Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 620/2021-T
Data da decisão: 2022-07-14  IRC  
Valor do pedido: € 28.429,63
Tema: IRC - Retenção na fonte de dividendos distribuídos a OICs não residentes em Portugal.
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Sumário:

 

O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

 

1.    Em 27 de setembro de 2019, A..., NIPC..., com sede em ..., Alemanha, representada pela sociedade gestora de fundos de investimento, a B... GmbH, com sede na Alemanha, doravante designado por “Requerente”, solicitou a constituição de tribunal arbitral e procedeu a um pedido de pronúncia arbitral, nos termos das alíneas a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), com vista à declaração de ilegalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos ao ano de 2019, no montante de € 28.429,63 (vinte e oito mil, quatrocentos e vinte e nove euros e sessenta e três cêntimos), e consequentemente, a anulação das liquidações impugnadas e o pagamento de juros indemnizatórios.

2.    O Requerente é representado, no âmbito dos presentes autos, pelas suas mandatárias, Drª. C... e Dr.ª D..., e a Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT) é representada pelos juristas, Dr. E... e Dr. F... .

3.   Verificada a regularidade formal do pedido, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, como árbitro, a Dr.ª Teresa Alves de Sousa.

4.   A Árbitra aceitou a designação efetuada, tendo o Tribunal Arbitral sido constituído no dia 7 de dezembro de 2021, na sede do CAAD, sita na Avenida Duque de Loulé, n.º 72-A, em Lisboa, conforme comunicação da constituição do tribunal arbitral que se encontra junta aos presentes autos.

5.   No dia 25 de janeiro de 2022, depois de notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua Resposta e juntou o processo administrativo.

6.   Por despacho do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, de 4 de fevereiro de 2022, foi a Dr.ª Teresa Sousa Alves, Árbitro nomeada, substituída pelo signatário, que aceitou, em devido tempo, a sua nomeação, ao que as partes não se opuseram. 

7.   Não existindo necessidade de produção de prova adicional, para além daquela que documentalmente já se encontra incorporada nos autos, não se vislumbrando necessidade de as partes corrigirem as respetivas peças processuais, reunindo o processo todos os elementos necessários à prolação da decisão, por razões de economia e celeridade processual, da proibição da prática de atos inúteis, ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal na condução do processo, da simplificação e informalidade processuais, no dia 31 de maio de 2022, por despacho, entendeu o Tribunal dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação das alegações escritas. 

8.   Nesse referido despacho, determinou, ainda, o Tribunal proferir a decisão até ao termo do prazo fixado no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.

9.   No dia 6 de junho de 2022, o Tribunal, por despacho, prorrogou o prazo da arbitragem pelo período de 2 meses, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT.

 

 

 

II. O Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, da seguinte forma:

 

O Requerente sustenta o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos ao ano de 2019, no montante de € 28.429,67 (vinte e oito mil, quatrocentos e vinte e nove euros e sessenta e sete cêntimos), e consequentemente, a anulação das liquidações impugnadas, em vício de violação do direito comunitário e do direito constitucional.

 

Com efeito, segundo o Requerente, no caso em concreto, é patente a manifesta violação do  princípio da não discriminação em razão da residência e da nacionalidade quanto à liberdade de circulação de capitais, prevista no artigo 63.º do TFUE e no artigo 1.º da Diretiva 88/361/CEE, de 24 de junho de 1988, «no que diz respeito ao regime interno de tributação dos dividendos, sempre que os mesmos são pagos por uma entidade residente a um sujeito passivo também ele residente em Portugal, tais rendimentos estão sujeitos a retenção na fonte por conta do imposto devido a final a uma taxa de 25% (ver artigos 94.º, n.º 1 alínea c), 94.º, n.º 3 alínea b) e 94.º, n.º 4 do CIRC). Contudo, nos casos de OIC constituídos de acordo com a legislação nacional, os mesmos estavam, à data dos factos, isentos de IRC sobre dividendos obtidos, nos termos do artigo 22.º do EBF (…)» tratamento este diferente do que é dado aos OIC residentes noutro Estado Membro da União Europeia, como é o seu caso, tributando os rendimentos em causa, ao arrepio dos princípios comunitários.

 

Mais refere o Requerente que «(…) a distribuição de dividendos entre Estados Membros da EU não pode estar sujeita a quaisquer restrições, uma vez que o Direito da União Europeia estabelece um quadro legal destinado a eliminar quaisquer discriminações na circulação de capitais, nomeadamente em investimentos transfronteiriços (diretos ou indiretos), bem como eliminar quaisquer restrições que possam afetar a livre circulação de capitais.»

 

Sustenta, ainda, o Requerente que «o preceito do EBF em análise no presente articulado (artigo 22.º do EBF) viola também, a CRP, em concreto, o artigo 8.º da CRP, o qual estabelece o princípio do primado do Direito Comunitário face ao direito interno.» o que se traduz na «(…) manifesta desconformidade com o princípio do primado do Direito Comunitário, o que se materializa numa violação do nosso texto constitucional.»

 

 

III. Na sua Resposta a Requerida, invocou, em síntese, o seguinte:

 

 

Inicia a Requerida a sua Resposta, defendendo, desde logo, que «[f]ace à questão apresentada pelo Requerente importa esclarecer se a administração tributária pode deixar de cumprir as leis por motivo da sua desconformidade com o Direito da União Europeia. Ora, a administração tributária não pode deixar de aplicar as normas legais que imediatamente a subordinam e vinculam, porquanto está a mesma adstrita ao princípio da legalidade positivada. Como qualquer órgão da Administração Pública, encontra-se estritamente vinculada ao cumprimento da lei, de acordo com o artigo 266.º n.º 2 da Constituição [concretizado no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aplicável subsidiariamente às relações jurídico-tributárias, ex vi do artigo 2.º alínea c) da LGT].  

A administração tributária tem que aplicar o disposto nos códigos fiscais que se encontram em vigor e as disposições deles constantes que regulam determinada relação jurídico-tributária, de acordo com o artigo 2.º alínea b) da LGT, in casu, as normas constantes do Código do IRC e do EBF acima citadas. »

 

Mais referindo, a Requerida que: «[n]a verdade, tem antes a administração tributária que considerar que, no processo de elaboração das normas em questão, o legislador doméstico terá tido em atenção todo o ordenamento jurídico, quer nacional quer internacional, pelo que essas normas devem respeitar os mesmos, sendo certo, também, que não cabe à administração tributária a sindicância das normas no que concerne à sua adequação relativamente ao Direito da União Europeia. Não competindo à Autoridade Tributária e Aduaneira avaliar a conformidade das normas internas com as dos tratados da União (nem com as orientações interpretativas do TJUE), não pode, assim, no âmbito da sua atividade, deixar de aplicar uma norma legal com o fundamento na sua desconformidade com os referidos tratados.»

 

No que toca ao regime fiscal dos OIC constituídos e estabelecidos em Portugal e os constituídos e estabelecidos na Alemanha, sustenta a Requerida que sobre aqueles – abrangidos pelo artigo 22.º do EBF - recai a tributação em Imposto do Selo, face à verba 29 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), de que «resulta uma tributação, por cada trimestre, à taxa de 0,0025% do valor líquido global os OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa de 0,0125% sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, a base tributável pode incluir dividendos distribuídos.»  

 

Acrescentando, ainda que, «(…), está também prevista a tributação autónoma à taxa de 23%, nos termos do n.º 11 do artigo 88.º, do Código do IRC e do n.º 8 do artigo 22.º do EBF, dos dividendos pagos a OIC com sede em Portugal, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.»

 

Mais considera, a Requerida ser de referir que «os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF – tal como ocorre com os fundos de pensões - por beneficiarem de isenção parcial de IRC, obrigados a liquidar e entregar a tributação autónoma incidente sobre os lucros distribuídosquando as correspondentes partes sociais não sejam detidas, de modo ininterrupto, há pelo menos um ano», algo que não sucede com os OIC, como o Requerente, não abrangidos pelo artigo 22.º do EBF. Entende, a Requerida, que «os regimes aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional e dos OIC constituídos e estabelecidos na Alemanha não são genericamente comparáveis, pois que a tributação dos primeiros compreende uma tributação em IRC sobre um lucro tributável que integra rendimentos marginais e repousa sobretudo no Imposto do Selo, ao passo que, aparentemente, os segundos estavam isentos de tributação no imposto sobre o rendimento e, aparentemente, também de outros impostos

 

Defende a Requerida quanto ao vício de violação do direito comunitário que «se reputa de ligeira e simplista a conclusão de que o regime de tributação dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF se mostra contrária ao Direito da União Europeia e que contraria as disposições do TFUE relativas ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, nem como relativas à livre circulação de capitais, porquanto se baseia apenas no n.º 3 dessa disposição, alheando-se do disposto no n.º 8 do mesmo preceito, bem como da tributação em Imposto do Selo.»

 

E, conclui no sentido de que «a retenção na fonte efetuada sobre os dividendos pagos à Requerente respeita o disposto na legislação nacional e na convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre Portugal e a Alemanha, devendo ser mantida na ordem jurídica.»

 

IV. Saneamento

 

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 5.º e 6.º, todos do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, encontram-se regularmente representadas e o processo não enferma de nulidades.

 

V. Matéria de Facto

 

Para a convicção do Tribunal Arbitral, relativamente aos factos provados, relevaram os documentos juntos aos autos e o processo administrativo.

Ademais, é de salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do atual CPC).

Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados (pedido de constituição arbitral e Resposta da Requerida), à prova documental junta aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

a.      Factos dados como provados 

 

Com interesse para a decisão, dão-se por provados os seguintes factos:

 

A.   O Requerente é uma pessoa coletiva de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (OIC), constituído sob a forma contratual, comummente designado de fundo de investimento – facto não impugnado - ;

B.   O Requerente é sujeito passivo de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC), é não residente, não tem estabelecimento estável, para efeitos fiscais, em Portugal, e tem a sua residência fiscal na Alemanha – cfr. Doc. n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral –; 

C.   O Requerente é gerido por uma entidade gestora de fundos de investimento, a B... GmbH, com sede na Alemanha – cfr. Doc. n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral - ;

D.   O Requerente é um fundo aberto autónomo que se baseia num contrato entre a entidade gestora “B... GmbH”, os seus investidores e o banco responsável pela custódia dos valores mobiliários – facto não impugnado- ;

E.   O Requerente não sendo um OIC constituído sob a forma societária (sociedade de Investimento), mas meramente contratual (fundo de investimento), não reveste juridicamente a forma de sociedade comercial, pelo que nos termos da legislação alemã não se encontra sujeito a qualquer obrigação de registo no Registo Comercial alemão – cfr doc. n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral - ;

F.    Face às regras a que está sujeito o Requerente, a entidade gestora do mesmo investe o capital depositado por parte dos investidores em seu nome próprio, sendo que os ativos pertencentes ao Fundo estão num regime de compropriedade com os respetivos investidores – facto não impugnado -;

G.   Os ativos do Fundo são dissociados dos demais ativos da entidade gestora, nos termos da lei regulatória aplicável, e como tal, protegidos contra ações intentadas contra os investidores, a entidade gestora e o banco responsável pela custódia – cfr. doc. n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral-;

H.   O Requerente e a respetiva entidade gestora são entidades sujeitas a supervisão do Bundesanstalt für Finanzdienstleistungsaufsicht (“BaFin”), entidade federal responsável pela supervisão do setor financeiro da Alemanha – cfr. Doc. n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral - ;

I.     Em 2019, o Requerente detinha lotes de participações sociais em sociedade residentes, para efeitos fiscais, em Portugal. – facto não impugnado -;

J.    Em 2019, o Requerente, na qualidade de acionista de sociedades residentes em território nacional, recebeu dividendos que foram tributados em Portugal. – facto não impugnado -;

K.   Os dividendos recebidos, pelo Requerente, no decorrer do ano de 2019, foram sujeitos a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25%, prevista no artigo 87.º, n.º 4 do CIRC, que se discriminam da seguinte forma: - cfr. Docs. n.ºs 6 e 7 juntos com o pedido de pronúncia arbitral - ;–

 

Valor bruto dos dividendos

Data de Pagamento

Guia de pagamento

Valor da retenção

17.640,00 €

26.06.2019

...

4.410,00 €

898,20 €

11.06.2019

...

224,55 €

14.211,24 €

15.05.2019

...

3.552,81 €

17.368,42 €

09.05.2019

...

4.342,10 €

15.591,13 €

10.09.2019

...

3.897,78 €

11.705,85 €

09.05.2019

...

2.926,46 €

492,62 €

07.06.2019

...

123,15 €

25.339,27 €

24.04.2019

...

6.334,82 €

2.662,40 €

29.04.2019

...

665,60 €

257,02 €

29.04.2019

...

64,25 €

1.378,65 €

24.05.2019

...

344,66 €

6.173,82 €

30.05.2019

...

1.543,45 €

TOTAL

28.429,63 €

 

 

L.   Em 2019, a entidade responsável pela custódia dos títulos detidos em Portugal era a G...; – facto não impugnado -;

M.  No dia 25 de fevereiro de 2021, o Requerente apresentou uma reclamação graciosa contra os atos de retenção na fonte de IRC relativos ao ano de 2019, a qual correu termos na Direção de Finanças de Lisboa sob o processo n.º ...2021.... – cfr. Doc. n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral -;

N.   No dia 28 de junho de 2021, o Requerente foi notificado, através do ofício DF LISBOA ..., de 25.06.2021, do Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, ao abrigo de subdelegação de competências, da decisão final no sentido do indeferimento da reclamação graciosa identificada em M. supra- - cfr Doc. n.º 9 junto com o pedido de pronuncia arbitral -;

O.   No dia 27 de setembro de 2021, o Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral junto do Centro de Arbitragem Administrativa-CAAD.

 

 

b.              Factos dados como não provados.

 

Como referido, relativamente à matéria de facto dada como assente, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada tal como dispõe o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e o artigo 607.º, n.ºs 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. 

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram, como acima se referiu, escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, não existindo outra factualidade alegada que seja relevante para a correta composição da lide processual.

 

VI - DO DIREITO 

 

A título introdutório entende o presente Tribunal que deve, desde já, referir que se reserva, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) (Vide Acórdão do Pleno da 2.ª Secção do STA, de 07.06.1995, Recurso n.º 5239), artigos 607.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Civil (CPC) e artigo 123.º, 1.ª parte, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicáveis ao processo arbitral tributário por força do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT),  ao direito de apreciar apenas os argumentos formulados pelas partes que entende pertinentes para a apreciação da questão aqui em causa, o que fará depois de ter identificado as partes e o objeto do litígio, ter enunciado as questões decidendas, e, depois de fundamentar a decisão discriminando os factos provados e os não provados,  mais, indicando, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes e, por fim, apresentando a sua conclusão final (decisão).

 

Vejamos, 

 

A – Questão prévia: Do pedido de reenvio prejudicial

 

O Requerente, no pedido arbitral que apresentou, requer, a título subsidiário, a suspensão da presente pronúncia, em virtude de se encontrar em análise a mesma questão de Direito que aqui nos ocupa, respeitante à incompatibilidade do artigo 22.º do EBF com o Direito da União Europeia quanto a entidades residentes e não residentes, no território nacional, na tributação dos dividendos, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), por via do reenvio prejudicial do processo arbitral n.º 93/2019-T.

 

Suspensão essa, que a Requerida, igualmente, sugere e até propõe, na sua douta Resposta.

 

Contudo, em momento prévio à prolação da presente decisão, concretamente, a 17 de março de 2022, o TJUE proferiu o Acórdão no âmbito do processo n.º C-545/19, por via do qual é ponderada e analisada matéria (de facto e de direito) em tudo idêntica à dos presentes autos, não se justificando, assim, qualquer suspensão do presente processo, nem o reenvio prejudicial do mesmo para o TJUE, em virtude de não lhe suscitar qualquer dúvida sobre a interpretação das normas a aplicar ao caso em concreto, considerando-se suficientemente esclarecido pela jurisprudência emanada do TJUE e dos Tribunais superiores portugueses, pelo que, encontrando-se em posição para decidir ele próprio da interpretação correta do Direito da União e da sua aplicação à situação factual dos presentes autos, entende ser de recusar o reenvio prejudicial.

 

Assim sendo, e atendendo às recomendações acima enunciadas, entende-se não suspender o presente processo, nem proceder ao reenvio prejudicial do mesmo para o TJUE, por se mostrar, neste momento, totalmente inútil.

 

B – Questão decidenda

 

A questão controvertida nos presentes autos é a de saber se a retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), a título definitivo, sobre dividendos pagos a OICs não residentes em Portugal é ilegal por violação do direito comunitário e do direito constitucional. 

 

Ora, vejamos, 

 

1.             O Requerente do presente pedido de pronúncia arbitral, a B... GMBH ..., NIF..., Organismo de Investimento Coletivo (OIC) sediado na República Federal Alemã, deduziu em 25/02/2021, junto da Direção de Finanças de Lisboa, reclamação graciosa, nos termos dos artigos 137.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC) e 132.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), das retenções na fonte de IRC a título definitivo de maio e junho do ano de 2019, processadas através das guias n.ºs ..., ..., ... e ..., no montante global de € 28.429,63 (vinte e oito mil, quatrocentos e vinte e nove euros e sessenta e três cêntimos)

 

Tais retenções incidiram sobre os dividendos distribuídos à taxa de 25%, nos termos da alínea c) do n.º 1, da alínea b) do n.º 3 e do n.º 4, todos do artigo 94.º e do n.º 4 do artigo 87.º, ambos do CIRC.

 

2.             É objeto mediato do presente pedido de pronúncia arbitral o indeferimento da referida reclamação graciosa, datado de 28 de junho de 2021, da autoria, por subdelegação, da Chefe da Justiça Administrativa da Direção de Finanças de Lisboa, e objeto imediato a apreciação da legalidade das retenções na fonte em sede de IRC, com os fundamentos de direito a seguir sintetizados e que foram transpostos para o presente pedido arbitral.

 

3.             Segundo o Requerente, o n.º 1 do artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redação dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, ao não dispensar de retenção na fonte a título definitivo os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC's residentes noutros Estados Membros da União Europeia, enquanto o n.º 3 dispensa essa retenção quando esses dividendos sejam distribuídos a OIC's que atuem e operem de acordo com a legislação nacional, viola o n.º 1 do artigo 63.º do TFUE (Tratado de Funcionamento da União Europeia).

 

Esta disposição veda todas as restrições aos movimentos de capitais não previstas no Capítulo 4 do Título IV do Tratado, quando efetuados entre Estados Membros da União Europeia ou entre estes e países terceiros. 

 

Tal fundamentação da reclamação foi integralmente reproduzida no pedido de pronúncia arbitral.

 

Apenas, assim, não seria, ou seja, só seria legítima a restrição aos movimentos de capitais resultante das retenções impugnadas, se o Requerente tivesse a possibilidade de, no Estado da residência, recuperar integralmente o imposto pago em Portugal – o que se revela de extrema importância na apreciação do caso concreto. 

 

4.             O facto de, na República Federal Alemã, o Requerente aproveitar de uma isenção, nos termos da Secção 1, parágrafo 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Sociedades Alemão - German Corporate Income Tax Act” - e da secção 11 parágrafo 1.2 do Código Fiscal de Investimento Alemão (German Investment Tax Act”), impossibilitá-la-ia, no entanto, ao abrigo do n.º 2 do artigo 10.º da Convenção, de, nesse país, recuperar o imposto pago através de reembolso ou alternativamente título de crédito por dupla tributação internacional, dos impostos suportados ou pagos no estrangeiro.

 

5.             As retenções em causa na sua totalidade contrariariam, assim, no entendimento do Requerente, os princípios estabelecidos no Direito da União Europeia, em particular com o artigo 63.º da TFUE e do primado do direito comunitário sobre o direito interno expresso no n.º 4 do artigo 8.º da CRP.

 

6.             Assim, a legislação nacional concede expressamente aos OIC constituídos e operando em Portugal a possibilidade de beneficiarem de um regime que lhes permita receber os dividendos totalmente isentos de tributação, bastando, para tal, que estejam constituídos de acordo com a legislação nacional.

 

7.             Mas, por outro lado, não permite aos OIC’s constituídos noutros Estados Membros da União Europeia beneficiarem de idêntica isenção, estando, assim, os dividendos que lhes sejam distribuídos sujeitos a uma tributação efetiva e liberatória de IRC de 25%, não recuperável no país da residência.

 

8.             Devendo, assim, e por consequência, ser a retenção eliminada.

 

9.             E, em caso de dúvida, o Tribunal Arbitral deveria recorrer ao mecanismo do reenvio prejudicial regulado no artigo 267.º do TFUE.

 

10.          Segundo a Resposta da Requerida, reproduzindo a fundamentação do indeferimento da reclamação graciosa, a proibição, imposta pelo n.º 1 do artigo 63.º do TFUE, de todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros, não previstas no Capítulo 4 do Título IV da III Parte, não obsta a que, nos termos do n.º 1 do artigo 65.º do TFUE, os Estados membros apliquem, no exercício da sua soberania fiscal, as disposições pertinentes do seu direito interno, que distingam entre contribuintes que não se achem  em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido, desde que, nos termos do n.º 3, as medidas e procedimentos adotados para esse efeito não constituam um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º do TFUE.

 

Referiria, ainda, a Requerida, não caber à AT avaliar a conformidade das normas tributárias internas com a doutrina do TFUE, nem apreciar da sua constitucionalidade, já que, a sua atividade está subordinada à lei, não podendo deixar de aplicar qualquer norma legal com fundamento na sua desconformidade com os Tratados da União.

 

Acrescentaria a Requerida, na Resposta, que, para efeitos da qualificação como discriminatória da tributação dos dividendos distribuídos a fundos de investimento não residentes, deve ser tido em conta a subtração à base tributável do IRC dos dividendos distribuídos aos OIC’s constituídos de acordo com a legislação nacional, dever associar-se à sujeição destes à verba 29 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), que apenas abrange os fundos de investimento que atuem e operem segundo a legislação nacional, abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e não, como é óbvio, os fundos de investimento que atuem e operem ao abrigo de legislação estrangeira, ainda que em outros Estados membros da União Europeia. 

 

Tal sujeição seria a contrapartida da não sujeição a IRC dos lucros distribuídos, prevista no n.º 3 do artigo 22.º do EBF.

 

Com efeito, segundo essa verba, sobre o valor líquido global dos fundos de investimento que atuem e operem de acordo com a legislação nacional, recai uma tributação trimestral à taxa de 0,0025%, quando invistam exclusivamente em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e, nos restantes casos, em que a base tributável pode incluir os dividendos distribuídos, à taxa 0,0125%.

 

11.          A conclusão de uma discriminação proibida pelo n.º 3 do artigo 63.º do TFUE não é compatível por sua vez com a sujeição, determinada pelo n.º 8 do artigo 22.º do EBF, de acordo com as adaptações necessárias, dos OIC’s que atuem e operem de acordo com a legislação nacional, às taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do CRC, incluindo a de 23% prevista no n.º 11 desta última norma legal.

 

Aqui estão abrangidos os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial, abrangendo, neste caso, os rendimentos de capitais, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.

 

Como é óbvio, segundo a Requerida, os OIC’s não abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, como é o caso do Requerente, não estão sujeitos no território nacional a tributação autónoma sobre os dividendos, o que também prejudica a conclusão de uma tributação discriminatória, uma vez essa tributação autónoma ter igualmente uma função compensatória da não sujeição a IRC dos lucros distribuídos a fundos de investimento constituídos e atuando de acordo com a legislação nacional.

 

12.          Por outro lado, ainda que assim não fosse, a eventual dupla tributação económica dos participantes nos OIC’s autorizados e operando de acordo com a legislação alemã, resultante da sujeição a retenção na fonte dos dividendos distribuídos em Portugal e dos rendimentos dos OIC’s pagos ou colocados à disposição na República Federal da Alemanha, seria neutralizável em virtude do mecanismo previstos no n.º 2 do artigo 10.º da Convenção, não procedendo o argumento invocado pelo Requerente de que, a essa neutralização, obstar a isenção geral de que gozam os OIC’s constituídos e atuando de acordo com a legislação alemã.

 

No entanto, e face a tudo quanto expôs, propõe a Requerida a suspensão do presente processo até decisão por parte do TJUE em sede do pedido de reenvio prejudicial das questões formuladas no âmbito do processo n.º 93/2019-T, sendo que, esta mesma questão - como vimos, foi já, recentemente, decidida no âmbito do processo n.º C-545/19 do TJUE, através do Acórdão proferido a 17.03.2022.

 

13.          De forma esquemática a tributação dos OIC´s, em Portugal para os que se encontram constituídos e operem de acordo com a legislação nacional, e os que não operem dessa forma, é feita da seguinte forma:

 

 

Imposto

 

OIC de direito português

 

            

            OIS de direito estrangeiro

 

 

IRC

 

 

Isento

(artigo 22.º, n.º 3 do EBF)

Sujeito a retenção na fonte a título definitivo

Taxa 28%

  (artigo 22.º, n.º 1 do EBF, artigo 87.º, n.º 4 e 94.º, n.º 1 al. c), n.º 3, al. b) e 4 CIRC

 

IRC 

tributações autónomas

(artigo 88.º do CIRC)

 

 

 

Taxa 25%

 

 

 

X

 

 

Imposto do Selo 

(verba 29 da TGIS)

 

Taxa 0,025% - instrumentos mercado monetário e depósitos

 

Taxa 0,012% - dividendos

 

 

 

X

 

 

14.            Estes são os argumentos tecidos pelas partes para defesa da sua posição quanto à questão controvertida dos presentes autos. Vejamos, então, a quem assiste razão:

 

15.          Conforme aludido supra, o TJUE proferiu, no passado dia 17 de março de 2022, Acórdão no âmbito do processo n.º C-545/19, cujo entendimento se reportará e adotará no presente processo, uma vez que se trata da última e mais recente orientação jurisprudencial sobre a questão que aqui nos ocupa e relativamente à qual não tem o presente Tribunal motivo ou fundamento para decidir de forma diferente. 

Ora, 

 

16.          Está em causa, no presente pedido de pronúncia arbitral, a existência de uma pretensa tributação discriminatória dos dividendos pagos a fundos de investimento constituídos e atuando na República Federal Alemã, sujeitos, ao contrário dos dividendos pagos a fundos de investimento constituídos de acordo com a legislação nacional, a retenção na fonte, e, confirmando-se tal tributação  discriminatória, se esta pode ser, ou não, neutralizada pelo mecanismo previstos no n.º 2 do artigo 10.º da  Convenção celebrada entre Portugal e a Alemanha.

 

17.          O n.º 1 do artigo 63.º do TFUE proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros no âmbito no referido Capítulo IV do Título IV da III Parte, ampliado o n.º 2 essa proibição a todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

 

18.          Segundo o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 17/03/2022, Proc. C-545/19, as medidas proibidas pelo n.º 1 do artigo 63.o do TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, são todas as suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro, ou de dissuadir os residentes desse Estado‑Membro de investir noutros Estados -Membros (também nesse sentido, Acórdão de 10/05/2012, Procs. C‑338/11 a C‑347/11, e outra jurisprudência aí referida). 

 

19.          Embora a jurisprudência do Tribunal de Justiça não constitua diretamente fonte de direito, contribui decisivamente para a uniformização da aplicação do Direito Comunitário, pelo que o intérprete-aplicador, salvo motivo fundamentado, não pode deixar de a considerar, sob pena de ficar comprometido o propósito de uniformização subjacente ao mecanismo do reenvio prejudicial.

 

20.          Não há dúvida de que, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 22º do EBF e 94º do CIRC, os OIC’s residentes em Portugal e os OIC’s residentes noutro Estado‑Membro estão sujeitos, no que se refere aos dividendos que lhes são distribuídos por sociedades residentes em Portugal, a um tratamento diferenciado.

 

21.          Com efeito, de acordo com essas normas legais, os dividendos distribuídos pelas sociedades residentes em Portugal a OIC’s não residentes, estão sujeitos a retenção na fonte. 

 

22.          Em contrapartida, os dividendos distribuídos por essas sociedades a OIC’s constituídos e atuando de acordo com a legislação nacional, não estão sujeitos a retenção na fonte.

 

23.          Ao sujeitar a retenção na fonte, nos termos gerais, os dividendos pagos aos OIC’s não residentes, mas isentando os dividendos distribuídos a OIC’s residentes, a regulamentação nacional procederia, assim, à luz dos critérios em que assentou a referida jurisprudência comunitária, sem prejuízo de qualquer neutralização posterior, a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos Organismos de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários (OICVM) não residentes.

 

24.          Tal tratamento desfavorável é abstratamente suscetível de dissuadir, por um lado, os OIC’s não residentes de investir em sociedades com sede em Portugal e, por outro lado, os investidores nacionais de adquirirem participações em OICVM não residentes.

 

25.          Assim, poderia considerar-se que a regulamentação em causa constitui uma restrição à livre circulação de capitais, face à orientação da jurisprudência comunitária mais recente, concretamente proibida pelo artigo 63.º TFUE.

Senão vejamos, 

 

26.          O Acórdão do TJUE acima identificado e cuja orientação aqui seguimos, diz respeito, à semelhança do que sucede com o caso em apreço, « (…)  a um pedido de anulação de atos que procederam à retenção na fonte dos dividendos pagos à recorrente no processo principal por sociedades estabelecidas em Portugal bem como à compatibilidade com o direito da União de uma legislação nacional que reserva a possibilidade de beneficiar da isenção dessa retenção na fonte aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa ou cuja entidade gestora opera em Portugal através de um estabelecimento estável.» (cfr. parágrafo 32 do acórdão).

 

27.          Nesse acórdão, o TJUE considerou que:

«37      No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção 

38      Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

39      Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).»

 

28.          Na verdade, e ao contrário do alegado pela Requerida, o aresto comunitário em referência, considerou que os OICs não residentes estavam numa situação comparável com os OICs residente em território nacional, esclarecendo que:

«43      Para apreciar a comparabilidade das situações em causa, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, por um lado, sobre a questão de saber se a situação dos detentores de participações deve ser tida em conta do mesmo modo que a dos OIC e, por outro, sobre a eventual pertinência da existência, no sistema fiscal português, de certos impostos aos quais apenas estão sujeitos os OIC residentes.

(…)

57      Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.

(…)

61      No caso em apreço, no que diz respeito, em primeiro lugar, ao objeto, ao conteúdo e ao objetivo do regime português em matéria de tributação dos dividendos, seja ao nível dos próprios OIC ou dos seus detentores de participações sociais, resulta tanto da Resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informação do Tribunal de Justiça como da Resposta do Governo português às perguntas escritas que lhe foram dirigidas no âmbito do presente processo que o referido regime foi concebido numa lógica de «tributação à saída», ou seja, os OIC que são constituídos e operam de acordo com a legislação portuguesa estão isentos do imposto sobre o rendimento, sendo o encargo que este último representa transferido para os detentores de participações sociais que têm a qualidade de residentes, estando os detentores de participações sociais não residentes dele isentos.

(…)

67      Tendo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram‑se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o.,  C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 56 e jurisprudência referida).

(…)

69      Ora, um OIC não residente pode ter detentores de participações sociais que tenham residência fiscal em Portugal e sobre cujos rendimentos este Estado‑Membro exerce o seu poder de tributação. Nesta perspetiva, um OIC não residente encontra‑se numa situação objetivamente comparável à de um OIC residente em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 61).»

 

29.           Mais referindo que:

 «73«(…) o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.

74      Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.»

 

30.          … para concluir e declarar que:

«O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

31. Ora, o Acórdão do TJUE supracitado e cuja orientação acompanhamos é absolutamente transparente quanto à matéria que nos ocupa, colmatando qualquer dúvida que pudesse existir quanto à mesma, pelo que, considerando:

a)    por um lado, que um órgão jurisdicional nacional pode “decidir ele próprio da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece”;

b)    por outro, que «(…) tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), [que] a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes:

Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25.10.2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31.01.2003, p. 3757; de 07.11.2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13.10.2003, p. 2602; de 07.11.2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13.10.2003, p. 2593).» (cfr. decisão arbitral proferida no processo n.º 821/2021-T[1], de 26 de abril de 2022);

c)    por outro, ainda, que o referido acórdão do TJUE de 17.03.2022, proferido no processo n.º C-545/19, concluiu no sentido de que «[o] artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção. », 

d)    … e por último que, se encontra instituído no nosso ordenamento jurídico, através do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, o primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, que prevê que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático», 

 

32. … entende o presente Tribunal arbitral que, no caso em apreço, se verifica o tratamento discriminatório sancionado pelo direito comunitário, pelo que, declara a ilegalidade, por incompatibilidade com o artigo 63.º do TFUE, o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, das retenções na fonte e o indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa, por enfermarem de vício de violação de lei, com as demais consequências legais, designadamente o reembolso do imposto pago indevidamente.

 

33. Face ao exposto, tendo em consideração que estamos perante uma violação do direito comunitário, no que respeita à retenção na fonte dos dividendos auferidos pelo Requerente, determina-se a procedência do presente pedido arbitral, nada mais havendo a apreciar dos demais vícios invocados pelo Requerente.

 

C – Dos juros indemnizatórios

 

34. A Requerente peticiona ainda que seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços.

35. Dispõe o n.º 1 do artigo 43.º da LGT e o artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, que são devidos juros indemnizatórios quando se determine em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. 

36. Considera-se erro imputável à administração, quando o erro não for imputável ao contribuinte e assentar em errados pressupostos de facto que não sejam da responsabilidade do contribuinte. 

37. Ora, resultando dos atos tributários impugnados a obrigação de pagamento de imposto superior ao que seria devido, são devidos juros indemnizatórios nos termos legalmente previstos, presumindo o legislador, nestes casos, em que se verifica a anulação da liquidação, que ocorreu na esfera do contribuinte um prejuízo em virtude de ter sido privado da quantia patrimonial que teve que entregar ao Estado em virtude de uma liquidação ilegal. Em consequência, tem o contribuinte direito a essa indemnização, independentemente de qualquer alegação ou prova do prejuízo sofrido.

38. No caso presente, será inquestionável que, na sequência da consagração da ilegalidade dos atos de liquidação, haverá lugar a reembolso do imposto por força do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, e do artigo 100.º da LGT passando, necessariamente por aí o restabelecimento da “situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

39. Do mesmo modo, entende-se que será isento de dúvidas que a ilegalidade do ato é imputável à Autoridade Tributária, que autonomamente o praticou de forma ilegal.

40. Quanto ao conceito de “erro”, tem sido entendido que só em casos de anulações fundadas em vícios respeitantes à relação jurídica tributária haverá lugar a pagamento de juros indemnizatórios, não sendo reconhecido tal direito no caso de anulações por vícios procedimentais ou de forma.

41. Assim sendo, estando-se perante um vício de violação de lei substantiva, que se consubstancia em erro nos pressupostos de direito, imputável à Autoridade Tributária, têm os Requerentes direito a juros indemnizatórios, de acordo com os artigos 43.º, n.º 1 da LGT, e 61.º do CPPT, contados desde o pagamento do imposto até ao integral reembolso do referido montante.

 

DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, decide-se:

1.    Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente, e em consequência, anular os atos de liquidação de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas incidente sobre o pagamento de dividendos relativos ao ano de 2019, no montante de € 28.429,63 (vinte e oito mil, quatrocentos e vinte e nove euros e sessenta cêntimos);

2.  Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

Valor do Processo

Fixa-se o valor do processo em € 28.429,63 (vinte e oito mil, quatrocentos e vinte e nove euros e sessenta cêntimos) nos termos artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Custas

Custas a cargo da Requerida de acordo com o artigo 22.º, n.º 2 do RJAT, do artigo 4.º do RCPAT, e da Tabela I anexa a este último, que se fixam no montante de € 1.530,00.

 

Notifique-se.

Lisboa, 14 de julho de 2022

***

O Árbitro

 

 

(Jorge Carita)

 



[1] Tribunal arbitral constituído no CAAD por Nuno Cunha Rodrigues (Árbitro-presidente), Rui Miguel Zeferino Ferreira e Paulo Ferreira Alves (Árbitros vogais).