Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 727/2021-T
Data da decisão: 2022-07-14  Selo  
Valor do pedido: € 52.434,48
Tema: Imposto do Selo. Procedimento de revisão oficiosa. Presunção de indeferimento tácito. Acto expresso posterior. Falta de objecto do processo.
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SUMÁRIO:

 

I. Apresentado pedido de constituição do tribunal arbitral, com fundamento em indeferimento tácito do procedimento de revisão oficiosa, e sendo proferida posteriormente decisão final expressa de indeferimento no referido procedimento, é este acto expresso que passa a vigorar na ordem jurídica como definidor da situação concreta do particular, dado que a prolação de acto expresso de indeferimento implica a revogação do ficcionado indeferimento tácito.

 

II. Nesta circunstância, a possibilidade de continuação do processo arbitral instaurado com fundamento na presunção de indeferimento tácito, depende da utilização, pela Requerente, da possibilidade de modificação do objecto do processo, prevista no artigo 64.º, n.º 3, do CPTA.

 

III. Não tendo a Requerente requerido a ampliação ou a substituição do objecto do processo nos termos daquela norma, verifica-se impossibilidade da lide arbitral, por perda do respectivo objecto, não sendo possível conhecer do pedido de pronúncia arbitral, o que determina a absolvição da instância da Requerida.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Martins Alfaro, árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD para formar este Tribunal Arbitral, profere a seguinte Decisão Arbitral:

 

 

A - RELATÓRIO

 

A.1 - Requerente da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT)

A..., S.A., com o número de identificação fiscal ..., e sede social na ..., ..., ...‐... Porto Salvo, na qualidade de sociedade gestora e em representação da B...,, S.A., com o número de identificação fiscal ... .

 

A.2 - Requerida:

Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

A.3 - Objecto do pedido de pronúncia arbitral

O indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa formulado em 6 de Julho de 2021 e a apreciação da legalidade dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo submetidos e liquidados nos termos previstos pela Portaria n.º 523/2003, de 4 de Julho, referentes aos anos de 2018 e 2019, no montante global de € 52.434,48.

 

A.4 - Pedido:

Ser declarada ilegal a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa em crise e, consequentemente, serem parcialmente anulados os actos tributários que constituem o seu objecto, relativos às liquidações de Imposto do Selo, objecto do pedido de pronúncia arbitral, por erro nos pressupostos de facto e de direito; ser a AT condenada a reembolsar a Requerente do valor do imposto pago em excesso, no montante global de € 52.434,48, relativamente às liquidações impugnadas e, bem assim, condenada ao pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, até ao reembolso integral do montante referido.

 

A.5 - Fundamentação do pedido de pronúncia arbitral:

 

A Requerente configura um Organismo de Investimento Colectivo sob forma societária e com capital fixo, assumindo a forma de uma sociedade de investimento imobiliário de capital fixo, por subscrição particular, exclusivamente dirigido a investidores profissionais, heterogerido e de duração indeterminada tal como consta do Regulamento de Gestão datado de 3 de Março de 2021.

 

Na prossecução dos seus objectivos e no âmbito da actividade que desenvolve, a Requerente tem vindo a recorrer a financiamento junto de um banco, enquanto banco depositário, em especial para a concessão de crédito efectuada ao OIC atribuído por este mesmo banco, sobre o qual são cobrados os respectivos juros, conforme contrato de financiamento.

 

Neste contexto, a instituição de crédito mutuante - na qualidade de sujeito passivo do imposto - liquidou e entregou o Imposto do Selo, ao abrigo da Verba 17 da Tabela Geral do Imposto do Selo, tendo o Imposto do Selo, referente às operações acima referidas, sido objecto de liquidação por parte da entidade bancária, através das correspondentes declarações de pagamentos e repercutido na esfera da Requerente, enquanto utilizadora do crédito em causa, a qual suportou integralmente este imposto.

 

As operações de financiamento subjacentes aos actos tributários impugnados beneficiam da norma de isenção consagrada na alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, uma vez que a Requerente é um organismo de investimento colectivo caracterizável como uma “instituição financeira” nos termos da legislação comunitária.

 

Em consequência, os actos de liquidação de Imposto do Selo impugnados são ilegais e, como tal, devem ser parcialmente anulados, sendo integralmente ressarcido à Sociedade o valor total do imposto suportado no âmbito dos mesmos.

 

A.6 - Resposta da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira:

 

Por excepção:

 

A Requerida excepcionou com a incompetência material do tribunal arbitral, uma vez que tendo a revisão oficiosa, apresentada anteriormente ao pedido de constituição do Tribunal Arbitral, sido declarada parcialmente intempestiva pela AT, do acto cabia acção administrativa e não impugnação judicial, porquanto, tratando-se de um acto de “autoliquidação”, a admissibilidade do pedido de revisão oficiosa implicaria precedentemente reclamação graciosa prévia obrigatória, nos termos do artigo 131.º do CPPT, no prazo de dois anos, prazo esse que, no que se refere aos períodos de Dezembro de 2018 a Junho de 2019, já havia precludido, tendo-se, em consequência, consolidado no ordenamento jurídico tributário aquelas liquidações. 

 

A Requerida excepcionou ainda com a falta de objecto do presente pedido de constituição do Tribunal Arbitral, uma vez que foi dado, antes da constituição do tribunal arbitral e em sede de procedimento de revisão oficiosa, provimento parcial à pretensão da Requerente no tocante ao mérito da questão passível de apresentação em sede de pedido de revisão oficiosa, por tempestividade, concluindo que inexiste qualquer objecto na presente acção a ser apreciado.

 

Por impugnação:

 

A Requerida não apresentou nenhuma defesa por impugnação.

 

 

 

Valor do processo:

 

A Requerida colocou ainda em crise o valor do processo, indicado pela Requerente, defendendo que o valor económico do pedido deverá ser reduzido em virtude do deferimento parcial expresso da pretensão da Requerente em sede de procedimento de revisão oficiosa.

 

Concluiu no sentido da absolvição da instância, da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

No exercício do contraditório e notificada para o efeito, a Requerente veio rechaçar as excepções invocadas pela Requerida, reiterando a procedência do pedido arbitral.

 

A.7 - Instrução:

 

Foram invocadas, pela Requerida, as excepções atrás indicadas.

 

Não foram arguidas nulidades.

 

Por despacho de 10-03-2022, foram as partes notificadas, na mesma data, que «tendo sido dada oportunidade à Requerente para se pronunciar sobre a matéria de excepção, o Tribunal entende ser de dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAMT, bem como tem por desnecessária a produção de alegações finais. Notifique as partes para se pronunciarem. Nada sendo dito em prazo, considerar-se-á que aceitam o entendimento deste Tribunal».

 

Apenas a Requerente se pronunciou, vindo aos autos comunicar que «na sequência do despacho arbitral proferido hoje no âmbito do processo supra identificado, informamos que nada temos a opor relativamente à dispensa da realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como da produção de alegações finais».

 

 

B - SANEAMENTO:

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 18-01-2022.

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

 

B.1 - Excepção - incompetência material do Tribunal Arbitral:

 

Como anteriormente referido, na sua Resposta, a Requerida excepcionou a competência do Tribunal Arbitral, em razão da matéria, excepção essa que será conhecida imediatamente e com precedência sobre o conhecimento das restantes excepções, bem como do mérito do pedido, se a este vier a haver lugar.

 

A Requerida excepcionou com a incompetência material do tribunal arbitral, uma vez que, tendo a revisão oficiosa apresentada anteriormente ao pedido de constituição do Tribunal Arbitral, sido declarada parcialmente intempestiva pela AT, do acto cabia acção administrativa e não acção arbitral.

 

Para efeitos da apreciação desta excepção, o Tribunal dá como provados os seguintes factos:

 

Em 06-07-2021, a Requerente solicitou aos serviços da Requerida a instauração de procedimento de revisão oficiosa dos actos tributários aqui colocados em crise e o consequente reembolso do Imposto do Selo liquidado pela entidade mutuante e integralmente suportado pela Requerente - facto admitido por ambas as partes.

 

Nos termos do respectivo requerimento, constituiu objecto do referido procedimento a apreciação da legalidade dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo submetidos e liquidados nos termos previstos pela Portaria n.º 523/2003, de 4 de Julho, referentes aos anos de 2018 e 2019, no montante global de € 52.434,48 - requerimento inicial do procedimento de revisão oficiosa.

 

Em 09-11-2021, a Requerente apresentou o presente pedido de constituição do tribunal, com fundamento em indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa - facto admitido por ambas as partes.

 

Em 18-11-2021, a Requerida proferiu decisão final expressa no procedimento de revisão oficiosa, de decisão de deferimento parcial e indeferimento parcial - processo administrativo.

 

Aquela decisão final foi notificada à aqui Requerente, através da Via CTT, com data de disponibilização de 18-11-2021, considerando-se perfeita em 03-12-2021 - processo administrativo.

 

De entre os factos relevantes para a decisão sobre a excepção, incluindo aqueles que constam do processo administrativo, nenhum ficou por provar.

Dos factos que vêm de enunciar-se como provados, verifica-se que, à data da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral - 09-11-2021 - o procedimento de revisão oficiosa encontrava-se ainda pendente, sendo certo que, considerando a data a respectiva instauração -  06-07-2021 -, haviam já decorrido quatro meses sem que a Autoridade Tributária e Aduaneira se pronunciasse.

 

Em consequência, à data da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral - 09-11-2021 - formara-se presunção de indeferimento tácito do procedimento de revisão oficiosa - artigo 57.º, n.º 1, da LGT.

 

Em nada importando, para a produção deste efeito jurídico, que a Autoridade Tributária e Aduaneira estivesse “em vias” de decidir.

 

Aliás, diga-se que a aqui Requerida apenas se considera notificada da decisão final do procedimento de revisão oficiosa em 03-12-2021, isto é, 24 dias após a data em que foi apresentado o pedido de constituição deste tribunal arbitral.

 

Sendo certo que «o procedimento extingue-se pela tomada da decisão final […]»,[1] é inquestionável que, à data da apresentação do pedido de constituição deste tribunal arbitral, o referido procedimento ainda não se extinguira pela tomada da decisão final.

 

Acresce que, embora na sua resposta, a Requerida tenha conferido particular relevância ao facto de o pedido de constituição do tribunal arbitral ter sido apresentado em pleno decurso do direito de audição prévia do procedimento de revisão oficiosa, daí não retirou nenhuma consequência jurídica, exceptuada a vaga alegação de que a Requerente «[simulou] uma falsa presunção de indeferimento»

 

Ora, não só não se entende o alcance da figura da simulação no presente caso, como o certo é que, à data do pedido de constituição do tribunal arbitral, havia já decorrido o prazo que permitiu a ficção legal da formação de acto de indeferimento tácito e criou, na esfera jurídica da aqui Requerente, o direito a requerer, entre outros, a constituição do tribunal arbitral.

 

Concluindo, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado após a formação da presunção de indeferimento tácito no procedimento de revisão oficiosa e antes da extinção do referido procedimento.

 

Diga-se, por abundância, que é unânime a jurisprudência dos Tribunais Centrais Administrativos sobre a competência dos tribunais arbitrais para a apreciação da legalidade de actos de autoliquidação na sequência da apresentação de pedidos de revisão oficiosa.

 

E o objecto do procedimento de revisão foi a apreciação da legalidade dos actos tributários de liquidação de Imposto do Selo submetidos e liquidados nos termos previstos pela Portaria n.º 523/2003, de 4 de Julho, referentes aos anos de 2018 e 2019, no montante global de € 52.434,48, pelo que este Tribunal é materialmente competente para o litígio, atenta a conformação do objecto do processo e face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAMT.

 

 

B.2 - Tempestividade do pedido de constituição do Tribunal Arbitral:

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT. 

 

 

 

 

B.3 -Excepção - perda de objecto do processo:

 

Em 14-06-2022 - e para os efeitos do que resulta dos artigos 3.º, n.º 3, do CPC, bem como 16.º, alínea a) e 18.º, n.º 1, alínea b), ambos do RJAMT -, foi proferido despacho interlocutório, no sentido de que «havendo a possibilidade de o tribunal, após considerar-se materialmente competente para o presente litígio, suscitar oficiosamente excepção dilatória, consistente na perda de objecto do processo, com a consequente inutilidade da lide arbitral, nos termos das considerações que a seguir se referem, notifique-se as partes, em cumprimento do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do CPC, para se pronunciarem, querendo, quanto a essa possibilidade, no prazo de dez dias», despacho esse que foi devidamente notificado a ambas as partes.

 

Em 28-06-2022, a Requerente veio pronunciar-se atempadamente sobre o despacho anteriormente referido, no sentido de não dever proceder a excepção, alinhando a seguinte argumentação:

 

Para além de ser pacífico o entendimento de que um acto de indeferimento expresso de um pedido de revisão oficiosa (que se tenha pronunciado sobre a legalidade do tributo que o consubstancia) é um acto passível de apreciação pelo Tribunal Arbitral, foi também já colocada (e reiteradamente esclarecida, em sentido afirmativo) a questão de saber em que medida o indeferimento tácito daquele pedido pode também ser apreciado no âmbito de um processo arbitral.

 

Resulta inequívoco que a apreciação do indeferimento tácito se encontra compreendida no âmbito da competência do Tribunal Arbitral, sendo este Tribunal concretamente competente para conhecer do pedido de declaração de ilegalidade do indeferimento tácito sub judice e, bem assim, dos actos tributários de Imposto do Selo subjacentes aos mesmos.

 

Resulta inequívoco da jurisprudência acima exposta que a impugnação judicial é o meio processual adequado para reagir contenciosamente contra o acto silente da AT, nas situações em que esta não tenha decidido, dentro do prazo que dispunha para o efeito, quanto ao pedido de revisão oficiosa formulado por um contribuinte, e que, nos termos do n.º 5 do artigo 57.º da LGT, fez presumir o indeferimento (tácito) desse mesmo pedido.

 

O indeferimento tácito configura uma garantia procedimental do contribuinte, permitindo‐lhe o acesso à via judicial (ou arbitral). É certo que a Autoridade Tributária e Aduaneira pode, mesmo após o decurso do prazo de que dispõe para o fazer, decidir expressamente sobre determinada pretensão do contribuinte. No entanto, se tal decisão expressa vier a ser tomada na pendência de uma acção impulsionada pelo contribuinte (como foi o que aconteceu no caso concreto aqui sob escrutínio), não lhe pode ser vedado o acesso à tutela jurisdicional efectiva.

 

A admitir‐se que, com a pronúncia expressa da Requerida no âmbito do procedimento

administrativo, o acto de indeferimento tácito perderia a sua eficácia no processo arbitral, estar-se‐ia a colocar em causa o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

 

O Despacho Arbitral, proferido largos meses após o pedido de constituição de tribunal arbitral ter dado entrada no CAAD, não deixou de surpreender a ora Requerente.

 

É que, a concluir‐se pela inutilidade superveniente da lide (o que não se concede), fica a Requerente desprovida de quaisquer meios para fazer a valer a sua pretensão, já que o prazo de que dispunha para contestar (via impugnação judicial ou arbitral) o indeferimento expresso já se exauriu.

 

Perante uma situação como a que aqui se escrutina, não parece razoável admitir que um acto de indeferimento tácito deixe de existir na ordem jurídica quando, na pendência de uma acção que tem na base esse indeferimento tácito (acção arbitral, in casu), surja um acto de indeferimento expresso e o Tribunal, tomando disso conhecimento, nada tenha feito no sentido de suprir a (alegada) excepção que ora, a título final, vem invocar.

 

Deste modo, dúvidas não restam quanto a não poder prosseguir a argumentação aduzida pelo Tribunal no Despacho Arbitral sob pena de violação grosseira do princípio (de matriz constitucional) da tutela jurisdicional efectiva.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Tal como o Tribunal fez constar, em despacho arbitral de 14-06-2022, devidamente notificado às partes, suscita-se nos presentes autos uma questão prévia, a qual, a proceder, constituirá excepção dilatória que obstará a que se conheça de mérito, pelo que haverá, antes de mais, que apreciar tal questão.

 

A questão prévia a decidir é a seguinte: Com a prolação de acto expresso de indeferimento, no procedimento de revisão oficiosa, validamente notificado à aqui Requerente e na ausência de pedido de substituição/ampliação do objecto do processo, deve considerar-se que o processo perdeu o objecto e que, em consequência, ocorre inutilidade da lide?

Vejamos:

 

 

C - MATÉRIA DE FACTO: 

 

C.1 - Factos provados, no que interessa à apreciação da questão prévia:

 

Os factos relevantes para a apreciação da questão prévia que ora se aprecia e que são tidos como assentes são os seguintes:

 

a) Em 06-07-2021, a Requerente solicitou aos serviços da Requerida a instauração de procedimento de revisão dos actos tributários aqui em crise e o consequente reembolso do Imposto do Selo liquidado pela entidade mutuante e integralmente suportado pela Requerente. 

 

b) Em 09-11-2021, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral, com fundamento em indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa. 

 

c) Em 18-11-2021, a Requerida proferiu decisão final expressa no procedimento de revisão oficiosa, de decisão de deferimento parcial e indeferimento parcial. 

 

d) Aquela decisão final expressa foi notificada à aqui Requerente, através da Via CTT, com data de disponibilização de 18-11-2021, considerando-se a notificação perfeita em 03-12-2021 - artigo 39.º, n.º 10, do CPPT. 

 

e) Por despacho de 10-03-2022, foram as partes notificadas, na mesma data, que «tendo sido dada oportunidade à Requerente para se pronunciar sobre a matéria de excepção, o Tribunal entende ser de dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAMT, bem como tem por desnecessária a produção de alegações finais. Notifique as partes para se pronunciarem. Nada sendo dito em prazo, considerar-se-á que aceitam o entendimento deste Tribunal», tendo a Requerente vindo aos autos comunicar que «na sequência do despacho arbitral proferido hoje no âmbito do processo supra identificado, informamos que nada temos a opor relativamente à dispensa da realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como da produção de alegações finais».

 

 

C.2 - Factos não provados, no que interessa à apreciação da questão prévia:

 

Não há factos relevantes para a decisão da excepção que não se tenham provado.

 

 

C.3 - Base probatória:

 

Os factos foram fixados com base nos documentos juntos pela Requerente e no teor do Processo Administrativo junto pela Requerida, não impugnados.

 

 

D - APRECIAÇÃO DA QUESTÃO PRÉVIA DA PERDA DE OBJECTO DO PROCESSO:

 

O artigo 124.º, do CPPT, não faz alusão às questões processuais, diversamente do que sucede no CPC, no artigo 608.º, n.º 1, o qual estabelece um critério de precedência lógica, que impõe ao tribunal a apreciação prioritária das questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.

 

Nos termos do artigo 608, n.º 1, do CPC, «sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica».

 

Considera-se aplicável ao processo arbitral o estabelecido no artigo 608, n.º 1, do CPC, ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT.

 

E o artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do RJAMT, refere-se expressamente às «excepções que seja necessário apreciar e decidir antes de conhecer do pedido», pelo que irá apreciar-se e decidir-se quanto a esta questão.

Assim:

 

Após a formação de presunção de indeferimento tácito do procedimento de revisão, ocorrido em 08-11-2021 (o dia 06-11-2021 recaiu num dia sábado), foi proferida decisão final expressa de indeferimento parcial no referido procedimento, validamente notificada à Requerente.

 

Nesta situação, como reiteradamente vem entendendo o STA, a partir do momento em que o acto expresso de indeferimento é notificado ao destinatário, é este acto expresso que passa a vigorar na ordem jurídica como definidor da situação concreta do particular. 

 

Assim - e dado que a prolação de acto expresso de indeferimento implica a revogação do ficcionado indeferimento tácito, sendo a posição assumida naquele acto expresso que fica a prevalecer na ordem jurídica -, a possibilidade de continuação do processo instaurado com fundamento na presunção de indeferimento tácito, depende da utilização da possibilidade de modificação do objecto do processo, prevista no artigo 64.º, n.º 3, do CPTA, aplicável «a todos os casos em que o acto impugnado seja, total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro com os mesmos efeitos».

 

Ora, apesar de validamente notificada da prolação do acto expresso, a Requerente não requereu a ampliação ou a substituição do objecto do pedido arbitral, pelo que, não subsistindo já na ordem jurídica o indeferimento tácito impugnado - o qual permanece como o objecto do presente processo arbitral -, há que concluir pela impossibilidade da lide, o que justifica a extinção da instância, de harmonia com o preceituado na alínea e) do artigo 277.º do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT, com a consequente absolvição da Autoridade Tributária e Aduaneira da instância - artigo 278.º, n.º 1, alínea e), do CPC. 

 

Nos termos que atrás se deixam escritos, o Tribunal irá julgar verificada a impossibilidade da lide, por perda do respectivo objecto e, em consequência, não conhecer do pedido de pronúncia arbitral e absolver a Requerida da instância.

 

Com efeito, «a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar   além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio».[2]

            

Neste âmbito, entende o Tribunal, com o devido respeito, que os argumentos trazidos pela Requerente aos autos, em sede de contraditório, não são susceptíveis de alterar o sentido da decisão que irá ser tomada a final.

 

Com efeito, o Tribunal considera-se competente para apreciar da legalidade dos actos tributários aqui em causa, no seguimento da formação de presunção de indeferimento tácito no procedimento de revisão oficiosa.

 

E considera-se igualmente competente para apreciar da legalidade dos actos tributários aqui em causa, no seguimento do indeferimento expresso no procedimento de revisão oficiosa.

 

Porém, diversamente do que parece resultar da argumentação da Requerente, a questão em discussão não se refere à competência do Tribunal Arbitral para o conhecimento da legalidade dos actos tributários aqui em causa, mas sim à perda de objecto do processo, uma vez que este consistiu no indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e veio a desaparecer mais tarde, em resultado da prática de um acto expresso de indeferimento, sem que a Requerente viesse aos autos lançar mão da utilização da possibilidade de modificação do objecto do processo, prevista no artigo 64.º, n.º 3, do CPTA.

 

Também - salvo o devido respeito - não assiste razão à Requerente quando defende que «admitir‐se que, com a pronúncia expressa da Requerida no âmbito do procedimento administrativo, o acto de indeferimento tácito perderia a sua eficácia no processo arbitral, estar-se‐ia a colocar em causa o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa».

 

Com efeito, não se vislumbra como o não-exercício, pela própria Requerente, da possibilidade de modificação do objecto do processo, prevista no artigo 64.º, n.º 3, do CPTA, poderá ser susceptível de contender com o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, que é garantida pela própria norma referida.

 

De resto, sendo a invocada inconstitucionalidade necessariamente normativa, ela terá (teria) que ser referida a uma ou várias normas que, sendo aplicadas, violariam, no caso, o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva,

 

Sendo certo que a Requerente não enunciou uma única norma que, a aplicar-se no caso concreto, fosse susceptível de violar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva.

 

Na verdade, o que está aqui colocado em causa pela Requerente é tão-somente o não-exercício do ónus, por esta, da possibilidade de modificação do objecto do processo, prevista no artigo 64.º, n.º 3, do CPTA.

 

Colocada perante a notificação da emissão de acto expresso por parte dos serviços da Requerida, a Requerente poderia ter requerido a modificação do objecto do processo, prevista no artigo 64.º, n.º 3, do CPTA ou ter reagido a tal acto expresso por via impugnatória autónoma.[3]

 

Não obstante, não fez nem uma nem outra coisa, sendo certo que o poderia ter feito atempadamente.

 

Sendo de declarar extinta a instância, fica prejudicado - artigo 608.º, n.º 2, do CPC -, o conhecimento das restantes questões suscitadas no processo.

 

 

E - DECISÃO:

 

De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral declara extinta a instância arbitral, por impossibilidade da lide, por perda do objecto, nos termos do disposto no artigo 277.°, alínea e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.°, n.° 1, alínea e), do RJAMT, com a consequente absolvição da Autoridade Tributária e Aduaneira, da instância - artigo 278.º, n.º 1, alínea e), do CPC.

 

 

F - VALOR DA CAUSA:

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 52.434,48.

 

O valor da causa indicado pela Requerente foi impugnado pela Requerida, entendendo esta que o referido valor deve ser reduzido para € 51.091,96, em resultado da decisão expressa de anulação, em sede de procedimento de revisão oficiosa, do valor de € 1.342,52.

 

Contudo, não assiste razão à Requerida, uma vez que o objecto do processo, tal como configurado pela Requerente, se referiu ao valor em causa no procedimento de revisão oficiosa, com a verificação da presunção de indeferimento tácito.

 

Apenas com a substituição do objecto do processo, agora extirpado dos actos tributários já anulados pelos serviços da Requerida, poderia o valor do processo ver reflectido o conteúdo do acto expresso de deferimento parcial, praticado em sede do procedimento administrativo de revisão.


Nestes termos, não considera o Tribunal existir  fundamento para alterar o valor indicado pela Requerente, pelo que se fixa à presente causa o valor de € 52.434,48.

 

 

G - CUSTAS:

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00 , indo a Requerente, que foi vencida, condenada nas custas do processo.

 

Notifique.

 

Lisboa, 14 de Julho de 2022.

 

O Árbitro,

 

 

 

 

 

Assinado digitalmente

(Martins Alfaro)

 



[1] Artigo 93.º, do CPA.

[2] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, RUI PINTO e JOÃO REDINHA, Código de Processo Civil Anotado,
Volume 1.°, 2.a edição, Coimbra Editora - Coimbra, 2008, pág. 555.

[3] Desde modo se revelando não uma, mas duas vias concretizadoras do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva.