cumprimento de tais deveres”.
107. À luz do princípio constitucional da tributação das empresas fundamentalmente pelo seu rendimento real, a questão que se coloca é a de saber se, não obstante o incumprimento das obrigações acessórias referidas no n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC por parte do sujeito passivo, deve o valor líquido fiscal do ativo em causa ser aceite como gasto fiscal, por os pressupostos materiais de aceitação desse gasto fiscal se verificarem na realidade.
108. Ora, tal como resulta do exposto supra, a Requerente não alegou nem logrou provar, quer no decurso do procedimento inspetivo, quer no âmbito do processo arbitral, que se verificam, no caso sub judice, os pressupostos materiais de aplicação do artigo 31.º-B do CIRC, nomeadamente, por a Requerente não ter indicado ou comprovado as “causas anormais” que conduziram à “desvalorização extraordinária” do edifício em que operava o F... .
109. Repita-se: não está em causa uma interpretação e aplicação do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC que exige requisitos formais intransponíveis que vedam à Requerente a dedução de um gasto fiscal a que a Requerente tem direito nos termos do artigo 31.º-B do CIRC, mas a mera constatação de que não ficou provado que a Requerente tem efetivamente direito a deduzir um gasto fiscal no montante de € 1.534.192,20 ao seu lucro tributável do exercício de 2017, nos termos do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC.
110. Por este motivo, conclui-se que a interpretação e aplicação do artigo 31.º-B, n.º 3, do CIRC, realizada pela AT no caso em apreço, não viola o princípio da tributação das empresas fundamentalmente pelo seu rendimento real, contido no artigo 104.º, n.º 2, da CRP.
111. Quanto ao princípio da igualdade contido no artigo 13.º da CRP, não indica a Requerente em que medida o mesmo é violado pela interpretação e aplicação do artigo 31.º-B, n.º 3, do CIRC sustentada pela AT.
§4. Da dedutibilidade do valor líquido fiscal do edifício demolido, enquanto perda por imparidade em ativo não corrente, nos termos do artigo 31.º-B, n.º 7, do CIRC
112. A Requerente alega, subsidiariamente, que a Liquidação Contestada é ilegal por a AT não ter aplicado o n.º 7 do artigo 31.º-B do CIRC, não obstante a Requerente não ter invocado a aplicação deste artigo no âmbito do procedimento inspetivo que resultou na emissão da Liquidação Contestada.
113. Como resulta do n.º 7 do artigo 31.º-B do CIRC, o mesmo permite a dedução de perdas por imparidade não aceites nos termos dos restantes números do artigo 31.º-B do CIRC.
114. No entanto, também resulta deste preceito que a referida dedução deverá ser feita nos períodos de tributação que decorrem desde o facto que causou a desvalorização do ativo, até ao período de tributação anterior àquele em que se verifica o abate físico, o desmantelamento, o abandono, ou a inutilização do ativo.
115. No caso em apreço, a demolição do F... teve início no ano de 2017, pelo que nesse ano já não seria dedutível o respetivo valor líquido fiscal.
116. Quanto à dedutibilidade do gasto fiscal em períodos de tributação anteriores a 2017, a mesma está fora do âmbito do respetivo processo arbitral, que tem por objeto a liquidação de IRC da Requerente referente ao ano de 2017.
117. Acresce que o Tribunal Arbitral não pode decidir com recurso à equidade, mas apenas de acordo com o direito constituído (cfr. artigo 2.º, n.º 2, do RJAT), e o direito constituído determina que o valor contabilístico do edifício demolido não é dedutível no exercício de 2017.
***
118. Pelas razões expostas supra, o Tribunal julga improcedente o pedido de declaração de ilegalidade e anulação da Liquidação Contestada, bem como o pedido de restituição do montante de € 68.862,56, acrescido de juros indemnizatórios.
V. DECISÃO
119. Termos em que o Tribunal decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, e absolver a Requerida de todos os pedidos nele contidos.
VI. VALOR DO PROCESSO
120. De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT), e no artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 68.862,56.
VII. CUSTAS
121. Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, que fica a cargo da Requerente em razão do decaimento.
Notifique-se.
Lisboa, 17 de julho de 2022
Os Árbitros,
Rita Correia da Cunha
Alexandra Iglésias
José Alberto Pinheiro Pinto
(com voto de vencido em anexo)
VOTO DE VENCIDO
O que está em causa neste processo é a aceitação ou não como gasto do custo suportado pela Requerente com a demolição de um Hotel, tendo em vista a construção de um novo, com elevação da categoria de três para quatro estrelas.
O custo foi registado na contabilidade da Requerente em 2016, através da constituição de uma provisão, no montante de € 1 534 192,20, correspondente ao valor contabilístico do imóvel que veio a ser demolido.
Como se terá entendido que, existindo embora um gasto contabilístico, por força da aplicação do princípio da prudência, mas não estando esse gasto contemplado no Código do IRC como aceite para efeitos desse tributo, o gasto foi acrescido no quadro 07 da declaração de rendimentos do ano de 2016.
Dado que no ano de 2017 teve lugar o início da demolição do imóvel, a Requerente deduziu o gasto – então efetivo e não já decorrente da aplicação do citado princípio da prudência – para efeitos de apuramento do lucro tributável desse ano.
Não está, agora, pois, em causa uma provisão ou uma perda por imparidade, mas uma perda real, efetiva, decorrente do abate físico de um ativo que tinha o valor contabilístico, não questionado, de € 1 534 192,20.
Pode colocar-se desde logo uma questão relevante, qual seja a de saber se efetivamente ocorreu ou não a demolição do imóvel, com o inerente apuramento de uma perda.
Ora, nesse domínio não existe qualquer dúvida.
No próprio Relatório de Inspeção Tributária se reconhece que “[d]e acordo com os elementos fornecidos, a empresa, em novembro de 2017, encerrou o Hotel, tendo dado início ao processo de demolição (que previa iniciar no 1.º trimestre de 2018) bem como a construção de uma nova unidade hoteleira. Neste contexto foi vendido todo o recheio do hotel, a uma leiloeira.”
E, se dúvidas houvesse, elas teriam sido dissipadas na reunião realizada nos termos do artigo 18.º do RJAT, em que o próprio técnico da AT responsável pela ação inspetiva – então como testemunha – o reconheceu.
Assim, o que está em causa não é a eventual existência de dúvidas quanto à veracidade do gasto, mas o cumprimento de formalidades previstas no n.º 3 do artigo 31.º-B do Código do IRC.
Quanto às provas, é o próprio Relatório de Inspeção Tributária que o confirma, nos termos seguintes:
“O Sujeito Passivo, limitou-se a remeter-nos como prova cópias dos documentos relativos às várias fases da demolição do Hotel H..., nomeadamente: 1 – Acompanhamento policial; 2 – Alvará; 3 – Ambiente (1 de 2); 4 – Autos de medição; 5 – Ocupação da via pública; 6 – Programa de trabalhos.”
Então qual é a questão?
A questão resulta da incoincidência entre os elementos que o sujeito passivo “se limitou” a remeter e os elementos formalmente exigidos no n.º 3 do artigo 31.º-B do Código do IRC, ou seja:
“a) Seja comprovado o abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização dos bens, através do respetivo auto, assinado por duas testemunhas, e identificados e comprovados os factos que originaram as desvalorizações excecionais;
b) O auto seja acompanhado de relação discriminativa dos elementos em causa, contendo, relativamente a cada ativo, a descrição, o ano e o custo de aquisição, bem como o valor líquido contabilístico e o valor líquido fiscal;
c) Seja comunicado ao serviço de finanças da área do local onde aqueles ativos se encontrem, com a antecedência mínima de 15 dias, o local, a data e a hora do abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização e o total do valor líquido fiscal dos mesmos.”
Relativamente à alínea a), os documentos apresentados pela Requerente constituem, sem qualquer dúvida, prova mais firme que qualquer auto assinado por quaisquer duas testemunhas, pois têm intervenção de entidades públicas (fiscais camarários e agentes policiais) acima de quaisquer suspeitas.
Pode, pois, concluir-se que foi cumprido o disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 31.º-B, de forma até mais consistente e segura que a exigida no preceito.
Quanto à exigência da alínea b), parece óbvio que a questão não se coloca em ativos como o que está em causa, tanto mais que a descrição nos mapas de depreciações e amortizações se faz numa única linha. A exigência legal é de que, relativamente a cada ativo, se faça a descrição e se indique o ano e o custo de aquisição, bem como o valor líquido contabilístico e o valor líquido fiscal. E, naturalmente, todas estas informações terão sido disponibilizadas no âmbito da ação inspetiva, em relação ao único elemento do ativo que está em causa.
A questão só pode colocar-se em relação à alínea c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do Código do IRC, que exige que o abate seja “comunicado ao serviço de finanças da área do local onde aqueles ativos se encontrem, com a antecedência mínima de 15 dias, o local, a data e a hora do abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização e o total do valor líquido e fiscal dos mesmos.”
Pelo simples facto de que o sujeito passivo não fez esta comunicação, trata-se de falha insuperável, insuprível ou irreversível, pela sua própria natureza. Não pode, pois, dizer-se, como se diz no acórdão, que “a Administração Tributária não considerou insuperável a falta dos requisitos formais apontados sem notificar previamente o sujeito passivo para prestar esclarecimentos, no cumprimento do dever de colaboração que lhe impõe a alínea d) do n.º 3 do artigo 59.º da LGT.”
A única falha que pode apontar-se no caso refere-se a uma comunicação com antecedência mínima de 15 dias em relação à data da demolição. Ora, se isso não foi feito em 2017, não pode superar-se, de forma alguma, em data posterior, seja em 2018, 2019, 2020 ou 2021.
E, por esse motivo, não está correto afirmar-se que “foi a Requerente que se recusou a colaborar com a AT na descoberta da verdade material”. Se não fez em devido tempo a comunicação prevista na alínea a) do n.º 3 do artigo 31.º-B, não tem sentido dizer-se que “se recusou a colaborar com a AT”, não enviando prova – que naturalmente não existia – nem pode mais vir a existir – de que fez a comunicação.
Sendo a falta, pela sua natureza, insuprível no tempo, importará refletir sobre a sua implicação em matéria de justiça tributária.
Em primeiro lugar, a exigência legal não se refere a um “requerimento”, mas a uma “comunicação”.
Daí que, desde logo, se não possa aceitar que, logo no início da “Aplicação das alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC no caso sub judice”, se diga textualmente:
“A Requerente nunca requereu à AT que autorizasse/aceitasse o valor líquido fiscal do edifício demolido como gasto do período de 2017” (sublinhado meu)
Efetivamente, não está em causa um pedido ou um requerimento, mas uma simples comunicação – que nem sequer deve suscitar por parte da AT qualquer resposta.
Por outro lado, a AT não dispõe de um poder discricionário neste domínio, como se fosse possível não aceitar o custo no caso de lhe ter sido feita a comunicação atempadamente, relativamente à demolição em si mesma.
Aliás, importaria saber, no caso de a comunicação em causa ter sido tempestiva, como é que, em termos práticos, dela poderia ter resultado qualquer efeito tributário. Iria a AT designar um “membro permanente” para controlar a evolução dos trabalhos de destruição do imóvel?
Assinale-se que, como bem se compreenderá, esta obrigação acessória de comunicar previamente a demolição do imóvel não foi com toda a certeza instituída a pensar em situações desta natureza. De facto, como se compatibilizaria este aviso prévio de destruição com a indicação do dia e da hora do abate? Seria a hora do início? Seria a hora do fim?
Entende-se que, nas situações mais correntes, em que se proceda à destruição de bens, designadamente através de fogo, a eventual participação dos Serviços da Requerida, “avisada” do dia e da hora da operação de destruição, possa garantir que todos os bens em questão foram efetivamente destruídos, constituindo prova muito mais segura do que a exibição de um simples auto de destruição assinado por duas quaisquer testemunhas.
Ora, isto não acontece quando o que está em causa é a demolição de um imóvel. Neste caso, a simples aparição de um representante da AT no ato de início da demolição do imóvel, ou em qualquer fase subsequente, nunca teria qualquer implicação tributária, já que nunca se colocaria, nessa altura, qualquer obstáculo à aceitação como custo do valor contabilístico do imóvel, sendo certo que a Requerida não disporia de um poder discricionário de aceitar ou não aceitar a perda. Ou, se quisermos, nunca seria possível à AT tomar qualquer atitude que não lhe fosse possível mais tarde, designadamente aquando da inspeção que levou a cabo.
Qualquer que fosse o dia e a hora que tivesse estado na mente do legislador, o que é evidente é que, no caso da demolição de um imóvel, nunca seria por aí que o conhecimento do dia e da hora poderia trazer um controlo acrescido da situação para a AT, nem ser impeditivo de atuação ulterior desta em matéria de correção tributária.
Poderá até ter estado neste facto a origem da ausência da comunicação por parte do sujeito passivo, que poderá ter considerado – bem, quanto a mim – que o essencial seria a comprovação da efetiva demolição do prédio. E essa seria feita, naturalmente, através dos elementos, genericamente oficiais, que coligiu e apresentou aquando da ação inspetiva.
No âmbito da apreciação da matéria de direito, a que se refere a presente declaração de voto, o acórdão faz referência a um Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 4 de junho de 2020, proferido no processo n.º 2742/10.3 BELRS, que aborda precisamente uma situação em que não foi cumprida a obrigação de comunicação no mesmo prazo de 15 dias antes do abate de ativos.
O Sumário desse acórdão é, em si mesmo, elucidativo:
“A não aceitação dos custos relativos a amortizações extraordinárias de bens do ativo corpóreo imobilizado, com base na mera preterição de obrigação de comunicação prévia, no prazo de 15 dias anterior ao abate dos bens, constitui uma consequência excessiva e desproporcionada.”
Neste texto se resume, com toda a clareza, a opinião que tenho sobre o assunto e se justifica a razão que me levaria a apoiar decisão contrária àquela que foi tomada no presente acórdão, em nome dos princípios da justiça e da proporcionalidade legalmente consagrados.
Perante todo o exposto e pelas razões enunciadas nesta declaração de voto de vencido, não posso subscrever os argumentos e as conclusões que obtiveram vencimento neste acórdão.
José Alberto Pinheiro Pinto
***
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.