SUMÁRIO: Após a entrada em vigor da alteração da redação do nº 6 do art. 51º do CIRC operada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, os dividendos recebidos por seguradoras direta ou indiretamente imputáveis aos tomadores de seguros, nomeadamente os auferidos no quadro de contratos unit-linked, deixaram de aproveitar do mecanismo deeliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos, previsto em tal artigo, sem dependência da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade.
DECISÃO ARBITRAL
A..., SGPS, S.A., NIPC..., com sede no ..., n.º..., ...-... Lisboa, apresentou, nos termos legais, pedido de constituição de tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
A) O pedido
A Requerente pede a anulação da decisão de indeferimento que versou sobre reclamação graciosa que deduziu contra a autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2018 (incluindo derrama estadual e derrama municipal), a qual considera estar ferida de ilegalidade em montante que computa num total de € 206.598,01.
B) Posição das partes
B.1 - A Requerente entende, em suma, que:
(i) os dividendos de ações afetas a carteiras com participação nos resultados e a contratos unit-linked devem beneficiar do regime consagrado no artigo 51.º, n.º 6, do Código do IRC, o que justifica através da equiparação de tal atividade à das sociedades de investimento a que se refere a al. b) de tal norma.
(ii) De outra forma, ocorreria uma violação da Diretiva 2011/96/UE do Conselho (diretiva sociedades mães-filhas)
(iii) Que a alteração do nº 5 do art. 51º CIRC operada pela n.º 7-A/2016 é inconstitucional.
B.2 – A Requerida, na sua resposta, louva-se na fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que assenta, essencialmente, nos seguintes pontos:
i) os rendimentos decorrentes de participações sociais indexadas aos produtos unit-linked - classificados, para efeitos contabilísticos, como contratos de investimento - não podem beneficiar do n.º 6 do artigo 51.º do CIRC, porquanto tais participações não estão afetas às provisões técnicas das sociedades de seguros, conforme exige o normativo.
ii) o resultado (positivo ou negativo) obtido dos lucros distribuídos, valorizações, ou desvalorizações, respeitante aos investimentos a que estão indexados os produtos unit-linked é inteiramente imputado ao tomador do seguro (o investidor), como evidenciam os correspondentes lançamentos contabilísticos
ii) Não é aceitável a equiparação da ora Recorrente às sociedades de investimento, no que toca às operações relacionadas com produtos unit-linked, para efeitos de aplicação do disposto no n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC, pois a norma expressa taxativamente quais os tipos de sociedades cujos rendimentos (lucros e reservas distribuídos) são abrangidos pelo regime participation exemption previsto no n.º 1, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade.
C) Tramitação processual
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 29/12/2021.
A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a designação dos árbitros que integram este coletivo competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição. Os árbitros designados aceitaram tempestivamente a nomeação.
O tribunal arbitral ficou constituído em 22-03-2022.
A Requerida apresentou, tempestivamente, a sua resposta.
Por despacho de 16/06/2022 foi decidido prescindir da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT e da produção de alegações, ao que as partes não se opuseram.
II - SANEAMENTO
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades. Não existem exceções de que cumpra conhecer.
III – PROVA
III.1 - Factos provados
a) A Requerente é a sociedade dominante de um grupo fiscal, tributado segundo o RETGS, que, à data dos factos, integrava a sociedade B..., SA, a qual tem por objeto o exercício da atividade seguradora e resseguradora.
b) As demonstrações financeiras de tal grupo, subjacentes à determinação do lucro tributável, foram preparadas em conformidade com o estabelecido pelo Plano de Contas para Empresas de Seguros e pelas normas regulamentares emitidas pelo Instituto de Seguros de Portugal.
c) Assim, os compromissos ligados aos produtos unit-linked - classificados como contratos de investimento/depósito - não foram registados, no balanço, na classe 11 3 - Provisões Técnicas.
d) O resultado obtido dos lucros distribuídos, valorizações, ou desvalorizações, respeitante aos investimentos a que estão indexados os produtos unit-linked, é inteiramente imputado ao tomador do seguro (o investidor), através de lançamentos contabilísticos nas rubricas “450 - Passivos financeiros da componente de depósito de contratos de seguros e de contratos de seguro e operações considerados para efeitos contabilísticos como contratos de investimento” e “21 - Investimentos relativos à componente de depósitos de contratos de seguro e a contratos de seguro e operações considerados para efeitos contabilísticos como contratos de investimento”;
e) A Requerente apresentou reclamação graciosa tendo por objeto a autoliquidação de IRC de 2018 do seu grupo fiscal, incluindo derramas, na qual solicitou uma correção da matéria tributável por si apurada no montante total de € 798.328,73, respeitante a dividendos de participações adquiridas pela B... SA para cobertura de responsabilidades com seguros unitlinked e seguros do ramo vida com participação nos resultados, por entender ter indevidamente excluído a aplicação do regime da eliminação da dupla tributação económica previsto no artigo 51.º do Código do IRC.
f) Tal reclamação graciosa foi expressamente indeferida em 11.10.2021.
Os factos dados por provados são sustentados pela documentação junta aos autos, não tendo sido objeto de controvérsia.
III.2 - Factos não provados
Não existem factos alegados, relevantes para a decisão a causa, considerados não provados
IV- O DIREITO
IV. 1 – A nova redação do nº 6 do art. 51º do CIRC
Está em causa a aplicação do disposto no nº 6 do art. 51º do CIRC, na redação da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (parte a seguir sublinhada), segundo o qual o disposto nos nº 1 e 2 é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, à parte dos rendimentos de participações sociais que, estando afetas às provisões técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros, não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros e, bem assim, aos rendimentos das seguintes sociedades: ;
(…)
b) sociedades de investimento
(…)
IV.2 – Importa relembrar o que são os seguros de capitalização unit-link. Os seus traços mais relevantes são[1]:
- Consistirem numa apólice de seguro de vida, expressa em unidades de conta, cuja rentabilidade ou valorização está indexada à valorização de um ativo subjacente;
- Funcionarem através do investimento efetuado pela seguradora em ativos (em ações, obrigações, fundos de investimentos, etc.) cujos rendimentos são reinvestidos em prol dos beneficiários;
- A titularidade dos ativos ser da companhia seguradora, sendo os rendimentos daí advenientes registados na contabilidade desta;
- O risco de investimento ser suportado pelo tomador do seguro;
- Na esfera do segurado, os rendimentos apenas são tributados aquando do resgate ou do vencimento da apólice.
Importa frisar que nada foi alegado no sentido de os seguros unit-linked em causa nos presentes autos terem caraterísticas diferentes das que deixámos enunciadas.
IV.1.1 – Apreciando factos anteriores à alteração legislativa ocorrida em 2016, a jurisprudência concluía[2] que: (i) os montantes que as seguradoras recebem em razão de participações sociais detidas no âmbito de contratos unit-linkedconstituem proveitos das próprias seguradoras, contribuindo para a quantificação do seu lucro tributável; ii) que tal conclusão não resulta afastada pela obrigação legal de constituir e manter provisões técnicas - cujo valor deve permitir às empresas seguradoras fazer face no futuro aos compromissos assumidos, e que se repercutem, como custos, nos resultados do exercício - em valor indexado à variação do valor da carteira de títulos, escolhida como referência do seguro; iii) as normas sobre a eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos são aplicáveis, por estar-se na presença de rendimento da seguradora.
Em resumo, anteriormente à alteração legislativa de 2016, o pedido da Requerente procederia.
Não se conhece jurisprudência que tenha apreciado factos ocorridos após a entrada em vigor da alteração legal[3].
IV-1.2 – Importa, pois, analisar a alteração legislativa.
Nenhuma dúvida parece suscitar a conclusão de que a alteração teve diretamente em vista os dividendos recebidos pelas seguradoras em resultado de participações sociais por elas adquiridas no âmbito de determinados contratos de seguro, nomeadamente os unit-linked.
É indiscutível que, como resulta desde logo da caraterização deste tipo de seguros de vida que acima deixámos enunciada, o tomador do seguro participa, pelo menos indiretamente, nos rendimentos gerados pelas participações sociais adquiridas pela seguradora, pois dividendos serão, por esta, reinvestidos, contribuindo assim para a quantificação do valor a ser pago no fim do contrato.
A própria Requerente aceita esta conclusão, em frase que não resistimos a transcrever: Diz ou dirá a AT que é irrelevante não lhe ter sido dada razão (pela jurisprudência que analisou a questão relativamente a factos ocorridos antes da entrada em vigor da alteração legislativa), dado que o legislador pôs, entretanto, as coisas como a AT gosta delas.
IV.3 - Equiparação a sociedades de investimento
Daí que a Requerente tenha enveredado por uma nova linha de argumentação.
Sustenta, em suma, que, tal com resulta da contabilidade da B... SA, os contratos com os quais se relacionam os dividendos aqui em causa não se inserem na atividade financeira de seguros, mas sim na atividade financeira de investimento. Assim sendo, conclui que a este distinto segmento de actividade, actividade de investimento, função e actividade típica de sociedade de investimento, e aos dividendos com ela conexionados, há-de aplicar-se a alínea b) do n.º 6 do artigo 51.º do CIRC, e, por conseguinte, é de aplicar o regime de eliminação da dupla tributação económica aí prescrito.
Desde já se adianta que esta argumentação não pode proceder.
Em primeiro, lugar temos o elemento literal da norma, o qual define o âmbito da exceção que consagra (não exigibilidade de percentagem mínima de participação e de tempo mínimo de detenção para se ter acesso ao mecanismo de eliminação da dupla tributação económica dos lucros) por referência a diferentes tipos de entidades: sociedades de seguros e mútuas de seguros, sociedades de desenvolvimento regional; sociedades de investimento; sociedades financeiras de corretagem.
Resulta claro do texto legal que o legislador apenas quis abranger as entidades que assumam uma das formas legais que, taxativamente, enumerou, a cada uma das quais corresponde um estatuto legal próprio e não as atividades por elas desenvolvidas[4].
Sendo a B... SA uma sociedade seguradora, a ela apenas é aplicável a parte da norma que diretamente versa sobre as seguradoras e não o relativo a outros tipos de sociedades.
O que está em causa não é, contrariamente ao que argumenta a Requerente, uma questão de eventual prevalência da forma sobre a substância na interpretação da lei fiscal.
O que está em causa é o critério seguido pelo legislador na configuração da tipologia legal em causa.
Com Alberto Xavier[5], é-se obrigado a distinguir, nos tipos legais de tributos, aqueles que se definem essencialmente pelo seu resultado económico, quer se refiram, quer não, a qualquer negócio jurídico, e aqueles que se definem essencialmente pelo tipo estrutural de negócio, independentemente do seu resultado: os primeiros são os tipos funcionais; os segundos, os tipos estruturais;(…) no caso em que a interpretação da lei tenha conduzido à conclusão de que o elemento essencial é a estrutura do negócio jurídico, independentemente da averiguação do seu resultado económico, então negócio jurídico indireto não fica sujeito à disciplina jurídico tributária definida para o negócio direto correspondente.
Ora, pelas razões indicadas, há que concluir que várias alíneas do nº 6 correspondem a um tipo legal estrutural (no caso, de uma norma de exclusão), pelas razões atrás indicadas, pelo que é de recusar uma interpretação económica do aí disposto, ao contrário do que pretende a Requerente.
Tendo o legislador construído a norma em análise com base na enumeração taxativa das formas jurídicas societárias dos que dela são suscetíveis de beneficiar e não com referência a realidades económicas, mais não resta ao intérprete que respeitar o comando legislativo, manifestamente claro.
Acresce que uma interpretação económica da norma resultaria na destruição da sua essência de norma excecional: muitas são as sociedades que, a par de outras atividades, realizam de investimento através aquisição de participações sociais minoritárias. Considerando - como pretende a Requerente - que toda a atividade de investimento idêntica à que é característica das sociedades de investimento, independentemente de quem a realize (da forma jurídica de quem a realize) estaria abrangida por esta norma, teríamos o sistema de participation exemption generalizado a, praticamente, todos os casos em que uma sociedade detenha participações noutra, o que não é, obviamente, o intuito do sistema.
Em resumo: a intencionalidade da alteração legislativa é sabida, o elemento literal da norma claro: o legislador decidiu, expressamente, que aos dividendos, recebidos pelas seguradoras em razão de investimentos associados a contratos com determinadas caraterísticas, entre os quais seguros unit linked, não aproveita o mecanismo da eliminação da dupla tributação económica previsto do art 51ºdo CIRC, l, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade.
Equiparar, para este efeito, a atividade da Requerente a outra realidade (a das sociedades de investimento), não obstante a eventual identidade económica das atividades prosseguidas, seria defraudar a intencionalidade legislativa.
Aponta a Requerente, em defesa da sua tese, numerosas críticas à bondade da alteração legislativa e eventuais consequências absurdas em que se poderá projetar.
Não cabe aqui opinar sobre tais críticas, mas apenas relembrar que o juízo que possa ser feito sobre a bondade de uma norma legal é (no plano infra-constitucional, em que por ora nos situamos) totalmente irrelevante em termos da decisão a ser tomada: o tribunal arbitral julga segundo o direito constituído (art. 2º, n. 2, do RJAT) e “ O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo” (art. 8º, nº 2, do Código Civil).
IV.3 - Violação da Diretiva “mães-filhas
A Requerente alega, numa segunda linha de argumentação, violação da Diretiva “mães-filhas”. Entende, em suma, que de tal Diretiva resulta uma obrigação, com fonte no direito da União Europeia, de eliminar a dupla tributação” e que uma vez adoptado este regime por um Estado-Membro, com um campo de aplicação abrangendo também situações (de sociedades mãe/filhas) puramente domésticas, esse regime fica na sua totalidade, isto é, também na medida em que se aplique a situações exclusivamente domésticas, sujeito ao controlo (em última instância pelo TJUE) do seu respeito pelas prescrições da Directiva mães-filhas.
Assumindo, por economia de raciocínio, estas premissas como válidas, há que fazer uma pergunta: mesmo na hipótese de os dividendos recebidos pela Requerente terem tido origem noutro estado-membro, tal distribuição estaria abrangida pela Diretiva?
A Diretiva (e o regime nacional de participation exemption dela decorrente) apenas é aplicável quando verificado o requisito de a sociedade que recebe os dividendos deter, pelo menos, 10% do capital da sociedade que os distribuiu[6].
Ora, a Requerente não alega que os dividendos em causa neste processo sejam originados por participações com esta dimensão quantitativa. Nem é crível que tal possa acontecer, pois, estando em causa uma atividade de investimento financeiro, o expectável é a carteira de ações ser muito diversificada.
Parece-nos que, mais que a questão do ónus de alegação, a Requerente elabora num erro: o objetivo da Diretiva não é a eliminação de toda a dupla tributação de lucros distribuídos, mas apenas a que acontece dentro dos chamados “grupos de sociedades”.
Não sendo a Diretiva “mães-filhas” aplicável, mesmo que potencialmente, à situação da Requerente, improcede necessariamente a argumentação desta no sentido de existir violação do primado do Direito Europeu. Pelo que carece, também de fundamento o pedido de reenvio prejudicial para o TJUE por não estar em causa a aplicação de uma norma com origem no Direito da União.
IV. 4 -Inconstitucionalidade da alteração ao nº 6 do art. 51º CIRC
A Requerente alega ainda que a alteração desta norma, que acima deixámos reproduzida, é inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e da proibição de discriminações infundadas”, e do sub-princípio da neutralidade no tratamento de realidades económicas iguais para os efeitos da regulação em causa, previstos nos artigos 2.º (Estado de direito democrático) e 13.º, da Constituição” (…) representando uma pura medida de angariação de maior receita fiscal autoritariamente indiferente aos princípios constitucionais, que viola (como supra se suscitou já), da igualdade, da capacidade contributiva e da proibição de arbitrariedades, e da neutralidade (encarecimento injustificado do custo fiscal das poupanças confiadas a seguradoras).
Apreciando:
Em primeiro lugar, há que lembrar que a questão da “bondade” de uma norma legal não implica, necessariamente, uma questão constitucional. Podemos não concordar, justificadamente, com o teor de uma norma legal, mas saber se ela é inconstitucional é algo bem diferente. Há, por princípio, que respeitar a liberdade de conformação normativa do legislador ordinário.
Vejamos então, em concreto:
Violação do princípio da igualdade (discriminação infundada, proibição da arbitrariedade legislativa): a Requerente não explicita qual a dimensão da “igualdade” que considera violada.
Certamente que não será a igualdade relativamente à generalidade das sociedades, pois que a estas só aproveita o mecanismo da eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos existindo uma “relação de grupo” o que não é o caso em apreciação. A diferente realidade jurídica (incluindo a fiscal, em resultado de outras disposições legais) das sociedades de investimento, de capital de risco e de desenvolvimento regional é suscitável justificar um diferente tratamento quanto à eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos, relativamente às seguradoras, não obstante uma eventual equivalência económica de parte das suas atividades.
Na realidade, o que está em causa é a redução de âmbito de aplicação de uma norma excecional, que, na sua essência, corresponde a um benefício fiscal, o que cabe perfeitamente dentro da liberdade de conformação do legislador ordinário.
Violação do princípio da neutralidade do sistema fiscal no tratamento de realidades económicas substancialmente iguais: a neutralidade é um os objetivos, a par do da simplicidade e da eficiência, que, classicamente, é apontado como devendo ser prosseguido pelo legislador fiscal. Mas tal objetivo não é, per si, uma imposição constitucional, salvo nos casos em que a falta de neutralidade consubstancie uma violação do princípio da igualdade, nomeadamente quando haja uma desigualdade fiscal assente num dos critérios elencados no art. 13º da CRP, o que não é manifestamente o caso.
O facto de, em razão da alteração legislativa, o investimento em seguros unit- linked se tornar menos competitivo do que o efetuado através de sociedades de investimento stricto sensu ou de fundos de investimento – segundo alega a Requerente – , só por si, não fere de inconstitucionalidade a alteração legislativa.
Violação do princípio da capacidade contributiva: a Requerente não especifica em que consistiria tal violação, apenas referindo ter passado a existir uma tripla penalização fiscal dos contribuintes no fim da linha, os tomadores dos seguros, porque toda esta múltipla carga fiscal se repercutirá neles) subscritores de seguros de capitalização.
Parece-nos indiscutível a afirmação que o agravamento da tributação de determinados rendimentos, por mais criticável que possa ser, não é, só por si, gerador de violação do princípio da capacidade contributiva. Importaria, desde logo, saber qual a concreta intensidade do agravamento da ablação fiscal do rendimento em causa, qual a percentagem, líquida de imposto, que restará para os beneficiários dos seguros.
Apesar de tal não ser alegado, parece evidente que o aumento da carga tributária resultante desta alteração legislativa não originou uma situação de confisco por via fiscal, o que, acontecendo, levaria a concluir pela inconstitucionalidade da norma.
Pelo que improcede o argumentário da Requerente no sentido da inconstitucionalidade da norma aplicada.
Improcede assim o pedido principal da Requerente.
Em consequência, improcede o pedido relativo ao pagamento de juros indemnizatórios, porque dependente da procedência daquele.
V - DECISÃO ARBIRAL
Termos em que se conclui pela total improcedência do pedido.
Valor: € 206.598,01, correspondente ao valor de imposto impugnado
Custas arbitrais, que de fixam em € 4.284,00, a cargo da Requerente, dada a total improcedência da ação.
11 de junho de 2022
Os Árbitros
Rui Duarte Morais (relator)
José Aberto Pinheiro Pinto (vencido, conforme declaração junta)
António Pragal Colaço
VOTO DE VENCIDO
O que está em causa neste processo é saber se os dividendos recebidos pela Requerente, de participações afetas a carteiras de seguros unit-linked e seguros do ramo vida com participação nos resultados, beneficiam ou não do regime de eliminação da dupla tributação económica previsto no artigo 51.º do Código do IRC.
A redação do n.º 6 desse artigo 51.º vigente à data a que os factos se reportam – 2018 –, e que presentemente se mantém, foi-lhe dada através da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (Orçamento do Estado para 2016). É a seguinte:
“O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, à parte dos rendimentos de participações sociais que, estando afetas às provisões técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros, não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros e, bem assim, aos rendimentos das seguintes sociedades:
a) Sociedades de desenvolvimento regional;
b) Sociedades de investimento;
c) Sociedades financeiras de corretagem.”
Relativamente à redação que o mesmo preceito tinha antes dessa alteração, a redação que lhe foi dada através da Lei n.º 7-A/2016 – e a que se pretendeu, sem sucesso, conferir natureza interpretativa, julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional – caracterizou-se, em substância, pela exclusão do acesso ao regime de eliminação da dupla tributação económica relativamente a rendimentos de participações sociais das seguradoras que “sejam direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros.”
E, assim, pode parecer, à primeira vista, que o legislador terá pretendido excluir do regime de eliminação da dupla tributação económica, eventualmente entre outros, os dividendos recebidos associados aos seguros unit-linked.
Entretanto, importa caracterizar adequadamente o modo como funcionam os seguros unit-linked, tendo em vista um mais correto enquadramento tributário. Foi o que se fez no ponto IV.2 deste acórdão, invocando-se, a propósito, um valioso trabalho de José Luís Saldanha Sanches e João Taborda da Gama, intitulado “Provisões no âmbito de seguros unit-linked e dupla tributação económica”, publicado na Revista “Fiscalidade”, n.º 33, cujo propósito, enunciado pelos seus autores foi precisamente “tentar saber se o facto de uma seguradora realizar as provisões técnicas obrigatórias para cobertura das apólices unit-linked lhe limita o direito a recorrer ao mecanismo de eliminação da dupla tributação económica previsto no artigo 46.º [hoje, 51.º] do Código do IRC quanto a participações que detenha afetas às carteiras unit-linked.”
E, mais adiante:
“Dito de outro modo, tudo está em saber se há alguma norma ou princípio que restrinja o direito da seguradora a ser tributada como qualquer outra empresa no âmbito dos investimentos que faça por estes estarem afetos a seguros unit-linked.”
“Os produtos unit-linked a que nos referimos no presente artigo são considerados contratos de seguro do ramo vida em que as prestações a que a seguradora se obriga estão indexadas ao valor de um determinado conjunto de ativos na data do evento (i.e. termo do prazo, momento do resgate ou data da morte).”
“E como se determinam as obrigações futuras da seguradora? Aos valores pagos a título de prémio por parte do tomador do seguro, a seguradora faz corresponder um certo número de unidades de conta. Estas unidades de conta (que não são títulos e não têm mercado) têm o seu valor ligado, em cada momento ao valor de um conjunto de ativos (por exemplo, unidades de participação em fundos de investimento, participações sociais, depósitos bancários, créditos sobre o Estado). O seu valor encontra-se, normalmente uma vez por dia, pela divisão do valor do conjunto de ativos num determinado momento pelo número total das unidades de conta contratualmente atribuídas, descontando-se os encargos contratualmente previstos a favor da seguradora.”
“No momento do resgate, em princípio, a seguradora pagará ao segurado o valor encontrado pela multiplicação do número de unidades de conta a que o segurado tem direito pelo valor da unidade de conta nesse dia, subtraído de eventuais comissões de resgate (ou outras) contratualmente previstas.”
Entretanto, em matéria de titularidade dos ativos e risco, acrescentam os autores em questão, no trabalho em análise:
“(…) Porém, (…), do ponto de vista jurídico, cumpre sublinhar que quem adquire os ativos é a seguradora. É esta a sua proprietária / titular e é esta que, imediatamente, com eles ganha e com eles perde.
O risco pertence, como pertencem os ativos, à seguradora. O segurado não sabe, muitas vezes, quais os ativos em que vai ser investido o seu dinheiro, apenas tendo uma indicação quanto à alocação entre ativos com riscos diferentes (por exemplo, são comuns cláusulas contratuais que refiram a percentagem máxima do investimento em ações). O investimento financeiro é um negócio no qual o segurado, por regra, não participa – ou participa apenas num momento inicial em que escolhe o perfil do investimento. É a seguradora que vai aos mercados; é a seguradora que compra, que vende, que participa nas perdas e que recebe ou não dividendos. O cliente da seguradora não dispõe nem de unidades de participação, nem de ações, nem de qualquer outro título, mas apenas de um direito ao valor de uma parte (cuja medida é dada em unidades de conta) do valor de um conjunto de ativos.”
Em matéria de jurisprudência, os Tribunais Arbitrais já se pronunciaram nos processos n.os 65/2014-T, 268/2015-T, 160/2017-T, 220/2019-T e nº 589/2020-T sobre a questão material objeto do presente processo, concluindo de forma inequívoca no sentido da aplicação na esfera da Seguradora, do mecanismo previsto no artigo 51.º do Código do IRC aos rendimentos decorrentes da comercialização dos produtos unit -linked.
Também os Tribunais Judiciais seguiram o mesmo diapasão nos acórdãos do TCAS de 15/12/2016, no Proc. n.º 09756/16, de 29/06/2016, no Proc. n.º 09385/16, e de 8/02/2018, no Proc. n.º 0297/12, tendo mesmo já sido objeto de uma tentativa de pedido de revista excecional o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Processo n.º 01305/07.5BELSB de 13-03-2019, o qual não veio a ser admitido.
Poderá objetar-se que, quer o estudo de J.L. Saldanha Sanches e João Taborda da Gama, quer as decisões dos tribunais a que acabo de fazer referência, se reportam a factos anteriores à alteração do n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC levada a cabo através da Lei do Orçamento de Estado para 2016 e que, por isso, terão perdido a sua atualidade.
Não me parece que deva ser assim.
Desde logo, as seguradoras, no âmbito dos seguros unit-linked constituem, substancialmente, não uma atividade de seguro, mas uma atividade de investimento, com a inegável vantagem de serem realizados no âmbito de uma atividade regulamentada e adequadamente fiscalizada.
Não se compreenderia, por isso, que o n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC instituísse um regime (favorável e adaptado ao seu tipo de atividade) para as sociedades de investimento, a que não tivessem acesso as seguradoras no exercício de uma atividade idêntica.
Por outro lado, as seguradoras, no âmbito dos seguros unit-linked, atuam por sua própria conta e não como intermediárias em relação aos segurados. Os rendimentos que auferem em relação às participações que adquirem para cobertura de responsabilidades com seguros – sejam unit-linked ou outros – são rendimentos delas, e não dos segurados.
A obrigação da seguradora para com os segurados concretiza-se numa obrigação única, pecuniária, de entrega de uma quantia líquida apenas no fim do contrato.
O entendimento sustentado no presente acórdão contraria o princípio da neutralidade, já que, ao não consentir a eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos, desfavoreceria os adquirentes de seguros unit-linked, pela via do desfavorecimento da seguradora, em detrimento de outras aplicações, por recurso, nomeadamente, a sociedades de investimento.
Nesta linha, J. L. Saldanha Sanches e João Taborda da Gama, na obra atrás identificada, dizem textualmente:
“Assim, o respeito pela lei impõe que ao lucro apurado segundo os artigos 17.º e seguintes do Código do IRC, com base na contabilidade, seja retirado o valor do rendimento correspondente a lucros distribuídos, desde que verificados os requisitos previstos no artigo 46.º [hoje, 51.º] do Código do IRC. Qualquer ato contrário estará a violar o princípio da tributação segundo o lucro real (na medida em que não considera uma componente negativa do lucro tributável determinada pelo legislador), violando ainda o princípio da igualdade, na medida em que prejudica a possibilidade de recorrerem ao mecanismo de eliminação da dupla tributação económica empresas que, em virtude do apertado regime prudencial e contabilístico a que estão sujeitas, têm a necessidade de ter uma série de provisões.” (sublinhados meus)
A comprovação de que efetivamente os investimentos são feitos pela seguradora para ela mesma, e não são imputáveis aos segurados, resulta claramente do respetivo regime em caso de insolvência, seja da seguradora, seja do segurado.
Na verdade, entrando a seguradora em insolvência, os segurados não têm qualquer direito aos ativos que a seguradora adquiriu com o propósito de cobrir as responsabilidades decorrentes desses contratos. Tais ativos – e, bem assim, eventuais rendimentos conferidos pelos mesmos – farão antes parte da massa falida.
Na mesma linha, falindo o segurado, não terão os seus herdeiros, nem os seus credores, qualquer direito, seja aos dividendos, seja às participações propriamente ditas, porque, em qualquer caso, fazem parte do património da seguradora, e não do segurado.
Sendo assim, o acesso ao mecanismo da dupla tributação económica, se for negado à seguradora, vai levar, ao cabo e ao resto, a uma tripla tributação: na esfera da participada, na esfera da seguradora e, por repercussão, na esfera do segurado, o que se traduz, quanto a mim, numa clara violação dos princípios da justiça e da neutralidade.
De qualquer modo, pelas razões expostas, não me parece que os rendimentos decorrentes para as seguradoras de participações sociais no âmbito da realização de seguros unit-linked possam ser tidos como “imputáveis” aos tomadores de seguros, nem direta, nem indiretamente, não estando, por isso, arredados do mecanismo da eliminação da dupla tributação económica dos lucros e reservas distribuídos.
Efetivamente, não existe obrigatoriamente uma coincidência entre os ativos que integram a delimitação das unidades de conta e os ativos efetivamente adquiridos e detidos pela seguradora.
É clara, a este propósito, a seguinte transcrição do trabalho de J. L. Saldanha Sanches e João Taborda da Gama:
“(…) de um ponto de vista prático, não é de excluir, também, que, se tal não for proibido pelos contratos, as seguradoras não cheguem sequer a deter os ativos indexantes ou que não os vendam no momento em que o contrato com os clientes cessa (embora se tenham que respeitar regras prudenciais básicas) (…) O dever da seguradora no evento é sempre o da entrega de determinados valores, mesmo que não adquira quaisquer ativos, adquira menos ou diferentes, ou os não venda.” (destaque meu)
Entretanto, ainda em matéria de jurisprudência, existe já um acórdão do CAAD envolvendo um período posterior à data da alteração da redação do n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC.
Tal como atrás sustentei, esse acórdão – proferido no Processo n.º 216/2021-T – decidiu no sentido de dever continuar a aplicar-se nesta matéria o entendimento anterior, no sentido de que as seguradoras devem ter acesso ao regime de eliminação da dupla tributação económica.
O sumário desse acórdão diz textualmente:
“I – Se os rendimentos estão, formalmente, dentro do resultado contabilístico (condição, formal, necessária à sua dedutibilidade) e esclarecendo o legislador, de modo explícito, que os rendimentos fazem parte do lucro e do lucro tributável das empresas seguradoras, impõe-se concluir pela falta de fonte normativa que legitime a AT a recusar a dedução desses rendimentos – com fonte no artigo 51.º, números 1 e 6 do CIRC, quando o legislador no artigo 50.º do mesmo diploma refere que esses rendimentos integram o lucro tributável.
II – Apesar do teor da redação do artigo 51.º, n.º 6 do CIRC não pode o Tribunal Arbitral ignorar a própria qualificação que o legislador efetua no artigo 50.º do mesmo diploma.”
Perante todo o exposto e pelas razões enunciadas nesta declaração de voto de vencido, não posso subscrever os argumentos e as conclusões que obtiveram vencimento neste acórdão.
José Aberto Pinheiro Pinto
[1] Por todos, SALDANHA SANCHES e JOÃO TABORDA DA GAMA, «Provisões no âmbito de seguros Unit-Linked e dupla tributação económica”, Fiscalidade, nº 33.)
[2] Para além de numerosa jurisprudência arbitral, p. ex, ac. TCAS nº 237/05, de 30 de novembro de 2017),
Esta jurisprudência foi implicitamente confirmada pelo STA em vários acórdãos que denegaram recursos de revista interpostos pela AT (o primeiro dos quais o de 11/04/2018 no proc. 405/17).
[3] A questão da natureza interpretativa da alteração legislativa, afirmada pelo legislador e recusada pela jurisprudência, não se coloca no presente caso por o facto gerador ter acontecido já no domínio da lei nova.
[4] Neste sentido, o acórdão do TCAS no proc. 237/05, de 30 de novembro de 2017.
[5] Manual de Direito Fiscal, 1974, 180.
[6] A exigência do tempo mínimo de detenção é uma opção aberta a cada estado-membro.