SUMÁRIO:
I. O valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a IVA é, regra geral, o valor da contraprestação obtida, ou a obter, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro (art.º 16 n.º 1 do CIVA).
II. O conceito de custo de aquisição adotado pelo legislador na redação da alínea f) do n.º 2 do
art.º 21 do CIVA (norma aditada pela Lei n.º 82-D/2014, de 31.12.2014, que promoveu a reforma da fiscalidade ambiental) apresenta uma equivalência substantiva ao conceito de valor tributável comummente usado no sistema do IVA.
III. A norma constante da alínea f) do n.º 2 do art.º 21 do CIVA está (ainda) abrangida pelo âmbito da cláusula standstill constante do 2º parágrafo do art.º 176 da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28.11.2006, de acordo com a interpretação (abrangente) do TJUE sobre esta cláusula.
DECISÃO ARBITRAL
A Árbitra do Tribunal Singular, Dra. Raquel Montes Fernandes, designada pelo Conselho Deontológico do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 18.01.2022, decide o seguinte:
I. RELATÓRIO
A A..., Lda., doravante designada por “Requerente”, com o número de identificação fiscal ... e sede na Rua ..., n.º..., em Lisboa, tendo sido notificada das liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios infra identificadas, no valor total de € 16.097,89, apresentou, em 12.11.2021, pedido de constituição de Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto no art.º 2, n.º 1, alínea e) e art.º 10, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, conjugado com o art.º 99, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT” ou “Requerida”).
As liquidações adicionais objeto do presente pedido de pronúncia arbitral são as seguintes:
A Requerente peticiona (i) a declaração de ilegalidade das referidas liquidações de IVA e de juros compensatórios e (ii) a condenação da AT à restituição à Requerente da quantia paga por conta das mesmas, acrescida de juros indemnizatórios.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, de acordo com os art.ºs 5, n.º 2, alíneas a) e b) e 6, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitra singular deste Tribunal Arbitral a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 31.12.2021 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído, em 18.01.2022, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
Notificada para o efeito, a Requerida apresentou Resposta em 21.02.2022, defendendo por impugnação que o pedido de pronúncia arbitral sub judice devia ser julgado improcedente. Na mesma data foi junto o respetivo processo administrativo.
Ao abrigo do disposto nas alíneas c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, inexistindo questões processuais a tratar, o Tribunal dispensou, por despacho de 22.02.2022, a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT, sem oposição das Partes.
Tendo sido concedido prazo de 15 dias para alegações sucessivas, foram as mesmas apresentadas pelas partes em 03.03.2022 (Requerente) e 23.03.2022 (Requerida).
II. RESUMO DAS POSIÇÕES DAS PARTES
1) Fundamentos das liquidações adicionais controvertidas
No que respeita às correções efetuadas em sede de IVA pela Requerida, que fundamentam as liquidações de imposto e de juros controvertidas, o Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) dispõe o seguinte (páginas 15 a 18):
2) Argumentos da Requerente
Em resumo, a Requerente alega o seguinte (pontos 21 e seguintes do pedido de pronúncia arbitral):
· A interpretação que a AT faz do conceito de custo de aquisição é incorreta, na medida em um montante que não foi desembolsado pela Requerente não pode ser considerado um custo de aquisição na sua esfera;
· Custo de aquisição e preço são coisas distintas e o custo de aquisição está associado à ocorrência de desembolso na esfera do sujeito passivo;
· De acordo com as normas do Sistema de Normalização Contabilística, que assentam na Estrutura Conceptual, constante do Aviso n.º 8254/2015 publicado em Diário da República, 2ª série, n.º 146, de 29 de julho, os ativos são registados pela quantia de caixa ou equivalentes de caixa pagos ou pelo justo valor da retribuição dada, que corresponde ao montante reconhecido como ativo e como passivo;
· A Requerente reconheceu um ativo (conta 43402) e um passivo (conta 27111003), consistindo este passivo num contrato de mútuo assumido perante o B..., cujo montante corresponde ao conjunto de faturas emitidas pelo fornecedor C... à Requerente (€ 74.613) e à proposta apresentada pela marca à Requerente;
· A Requerente só pagou (e só assumiu pagar) as faturas que reconheceu na sua contabilidade (FA 2017/121, FAZ 2017/205 e FAZ 2017/204) e não quaisquer outras;
· Se o sócio que utiliza o veículo ao serviço da Requerente, por sua iniciativa e a suas expensas, adquire outros equipamentos para o veículo, em que medida essas aquisições relevam para a realidade tributária do ativo na esfera do seu proprietário?
· O conceito fiscal de custo consta do art.º 23 do Código do IRC, o qual pressupõe que só pode ser custo de uma entidade uma despesa efetuada por essa entidade;
· O Código do IVA não define o conceito de custo de aquisição, o qual terá, no entanto, de ser interpretado como o valor da contraprestação suportada pelo sujeito passivo no negócio de compra e venda, i.e., o preço pago pela compra do veículo, que no caso em apreço foi € 61.311,37 (+ IVA);
· O preço pago pelo veículo é o valor tributável que resulta no disposto do art.º 16 do Código do IVA, ao referir-se ao valor da contraprestação obtida ou a obter;
· Neste novo tipo de veículos, o “hardware está todo instalado no veículo quando este é adquirido, sendo que as funcionalidades são libertadas pelo fornecedor mediante o pagamento dos pacotes / serviços através de atualizações de software (“overtheair”). Foi o que sucedeu em 2017: o utilizador do veículo adquiriu a suas expensas um pacote adicional de funcionalidades”;
· As referidas funcionalidades adicionais podem ser adquiridas pelo utilizador do veículo através de app, sem ser necessário uma deslocação à oficina ou instalação de qualquer hardware;
· Como tal, a Requerente adquiriu o veículo, para uso de um seu colaborador, que optou a expensas suas e por sua iniciativa por instalar um pacote adicional;
· Se o utilizador comprar um pacote adicional, por ex., o pacote de Capacidade de condução autónoma total, essa aquisição não altera o conteúdo fiscal do ativo na contabilidade do seu proprietário;
· Conforme resulta dos art.ºs 874 e 879 alínea c) do Código Civil, o contrato de compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de um bem, e a contraprestação devida pelo adquirente do bem corresponde à obrigação de pagar o preço, não sendo de incluir no preço de aquisição de um veículo automóvel o preço pago e suportado por um terceiro relativo a acessórios a instalar ou a colocar no veículo, para efeitos de ornamentação ou melhoramento da sua utilização pelo terceiro;
· Consideram-se coisas acessórias, para efeitos do art.º 201 n.º 1 do Código Civil, as coisas móveis que, não constituindo partes integrantes, estão afetadas por forma duradoura ao serviço ou ornamentação de uma outra;
· Em conclusão, o custo de aquisição a que se refere a alínea f) do n.º 2 do art.º 21 do Código do IVA corresponde ao preço efetivamente pago e suportado pelo adquirente do veículo, não englobando as funcionalidades extra a afetar ao veículo cujo preço foi suportado por um terceiro, pelo que o limite legal não foi excedido e, consequentemente, a dedução do IVA incorrido, no montante de € 14.101,62, é válida, não sendo admissível a correção efetuada;
· Outra conclusão que não esta porá em causa o princípio da confiança fiscal e da proteção das legítimas expetativas jurídicas dos contribuintes, na medida em que a reforma da Fiscalidade Verde pretendeu, precisamente, impulsionar a aquisição pelos contribuintes, a partir de 2015, de veículos elétricos cujo custo de aquisição não exceda determinado limite;
· Nem a Comissão da Reforma da Fiscalidade Verde, nem o legislador, orientam no sentido da interpretação efetuada pela AT – se o veículo elétrico apresentar um custo de aquisição de € 62.501, a AT não desconsidera a totalidade das depreciações, mas, apenas, o excedente (€ 1) face ao limite legal da Portaria n.º 467/2010 (e sendo esta Portaria relevante para efeitos de IRC e de IVA, deveria usar o mesmo entendimento em sede de IVA);
· Com a sua interpretação, a AT introduz uma distorção grave no mercado dos veículos elétricos, porquanto um veículo com uma base tributável até € 62.500 corresponde a um custo efetivo desse mesmo montante, enquanto que um mesmo veículo elétrico que tenha uma base tributável de € 62.501 corresponde a um custo efetivo de aquisição de € 76.876,23 (€ 62.501 + IVA), o que é contrário à neutralidade do imposto, princípio estruturante do sistema comum do IVA – pelo que, nestes casos, o legislador pretendeu que o IVA fosse deduzido até ao limite estabelecido na lei (€ 62.500), ainda que o custo de aquisição seja superior a esse limite;
· Como tal, a AT não pode realizar uma interpretação extensiva das normas fiscais em causa, de modo que o direito à dedução do IVA fique excluído, na medida em que tal contende, entre outros, com o princípio da legalidade fiscal;
· “[É] liquido que a Administração Tributária faz uma interpretação extensiva da definição de custo de aquisição, a que se refere a alínea f) do n.º [sic] 2 do artigo 21.º do CIVA, de modo a maximizar a receita fiscal e violando grosseiramente princípios a que está vinculada, nomeadamente o princípio da legalidade e da proporcionalidade, pelo que se conclui pela ilegalidade da liquidação oficiosa de IVA subjudice” (ponto 42 do pedido de pronúncia arbitral).
III. SANEAMENTO
O Tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir dos factos previstos no artigo 102.º n.º 1, alínea b) do CPPT.
As Partes estão devidamente representadas, têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas.
Face ao exposto, importa delimitar as questões a decidir, as quais versam sobre o direito à dedução, pela Requerente, do IVA incorrido na aquisição de uma viatura ligeira de passageiros elétrica, direito esse que foi contestado pela Requerida em sede de inspeção por entender não estarem reunidos os requisitos da al. f) do n.º 2 do art.º 21 do Código do IVA (“CIVA”) quanto ao limite aí estabelecido.
IV. MATÉRIA DE FACTO
A. Factos provados
a) A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, constituída em 06.11.2008, com o objeto social de prestação de serviços, consultadoria e formação, nas áreas económica, financeira e afins, gestão imobiliária, compra, venda, revenda e arrendamento de imóveis.
b) A Requerente é sujeito passivo de IRC e de IVA, enquadrada, no que respeita a este último, no regime normal de periodicidade trimestral.
c) Em maio de 2021 teve início um procedimento inspetivo à Requerente, decorrente da Ordem de Serviço n.º OI2021..., emitida pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, a qual visou o controlo declarativo em sede de IRC e de IVA no exercício de 2017, nomeadamente no que respeita à aquisição da viatura ligeira de passageiros elétrica da marca ... com a matrícula ..., chassi n.º ... (conforme relatório de inspeção tributária).
d) No âmbito do referido procedimento inspetivo, a AT solicitou à Requerente as faturas que lhe haviam sido emitidas pelo fornecedor C..., Lda. (“C...”) em 2017 (conforme relatório de inspeção tributária).
e) A Requerente contabilizou numa rubrica de imobilizado, pelo valor de € 61.311,37, a aquisição da supra mencionada viatura ligeira de passageiros da marca ..., contabilização essa que corresponde às seguintes faturas emitidas pelo fornecedor C... à Requerente:
f) A Requerente deduziu o IVA respeitante a estas faturas, no total de € 14.101,62 (€ 13.952,03 no período 201709T e € 97,23 + € 52,36 no período 201712T).
g) O fornecedor C... emitiu ainda uma outra fatura referente à viatura ligeira de passageiros em causa, que aqui se resume:
h) Esta fatura (FAS 2017/77) foi emitida pelo fornecedor C... ao número de contribuinte da sócia da Requerente (D...), ao cuidado de outro sócio da Requerente (E...), e respeita à aquisição de um conjunto (opcional) de equipamentos e funcionalidades para a (mesma) viatura ligeira de passageiras elétrica da marca ..., com a matrícula ..., chassi n.º ... .
i) O Comfort package adquirido pela sócia da Requerente inclui os seguintes equipamentos/funcionalidades:
a. Sistema de navegação
b. Sensores de estacionamento com câmara traseira
c. Espelhos retrovisores rebatíveis eletricamente e aviso de ângulo morto
d. Rádio digital
e. Banco do condutor com memória
f. Homelink com GPS
g. Acréscimo de potência.
j) Os equipamentos / funcionalidades adquiridos pela sócia da Requerente são parte integrante da viatura em causa (propriedade da Requerente), não podendo desta ser amovidos e não tendo utilidade económica fora da referida viatura.
k) A fatura FAS 2017/77 respeitante à aquisição do Comfort package não foi paga, nem contabilizada, pela Requerente, nem o respetivo IVA foi por esta deduzido (conforme relatório de inspeção tributária e pedido de pronúncia arbitral).
l) A equipa inspetiva da Direção de Finanças de Lisboa entendeu que “o custo de aquisição da viatura elétrica não corresponde ao valor registado pelo sujeito passivo em imobilizado de € 61,311,37, mas sim à soma das faturas infra descritas, ou seja:
m) Como tal, concluiu a AT que a Requerente infringiu “a alínea a) do n.º 1 e alínea f) do n.º 2, ambas do artigo 21.º do CIVA ao deduzir indevidamente IVA referente à aquisição de uma viatura ligeira de passageiros movida exclusivamente a energia elétrica, cujo valor de aquisição foi superior a € 62.500,00” (conforme relatório de inspeção).
n) Nessa sequência, a equipa de inspeção propôs a correção do IVA deduzido pela Requerente por conta da aquisição da referida viatura elétrica, no montante de € 14.101,62 (conforme relatório de inspeção tributária e pedido de pronúncia arbitral).
o) Não tendo sido exercido direito de audição pela Requerente, as correções propostas em sede de inspeção consolidaram-se e, nessa sequência, as respetivas liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios foram emitidas pela Requerida, conforme tabela infra:
p) Em 12.11.2021 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem a este processo, o qual tem por objeto as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios no ponto acima identificadas.
B. Factos não provados
Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
C. Fundamentação da decisão da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, ao invés, o dever de (i) selecionar os factos que importam para a decisão e (ii) discriminar a matéria provada da não provada [cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito [cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
Os factos foram dados como provados ou não provados com base nos documentos juntos aos autos, incluindo o processo administrativo apresentado. Todas as provas deste processo foram criticamente analisadas por este Tribunal.
V. MATÉRIA DE DIREITO
A. Questão decidenda
É solicitado a este Tribunal que decida se à Requerente assiste direito à dedução do IVA suportado com a aquisição de uma viatura ligeira de passageiros, elétrica, da marca ..., com a matrícula ... e chassi n.º ... .
No entender da Requerente, o direito à dedução deste IVA fundamenta-se no facto de “o «custo de aquisição» a que se refere a alínea f) do n.º 2 do art.º 21 do CIVA corresponde[r] ao preço efetivamente pago e suportado pelo adquirente do veículo, não englobando as funcionalidades extra a afectar ao veículo cujo preço foi suportado por um terceiro” (ponto 33 do pedido de pronúncia arbitral), pelo que “é líquido que a Administração Tributária faz uma interpretação extensiva da definição de custo de aquisição, a que se refere a alínea f) do n.º 2 [sic] do artigo 21.º do CIVA, de modo a maximizar a receita fiscal e violando grosseiramente princípios a que está vinculada, nomeadamente o princípio da legalidade e da proporcionalidade (ponto 42 do pedido de pronúncia arbitral).
Por sua vez, a Requerida defende que o IVA em causa não é dedutível por o custo de aquisição da mencionada viatura elétrica não corresponder apenas ao valor registado pelo sujeito passivo na sua contabilidade, na medida em que a esse montante deve ser acrescido, para efeitos da alínea f) do n.º 2 do art.º 21 do CIVA, a fatura dos equipamentos e funcionalidades extra emitida pelo fornecedor da marca à sócia da Requerente, relativa à mesma viatura.
B. Considerações prévias
1) Da natureza do direito à dedução de IVA
Conforme se refere supra, in casu discutem-se as condições para o exercício do direito à dedução pela Requerente. A este propósito, importa tecer algumas considerações prévias sobre o direito à dedução no sistema comum do IVA, remetendo-se para as conclusões do processo 381/2021-T, de que a signatária foi relatora:
“O direito à dedução do IVA suportado a montante, pelos sujeitos passivos, no âmbito das suas atividades constitui umpilar essencial do sistema comum do IVA, enquanto imposto indireto de matriz comunitária. O direito à dedução tem por objetivo principal garantir a neutralidade do imposto nas operações realizadas pelos sujeitos passivos.
O sistema do IVA assenta, assim, no denominado método de dedução do imposto (também apelidado por alguns autores de método de crédito de imposto ou método subtrativo indireto), de acordo com o qual, conforme resulta do disposto no art.º 19 do Código do IVA, ao imposto liquidado nas operações tributadas se deduz o IVA suportado a montante para a realização das mesmas. O direito à dedução garante que o imposto suportado pelos sujeitos passivos não configura um custo operacional, assegurando, desta forma, a neutralidade do IVA em cada operação.
Sendo o direito à dedução do IVA um elemento fundamental do funcionamento do sistema deste imposto, não surpreende que a jurisprudência (europeia e nacional) seja, frequentemente, chamada a apreciar situações concretas de exclusão (ou, pelo menos, limitação) do seu exercício pelas autoridades tributárias nacionais. Todas essas decisões jurisprudenciais têm em comum o facto de afirmarem um direito (quase) absoluto à dedução do IVA, admitindo a sua exclusão apenas em situações excecionais, e com base numa interpretação restrita das normas limitadoras.
Veja-se, meramente a título exemplificativo, o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferido, em 01.10.2020, no caso C-405/19 (caso Vos Aannemingen BVBA), onde se refere, que “[s]egundo jurisprudência constante, o direito à dedução previsto nesta disposição constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA instituído pela legislação da União, pelo que o referido direito faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado” (ponto 23); “[c]om efeito, o regime de deduções instituído pela Sexta Diretiva visa desonerar inteiramente o empresário do encargo do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, uma neutralidade perfeita quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, independentemente dos respetivos fins ou resultados, desde que essas atividades estejam, em princípio, elas próprias sujeitas a IVA” (ponto 24). No mesmo sentido, o acórdão proferido em 11.02.2021, pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no processo 273/10.0BELRS: “[a] este respeito, sublinhe-se, que a jurisprudência do Tribunal Justiça já por diversas vezes declarou que as derrogações ao direito à dedução do IVA por constituir um regime que constitui uma derrogação ao princípio do direito a dedução do IVA, é de interpretação estrita” (disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/58b87d8182fdfcd38025867d003f179f?OpenDocument).
Não obstante, o exercício do direito à dedução de IVA não é livre ou incondicionado, dependendo da verificação de determinados requisitos subjetivos e objetivos. Em primeiro lugar, determina a al. a) do n.º 2 do art.º 19 do Código do IVA (regra geral) que somente confere direito à dedução o imposto mencionado em faturas passadas na forma legal (i.e., que contenham os elementos previstos nos artigos 36 ou 40 daquele diploma, consoante aplicável), emitidas em nome do sujeito passivo e que se encontrem na sua posse. Por sua vez, o direito à dedução do IVA apenas pode ocorrer na esfera de sujeitos passivos deste imposto atuando enquanto tal (os particulares, na aceção do conceito usado para efeitos de IVA, não podem deduzir imposto por si suportado a montante), e somente quanto a IVA suportado no exercício da sua atividade. Por último, o art.º 20 do Código do IVA enquadra o direito à dedução de IVA por referência a determinadas operações que conferem esse mesmo direito, quer por serem sujeitas a IVA e dele não isentas, quer por se tratar de operações isentas às quais, por motivos vários, o legislador entendeu reconhecer direito à dedução do IVA suportado a montante.”
2) Da cláusula standstill
O art.º 17 n.º 6 da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977 (“Sexta Diretiva”), previa a manutenção de todas as exclusões do direito à dedução previstas nas legislações nacionais que fossem aplicáveis no momento da entrada em vigor, nesses territórios, da Sexta Diretiva (esta prerrogativa ficou conhecida por cláusula standstill). O referido artigo determinava, igualmente, que no prazo máximo de 4 anos o Conselho deveria deliberar por unanimidade, sob proposta da Comissão, quais as despesas que não conferem direito à dedução.
Não obstante terem existido duas ou três propostas da Comissão para harmonização das despesas que não conferem direito à dedução (mormente, em 1983 e em 1998), estas nunca foram aprovadas pelo Conselho. A Sexta Diretiva foi entretanto revogada e substituída pela Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006 (“Diretiva IVA”), a qual adotou, no art.º 176, 2º parágrafo, uma redação em substância idêntica (desta vez, sem referência ao prazo de 4 anos) à do n.º 6 do art.º 17 da Sexta Diretiva.
Até à data, o Conselho continua sem adotar uma lista das despesas que não devem conferir direito à dedução do IVA, mantendo-se, como tal, em pleno vigor as exclusões do direito à dedução previstas nas legislações nacionais que eram aplicáveis no momento da entrada em vigor da Sexta Diretiva nos respetivos ordenamentos jurídicos nacionais.
A competência residual dos Estados-Membros para manter as exclusões nacionais ao direito à dedução do IVA, em aplicação do art.º 176, 2º parágrafo, da Diretiva IVA, não é, porém, absoluta; em particular, a cláusula standstill não permite a alteração de legislação nacional por ocasião da sua adesão à União, cujo efeito consista em alargar o âmbito das exclusões existentes, num sentido que afaste essa legislação dos objetivos da Diretiva IVA (vide processo C-630/19, Despacho do Tribunal de Justiça, de 26.02.2020, que opôs a Page International Lda. à AT[1]).
As exclusões ao direito à dedução adotadas pelo legislador português ao abrigo da cláusula standstill constam do n.º 1 do art.º 21 do Código do IVA, sem prejuízo das exceções previstas no seu n.º 2 (que permitem a dedução parcial ou, mesmo, total do IVA dessas despesas nas condições aí expressamente previstas).
C. Apreciação do Tribunal
1) Da noção de custo de aquisição da alínea f) do n.º 2 do art.º 21 do CIVA
Dispõe a alínea a) do n.º 1 do art.º 21 do Código do IVA que se exclui do direito à dedução o imposto contido, entre outros, em despesas de aquisição de viaturas de turismo, sendo consideradas como tais qualquer veículo automóvel, com inclusão do reboque, que, pelo seu tipo de construção e equipamento, não seja destinado unicamente ao transporte de mercadorias ou a uma utilização com carácter agrícola, comercial ou industrial ou que, sendo misto ou de transporte de passageiros, não tenha mais de nove lugares, com inclusão do condutor.
Não obstante, a Lei n.º 82-D/2014, de 31 de dezembro, que procedeu à alteração das normas fiscais ambientais nos sectores da energia e emissões, transportes, água, resíduos, ordenamento do território, florestas e biodiversidade, no quadro de uma reforma da fiscalidade ambiental, aditou a alínea f) do n.º 2 do art.º 21, a qual permite o direito (integral) à dedução de despesas relativas à aquisição, fabrico ou importação, à locação e à transformação em viaturas elétricas ou híbridas plug-in, de viaturas ligeiras de passageiros ou mistas elétricas ou híbridas plug-in, quando consideradas viaturas de turismo, cujo custo de aquisição não exceda o definido na portaria a que se refere a alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º do Código do IRC (i.e., a Portaria n.º 467/2010, de 7 de julho).
A Portaria n.º 467/2010 define o custo de aquisição ou o valor de reavaliação das viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, em sede de IRC, para efeitos de definir os gastos fiscalmente aceites com as depreciações dessas viaturas em sede deste imposto (IRC). No que respeita às viaturas ligeiras de passageiros ou mistas movidas exclusivamente a energia elétrica que tenham sido adquiridas após 2015 (como é o caso do veículo ... em discussão nos autos), o limite adotado pelo legislador foi € 62.500 (sem IVA). Como tal, a alínea f) do n.º 1 do art.º 21 do Código do IVA, para a temática in casu, deve ler-se do seguinte modo: não se verifica a exclusão do direito à dedução quanto a despesas relativas à aquisição de viaturas ligeiras de passageiros elétricas, quando consideradas viaturas de turismo, cujo custo de aquisição não exceda € 62.500 (sem IVA).
Repare-se que o conceito de custo de aquisição, não obstante ser um conceito comummente usado noutros ramos da fiscalidade, em particular em sede de IRC, e da contabilidade, não pertence à terminologia do sistema do IVA, o qual adotou, ao invés, o conceito de valor tributável. O legislador da reforma da fiscalidade ambiental foi, portanto, infeliz ao adotar a expressão custo de aquisição nas alíneas f) e g) do n.º 2 do art.º 21 do Código do IVA quando poderia (deveria) ter usado a expressão base tributável. Cremos, no entanto, que o objetivo do legislador, no que respeita ao tema que aqui nos ocupa (direito à dedução de IVA incorrido na aquisição de viatura ligeira de passageiros elétrica), foi, precisamente, permitir o exercício desse direito em relação a viaturas de turismo cujo valor tributável não exceda o montante definido na Portaria n.º 467/2010.
Como tal, para análise da questão controversa importa, igualmente, atentar ao disposto no art.º 16 do Código do IVA, que regula o valor tributável nas operações internas e, em particular, ao seu n.º 1 (regra geral), que determina que “o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter [pelo fornecedor] do adquirente, do destinatário ou de um terceiro”.
In casu, é matéria de facto assente que a (mesma) viatura ligeira de passageiros elétrica, com a matrícula ... e chassi n.º ..., foi objeto de faturação pelo fornecedor da marca ... à Requerente (3 faturas) e à sua sócia (1 fatura), no espaço de três meses. Terá a Requerente razão em afirmar que apenas o custo diretamente por si desembolsado deve ser considerado para efeitos do limite adotado pela alínea f) do n.º 1 do art.º 21 do Código do IVA em sede de direito à dedução? Entendemos que não.
De facto, sem prejuízo do tipo de veículo automóvel em causa, e das suas funcionalidades disponíveis em sistema overtheair, as quais facilitam a aquisição de equipamentos adicionais sem necessidade de instalação física, não podemos ignorar que, por um lado, (i) a propriedade da referida viatura pertence (inteiramente) à Requerente e, por outro lado, (ii) os equipamentos e software adquiridos pela sua sócia fazem parte integrante da referida viatura (conforme realça a Requerida no RIT), não sendo amovíveis, e não tendo, sequer, qualquer utilidade fora da mesma.
Recorde-se, a este propósito, que o Comfort Package adquirido pela sócia da Requerente para a viatura ligeira de passageiros elétrica em apreço compreende as seguintes funcionalidades: (i) sistema de navegação, (ii) sensores de estacionamento com câmara traseira, (iii) espelhos retrovisores rebatíveis eletricamente e aviso de ângulo morto, (iv) rádio digital, (v) banco do condutor com memória, (vi) homelink com GPS e (vii) acréscimo de potência. Estamos, portanto, perante equipamentos e funcionalidades que apenas existem para melhorar a utilização e desempenho daquela viatura (conforme salientado no RIT), que não têm uma utilização independente desta e, como tal, também não têm qualquer valor económico se não forem usados enquanto parte integrante da viatura adquirida pela Requerente.
A isso acresce o facto de, tendo sido incorporados no equipamento base da viatura em apreço, aumentarem significativamente o valor económico desta (valor esse que se reflete exclusivamente na esfera da Requerente, e não na da sua sócia), porquanto permitem o uso de um conjunto variado de extras de valor considerável. Ou seja, os equipamentos e funcionalidades adquiridos pela sócia da Requerente têm um reflexo (positivo) no valor da viatura cuja propriedade pertence à Requerente, reflexos esses que também devem ser ponderados para efeitos contabilísticos, mormente ao abrigo do parágrafo 17 da NCRF 7.
De resto, em viaturas similares em que este tipo de funcionalidades não está acessível pela tecnologia overtheair, tais equipamentos são tipicamente encomendados ab initio na proposta de aquisição do veículo, a fim de serem devidamente incorporados no processo de fabrico (e são, consequentemente, incluídos no preço de aquisição da viatura). O facto de, no caso das viatura ..., o processo de aquisição destas funcionalidades ser distinto, não inviabiliza, no entender do Tribunal, que estas devam, no caso em apreço, ser incluídas para efeitos de determinação do valor a considerar quanto ao limite da alínea f) do n.º 2 do art.º 21 do Código do IVA.
De facto, resulta evidente que se pretendeu, ab initio, a incorporação destes extras na viatura em análise, o que desde logo se comprova pelo facto de tais funcionalidades terem sido adquiridas imediatamente após a aquisição da viatura propriamente dita. E, atendendo ao princípio da substância sobre a forma, não é o facto de o fornecedor C... ter, por conta da mesma viatura, emitido faturas a dois clientes distintos, que permite, por si só, in casu, concluir que as funcionalidades extra adquiridas pela sócia da Requerente não constituem, também, parte do preço da viatura (e, portanto, parte da sua base tributável).
Acresce que os equipamentos e funcionalidades adquiridos pela sócia da Requerente em 06.10.2017 não foram os únicos extras adquiridos para a viatura em causa. De facto, como resulta do supra exposto, em 30.11.2017 a própria Requerente foi novamente faturada pelo fornecedor C... pelos equipamentos ... e ..., os quais também consistem em funcionalidades e equipamentos adicionados à estrutura base da viatura, para melhoria da utilização desta.
Ora, estando em causa equipamentos extra da mesma viatura, não se compreende a razão de ser de alguns terem sido faturados à própria Requerente (por exemplo, o floor liner e interior set) e outros terem sido faturados à sua sócia (rádio digital, GPS, etc.). Nem foram apresentadas, pela Requerente, explicações para o facto de os equipamentos extradiretamente pagos pela Requerente terem sido adquiridos quase dois meses depois da aquisição dos (outros) extras pela sua sócia, numa altura em que, presumivelmente (seguindo a lógica da argumentação da Requerente), seria expectável que todas essas despesas adicionais fossem diretamente suportadas pela sócia, enquanto utilizadora do veículo.
A situação factual parece, portanto, traduzir uma decomposição artificial do preço da viatura para efeitos do seu enquadramento no limite legal da alínea f) do n.º 2 do art.º 21 do Código do IVA, o que não é aceitável (como, aliás, também é salientado pela Requerida na sua Resposta).
Como tal, conclui-se que todos os pagamentos efetuados pela Requerente e pela sua sócia, entre setembro e novembro de 2017, ao fornecedor C... por conta da aquisição da viatura em apreço nestes autos e respetivos equipamentos (correspondentes às quatro faturas acima identificadas) concorrem, conjuntamente, para o cálculo do valor da contraprestação obtida por esse fornecedor com a referida venda.
Ou seja, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 16 do CIVA, o valor da contraprestação obtida pelo fornecedor C... pela venda da viatura em discussão corresponde ao montante pago pelo adquirente (Requerente) acrescido do valor pago por um terceiro (sócia da Requerente), totalizando € 68.791,05 + IVA. E o facto de parte desse valor não ter sido efetivamente desembolsado pelo adquirente mas por um terceiro, nem devidamente registado na contabilidade do adquirente, não preclude a sua consideração como (parte da) contraprestação obtida pelo fornecedor C..., para efeitos do mencionado art.º 16.
Aqui chegados, importa igualmente clarificar que, ao contrário do afirmado pela Requerente (por exemplo, nos pontos 39 e 40 do pedido de pronúncia arbitral), não estamos perante uma interpretação da AT não conforme com a letra, ou o espírito, da lei (i.e., não se verifica qualquer violação do princípio da legalidade ou da proporcionalidade). É, aliás, manifesto, da redação adotada pelo legislador da reforma da fiscalidade ambiental, ter-se pretendido o incentivo de (apenas) determinados veículos automóveis, e (apenas) dentro de certos condicionalismos relativos ao valor destes. De resto, a própria Requerente acaba por reconhecer que foi o próprio legislador (e não a AT) que introduziu limites legais à dedução do IVA dos veículos elétricos – veja-se, a título de exemplo, o disposto no ponto 37 do pedido de pronúncia arbitral, onde se afirma que “com a chamada reforma da «Fiscalidade Verde», especialmente com o aditamento da alínea f) ao n.º 2 do artigo 21.º do CIVA e com a alteração da Portaria n.º 764/2010, de 7/07, o legislador pretendeu expressamente impulsionar a aquisição pelos contribuintes, a partir de 01/01/2015, de veículos elétricos cujo custo de aquisição não exceda determinado limite (62.500,00 €)”, de onde se depreende que apenas esses veículos estão incluídos na referida alínea f).
Face ao exposto, conclui-se o seguinte:
· A reforma da fiscalidade ambiental introduziu um limite quantitativo ao valor (aqui entendido como base tributável) das viaturas ligeiras de passageiros elétricas que sejam viaturas de turismo, acima do qual a dedução do IVA incorrido com a aquisição destas não se afigura possível (numa lógica de tudo ou nada);
· Para efeitos desse limite, deve ser considerado, in casu, tanto o valor tributável pago pela Requerente e a esta faturado pelo fornecedor – quer pelo equipamento base da viatura ... em causa, quer pelos extras posteriormente adquiridos – como o valor tributável pago pela sócia da Requerente ao fornecedor C..., e a esta faturado, pela aquisição de funcionalidades adicionais, integradas na viatura em causa, que a melhoram significativamente e aumentam o seu valor comercial.
2) Da conformidade da alínea f) do n.º 2 do art.º 21 do CIVA com a cláusula standstill
Entende, ainda, a Requerente que a existência de um limite legal na alínea f) do n.º 2 do art.º 21 do Código do IVA – que, como vimos, quando excedido, exclui por completo (e não proporcionalmente ao excedente, como sucede em termos de amortizações em sede de IRC[2]) o direito à dedução do IVA incorrido na aquisição de viaturas ligeiras de passageiros elétricas que sejam viaturas de turismo – viola o princípio da neutralidade do imposto, bem como o da igualdade.
Não obstante o direito à dedução ser um pilar essencial do sistema comum do IVA, e apenas poder ser limitado de forma restrita, a Diretiva IVA permite, na esteira do antigo art.º 17 n.º 6 da Sexta Diretiva, a manutenção nos ordenamentos jurídicos nacionais de exclusões ao direito à dedução de determinadas despesas, as quais, como vimos supra, no caso português constam do n.º 1 do art.º 21 do CIVA. É, portanto, à luz desta especial autorização do legislador comunitárioque as exclusões ao direito à dedução deste artigo devem ser analisadas.
Conforme referido supra, a alínea f) do n.º 2 do art.º 21 do CIVA foi introduzida pela Lei n.º 82-D/2014, de 31.12.2014, produzindo os seus efeitos apenas aos factos tributários, e períodos de tributação, posteriores a 01.01.2015. Nessa medida, seria legítimo questionar se tal norma, cuja vigência se iniciou apenas em 2015, ainda se deve considerar abrangida pela cláusula standstill, que tem por objetivo a manutenção das exclusões do direito à dedução previstas na legislação nacional à data da adoção, pela República Portuguesa, do sistema comum do IVA.
Ora, o TJUE já teve oportunidade de se pronunciar sobre o âmbito de aplicação das exclusões ao direito à dedução adotadas pelo legislador português no n.º 1 do art.º 21 do CIVA, tendo sempre concluído pela conformidade de tais exclusões com o sistema comum do IVA, ao abrigo da referida cláusula standstill. Veja-se, a título de exemplo, o processo C-837/19, que opôs a Super Bock Bebidas S.A. à AT[3] e no âmbito do qual o TJUE concluiu que as exclusões do n.º 1 do art.º 21 do CIVA se aplicavam mesmo em relação a despesas comprovadamente efetuadas para a aquisição de bens e de serviços utilizados em operações tributadas, em clara contradição com a regra geral da dedução do imposto.
E, no que à discussão in casu respeita, importa, em especial, atender às conclusões do TJUE no supra referido processo C-630/19, que opôs a Page International Lda. à AT, a propósito da alteração legislativa promovida pela Lei n.º 57/2005, de 13.12.2005, à alínea d) do n.º 2 do art.º 21 do CIVA, que reduziu para 50% a exclusão do direito à dedução das despesas aí mencionadas, conclusões essas que aqui se resumem:
· À data da adesão da República Portuguesa à União Europeia, o (n.º 1 do) art.º 21 do CIVA excluía (integralmente) do direito à respetiva dedução o imposto pago a montante que incidia sobre as despesas respeitantes a alojamento, alimentação e bebidas, bem como as despesas com transportes e viagens de negócios do sujeito passivo e do seu pessoal, incluindo portagens;
· Essa exclusão à dedução do IVA encontrava-se legitimada ao abrigo da cláusula standstill;
· Na sequência de uma alteração legislativa ao art.º 21 do CIVA, em 2005, o direito à dedução para tais despesas foi admitido, sob certas condições, até ao limite de 50% - como tal, despesas que estavam totalmente excluídas do direito à dedução passaram a conferir, sob certas condições, um direito à dedução parcial do IVA;
· Essa alteração, que reduziu o âmbito das despesas excluídas ao direito à dedução de imposto, está (também ela) abrangida pela cláusula standstill do 2º parágrafo do art.º 176 da Diretiva IVA;
· A redução (ainda que parcial) da exclusão do direito à dedução do IVA aproxima-se do objetivo da Diretiva e, como tal, não obstante estar em causa uma alteração legislativa promovida após a adesão do Estado-Membro à União, encontra-se (ainda) coberta (e legitimada) pela cláusula standstill.
Em suma, resulta da interpretação (bastante abrangente) que o TJUE faz do âmbito de aplicação das exclusões e restrições abrangidas pela cláusula standstill que aos Estados-Membros é concedida flexibilidade na reconsideração das normas de exclusão admitidas ao abrigo desta cláusula, sempre que o objetivo do legislador nacional seja alargar o âmbito da dedução de imposto e, como tal, aproximar-se do objetivo da Diretiva.
E certo é que a opção adotada pelo legislador da reforma da fiscalidade ambiental, de incentivar determinados comportamentos ao nível do parque automóvel, através da reversão de um quadro de exclusão total do direito à dedução do IVA da aquisição de veículos elétricos, permitindo, a partir de 2015, sob certos condicionalismos, uma dedução total desse imposto, se enquadra na (melhor) prossecução do objetivo do sistema comum do IVA.
A isso acresce o facto de, analisada a jurisprudência do TJUE sobre a cláusula standstill, se dever, à partida, concluir que a circunstância de a alteração legislativa promovida em 2015 não se estender a todos os veículos mas, apenas, àqueles que cumprem determinados condicionalismos (relacionados com a sua natureza e o seu valor), não se traduz numa violação da Diretiva IVA nem dos princípios fundamentais do sistema comum, incluindo o princípio da neutralidade do imposto e o princípio da igualdade, resultando, outrossim, de uma opção legislativa à disposição dos Estados-Membros na conformação do alargamento do direito à dedução.
E, como tal, deve entender-se que a manutenção da exclusão (total) do direito à dedução de IVA suportado na aquisição de viaturas ligeiras de passageiros ou mistas elétricas, quando consideradas viaturas de turismo, cujo custo de aquisição (base tributável) exceda € 62.500, encontra (ainda) justificação na cláusula standstill do 2º parágrafo do art.º 176 da Diretiva IVA, estando, porém, vedado ao legislador nacional, de acordo com a jurisprudência do TJUE, o alargamento dessa exclusão.
Conclusão
Face ao exposto, improcede a pretensão da Requerente, quer quanto às liquidações de IVA, quer quanto às liquidações de juros compensatórios – que se integram na própria dívida do imposto e têm como pressuposto as respetivas liquidações de IVA – ficando, assim, prejudicada a apreciação dos pedidos consequentes de reembolso de quantias pagas e de juros indemnizatórios.
VI. DECISÃO
Nestes termos, este Tribunal Arbitral decide:
· Julgar integralmente improcedente o pedido arbitral, mantendo-se as liquidações de IVA e de juros compensatórios controvertidas, no montante total de € 16.097,89;
· Absolver a Requerida do pedido;
· Condenar a Requerente nas custas do processo, no montante abaixo fixado.
VII. VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto no art.º 97-A, n.º 1, do CPPT e art.º 3, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 16.097,89.
VIII. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.224,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 13 de julho de 2022.
(Raquel Montes Fernandes)
[1] Acórdão ECLI:EU:C:2020:111.
[2] Não parece relevante a este Tribunal, no que ao IVA concerne, o facto de as normas fiscais em sede de IRC permitirem desconsiderar apenas o excedente do limite legal, ao invés da opção tudo ou nada adotada para efeitos da dedução do IVA, na medida em que ambos os impostos seguem lógicas, e enquadramentos, diferentes.
[3] Acórdão ECLI:EU:C:2020:721.