DECISÃO ARBITRAL
— I —
A..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., (doravante “a requerente”), sedeada na ..., ..., ...-... ..., veio deduzir pedido de pronúncia arbitral tributária contra a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “a AT” ou “a requerida”), peticionando a declaração da ilegalidade dos atos de liquidação de IMI relativo ao ano de 2019 (Documento de Cobrança n.º 2019-...) e de AIMI relativo ao ano de 2020 (Liquidação n.º 2020-...) e dos despachos de indeferimento das reclamações graciosas deduzidas contra tais atos tributários, bem como a condenação da requerida a proceder à restituição das quantias de imposto pagas ao abrigo de tais atos de liquidação, no valor total de EUR 91.716,29 e dos correspondentes juros indemnizatórios. Complementarmente, peticionou também a anulação dos despachos de indeferimento das já mencionadas reclamações graciosas, imputando-lhes autonomamente os vícios de preterição do direito de participação procedimental e de falta de fundamentação.
Para tanto alegou, em síntese, que, tendo por objeto social a promoção, comercialização, exploração, arrendamento e gestão de património imobiliário próprio ou alheio e a compra e venda e revenda de imóveis adquiridos para esse fim, o planeamento de obras e elaboração de projetos para a construção civil, construção e reabilitação de imóveis, adjudicação e gestão de empreitadas e a gestão de condomínios, a requerente é proprietária plena do prédio inscrito na matriz predial da freguesia do ... do município de Lisboa sob o artigo ... (doravante “o Prédio”) que configura um terreno para construção; que o valor patrimonial tributário do Prédio foi determinado de forma ilegal em virtude do emprego na sua fórmula de cálculo de coeficientes de localização e de afetação, conforme foi já amplamente reconhecido pela jurisprudência tributária; que esse valor patrimonial tributário ilegalmente fixado se repercutiu, concomitantemente, na errónea quantificação dos tributos liquidados; que, assim, os atos tributários que procederam à liquidação do IMI relativo a 2019 e do AIMI relativo a 2020 padecem de ilegalidade; que se encontram igualmente verificados os pressupostos de que depende o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, que assim deverá também ser reconhecido, a par da restituição do quantitativo de imposto em excesso colocado a pagamento ao abrigo dos mencionados atos tributários.
Concluiu peticionando a declaração da ilegalidade do ato de liquidação de IMI relativo ao ano de 2019 e de AIMI relativo ao ano de 2020 (Liquidação n.º ...) e dos despachos de indeferimento das reclamações graciosas deduzidas contra tais atos tributários, bem como a condenação da requerida a proceder ao restituição das quantias de imposto pagas ao abrigo de tais atos de liquidação, no valor total de EUR 91.716,29 e de juros indemnizatórios e, complementarmente, peticionou a anulação dos despachos de indeferimento das já mencionadas reclamações graciosas, imputando-lhes autonomamente os vícios de preterição do direito de participação procedimental e de falta de fundamentação.
Juntou documentos e procuração forense, declarando não pretender proceder à designação de árbitro. Atribuiu à causa o valor de EUR 91.716,29 e procedeu ao pagamento da taxa de arbitragem inicial.
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Constituído o Tribunal Arbitral Coletivo, nos termos legais e regulamentares aplicáveis, foi determinada a notificação da administração tributária requerida para os efeitos previstos no art. 17.º do RJAT.
Depois de devidamente notificada, a requerida veio apresentar resposta defendendo-se por exceção e por impugnação. Por exceção invocou a consolidação administrativa dos atos de avaliação do valor patrimonial tributário do Prédio cujos eventuais vícios, desse modo, já estariam sanados não podendo agora ser conhecidos neste processo; mais invocou a inimpugnabilidade do ato de liquidação com fundamento em vícios da fixação do valor patrimonial tributário, porquanto, sendo essa a única causa de invalidade assacada ao ato tributário impugnado, ela não poderá ser conhecida na presente arbitragem na medida em que o ato de avaliação do valor patrimonial tributável é um ato destacável, autonomamente impugnável, não podendo o seu teor ser sindicado a propósito da apreciação da legalidade dos atos de liquidação que têm por base aquele valor.
Por impugnação, sustentou novamente que, nos termos do artigo 79.º da LGT, os atos de fixação de valores patrimoniais podem ser objeto de anulação administrativa nos termos do CPA, subsidiariamente aplicável por força da alínea b) do artigo 2.º da LGT, quando verificadas as condições legais e dentro dos prazos legais consignados, aplicando-se, para o efeito, o regime jurídico previsto no artigo 168.º, n.º 1, do CPA, nos termos do qual se prevê, como limite máximo para a anulação administrativa de atos administrativos, o prazo de cinco anos a contar da emissão do ato; que avaliação subjacente ao ato de fixação do valor patrimonial do Prédio se encontra fixada há mais de cinco anos, pelo que não é passível de anulação com fundamento em invalidade porquanto o prazo legal para anular administrativamente encontrar-se-ia precludido; que os atos de indeferimento das reclamações graciosas não padecem dos apontados vícios de preterição do direito de participação procedimental e de falta de fundamentação e que, em qualquer caso, sempre seria de degradar a eficácia invalidante de tais vícios em meras irregularidades não essenciais; finalmente, que não se verificam os pressupostos para o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
Concluiu pela sua absolvição da instância ou, subsidiariamente, pela improcedência do pedido e sua consequente absolvição. Juntou um despacho de nomeação de mandatários forenses e requereu a dispensa de junção do processo administrativo.
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Tendo-se dispensado a realização da reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT, foi ordenada a notificação das partes para, querendo, produzirem alegações escritas quanto à matéria de facto e de direito, apenas a requerente as apresentando, mantendo no essencial as posições por si já avançadas no requerimento inicial.
— II —
As partes gozam de personalidade judiciária e capacidade judiciária, têm legitimidade ad causam e estão devidamente patrocinadas nos autos.
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Apresenta-se a requerente cumulando, a título principal, dois pedidos de declaração de ilegalidade de atos tributários — um incidindo sobre o ato de liquidação do IMI relativo a 2019, outro sobre o ato de liquidação do AIMI relativo a 2020. Porém, como a requerente assinala, uma vez que a procedência desses dois pedidos depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, nada há que obste a referida cumulação.
Vai assim admitida a cumulação dos pedidos principais.
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Nos termos do art. 97.º-A do CPPT, o valor atendível, para efeitos de custas, quando se impugne um ato de liquidação será o da importância cuja anulação se pretende.
Ora, o valor que a requerente atribuiu à presente arbitragem, tendo presente o regime legal aplicável, foi de EUR 91.716,29, valor que não foi objeto de impugnação por parte da requerida. Na ausência de quaisquer outros elementos factuais que permitissem fixar à causa um valor diferente daquele que resulta do acordo das partes, não se antevê motivo para corrigir o montante indicado pela requerente.
Fixa-se assim à presente arbitragem o valor de EUR 91.716,29.
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Fixado que está o valor da causa e uma vez que a requerente optou por não proceder à designação de árbitro, dispõe o presente Tribunal Arbitral Coletivo de competência funcional e de competência em razão do valor para conhecer da presente arbitragem (art. 5.º, n.º 3, do RJAT).
Há também que concluir pela competência do presente Tribunal em razão da matéria por força do art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT e da vinculação à arbitragem tributária institucionalizada do CAAD por parte da administração tributária requerida, tal como resulta da Portaria n.º 112-A/2011.
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Conforme resulta do relatório, vem invocada a exceção de inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMT e AIMI com fundamento em vícios próprios que afetam a fixação do valor patrimonial tributário que tais atos tiveram por pressuposto.
Importa assim conhecer desta exceção.
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No caso em apreço, está em causa a impugnação de dois atos de liquidação, um relativo ao IMI de 2019 e outro ao AIMI de 2020, ambos tendo por objeto um mesmo imóvel e incidindo sobre o valor patrimonial tributário fixado para esse imóvel e que se encontra averbado na correspondente caderneta predial urbana. Contra esses atos de liquidação foram apresentadas reclamações graciosas que foram expressamente indeferidas, na sequência do que vem interposta a presente arbitragem tributária.
Insurge-se a requerente contra a circunstância de ambos os atos tributários por si impugnados terem tido por pressuposto o valor patrimonial tributário do Prédio que, sustenta, foi ilegalmente determinado, circunstância que assim se projetaria na concomitante ilegalidade dos próprios atos de liquidação.
Ora, nos termos do art. 15.º do CIMI a avaliação dos prédios urbanos é direta e, por isso, ela é “suscetível, nos termos da lei, de impugnação contenciosa direta» (art. 86.º, n.º 1, da LGT). Nos termos do n.º 2 deste mesmo art. 86.º da LGT, “[a] impugnação da avaliação direta depende do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão.” E, no caso específico do imposto que se vem cuidando (IMI e AIMI) os termos da impugnação da avaliação direta de valores patrimoniais vêm regulados no art. 134.º do CPPT, em que se estabelece que “[o]s atos de fixação dos valores patrimoniais podem ser impugnados, no prazo de três meses após a sua notificação ao contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade” (n.º 1) e que “a impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação” (n.º 7).
Como decorre do n.º 1 deste artigo 134.º, ao fixar um prazo especial de três meses para impugnação de atos de fixação de valores patrimoniais, “com fundamento em qualquer ilegalidade” — e bem assim do n.º 7 deste mesmo artigo, ao exigir-se nele o esgotamento prévio dos meios graciosos — está afastada a possibilidade de essa impugnação com fundamento em ilegalidade se fazer, por via indireta ou incidental, na sequência da notificação de atos de liquidação que tenham a essa avaliação, e ao valor tributário nela fixado, como pressuposto.
Do exposto decorre que, no âmbito do IMI e do AIMI, quando o sujeito passivo não concordar com o resultado da avaliação direta de prédios urbanos, ou lhe imputar qualquer vício gerador da sua ilegalidade, pode requerer ou promover uma segunda avaliação, no prazo de 30 dias contados da data em que o primeiro tenha sido notificado (art. 76.º, n.º 1, do CIMI). E é apenas do resultado das segundas avaliações (depois, portanto, de esgotados os meios graciosos do procedimento de avaliação) que cabe impugnação judicial nos termos do CPPT (art. 77.º, n.º 1, do CIMI).
Quer isto significar então que os atos de avaliação de valores patrimoniais previstos no CIMI são atos destacáveis, para efeitos de impugnação contenciosa, devendo formar objeto de impugnação autónoma e não podendo, assim, ser conhecidos, mesmo que incidentalmente, nos processos de impugnação dos atos das liquidações que com base neles sejam efetuadas, os quais não podem assim ter por objeto a discussão da legalidade dos atos de fixação do valor patrimonial tributário.
Desse modo, o sujeito passivo de IMI ou de AIMI pode impugnar as liquidações dos correspondentes tributos mas não são relevantes como fundamentos de anulação eventuais ilegalidades dos antecedentes atos de fixação de valores patrimoniais, que se firmaram na ordem jurídica, por falta de tempestivo esgotamento dos meios graciosos previstos nos procedimentos de avaliações e de subsequente impugnação autónoma a deduzir no prazo de três meses, nos termos dos n.os 1 e 7 do art. 134.º do CPPT. Na verdade, não sendo impugnado tempestivamente o ato de fixação de valores patrimoniais, forma-se caso decidido ou resolvido sobre a avaliação, que se impõe em sede de liquidação de IMI, sendo que “o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada município, pelos serviços centrais da Direcção-Geral dos Impostos, com base nos valores patrimoniais tributários dos prédios e em relação aos sujeitos passivos que constem das matrizes em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeita” (art. 113.º do CIMI; no art. 135.º-C. n.º 1, do CIMI prevê-se um regime análogo para o AIMI, mas reportado à data de 1 de janeiro de cada ano).
Este regime de impugnação autónoma justifica-se por razões de coerência do sistema jurídico tributário inerentes à circunstância de cada ato de avaliação poder servir de suporte a uma pluralidade de atos de liquidação de impostos (liquidações anuais de IMI e de AIMI e eventuais liquidações de IMT) e relevar inclusivamente para vários efeitos a nível de tributação do rendimento (IRS e IRC) e em Imposto do Selo, o que não se compagina com a possibilidade de plúrima avaliação incidental que se reconduzisse à fixação de diferentes valores patrimoniais tributários para o mesmo prédio, no mesmo momento. Esta natureza de ato destacável que é atribuída aos atos de avaliação de valores patrimoniais é, há muito, reconhecida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, desde o tempo em que regime idêntico ao do artigo 134.º, n.ºs 1 e 7 do CPPT, previsto nos n.os 1 e 6 do artigo 155.º do Código de Processo Tributário de 1991, quer em sede de Sisa, quer de contribuição autárquica, quer de IMI quer de IMT (assim, cfr. Ac. STA 30-06-1999, P.º 023160; Ac. STA 02-04-2003, P.º 02007/02; Ac. STA 06-02-2011, P.º 037/11; Ac. STA 19-09-2012, P.º 0659/12; Ac. STA 05-2-2015, P.º 08/13; Ac. STA 13-7-2016, P.º 0173/16; Ac. STA 10-05-2017, P.º 0885/16). Conforme resulta do cit. Ac. STA 19-09-2012: “Na verdade, em sede de IMI, a lei prevê um procedimento de determinação da matéria tributável – a avaliação do prédio (art. 14.º do CIMI) – que termina com o ato de fixação do VPT que serve de base à liquidação do imposto. Este ato, como é sabido, é um ato destacável para efeitos de impugnação contenciosa, pelo que é autonomamente impugnável, numa exceção ao princípio da impugnação unitária que, em regra, vigora no processo tributário (cfr. art. 134.º do CPPT) e que se encontra em sintonia com o preceituado no art. 86.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que os atos da avaliação direta são diretamente impugnáveis.”
Por outro lado, não colhem as críticas da requerente de que a inimpugnabilidade dos atos de liquidação com fundamento em vícios próprios dos atos de avaliação redundaria numa situação de perpetuação das ilegalidades que pudessem afetar tais atos.
É que diferente da questão da impugnabilidade dos atos de liquidação de IMI e AIMI com fundamento em ilegalidade é a possibilidade da revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória, prevista no art. 78.º, n.º 4, da LGT, que constitui, como é entendimento dominante da jurisprudência e da doutrina, um afloramento do dever de revogação (rectius, anulação administrativa) de atos ilegais que emerge do princípio a legalidade da atuação da administração fiscal (arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT).
É precisamente o procedimento de revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave ou notória que faculta, nessas situações clamorosas, a possibilidade de invalidação de atos tributários que já não podem ser impugnados com fundamento em qualquer ilegalidade ou em erro imputável aos serviços. Trata-se, assim, explicitamente, da possibilidade de revisão da matéria tributável, inclusivamente da matéria tributável que resulta de atos de fixação de valores patrimoniais, após a normal consolidação que decorre da não impugnação das avaliações nos prazos legais.
Esta possibilidade de revisão da matéria tributável no âmbito do procedimento de revisão oficiosa está prevista em termos mais restritos do que aqueles em que podem ser tempestivamente impugnados os atos de liquidação, pois, por um lado, só a injustiça grave ou notória da matéria tributável pode servir de fundamento da revisão oficiosa e não qualquer ilegalidade que afete o ato revidendo e, por outro lado, esta possibilidade de revisão da matéria tributável é mais restrita do que a prevista no n.º 1 do mesmo artigo para a revisão de atos de liquidação em geral, pois o prazo é de três anos, em vez do de quatro, ainda que esteja em causa erro imputável à administração fiscal.
A possibilidade de revisão oficiosa de atos de avaliação de valores patrimoniais não está prevista no CIMI (assim, por exemplo o art. 115.º do CIMI reporta-se a atos de liquidação e não a atos de fixação de valores patrimoniais). Por outro lado, trata-se de um regime especial para cumprimento pela administração fiscal do dever de anulação administrativa que emana do princípio da legalidade que, estando especialmente previsto para o contencioso tributário, afasta a aplicabilidade subsidiária do art. 168.º do CPA, pois inexiste uma qualquer lacuna de regulamentação.
Assim, só à face do regime geral da revisão oficiosa, previsto no artigo 78.º da LGT, se pode aventar a possibilidade de revisão dos atos impugnados na presente arbitragem. Da revisão da matéria tributável resultante do n.º 4 do artigo 78.º decorrerá a anulação dos atos consequentes que a tenham como pressuposto, como são os atos de liquidação de IMI ou AIMI — embora sem os efeitos retroativos previstos para a impugnação tempestiva, designadamente a nível de juros indemnizatórios, como decorre dos n.os 1 e 3, als. b) e c), do artigo 43.º da LGT. Apesar de no n.º 4 do artigo 78.º da LGT se referir que “o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excecionalmente” a “revisão da matéria tributável,” trata-se de um poder-dever, estritamente vinculado, cujo cumprimento é sujeito a controle jurisdicional, como tem entendido o Supremo Tribunal Administrativo (cfr. Ac. STA 07-10-2009, P.º 0476/09; Ac. STA 02-11-2011, P.º 329/11; Ac. STA 14-12-2011, P.º 366/11; Ac. STA 17-02-2021, P.º 39/14.9BEPDL).
Nestas situações em que o erro está na fixação da matéria tributável e não propriamente nos subsequentes atos de liquidação, a revisão oficiosa (que, de resto, pode partir da iniciativa do sujeito passivo — cfr. o n.º 7 do art. 78.º da LGT) não depende da existência de erro imputável aos serviços ou de ilegalidade desses atos, mas apenas que se esteja perante “injustiça grave ou notória” desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte. Será assim este o meio procedimental próprio para os sujeitos passivos obterem a reparação de situações de injustiça notória decorrentes da liquidação de IMI ou AIMI com base num valor patrimonial tributário ilegalmente determinado, mas já definitivamente consolidado. Nestes casos o objeto imediato do procedimento de revisão oficiosa é o próprio ato de liquidação (como se depreende da referência a um prazo de “[…] três anos posteriores ao do ato tributário […]”) mas o seu objeto mediato assentará na apreciação de uma situação de “[…]tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade” resultante da matéria tributável que o ato de liquidação teve como pressuposto.
Porém, como os presentes autos revelam à saciedade, e dispensa maior demonstração, a requerente não deduziu, contra as liquidações impugnadas, qualquer pedido de início de procedimento de revisão oficiosa. Apenas na sequência de um tal pedido — e, naturalmente, do seu indeferimento expresso ou tácito — poderia proceder-se à sindicância jurisdicional dessa imputada injustiça grave e notória decorrente de se ter feito assentar um ato de liquidação numa base tributável ilegalmente determinada.
Não se contraponha que o procedimento de reclamação graciosa deduzido pela requerente poderia, nas circunstâncias do caso presente, fazer as vezes do procedimento de revisão oficiosa a que se refere o n.º 4 do art. 78.º da LGT e, desse modo, reconduzir-se funcionalmente ao mesmo desiderato. Não obstante alguma afinidade entre os dois institutos, por em boa verdade se tratar em ambos os casos de procedimentos tributários de segundo grau, há uma clara distinção entre um e outro procedimento, bem manifestada, desde logo, pela exigência de uma intervenção do dirigente máximo do serviço no quadro da tramitação procedimental da revisão oficiosa de que agora se cuida, intervenção essa que está totalmente ausente do procedimento de reclamação graciosa.
Em conclusão, as ilegalidades dos atos de avaliação invocados pela requerente, que não foram objeto de impugnação tempestiva autónoma, não podem considerar-se ilegalidades diretamente assacáveis aos atos de liquidação de IMI ou de AIMI objeto de impugnação na presente arbitragem, suscetíveis de serem invocadas em processo impugnatório destes últimos atos. Como tal, não podem servir de causa de impugnação nesta sede. Por outro lado, não tendo sido alegado, e muito menos demonstrado, que a requerente tenha pedido o desencadeamento do procedimento de revisão oficiosa previsto no art. 78.º, n.º 4, da LGT, também não se pode, nesta sede, conhecer da injustiça grave ou notória da matéria tributável que serviu de base aos atos tributários impugnados na presente arbitragem.
Assim, terá de proceder esta exceção, como se decidirá a final.
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Pelos mesmos fundamentos, procede também a exceção de inimpugnabilidade dos despachos de indeferimento das reclamações graciosas deduzidas pela requerente, mas apenas quanto à ilegalidade decorrente de vício de errónea quantificação do tributo que se lhes imputava.
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Na procedência da exceção que antecede, fica prejudicado o conhecimento da exceção de consolidação administrativa, por sanação dos vícios, do ato de fixação do valor patrimonial tributário do Prédio igualmente invocada na resposta da administração tributária requerida.
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Inexistem quaisquer outras questões prejudiciais ou obstativas do conhecimento do objeto da causa ou nulidades processuais que importe conhecer, quer por terem sido invocadas pelas partes, quer ainda por serem do conhecimento oficioso.
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Devidamente saneados os presentes autos, resulta assim que a única questão de que importa nestes conhecer é, então, a da ilegalidade autónoma dos despachos de indeferimento das reclamações graciosas deduzidas pela requerente na procedência dos vícios de violação do princípio de participação procedimental e de falta de fundamentação que lhe são assacados, assim como dos pedidos acessórios de natureza condenatória.
— III—
FACTOS PROVADOS:
Com relevância para a questão decidenda nos presentes autos consideram-se provados os seguintes factos:
A. A requerente é uma sociedade comercial que tem por objeto a promoção, comercialização, exploração, arrendamento e gestão de património imobiliário próprio ou alheio. A sociedade tem ainda por objeto a compra e venda e revenda de imóveis adquiridos para esse fim, o planeamento de obras e elaboração de projetos para a construção civil, construção e reabilitação de imóveis, adjudicação e gestão de empreitadas e gestão de condomínios.
B. A requerente é proprietária plena de um terreno para construção sito na ...– Lote ..., na freguesia de ... do município de Lisboa e inscrito na matriz predial urbana dessa mesma freguesia sob o n.º ... (“o Prédio”).
C. O Prédio foi objeto de avaliação em 08-05-2014 na sequência da apresentação da declaração Modelo 1 do IMI n.º ... em 02-12-2013, tendo-lhe sido atribuído o valor patrimonial tributário de EUR 13.102.324,82.
D. Com referência ao ano de 2019 a requerente foi notificada de um ato de liquidação de IMT datado de 10-04-2020 que, tendo por base tributária apenas o valor patrimonial tributário referido em C., apurou um montante de imposto a pagar no valor de EUR 39.306,97, a que correspondeu o Documento de Cobrança n.º 2019-... .
E. Com referência ao ano de 2020 a requerente foi notificada da liquidação de AIMI n.º 2020-... datada de 30-06-2020 que, tendo por base tributária o valor patrimonial tributário referido em C., apurou um montante de imposto a pagar no valor de EUR 52.409,30, a que correspondeu o Documento de Cobrança n.º 2020-... .
F. Em 30-12-2020 a requerente apresentou junto do Serviço de Finanças de Lisboa-... quatro reclamações graciosas tendo por objeto os atos tributários referidos em C. e D., que vieram a ser autuadas sob os n.os ...2021..., ...2021..., ...2021... e ...2021... .
G. Mediante ofícios datados de 09-02-2021 a requerente foi notificada, no âmbito dos procedimentos de reclamação graciosa mencionados em F. para exercer o direito de audição prévia acerca de projetos de decisão do seguinte teor:
H. A requerente exerceu o direito de audiência prévia em cada um dos procedimentos de reclamação graciosa mencionados em F., cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
I. As reclamações graciosas referidas em F. foram indeferidas por despachos do Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa – ... que remetiam, em cada um deles, para informações dos serviços das quais constava o seguinte trecho: “Da leitura do documento, entendemos que não foram apresentados elementos novos ao presente processo. [§] proposta de decisão final [§] Em face daquele facto, é nosso parecer que o projeto de decisão apresentado deverá ser convolado em definitivo, considerando-se, consequentemente, indeferido o pedido.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Da factualidade alegada, ou daquela que cumprisse ao Tribunal conhecer oficiosamente, inexistem quaisquer outros factos que sejam relevantes para a decisão da causa de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão que forma o objeto da presente arbitragem, tal como delimitado em sede saneamento.
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
Os factos dados como provados resultam demonstrados pela prova documental junta pela requerente com o pedido de pronúncia arbitral, em especial dos documentos juntos sob os n.os 2 (facto I.), 7 (facto A.), 6 (facto E.), 8 (factos B., C.e D.), 10 (factos F. e G.) e 11 (facto H.).
— IV—
DO VÍCIO DE FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO,
A requerente imputa aos despachos que indeferiram as diversas reclamações graciosas que deduziu o vício de falta de fundamentação, sustentando que não seria possível a um destinatário alcançar o iter cognoscitivo das referidas decisões.
Adiante-se desde já que se considera este vício manifestamente improcedente.
Com efeito, vem sendo de há muito reconhecida a possibilidade de os atos administrativos (aí se incluindo também os atos administrativos em matéria fiscal) poderem remeter a sua fundamentação para informações, pareceres ou propostas constantes dos respetivos processos administrativos — é o que se denomina na doutrina por fundamentação per relationem.
Não se verifica qualquer vício de falta de fundamentação se o órgão administrativo se limitar a remeter a motivação da sua decisão para um precedente ato prodrómico, nem tão-pouco suscita reservas a possibilidade de essa remissão ser feita em cascata, através de sucessivas etapas remissivas. Fundamental é que todos os elementos que, por via dessas remissões, venham a ser incorporados como fundamentação do ato decisório sejam, ou tenham sido, também notificados aos particulares destinatários desses mesmos atos.
No caso dos presentes autos, os diversos despachos que indeferiram as reclamações graciosas apresentadas pela requerente remetem a sua motivação para informações dos serviços, as quais, por seu turno, remetem a sua fundamentação para os projetos decisórios oportunamente comunicados à requerente.
Saber se essa fundamentação, assim incorporada per relationem nos atos decisórios finais dos diversos procedimentos de reclamação graciosa deduzidos pela requerente, é procedente ou congruente ou se (des)considerou a pronúncia do particular em sede de audiência prévia já não se subsume no âmbito da questão de (in)existência de fundamentação.
Improcede assim este vício.
DO VÍCIO DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO PROCEDIMENTAL,
Insurge-se ainda a requerente contra os despachos de indeferimento das reclamações graciosas por violação do seu direito de participação procedimental na medida em que, sustenta, os factos novos por si trazidos a cada um daqueles procedimentos na fase da audiência prévia não teriam sido objeto de qualquer ponderação por parte da AT.
Ora, também aqui falece a argumentação da requerente.
Com efeito, compulsados os requerimentos por intermédio dos quais a requerente exerceu o seu direito de audiência prévia (que constam dos vários documentos que, sob o n.º 11, foram oferecidos com a petição inicial e cujo conteúdo foi dado por integralmente reproduzido no facto H. do probatório) verifica-se que a requerente, de facto, se limitou a reincidir na mesma argumentação, por si já anteriormente sustentada, de que a ilegalidade por si assacada aos atos tributários graciosamente reclamados assentava na circunstância de tais atos terem tido por pressuposto um valor patrimonial tributário ilegalmente determinado, conclusão que sai reforçada da circunstância de a própria requerente, nessas peças procedimentais, concluir afirmando “[r]eitera-se que o VPT do imóvel em apreço foi ilegalmente fixado.”
É certo que a requerente não deixa de invocar como facto novo (de resto o único facto novo trazido à colação nessas peças procedimentais) a alteração legislativa da fórmula de cálculo do valor patrimonial de terrenos para construção introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro. Porém, é manifesto que esse único facto novo é absolutamente impertinente para a apreciação da questão central que se discutia nesses procedimentos tributários de segundo grau, que era a da ilegalidade de atos de liquidação de IMI e de AIMI proferidos em momento anterior à referida alteração legislativa.
Em conclusão, inexistiu assim qualquer infração ao disposto no art. 60.º, n.º 7, da LGT, na medida em que as decisões de indeferimento das reclamações graciosas (mediante remissão para as informações dos serviços, que anexavam) efetivamente ponderaram as pronúncias apresentadas pela requerente em cada um desses procedimentos tributários e concluíram — de resto, corretamente — que dessas pronúncias não constava a invocação de quaisquer elementos novos que tivessem de ser “tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão” final dos referidos procedimentos. É certo que a simples convolação do projeto de decisão em ato decisório, mesmo no quadro de procedimentos em que os interessados não exerceram o seu direito de participação procedimental, está longe de representar aquelas que são as melhores práticas administrativas. Ainda assim, a tal modo de agir administrativo, não obstante roçar laivos de injustificada procrastinação, não corresponde qualquer desvalor jurídico que possa ser assacado aos atos decisórios ora em causa.
Improcede assim também este vício.
DOS PEDIDOS CONDENATÓRIOS,
Face à decisão de absolvição da instância quanto aos pedidos de anulação dos atos de liquidação impugnados nos autos, e bem assim à decisão de improcedência da impugnação dos despachos de indeferimento das reclamações graciosas, fica prejudicado o conhecimento dos pedidos de condenação da requerida na restituição das quantias de imposto que a requerente colocou a pagamento e, bem assim, no pagamento de juros indemnizatórios sobre essas mesmas quantias.
DA RESPONSABILIDADE PELAS CUSTAS,
Vencida na presente arbitragem, é a requerente responsável pelas custas — art. 12.º, n.º 2, do RJAT e arts. 4.º, n.º 5, e 6.º, al. a), do Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária do CAAD.
Assim, tendo em conta o valor de EUR 91.716,29 atribuído ao presente processo arbitral em sede de saneamento, por aplicação da l. 8 da Tabela I anexa ao mencionado Regulamento, há que fixar a taxa de arbitragem desta arbitram em EUR 2.754,00, em cujo pagamento se condenará a final a requerente.
— V—
Assim, pelos fundamentos expostos, acordam os árbitros que compõem este Tribunal Arbitral Tributário em:
a) Absolver a requerida Autoridade Tributária e Aduaneira da instância arbitral quanto aos pedidos de declaração de ilegalidade e anulação dos atos de liquidação de IMI relativo ao ano 2019 e de AIMI relativo ao ano de 2020, e bem assim quanto ao pedido de anulação dos despachos de indeferimento das reclamações graciosas que incidiram sobre tais atos tributários, mas neste último caso apenas em relação à causa de ilegalidade decorrente de vício de errónea quantificação do tributo que se lhes imputava;
b) Absolver a requerida Autoridade Tributária e Aduaneira do pedido de anulação dos despachos de indeferimento das reclamações graciosas referidas na alínea antecedente, no que concerne às causas de ilegalidade decorrentes dos vícios de violação do princípio da participação procedimental e de falta de fundamentação que se lhes assacava;
c) Julgar prejudicado o conhecimento dos pedidos condenatórios deduzidos pela requerente;
d) Condenar a requerente A..., S.A. nas custas da presente arbitragem, fixando o valor total da taxa de arbitragem em EUR 2.754,00.
19 de Julho de 2022
O Tribunal Arbitral,
(Fernando Araújo – Presidente)
(vencido, junta declaração de voto)
(Gustavo Gramaxo Rozeira – Relator)
(Maria Manuela Roseiro)
(junta declaração de voto)
DECLARAÇÃO DE VOTO
SUMÁRIO:
1. O problema: fixação incorrecta do VPT de terrenos para construção
2. A ilegalidade até finais de 2020: um problema sistémico e não de qualquer avaliação em particular
3. As normas mais relevantes à data dos factos
4. Duplicação e sobreposição de coeficientes: a reacção jurisprudencial e a réplica legal (com suspeitas de subsistente inconstitucionalidade)
5. O poder-dever de revisão oficiosa, e a iniciativa dos particulares
6. O problema da preclusão: real? relevante?
7. Preclusão: interpretação subtractiva
8. Preclusão: interpretação ampliativa
9. A “válvula de escape” do art. 78º da LGT
10. O reconhecimento, pela AT, da necessidade de revisão oficiosa – em documentos seus
11. A revisão oficiosa por parte da AT – na prática
12. O equívoco da confusão entre prazos de revisão oficiosa e prazos de impugnação judicial: o momento da verdadeira consolidação do acto
13. O novo direito administrativo (CPA e CPTA) e a nova interpretação ampliativa
14. O triunfo da impugnação unitária e o ocaso do ónus de impugnação de actos procedimentais
15. A nova defesa “ampliativa” do princípio da legalidade
16. O erro sistémico numa aplicação informática não é um erro de avaliação: a irrelevância, no caso, dos actos “destacáveis”
17. A questão da “segunda avaliação”
18. A dupla irrelevância procedimental em processos arbitrais tributários
19. Direitos acrescidos de impugnação no novo Direito Administrativo e Tributário
20. Conclusões
1. O PROBLEMA: FIXAÇÃO INCORRECTA DO VPT DE TERRENOS PARA CONSTRUÇÃO
O presente caso integra-se numa família de litígios resultantes da incorrecta avaliação de terrenos para construção, e das consequências em termos de liquidação do IMI – e ocasionalmente do AIMI.
Isso permite-nos enquadrarmos mais amplamente os contornos jurídicos do caso, falando com alguma generalidade de toda esta situação.
Comecemos por recordar que se consideram terrenos para construção os situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que tenham sido declarados dessa forma no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos relativamente aos quais as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes ou áreas protegidas, ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afectos a espaços, infraestruturas ou equipamentos públicos.
Durante vários anos, nomeadamente na vigência da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, e até à entrada em vigor da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, na determinação do valor patrimonial tributário (doravante, VPT) de terrenos para construção, a AT aplicou a fórmula prevista no art. 45º do CIMI, mas fê-lo estendendo o seu âmbito através da adição de fórmulas de cálculo estabelecidas nos arts. 38º e seguintes do CIMI, fórmulas concebidas para serem aplicadas exclusivamente na avaliação de prédios edificados – nomeadamente, os coeficientes multiplicadores de VPT: coeficientes de localização, de afectação, de qualidade e de conforto.
Essa extensão fez-se por pretensa “analogia”, e ela ocorreu de modo sistemático – para todas as avaliações, e não, que se saiba, para umas avaliações mas não para outras.
2. A ILEGALIDADE ATÉ FINAIS DE 2020: UM PROBLEMA SISTÉMICO E NÃO DE QUALQUER AVALIAÇÃO EM PARTICULAR
Criou-se, assim, um problema sistémico, como o reconheceu a alteração legislativa ocorrida no final do ano de 2020, com a Lei do Orçamento de Estado de 2021 (a mencionada Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro), a qual, removendo os obstáculos que tinham tornado necessária a extensão pseudo-analógica do art. 45º do CIMI, tornava legal aquilo que, a contrario, fora até então ilegal – ilegal num triplo sentido:
1) seja no sentido de desprovido de base legal,
2) seja no sentido de transgressor directo de uma vedação legal de recurso a analogia, estabelecida pelo art. 11º, 4 da LGT,
3) seja ainda no sentido de violador dos princípios constitucionais da legalidade e da reserva de lei que aparecem consagrados no art. 103º, 2 da Constituição – sendo que estas incidências constitucionais serão enfatizadas no Acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 23 de Outubro de 2019, proferido no processo n.º 170/16.6BELRS 0684/17.
Conclui-se, portanto, que o que está em causa não são os aspectos formais relativos ao procedimento de avaliação, mas sim questões de natureza substantiva atinentes à aplicação da lei no tocante à identificação e à aplicação de critérios para efeitos de atribuição do VPT aos terrenos para construção.
Como veremos, aspectos procedimentais e processuais referentes a acidentes comuns da avaliação de terrenos para construção e da fixação do VPT perdem aqui alguma da sua validade, e revelam-se inidóneos para fazerem frente, e resolverem, um problema sistémico desta natureza e desta amplitude.
3. AS NORMAS MAIS RELEVANTES À DATA DOS FACTOS
Era esta a redacção do art. 45º do CIMI à data dos factos (essencialmente, a redacção introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro):
“Artigo 45º (Valor patrimonial tributário dos terrenos para construção)
1 - O valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é o somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor do terreno adjacente à implantação.
2 - O valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas.
3 - Na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação têm-se em consideração as características referidas no n.º 3 do artigo 42.º
4 - O valor da área adjacente à construção é calculado nos termos do n.º 4 do artigo 40.º.
5 - Quando o documento comprovativo de viabilidade construtiva a que se refere o artigo 37.º apenas faça referência aos índices do PDM, devem os peritos avaliadores estimar, fundamentadamente, a respetiva área de construção, tendo em consideração, designadamente, as áreas médias de construção da zona envolvente.”
Por sua vez, o artigo 42º, para que remetia o n.º 3 deste artigo 45º, estabelece o seguinte (novamente, na redacção introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro)):
“Artigo 42.º (Coeficiente de localização)
[…]
3 - Na fixação do coeficiente de localização têm-se em consideração, nomeadamente, as seguintes características:
a) Acessibilidades, considerando-se como tais a qualidade e variedade das vias rodoviárias, ferroviárias, fluviais e marítimas;
b) Proximidade de equipamentos sociais, designadamente escolas, serviços públicos e comércio;
c) Serviços de transportes públicos;
d) Localização em zonas de elevado valor de mercado imobiliário.
4 - O zonamento consiste na determinação das zonas homogéneas a que se aplicam os diferentes coeficientes de localização do município e as percentagens a que se refere o n.º 2 do artigo 45.º”
Note-se que a própria remissão para os artigos 42º e 40º do CIMI, constante do artigo 45º, 3 e 4, e mesmo a redacção dada ao artigo 46º, relativo ao valor patrimonial tributário dos prédios da espécie “outros”, em que expressamente se refere que “o valor patrimonial tributário é determinado nos termos do artigo 38.º com as necessárias adaptações”, é demonstrativo de que, na determinação do VPT dos terrenos para construção, não entravam outros factores que não fossem o valor da área da implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à implantação: é que a própria remissão feita para os artigos 42º e 40º do CIMI não consagra a aplicação dos coeficientes aí referidos, mas apenas acolhe, respectivamente, as características que hão de determinar o valor do coeficiente a utilizar, e o modo de cálculo.
Sucede ainda que, em algumas avaliações, se aplicou também, aos terrenos para construção, a majoração de 25% prevista no art. 39º, 1 do CIMI.
Ora esse preceito, na redacção anterior à Lei nº 75-B/2020, de 31 de Dezembro, tinha por epígrafe “valor base dos prédios edificados” e estabelecia que “o valor base dos prédios edificados (Vc) corresponde ao valor médio de construção, por metro quadrado, adicionado do valor do metro quadrado do terreno de implantação fixado em 25% daquele valor”.
Na redacção da Lei nº 75-B/2020, de 31 de Dezembro, desapareceu a menção a “prédios edificados”, ficando somente “prédios”.
Mas também aqui fica claro que, até a esse momento, o disposto no art. 39º, 1 do CIMI era exclusivo para prédios edificados, deixando de fora do seu âmbito os terrenos para construção – uma conclusão reforçada pela circunstância de o art. 45º do CIMI não remeter, nem na anterior redacção nem na actual, para o art. 39º do CIMI.
4. DUPLICAÇÃO E SOBREPOSIÇÃO DE COEFICIENTES: A REACÇÃO JURISPRUDENCIAL E A RÉPLICA LEGAL (COM SUSPEITAS DE SUBSISTENTE INCONSTITUCIONALIDADE)
Daqui se infere que essa sobreposição de factores e coeficientes causou uma aplicação duplicada das bases de cálculo do VPT, com a mesma realidade a ser considerada de forma sobreposta, e a influenciar duplamente o resultado, primeiro da avaliação, depois da liquidação.
Cedo a doutrina reagiu:
“dada a coincidência de serem os mesmos factores que estão na base da construção do coeficiente de localização e das percentagens, parece também ser defensável a ideia de que não seria aplicável na fórmula de avaliação dos terrenos para construção o coeficiente de localização” – José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 2010, pp. 53 e 103 e ss..
Seguiu-se a reacção jurisprudencial dos tribunais superiores, a reconhecer que, dessa sistemática interpretação e aplicação ilegais das normas do CIMI, resultou uma determinação excessiva do VPT dos terrenos para construção, que consistiu na adição, aos coeficientes de valorização já previstos no art. 45º do CIMI, dos coeficientes de localização e de afectação previstos no art. 38º do mesmo CIMI – tudo traduzido numa valorização redundante, duplicadora, excessiva, irrealista e injusta, com repercussão directa na incidência do imposto.
Reagindo a uma massa de casos concretos que se ia avolumando, a jurisprudência reconhecia ainda que, de forma indiscriminada e persistente, os coeficientes do art. 38º do CIMI, multiplicadores do VPT, tinham sido aditados à fórmula do art. 45º do CIMI, invocando-se (erradamente) a analogia para tanto, com o efeito já assinalado de alterarem a base tributária, e de, por essa via, repercutirem na incidência do imposto – nomeadamente duplicando o factor da localização, já incluído na percentagem prevista no art. 45º, 3 do CIMI e novamente nos coeficientes do art. 38º do CIMI.
Seguia-se a inferência lógica de um tal entendimento:
“Na fórmula final de cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse fator de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no nº 3 do art.º 45.º do CIMI” – Acórdãos do STA, de 5 de Abril de 2017, Processo n.º 01107/16, de 28 de Junho de 2017, Processo n.º 0897/16, de 14 de Novembro de 2018, Processo n.º 0133/18, ou ainda acórdãos de 16 de Maio de 2018, Processo n.º 0986/16, ou de 23 de Outubro de 2019, Processo n.º 170/16.6BELRS 0684/17.
Mais ainda, os tribunais superiores tinham por certo que, até à entrada em vigor da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, ou seja, até ao último dia de 2020, não se encontrava qualquer apoio na lei para se alegar similitudes entre edifícios construídos e terrenos para construção; e em verdade, estando previstas, no art. 45º do CIMI, as fórmulas de cálculo para os terrenos para construção, não se descortinava qualquer lacuna que legitimasse o recurso a uma verdadeira interpretação analógica – se porventura tal legitimação fosse possível – Acórdãos do STA de 13 de Janeiro de 2021, Processo n.º 0732/12.0BEALM 01348/17, de 23 de Março de 2022, Processo n.º 0653/09.4BELLE.
E o mesmo se diria, até àquela data, da majoração de 25% estabelecida no artigo 39º do Código do IMI, que se aplicava exclusivamente aos prédios edificados, não devendo ser considerada na fórmula de cálculo do VPT dos terrenos para construção – e daí que a Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, tenha tido o cuidado de expressamente remover, daquele art. 39º, a menção a “prédios edificados”, permitindo que, a partir de 1 de Janeiro de 2021, passasse a ser legal – deixasse de ser ilegal – aplicar a mesma majoração a prédios não edificados, nomeadamente a terrenos para construção.
Vamos deixar de lado, porque irrelevante para o caso em apreço, a questão de saber se as modificações introduzidas pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, resolvem o problema da sobre-tributação dos terrenos para construção, na medida em que, consagrando a livre sobreposição e duplicação de critérios, possa desfavorecer os prédios não-edificados e violar o princípio da capacidade contributiva. Mas não é difícil adivinhar que o problema se suscitará no futuro.
Assentemos apenas no facto, assaz impressionante, de haver uma jurisprudência uniforme no STA relativamente à injustiça e ilegalidade da sobreposição de critérios exclusivos de prédios edificados (destinados a habitação, comércio, indústria e serviços) com os critérios próprios do cálculo do VPT de terrenos para construção, ao menos desde o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA de 21 de Setembro de 2016, no Processo nº 1083/13 – reiterado em acórdãos do Pleno de 3 de Julho de 2019, Processo n.º 16/10.9BELLE, e acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do STA, como os de 5 de Abril de 2017, Processo n.º 1107/16; de 28 de Junho de 2017, Processo n.º 897/16; de 16 de Maio de 2018, Processo n.º 986/16; de 14 de Novembro de 2018, Processo n.º 398/08.2BECTB (133/18); de 9 de Outubro de 2019, Processo n.º 165/14.4BEBRG; de 23 de Outubro de 2019, Processo n.º 170/16.6BELRS (684/17); de 13 de Janeiro de 2021, Processo n.º 732/12.0BEALM (1348/17); de 7 de Abril de 2021, Processo n.º 919/07.8BEBRG; de 6 de Outubro de 2021, Processo n.º 118/09.4BEVIS (1293/17).
Essa interpretação uniforme passou também a abranger o entendimento de que a nova redacção introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, ao consagrar expressamente a aplicação do coeficiente de localização na fórmula para determinação do VPT dos terrenos para construção, “não tem, manifestamente, carácter interpretativo, antes constituindo uma clara alteração das regras até então vigentes” (STA, Acórdão de 23 de Março de 2022, Processo nº 0635/09.4BELLE).
Em síntese, essa jurisprudência uniforme dos tribunais superiores afasta, do cálculo do VPT de terrenos para construção, os coeficientes que, até final de 2020, não estivessem expressamente consagrados no art, 45º do CIMI, ou para os quais este artigo não remetesse expressamente.
Como se lê num acórdão recente:
“Tais coeficientes respeitam apenas ao edificado, mas não têm base real de sustentação na potencialidade que o terreno para construção oferece. Nos terrenos para construção visa-se taxar o valor da capacidade construtiva, geradora de acréscimo de valor patrimonial ou riqueza para o seu proprietário; e não factores ainda não materializados. [§] A aplicação destes factores na determinação do VPT dos terrenos de construção só poderia ser levada a cabo por analogia, que se deve ter por proibida, nos termos do disposto no art. 11.º da LGT, na medida em que a aplicação dos mesmos tem influência na base tributável, reflectindo-se na norma de incidência. [§] Assim os coeficientes de afectação, de localização e de qualidade e conforto relacionados com o prédio a construir não podiam nem deviam ser tidos em conta na avaliação do VPT do terreno para construção. [§] Não encontramos motivo para nos afastarmos dessa jurisprudência, antes se nos impondo o respeito pela mesma, atento o disposto no n.º 3 do art. 8.º do Código Civil” (STA, Acórdão de 23 de Março de 2022, Processo nº 0635/09.4BELLE)
Segue-se, deste juízo, o corolário da ilegalidade: a Autoridade Tributária não está autorizada a efectuar liquidações que extravasem os limites estritos da lei, pois à lei ela deve obediência, nos termos do art. 103º, 3, in fine da Constituição, e do art. 8º da LGT.
A mesma conduta decorre, aliás, dos princípios a que a AT está adstrita no procedimento tributário. Determina o art. 55º da LGT:
“A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários”.
5. O PODER-DEVER DE REVISÃO OFICIOSA, E A INICIATIVA DOS PARTICULARES
Daqui decorre que, sempre que a AT toma conhecimento de um erro que lhe seja imputável, ou de uma ilegalidade que tenha nascido de erro seu, tem a obrigação de proceder à correcção do erro e à sanação da ilegalidade, revendo o acto tributário “no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”, como se estabelece no art. 78º, 1 da LGT – um corolário mais do princípio da legalidade, que levou a que a jurisprudência viesse a adoptar a interpretação, ora dominante, de que a revisão oficiosa da iniciativa da AT, nos prazos de que a mesma dispõe para o efeito, pode também ela ser colocada em marcha por um requerimento dos sujeitos passivos: veja-se nesse sentido os Acórdãos do STA de 24 de Maio de 2006, Processo n.º 01155/05; de 12 de Julho de 2006, Processo n.º 0402/06; de 15 de Novembro de 2006, Processo n.º 028/06; de 22 de Março de 2011, Processo n.º 01009/10; de 14 de Março de 2012, Processo n.º 01007/11; de 6 de Fevereiro de 2013, Processo n.º 0839/11; de 2 de Julho de 2014, Processo n.º 01950/13; de 18 de Novembro de 2015, Processo n.º 01509/13; de 4 de Maio de 2016, Processo n.º 0407/15; de 9 de Novembro de 2016, Processo n.º 01524/15; de 3 de Fevereiro de 2021, Processo n.º 02683/14.5BELRS 0181/18.
Como pode ler-se num desses arestos,
“É hoje jurisprudência consolidada que, podendo a AT, por sua iniciativa, proceder à revisão oficiosa do acto tributário, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços (art. 78.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária), também o contribuinte pode, naquele prazo da revisão oficiosa, pedir esta mesma revisão com aquele fundamento” (Acórdão do STA de 4 de Maio de 2016, Processo n.º 0407/15).
Com efeito, a jurisprudência do STA passou a conceber a revisão oficiosa como um poder de natureza vinculada, um “poder-dever” que decorre da subordinação da AT aos princípios da justiça, da igualdade e de legalidade (art. 266º, 2 da Constituição, art. 55º da LGT), e que se traduz na obrigação de que “sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao que seria devido à face da lei” (Acórdão do STA de 3 de Fevereiro de 2021, Processo n.º 02683/14.5BELRS 0181/18).
Daí, a mesma jurisprudência retirou o argumento de que a revisão oficiosa é admissível ainda que não tenha sido sequer interposta a reclamação graciosa prevista no art. 131.º do CPPT, ou ainda que seja ultrapassado o prazo para o efeito, entendendo-se que a revisão oficiosa não pode depender da reclamação prévia, pois a interpretação contrária seria injustificadamente restritiva dos direitos do contribuinte, estabelecidos no nº 7 do art. 78ºda LGT.
Conclui-se que “o facto de ter transcorrido o prazo de reclamação graciosa não impede o impugnante de pedir a revisão oficiosa e impugnar contenciosamente o acto de indeferimento desta” – Acórdão do STA de 29 de Outubro de 2014, Processo n.º 01540/13. Ver ainda acórdãos do STA de 12 de Setembro de 2012, Processo n.º 476/12; de 14 de Junho de 2012, Processo n.º 259/12; de 14 de Março de 2012, Processo n.º 1007/11; de 29 de Maio de 2013, Processo n.º 140/13; de 14 de Dezembro de 2011, Processo n.º 366/11; de 20 Novembro de 2007, Processo n.º 536/07; e de 02 de Fevereiro de 2005, Processo n.º 1171/04.
6. O PROBLEMA DA PRECLUSÃO: REAL? RELEVANTE?
Ora, sendo admissível o pedido de revisão oficiosa pelo contribuinte, nos termos e no prazo em que o mesmo é admissível para a AT, ainda que após o esgotamento do decurso do prazo de reclamação graciosa, ou quando a mesma não chegue sequer a ser interposta, impende sobre a AT o dever de aceitar o pedido de revisão oficiosa apresentado pelo contribuinte, ou, se for o caso, convolar em revisão oficiosa a reclamação graciosa que tenha sido apresentada fora do prazo da reclamação graciosa, mas dentro do prazo da revisão oficiosa, ou remeter oficiosamente o pedido para a entidade competente para apreciá-lo – nos termos dos arts. 19º e 52º do CPPT –, não sendo aceitável que a AT se escude em formalismos para reduzir os direitos do contribuinte, o que violaria o princípio da colaboração, e ainda eventualmente os princípios da celeridade e da eficiência, a que a AT deve respeito (arts. 55º e 59º da LGT, art. 48º, 1 do CPPT) – Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), Acórdão de 15 de Abril de 2021, Processo nº 02010/12.6BEPRT.
A conjugação deste quadro legal e jurisprudencial coloca em crise, neste contexto, o conceito tradicional de preclusão – especificamente, no caso, a preclusão resultante da ultrapassagem dos prazos estabelecidos nos arts. 71º a 77º do CIMI quanto a primeiras e segundas avaliações, e quanto à impugnação judicial nos termos gerais do CPPT, ou no art. 20.º do Dec.-Lei 287/2003, de 12 de Novembro, relativo à reclamação da actualização do VPT, e subsequente impugnação judicial.
A preclusão respeitaria à possibilidade de impugnação autónoma da fixação do VPT – tornando este um acto destacável, visto que a sua impugnação passava a ser possível independentemente da existência, ou não, de liquidação – por conjugação do art. 15º, 2 do CIMI com o art. 86º, 1 da LGT, que estabelece, para a avaliação directa, a susceptibilidade de impugnação contenciosa directa, uma impugnação autónoma nos termos do art. 134º, 1 do CPPT, com a consequência de a impugnação depender do esgotamento dos meios administrativos previsto para a revisão, como resultaria dos arts. 86º, 2 da LGT e 134º, 7 do CPPT –.
7. PRECLUSÃO: INTERPRETAÇÃO SUBTRACTIVA
Ao estabelecer este regime específico para a contestação do acto de fixação do VPT, isto parece constituir, por si só, um desvio, por opção legislativa, ao regime da impugnação unitária previsto no artigo 54.º do CPPT, o que alegadamente subtrairia a sua apreciação da impugnação judicial da subsequente liquidação de IMI (mais adiante voltaremos a esta interpretação subtractiva que transforma a preclusão numa diminuição das garantias do contribuinte).
Todavia, como se lê num acórdão arbitral representativo de grande número de outros,
“Sem prejuízo de a lei consagrar a via da impugnação contenciosa direta do ato destacável de fixação do VPT e a condicionar ao esgotamento dos meios administrativos (leia-se, ao pedido de segunda avaliação de prédios urbanos) com efeitos preclusivos, não pode acolher-se, sem mais, a consequência de que as liquidações a coberto desse VPT fariam caso decidido, consolidando-se juridicamente” – Processo n.º 486/2020‐T, de 26 de Novembro de 2021 (árbitros Alexandra Coelho Martins, Carla Alexandra Pacheco de Almeida Rocha da Cruz e Eduardo Paz Ferreira).
Uma via possível de salvar o conceito, que tem tido amplo acolhimento em sede arbitral, é a de conjugar “preclusão” com uma “válvula de escape”: ou seja, admitir que houve uma preclusão verdadeira e própria quanto à possibilidade de sindicar um VPT erradamente calculado, mas que (algo contraditoriamente no que respeita a efeitos preclusivos) isso não impediria uma reacção do contribuinte às liquidações assentes naquele VPT.
Assim, não negando que a fixação do VPT constituísse um acto administrativo em matéria tributária, destacável, e, por isso, passível de impugnação autónoma, uma decisão pioneira do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), Acórdão de 31 de Outubro de 2019, Processo nº 2765/12.8BELRS, estabelecia que:
“De facto, deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o VPT, nem assim fica impossibilitado de arguir a ilegalidade do VPT fixado, embora com efeitos restritos às liquidações posteriores à reclamação. Defender o contrário é o mesmo que defender a perpetuidade da conduta ilegal da Administração, o que repugna ao bom senso e ao Direito admitir. [§] Assim, no plano do Direito o artigo 115.º do CIMI constitui uma válvula de escape para tais situações, devendo o respectivo mecanismo ser desencadeado pela Administração, por sua iniciativa ou a impulso do interessado. [§] Ora, uma das hipóteses contempladas neste normativo é a eliminação de erros de que resulte uma colecta de montante superior ao devido [al. c) do n.º 1]. [§] Por conseguinte, não se pode falar em verdadeira impropriedade do meio, sendo certo que ainda que se admita essa hipótese, como a administração apreciou o direito da recorrida, tal apreciação fez nascer na esfera jurídica desta o direito à impugnabilidade da decisão, nos termos do artigo 268.º, n.º 4, da CRP. [§] Restringir ou eliminar essa impugnabilidade constituiria, outrossim, uma agressão manifesta ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, plasmado nessa norma constitucional.”
E como chegava este tribunal a esse entendimento?
Subscrevendo a noção, que adiante exploraremos mais a fundo, de que a impugnação autónoma dos actos destacáveis soma-se à garantia dos administrados, não se subtrai a ela – pelo que, logicamente, a preclusão não deve contribuir para a diminuição das garantias do contribuinte, mormente as procedimentais e processuais, nem deve colocar o contribuinte, artificiosamente, numa situação pior do que aquela que motivaria a impugnação unitária de actos lesivos da sua esfera jurídica.
Admitir-se-ia somente que, tendo havido impugnação autónoma do acto interlocutório, essa circunstância se apresentasse como prejudicial (em termos de litispendência ou de caso julgado) no caso de os mesmos vícios do acto destacável servirem de fundamento à impugnação unitária da decisão final. Mas esta hipótese não está aqui em causa.
8. PRECLUSÃO: INTERPRETAÇÃO AMPLIATIVA
O princípio da impugnação unitária está consagrado no art. 54º do CPPT:
“Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”
A impugnabilidade autónoma constitui, nos termos deste artigo, um desvio ao princípio da impugnação unitária, o qual postula que em princípio só é possível impugnar o acto final do procedimento tributário, por só este apresentar, novamente em princípio, efeitos lesivos na esfera jurídica do contribuinte.
Distinguindo-se aqui a garantia jurisdicional dos meros actos destacáveis, que resultará das leis e da construção jurisprudencial, da garantia contra os actos lesivos (enumerados exemplificativamente no art. 95º, 2 da LGT), que estão cobertos pela cláusula de protecção jurisdicional efectiva inscrita no art. 268.º, 4 da Constituição:
“É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas.” (cfr. também o art. 20º da Constituição, “Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”)
Daí que esse art. 54º do CPPT preveja expressamente que todos os actos instrumentais, preparatórios ou prodrómicos de uma decisão final podem ser sempre impugnados através da impugnação dessa decisão final, haja ou não susceptibilidade de impugnação autónoma.
Por um lado, o “sem prejuízo” da letra do artigo indica que fica sempre salvaguardada a possibilidade de “ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”
Por outro lado, já que essa possibilidade de impugnação unitária, a final, fica sempre aberta, a impugnação autónoma dos actos interlocutórios do procedimento, quando ela seja possível, nunca representa um ónus do contribuinte, representando apenas uma mera faculdade do contribuinte, um “mais” que se adiciona às garantias de defesa, e não um “menos” que, por não-exercício do contribuinte, por não preenchimento do ónus, viesse a impedir a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios dos actos interlocutórios.
Embora o legislador disponha de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, não sendo incompatível com a tutela jurisdicional a imposição de determinados ónus às partes, o que é certo é que o direito ao processo inculca que os regimes adjectivos devem revelar -se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.
É essa negação da interpretação subtractiva do art. 54º do CPPT que resulta clara do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 410/2015, de 19 de Novembro:
“Julga inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário que, qualificando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial dos atos interlocutórios imediatamente lesivos dos seus direitos, impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles.”
É também nesse contexto que o Tribunal Central Administrativo Sul chegou à interpretação ampliativa segundo a qual:
“A impugnação autónoma dos actos destacáveis tem como propósito oferecer uma maior garantia aos administrados, permitindo-lhes reagir atempadamente de molde a evitar a produção de efeitos lesivos, que se projectam no acto final do procedimento ou em actos externos a este” – TCAS, Acórdão de 31 de Outubro de 2019, Processo nº 2765/12.8BELRS.
Como se trata de “oferecer uma maior garantia aos administrados”, segue-se que a preclusão tem que ficar limitada, de forma a que os actos destacáveis não se convertam em veículos de menor garantia dos administrados, através da consolidação jurídica de actos que não tenham sido impugnados nos prazos estabelecidos por lei.
Tratar-se-ia de encarar a impugnabilidade imediata como propiciadora de maiores garantias ao particular – tendo essa intencionalidade de consagração de um meio de garantia mais amplo, e não um intuito de restrição dos meios normais de garantia.
Lê-se numa decisão arbitral:
“Em resumo, entendemos que a previsão da impugnabilidade autónoma de atos destacáveis visa, em geral, conferir maiores garantias aos particulares e não reduzir o âmbito das garantias que a lei, em geral, prevê. [§] Assim, tal previsão legal não deve ser entendida - salvo existindo razões substanciais que a tal se oponham, o que não acontece no presente caso - como precludindo a possibilidade de impugnação dos vícios do ato instrumental (fixação do VPT) em processo de impugnação do ato conclusivo do procedimento (liquidação).”[1]
9. A “VÁLVULA DE ESCAPE” DO ART. 78º DA LGT
Daí a já mencionada “válvula de escape”, a necessidade – decorrente de uma exigência constitucional – de uma norma que, sobrepondo-se aos efeitos da preclusão “clássica”, na prática anulando tais efeitos, permita à Administração rever as suas próprias decisões, a fim de corrigir as ilegalidades que possa ter cometido.
E será essa a função do art. 78º da LGT, ao prever a possibilidade de revisão dos actos tributários com fundamento em ilegalidade ou erro:
“O artigo 78.º da LGT consagra um verdadeiro direito do contribuinte, permitindo-lhe exigir da administração tributária que expurgue da ordem jurídica, total ou parcialmente, um acto ilegal, bem como a restituição do que tenha sido ilegalmente cobrado, com base no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que não permite a cobrança de tributos, nem os respectivos montantes, que não estejam previstos na lei.” – TCAS, Acórdão de 31 de Outubro de 2019, Processo nº 2765/12.8BELRS.
Dir-se-á que, sendo a fixação do VPT um simples acto administrativo em matéria fiscal, e não um acto tributário stricto sensu, o art. 78º da LGT não se lhe aplica.
Mas a verdade é que esta distinção não pode permitir que se produzam actos tributários que são ilegais, porque assentam em valores ilegalmente apurados, e que esses actos se tornem inimpugnáveis em si mesmos com a alegação, patentemente absurda, de que, sendo identificável a causa da invalidade desses actos, é essa causa que deve ser impugnada, e não os actos; como se, mais especificamente, identificada a causa da invalidade do acto tributário de liquidação, o acto tributário deixasse de ser inválido, para ser inválida apenas a “causa”, o acto administrativo da fixação do VPT. Era como se, em suma, identificada uma doença, o paciente deixasse ipso facto de estar doente dela…
Numa síntese do entendimento dominante no seio da arbitragem tributária, leia-se:
“tal como se pode ler expressamente na decisão arbitral proferida a 2 de julho de 2021 no Processo n.º 760/2020-T, a questão não é a de saber se, como alega a Requerida, “a lei configura a fixação do VPT como um ato destacável, prevendo a sua impugnação judicial autónoma – o que é um facto –” (ou, como alega a Requerida, a sua contestação por via do disposto no artigo 168.º n.º 1 do CPA), “mas sim saber se existem razões que obstem a que tal ato, quando surja como instrumental relativamente a um ato de liquidação, possa, também, ser objeto de apreciação em processo dirigido à impugnação desta”. Com efeito, “a previsão da impugnabilidade autónoma de atos destacáveis visa, em geral, conferir maiores garantias aos particulares e não reduzir o âmbito das garantias que a lei, em geral, prevê. Assim, tal previsão legal não deve ser entendida - salvo existindo razões substanciais que a tal se oponham, o que não acontece no presente caso - como precludindo a possibilidade de impugnação dos vícios do ato instrumental (fixação do VPT) em processo de impugnação do ato conclusivo do procedimento (liquidação)”.” – Processo n.º 408/2021‐T, de 12 de Janeiro de 2022 (árbitro Ana Paula Rocha)
Não tendo existido, ou não tendo sido alegado, qualquer comportamento negligente por parte do contribuinte, e dado que os erros detectados ocorreram num procedimento desencadeado, concretizado e liderado pela AT, sem qualquer possibilidade de interferência por parte do sujeito passivo da relação tributária, segue-se que a Administração teria o dever estrito de desencadear, por sua iniciativa, a revisão dos actos tributários com fundamento em erro imputável aos serviços, nos termos do art. 78º, 1 da LGT e do art. 115º, 1, c) do CIMI.
Ou, caso o art. 78º, 1 da LGT não fosse, por qualquer razão, inteiramente aplicável – por se entender que o que é visado é a fixação do VPT e não os actos de liquidação de IMI –, a Administração teria o mesmo dever estrito de desencadear, por sua iniciativa, a revisão dos actos tributários com fundamento em erro gerador de injustiça grave ou notória, nos termos do art. 78º, 4 e 5 da LGT – já que é indiscutível, no caso em apreço, que houve uma fixação de VPT e uma resultante liquidação que claramente excederam o que seria computável por uma aplicação não-incorrecta da lei[2].
Ambas as vias de anulação administrativa (que, veremos, há que demarcar da impugnação judicial ou arbitral) terão somente como limite temporal o prazo de cinco anos estabelecido no art. 168º, 1 do CPA – uma anulação que inequivocamente abrange tanto actos administrativos simples – como a fixação do VPT – como actos tributários proprio sensu – como é o caso das liquidações de IMI e AIMI –.
E, como referimos, é hoje pacífico na jurisprudência que a iniciativa de revisão pela administração pode ser desencadeada a impulso do interessado, quando tenha ocorrido erro imputável aos serviços. E o mesmo entendimento consensual se verifica na doutrina[3].
Sem esquecermos que, ainda que a letra do art. 78º, 4 da LGT aponte para uma faculdade (“o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente”), a verdade é que a objectividade da “injustiça grave ou notória” permite redefinir esse poder em termos de estrita funcionalização, como um poder-dever, estritamente vinculado, da AT, cujo cumprimento é sujeito a controlo jurisdicional (note-se que o art. 78º, 4 da LGT estabelece uma alternativa, “grave ounotória”, não sendo, portanto, um requisito cumulativo).
10. O RECONHECIMENTO, PELA AT, DA NECESSIDADE DE REVISÃO OFICIOSA – EM DOCUMENTOS SEUS
Ora o facto é que, em numerosos processos – ao menos na jurisdição arbitral isso é notório –, a AT, reconhecendo a ilegalidade da avaliação a que procedeu, e na qual, por analogia, aplicou coeficientes que se destinavam exclusivamente à avaliação de prédios edificados, toma a iniciativa de anular administrativamente as avaliações relativamente às quais não esteja ultrapassado o prazo de cinco anos, e informa os sujeitos passivos de que iniciará um novo procedimento de avaliação nos termos do art. 130º do CIMI, a que se seguirá uma liquidação assente no novo VPT que venha a ser apurado. Nos demais casos em que tenha já decorrido o prazo de cinco anos desde a realização das avaliações, a AT informa que já não pode ocorrer a anulação administrativa, conforme decorre do art. 168º, 1, do CPA.
Retenhamos, desde logo, que passou a ser incontestada a ilegalidade das avaliações em que assentam as liquidações em crise.
A ilustrá-lo, veja-se o teor da Instrução de Serviço n.º .../2021, de 5 de Abril de 2021, emitida pela Direção de Serviços de Justiça Tributária. Trata-se de um documento não disponibilizado pela AT nos presentes autos, mas é um documento cuja junção seria sempre possível, ao abrigo do disposto no art. 436º do CPC, aplicável ex vi arts. 2º, e) e 13º do CPPT, e 29º, 1, e) do RJAT.
Nessa Instrução de Serviço n.º .../2021 da DSJT reconhece-se a insusceptibilidade de adição dos coeficientes do art. 38º do CIMI à regra constante do art. 45º do CIMI, e determina-se que a AT:
“Profira despacho favorável ao contribuinte nos procedimentos de contencioso administrativo pendente de decisão (…) Promova, nos termos e nos prazos previstos no artigo 112.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, pela revogação do ato impugnado nos processos de impugnação judicial (…) Na pendência da impugnação judicial, observe o que resulta da «Instrução n.º 15 – Divulgação de entendimento quanto à revisão oficiosa de ato tributário impugnado judicialmente»”.
Essa mesma Instrução de Serviço n.º .../2021 da DSJT determina ainda que as decisões favoráveis aos contribuintes em procedimentos e processos pendentes implicam que a AT:
“Promova a correção (anulação parcial) dos atos de liquidação que constituem o objeto do litígio entre os contribuintes e a administração tributária (…), cumprindo o desígnio legal de “reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado”, conforme disposto no artigo 100.º da Lei Geral Tributária”.
O que, de certo modo, equivale a um reconhecimento genérico da existência de erro imputável aos serviços, um erro sistémico que afecta todo um universo de avaliações e liquidações: reconhecimento a que a AT chega por ser confrontada com uma jurisprudência uniforme e consolidada nesse sentido.
E a mesma Instrução de Serviço n.º .../2021 da DSJT acrescenta que:
“A anulação do ato administrativo de avaliação do terreno para construção, e a consequente determinação do VPT, pode ter lugar no prazo de seis meses contados desde a data do conhecimento do órgão competente (cf. artigo 169.º do CPA), DESDE QUE se contenha no prazo de cinco anos da sua emissão, isto é, no prazo de cinco anos contados da data em que foi realizada a determinação do VPT pela respetiva avaliação. (cf. Artigo 168.º, n.º 1, do CPA, aplicável ex vi alínea c) do artigo 2.º da LGT)”.
Daqui decorre que a própria AT reconhece claramente que as limitações procedimentais e temporais relativas à reacção dos contribuintes à fixação do VPT não servem para obstar à impugnação dos actos de liquidação assentes em VPTs erróneos – pelo que inevitável se torna concluir que alegações de “inimpugnabilidade do ato de liquidação com base em vícios da fixação do valor patrimonial tributário” não resultam apenas de deliberado desrespeito pela jurisprudência que a AT conhece e deve conhecer, mas traduzem ainda uma oposição às próprias orientações da Instrução de Serviço n.º .../2021 da DSJT.
Para esclarecimento cabal da posição da Administração, deve acrescentar-se que a Instrução de Serviço n.º .../2021 da DSJT segue fielmente o entendimento já plasmado num outro documento da AT, o seu Manual de Avaliação de Prédios Urbanos – Versão 7.0, de 29 de Outubro de 2020[4], no qual pode ler-se (a páginas 6 e 37):
“No que respeita à avaliação dos terrenos para construção, o presente manual de avaliação dos prédios urbanos incorpora o entendimento fixado pela jurisprudência dos tribunais no sentido de que na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não há lugar à consideração do coeficiente de afetação e do coeficiente de localização, pelo que foram desconsiderados os referidos coeficientes e, consequentemente, eliminados da respetiva fórmula de cálculo.”[5]
Voltemos ainda à Instrução de Serviço n.º .../2021 da DSJT. Para elucidação dos pontos aqui relevantes, nela se lê ainda que:
“A Aplicação de Gestão das Avaliações (AGA) foi já alterada e ajustada para que o algoritmo de cálculo do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção deixasse de ter em conta os coeficientes de localização e de afetação, dando-se cumprimento ao despacho de 04-03-2020 da Sra. Diretora-Geral e à jurisprudência recente do STA e dos tribunais centrais administrativos”
Em suma, da leitura dos referidos Manual de Avaliação de Prédios Urbanos – Versão 7.0 e da Instrução de Serviço n.º .../2021 da DSJT resulta claramente que a AT passou a reconhecer um dever genérico de revisão oficiosa, e já não propriamente a título excepcional, por erro sistemático imputável aos serviços.
Poderá, portanto, legitimamente depreender-se que o expresso reconhecimento deste erro determina a necessidade de reposição da legalidade, genericamente e caso a caso, ou seja, de reconstituição na esfera dos contribuintes da situação que existiria caso tal ilegalidade não tivesse sido cometida – independentemente do momento em que ela ocorreu pela primeira vez, para todo um universo de casos e não somente para aqueles que lancem mão de meios administrativos, judiciais ou arbitrais para tutela dos seus direitos feridos.
11. A REVISÃO OFICIOSA POR PARTE DA AT – NA PRÁTICA
Para ser inteiramente justa, essa revisão deveria, portanto, ser genuinamente oficiosa, ou seja, operar-se para todo o universo de casos afectados pela ilegalidade, sem aguardar qualquer impulso da parte dos contribuintes, e sem correr o risco de discriminar contra aqueles que, pela mais variada ordem de razões, incluindo o desconhecimento, não tenham reagido ou não venham a reagir através dos meios jurídicos disponíveis.
Sucede que, em inúmeros casos submetidos à arbitragem no CAAD, a AT tem respondido, seja através do art. 13º do RJAT, seja posteriormente à constituição dos tribunais, com a anulação administrativa oficiosa com efeitos retroactivos, nos termos dos n.os 1 e 5 do art. 168º e do nº 3 do art. 171º CPA, com fundamento em invalidade– não se vislumbrando qualquer razão para deixar de fazê-lo, por sua iniciativa e sem necessidade de impulso dos particulares, em todos os processos similares, evitando uma desigualdade de atitudes, e – sublinhe-se – o que seria (ou será) uma injustificável discriminação entre contribuintes, o que por sua vez constituiria (ou constituirá) uma nova injustiça, tanto ou mais grave do que a injustiça iniciada com as ilegalidades no cálculo dos VPT dos terrenos para construção.
Insista-se: não seria admissível aqui uma atitude errática e arbitrária de discriminação entre contribuintes em situações idênticas, tal como não seria admissível que a AT revisse oficiosamente as liquidações de imposto somente quando de tal revisão resultasse mais imposto a pagar pelos contribuintes, e deixasse de o fazer, ou negasse aos contribuintes a possibilidade de solicitarem a revisão de tais liquidações, sempre que de tal revisão resultasse um reembolso a favor dos contribuintes.
Como é que, na prática, a AT tem dado execução às directrizes da Instrução de Serviço n.º .../2021 da DSJT?
Em diversos casos, a AT, ao mesmo tempo que reconhece que se impõe revogar alguns actos de fixação de VPT, nos termos do art. 79º da LGT e do art. 168º, 1 do CPA (este aplicável ex vi art. 2º da LGT), recorda que o prazo para proceder à anulação administrativa é de 6 meses a contar do conhecimento da causa de invalidade pelo órgão competente, e desde que não tenham decorrido 5 anos após a data em que foi proferido o despacho de fixação do VPT; e, com base nisso, procede a uma triagem em 3 categorias:
1) A primeira situação refere-se às avaliações que foram efetuadas e notificadas há mais de 5 anos, sem avaliações posteriores.
2) A segunda situação está relacionada com as avaliações também realizadas há mais de 5 anos, mas com avaliações posteriores realizadas há menos de 5 anos. A partir do momento em que o VPT determinado na nova avaliação é inscrito na matriz, passa a produzir os respetivos efeitos matriciais, sucedendo, naturalmente, à avaliação anterior que deixou de vigorar na ordem jurídica, e, como tal, de produzir efeitos, o que torna impossível proceder à anulação administrativa das avaliações anteriores, mas possibilita a anulação das avaliações que lhes sucederam.
3) A terceira situação está relacionada com as avaliações realizadas dentro do prazo dos 5 anos previsto no artigo 168.º do CPA, o que possibilita a sua anulação administrativa.
Só nos casos 2) e 3) é que a AT tem procedido à anulação administrativa das avaliações, com efeitos retroactivos, com fundamento em invalidade, nos termos dos arts. 163º, 4, 165º, 2, 168º, 1 e 5, e 171º, 3 do CPA, determinando a realização de novas avaliações que não considerem os coeficientes de localização e afetação.
Nos casos da categoria 1), a AT tem invocado a impossibilidade de impugnar liquidações de IMI com fundamento em vícios de actos de fixação de valores patrimoniais, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.ºda LGT, e tem-no feito frequentemente por excepção, o que é impróprio[6], e alegando que o que os contribuintes questionam é a fixação do VPT e não qualquer vício específico das liquidações – o que por sua vez é falacioso, visto que o erro da avaliação do VPT é o próprio vício da liquidação, sendo que esta fica contaminada pela ilegalidade e pelo erro cometidos a montante.
Acresce que isso é, manifestamente, desconsiderar os problemas das liquidações pretéritas que tenham ocorrido com base nas avaliações anuladas, e os problemas de liquidações futuras até que as novas avaliações produzam os seus efeitos.
Com efeito, a anulação administrativa de avaliações é somente o primeiro passo para a substituição de liquidações, visto que a anulação das avaliações não equivale a uma anulação oficiosa das liquidações, e concomitante reembolso do imposto em excesso, pago em resultado das liquidações anuladas – pelo que a simples comunicação da anulação de avaliações não produz qualquer efeito jurídico automático nas liquidações pretéritas, e apenas o produz nas liquidações de IMI e AIMI futuras[7], razão pela qual aquela comunicação não faz perder o interesse do contribuinte na impugnação que tome por objecto essas liquidações pretéritas.
Além disso, relativamente aos terrenos para construção cujas avaliações tenham sido realizadas há mais de cinco anos (a tal categoria 1), supra), o facto de não se poder proceder à anulação administrativa das liquidações não pode constituir um obstáculo à sua anulação judicial, visto que tais actos continuam a existir na ordem jurídica e continuam a padecer de ostensiva ilegalidade.
Se, em desconsideração da proeminência do princípio da impugnação unitária, consagrado no art. 54º do CPPT, propendêssemos para aceitar a inimpugnabilidade de liquidações com base na inimpugnabilidade de vícios de fixação do VPT que alicerçam aquelas, isso teria como consequência prática a perpétua emissão de actos de liquidação subsequentemente ilegais, que seriam, eles próprios, inimpugnáveis, violando-se assim frontalmente o princípio fundamental do acesso ao direito, consagrado no artigo 20.º da Constituição.
12. O EQUÍVOCO DA CONFUSÃO ENTRE PRAZOS DE REVISÃO OFICIOSA E PRAZOS DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL: O MOMENTO DA VERDADEIRA CONSOLIDAÇÃO DO ACTO
Mesmo que, portanto, se conclua estarem ultrapassados os prazos para que a AT proceda à anulação administrativa das liquidações de IMI e de AIMI, isso não pode impedir a anulação dessas liquidações pela via judicial, na medida em que tais actos de fixação de VPT, não obstante parecerem abrigados numa barreira de preclusão, continuam a existir na ordem jurídica, continuam a ser ilegais e continuarão a servir de base a liquidações, presentes e futuras.
No início de cada ano dá-se uma nova liquidação, nos termos do art. 113º, 1 e 2 do CIMI, e nesse momento a AT incorre em novo erro e comete nova ilegalidade, que consiste em liquidação de IMI em excesso, resultando no pagamento de prestação tributária indevida, e assim sucessivamente, até ao momento em que o quadro legal da tributação dos terrenos para construção foi alterado (e, insiste-se, pode até dar-se o caso de essa modificação legal não ter resolvido tudo, se porventura vier a determinar-se que ela é inconstitucional nalguns dos seus aspectos).
Por outras palavras, a ideia de que, precludido o prazo para anulação administrativa do acto que fixa o VPT (os cinco anos a que alude o art. 168º, 1 do CPA), este acto se encontra sanado e passa a produzir efeitos jurídicos, nomeadamente para efeitos de cálculo de IMI, assenta num evidente equívoco[8].
É que o decurso do prazo para a Administração proceder à anulação administrativa de um acto administrativo (anulação administrativa que corresponde à antiga “revogação anulatória”) não sana os vícios de que o acto possa padecer, implicando apenas que os seus efeitos se tornam definitivos, adquirindo a força jurídica de caso decidido ou caso resolvido: significando que o acto administrativo, enquanto decisão de uma autoridade administrativa, define o direito do caso concreto de forma estável.
Só que o caso decidido apenas releva na relação entre a Administração e o particular, não impedindo que o interessado lance mão dos meios processuais de impugnação contenciosa contra o acto administrativo, ainda que a Administração não possa já anulá-lo administrativamente.
Aliás, a única consequência da anulação administrativa, se ocorresse antes do final do processo, seria a de extinguir a instância por inutilidade superveniente da lide, deixando o contribuinte de ter interesse processual. É o que decorre do nº 3 do art. 168º do CPA:
“Quando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional, a anulação administrativa só pode ter lugar até ao encerramento da discussão.”
A preclusão por esgotamento do prazo para anulação administrativa não pode, pois, de modo algum, determinar a consolidação na ordem jurídica do acto administrativo anulável.
Pelo contrário, essa consolidação, na ordem jurídica, do acto administrativo anulável só pode operar quando tenha decorrido o prazo legalmente previsto para o interessado deduzir o competente meio processual de impugnação, na medida em que só pelo decurso desse prazo é que o acto se torna inimpugnável jurisdicionalmente.
Como bem se observa na fundamentação do acórdão arbitral de 5 de Maio de 2022, Processo n.º 835/2021‐T:
“Qualquer outra solução constituiria um absurdo, confundindo a atividade administrativa com a função jurisdicional e contrariando flagrantemente o princípio da tutela jurisdicional efectiva. [§] Uma vez que a anulação administrativa é um ato administrativo que se desenrola no âmbito de procedimento administrativo, e cuja prática se encontra na exclusiva disponibilidade da Administração, é claro que as vicissitudes quanto à possibilidade de o ato ser anulado ainda no âmbito do procedimento, não interfere em nada com o direito processual dos interessados recorreram a uma instância jurisdicional. [§] E, assim, não só os vícios do ato de fixação valor patrimonial tributário se não encontram sanados com o caso decidido, como também o contribuinte não está impedido de impugnar jurisdicionalmente os atos de liquidação de IMI, com fundamento na errónea quantificação do valor patrimonial tributário.”
Consequentemente, o regime da anulação administrativa não é relevante para a decisão do caso, não causando, nem podendo causar, a consolidação do acto tributário que determinou o VPT, não existindo assim qualquer violação do princípio da segurança jurídica nem do princípio da igualdade.
E ainda que, por hipótese, se considerasse haver uma restrição desses princípios, sempre se deveria entender que a admissibilidade legal de revisão oficiosa do acto de liquidação, na qual possam ser apreciados os respectivos pressupostos de direito, configura um meio adequado, necessário e proporcional para a salvaguarda do núcleo essencial dos princípios da justiça e da tutela jurisdicional efectiva, que a segurança jurídica e a igualdade não podem subalternizar ou sacrificar.
13. O NOVO DIREITO ADMINISTRATIVO (CPA E CPTA) E A NOVA INTERPRETAÇÃO AMPLIATIVA
Voltando à alegação de que os contribuintes, ao pretenderem sindicar as liquidações, não apresentam nenhum vício específico dessas liquidações, insistamos que consideramos falaciosa a afirmação, visto que o que parece implícito nela é a ideia de que, sendo a fixação do VPT um acto destacável, verificada a preclusão, essa fixação deixa de ser invocável como vício das liquidações – aquilo que já designámos por interpretação subtractiva do regime dos actos interlocutórios, e que se nos afigura inteiramente incompatível com o disposto no art. 54º do CPPT, em especial após o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 410/2015, de 19 de Novembro.
Preferindo nós a interpretação ampliativa inaugurada pelo acórdão de 31 de Outubro de 2019 do TCAS, Processo nº 2765/12.8BELRS, a qual vê no art. 78º da LGT um reforço das garantias de defesa dos contribuintes e uma elevação dos meios de tutela das respectivas posições substantivas, sem que tal colidisse com o princípio fundamental da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito, visto que esse reforço concedido pelo art. 78º da LGT seria circunscrito a um quadro temporal pré-definido, de 4 ou 3 anos, consoante estivesse em causa a aplicação do seu n.º 1 ou do seu n.º 4. (uma posição expressa no acórdão arbitral de 26 de Novembro de 2021, proferido no Processo n.º 486/2020‐T [árbitros Alexandra Coelho Martins, Carla Alexandra Pacheco de Almeida Rocha da Cruz e Eduardo Paz Ferreira].)
Aproveitemos para esclarecer o que, sem grande preocupação de rigor doutrinal, temos designado por interpretação ampliativa.
Cremos que ela não corresponde senão àquilo que, afinal, mais não é do que o conceito mais recente de acto destacável impugnável, e a interpretação inovadora do princípio da impugnação unitária.
O conceito tradicional era o de que são destacáveis os actos que produzem efeitos jurídicos externos, ainda que não ponham fim a um procedimento nem a um seu incidente autónomo – sendo que, em função dessa produção de efeitos externos, devem poder ser directamente impugnáveis, sem ter que se aguardar pelo fim do procedimento[9].
Só que a nova definição de acto administrativo, no art. 148º do CPA, e o alargamento do conceito de acto impugnável contenciosamente, no art. 51º do CPTA, vieram alterar subtilmente o quadro teórico nestes domínios, passando a concentrar-se a atenção na eficácia externa dos actos, na susceptibilidade de interferência relevante nas relações entre Administração e particulares, independentemente de se tratar, ou não, de mero acto procedimental.
Estabelece o art. 51º, 1 do CPTA:
“Ainda que não ponham termo a um procedimento, são impugnáveis todas as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta, incluindo as proferidas por autoridades não integradas na Administração Pública e por entidades privadas que atuem no exercício de poderes jurídico-administrativos.”
Sublinhemos: “Ainda que não ponham termo a um procedimento, são impugnáveis todas as decisões”: este alargamento abre caminho à possibilidade de impugnação contenciosa de quaisquer actos procedimentais, e não apenas de actos que ponham termo ao procedimento ou a uma fase autónoma desse procedimento, abolindo, assim, o requisito de definitividade horizontal.
14. O TRIUNFO DA IMPUGNAÇÃO UNITÁRIA E O OCASO DO ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DE ACTOS PROCEDIMENTAIS
Leia-se agora o art. 51º, 3 do CPTA:
“Os atos impugnáveis de harmonia com o disposto nos números anteriores que não ponham termo a um procedimento só podem ser impugnados durante a pendência do mesmo, sem prejuízo da faculdade de impugnação do ato final com fundamento em ilegalidades cometidas durante o procedimento, salvo quando essas ilegalidades digam respeito a ato que tenha determinado a exclusão do interessado do procedimento ou a ato que lei especial submeta a um ónus de impugnação autónoma.”
Com este preceito, toda a impugnação de actos procedimentais passa a ser facultativa, nunca impedindo que o interessado possa impugnar o acto final, com base nos vícios que afectem o acto intermédio, excluindo apenas os casos em que o acto em causa tenha determinado a exclusão do interessado no procedimento (hipótese em que o acto praticado no decurso do procedimento representa já decisão final relativamente ao interessado excluído), bem como os demais casos em que a lei imponha especialmente, e expressamente, o ónus de impugnação tempestiva de actos procedimentais.
Este art. 51º, 3 do CPTA reforça a noção de que se operou uma radical abertura na impugnabilidade de actos procedimentais, pois ele mais não visa do que evitar que essa abertura se faça em detrimento da posição processual dos privados – estabelecendo que, quando o interessado não tenha impugnado um acto interlocutório susceptível de produzir efeitos lesivos na sua esfera jurídica, não fica precludida a faculdade de dirigir a impugnação contra o acto final do procedimento[10].
Quanto à referência ao ónus de impugnação autónoma no final do art. 51º, 3 do CPTA, ficam ressalvados somente os casos em que a lei expressamente o estabeleça, em termos de excluir que os vícios de um acto interlocutório objecto desse ónus de impugnação possam ser invocados na reacção jurisdicional que venha a ser dirigida contra a decisão final do procedimento – não bastando a mera menção, em lei especial, de que certo acto procedimental é passível de impugnação administrativa.[11]
É a esta nova luz que deve ser interpretado o art. 54º do CPPT, quando estabelece o princípio da impugnação unitária, e é a essa luz que o Tribunal Constitucional leu esse artigo, no Acórdão n.º 410/2015, de 19 de Novembro – repudiando a interpretação subtractiva que, na base do entendimento tradicional da preclusão da impugnabilidade de actos procedimentais destacáveis na impugnação contra o acto final do procedimento, na prática reduzia, ou subtraía, direito dos particulares.
A não se entender assim, a preclusão redundaria numa violação contínua de alguns princípios e preceitos constitucionais e legais, com implicações directas no próprio processo arbitral tributário, nos termos dos arts. 17º, 3 e 25º, 1 do RJAT.
Pense-se no princípio da legalidade tributária, e a sua tradução no art. 103º, 3 da Constituição, “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos (…) cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”.
Pense-se ainda no art. 8º, 2, a) da LGT, que estabelece que “Estão ainda sujeitos ao princípio da legalidade tributária: (…) A liquidação e cobrança dos tributos, incluindo os prazos de prescrição e caducidade”.
Bastariam estes dois preceitos para se perceber como é insustentável a perpetuação de liquidações ilegais e injustas, porque assentes em erros não-sanados.
15. A NOVA DEFESA “AMPLIATIVA” DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Não esqueçamos ainda que a defesa do princípio da legalidade sobreleva, evidentemente, a questões administrativas, procedimentais ou processuais que, isoladamente, se apresentem como obstáculos àquela defesa – como expressivamente o estabelece o art. 99º do CPPT, ao estatuir “Constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade”, exemplificando na sua alínea a) que entre essas ilegalidades se conta a “Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários”.
Assim, ao argumento de que as avaliações são actos destacáveis, que é um argumento conceptualmente válido, terá que se contrapor a proeminência do interesse da defesa do princípio constitucional da legalidade tributária, a reclamar que se mantenha em aberto a possibilidade de sindicância judicial ou arbitral dos actos de liquidação assentes em erros de determinação das bases tributáveis – erros materiais que não se convalidam pela simples circunstância de já não poderem ser separadamente, individualmente, revistos. E não deixa de ser invocável aqui ainda outro princípio constitucional, o da subordinação da actuação da Administração Pública ao “respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” (art. 266º, 1 da Constituição).
A natureza de actos destacáveis das avaliações não é, nem pode ser, a última palavra, nem a segurança que essa natureza dos actos visa é o valor mais alto da ordem jurídico-fiscal, como bem o enfatiza a proeminência constitucional do princípio da legalidade, a deixar aberta a via para a defesa procedimental e processual desse valor mais elevado.
Assim se entende facilmente o triunfo jurisprudencial do entendimento de que, mesmo que precludida a possibilidade de sindicar directamente a fixação de um VPT, na medida em que a determinação desse VPT possa constituir um acto destacável, nem por isso fica o contribuinte impossibilitado de arguir a ilegalidade do VPT fixado. Defender o contrário seria, insistamos, o mesmo que defender a perpetuidade da conduta ilegal da Administração, liquidação após liquidação, o que repugna ao bom senso e ao Direito admitir.
Daí também que se tenha vindo a entender que, esgotados ou não os prazos dos pedidos de revisão oficiosa das avaliações, as reclamações ou impugnações apresentadas contra as liquidações assentes naquelas avaliações podem, e devem, ser convoladas em revisões oficiosas, já que, atento o princípio da legalidade e a sua proeminência jurídico-constitucional, tal convolação representa um poder-dever da Administração Fiscal, além de representar um corolário dos princípios de colaboração célere e eficiente da Administração com os contribuintes, como resulta da combinação dos arts. 55º e 59º da LGT, e do art. 48º, 1 do CPPT (veja-se a esse respeito o Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte [TCAN], de 15 de Abril de 2021, Processo nº 02010/12.6BEPRT).
16. O ERRO SISTÉMICO NUMA APLICAÇÃO INFORMÁTICA NÃO É UM ERRO DE AVALIAÇÃO: A IRRELEVÂNCIA, NO CASO, DOS ACTOS “DESTACÁVEIS”
Voltemos à questão dos “actos destacáveis”: não houve, em cada um dos inúmeros casos em que foi detectada a ilegalidade dos VPT atribuídos aos terrenos para construção, verdadeiramente um erro material específico, naquele caso em particular, seja da parte dos contribuintes, seja da AT, nem existiu ou existe qualquer divergência naquela avaliação em particular, traduzida numa interpretação conflituante dos coeficientes ou da sua aplicação ao caso concreto – sendo que só nestes casos faria sentido convocar a figura dos actos destacáveis, para com ela se invocar a necessidade de sedimentação e cristalização de valores.
Aqui não é disso que se trata, mas sim de um erro sistémico, persistente, que inquinou todo um universo de liquidações: sendo que, se vedássemos a possibilidade de qualquer reacção contra ele, estaríamos a perpetuar actos ostensivamente ilegais num universo de casos, e a repetição e generalização de liquidações inquinadas nos seus pressupostos de facto e de direito, dando apoio a uma injustiça grave e notória que durou pelo menos até à mudança da lei, no início de 2021 – momento até ao qual, dada a persistência do erro sistémico, existiu um enriquecimento sem causa do credor de imposto.
De facto, não estamos aqui perante erros materiais na determinação das áreas, localização, andares, elementos de qualidade e conforto considerados nas avaliações, resultantes de erros nas declarações apresentadas pelos contribuintes, ou de erros dos peritos avaliadores na análise da documentação e da informação, ou ainda de divergência de critérios adoptados pelos peritos e pelos contribuintes, que são os únicos casos em que poderia fazer sentido chamar à colação o regime dos actos destacáveis.
Dito de forma mais simples: declarações verdadeiras, rigorosas, foram corrompidas por um algoritmo concebido de forma ilegal, na tal AGA – Aplicação de Gestão das Avaliações, já mencionada: é um elemento distante do procedimento de avaliação, pelo que a questão não se resolve através de primeiras avaliações ou de segundas avaliações, resolve-se com o reconhecimento do erro causado pelo algoritmo, que gerava resultados ilegais por ter sido concebido com base numa interpretação ilegal dos preceitos aplicáveis.
Isto nada tem a ver, insiste-se, com o regime dos actos destacáveis, e certamente não é com esse regime que se vai resolver o efeito cumulativo de anos e anos de liquidações ilegais – não de uma ou outra liquidação em particular, mas de todas as liquidações de IMI e de AIMI que incidiram, enquanto durou o erro, nos terrenos para construção.
Esta é matéria somente de revisão oficiosa, ex officio, por dever – por dever da Administração.
O art. 8º da LGT, lembremo-lo, não consente que perdurem na ordem jurídica liquidações de imposto alicerçadas em ilegalidades: o que, por sua vez, justifica a solução genérica do art. 99º, a) do CPPT):
“Constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade, designadamente:
a) Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários”
E lembremos também, mais uma vez, que o art. 103º, 3 da Constituição exonera os cidadãos do pagamento de impostos ilegalmente liquidados.
Isso manifestamente sobreleva a outras considerações: e é por isso mesmo que, quando esteja já fechada a porta da reclamação graciosa, ou a porta da convolação em revisão oficiosa, deve subsistir, nos seus prazos próprios, o puro pedido de revisão oficiosa.
Daí a referida “válvula de escape” para lidar com situações de ilegalidade flagrante e disseminada, a revisão dos actos tributários com fundamento em ilegalidade ou erro, e o poder-dever da administração tributária de expurgar da ordem jurídica, total ou parcialmente, um acto ilegal, bem como o de restituir o que tenha sido ilegalmente cobrado, em nome do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado, e para que não ocorra enriquecimento sem causa.
Assim, se, contra a jurisprudência dominante dos tribunais superiores e arbitrais, invocássemos a natureza de actos destacáveis das avaliações dos terrenos, para concluirmos que a avaliação dos terrenos para construção estava cristalizada, decidida e juridicamente consolidada, impedindo, assim, a possibilidade de qualquer reacção (seja através de pedido de revisão oficiosa seja, principalmente, através de reclamação graciosa ou de impugnação contenciosa), por parte dos contribuintes, por exemplo contra o indeferimento expresso ou tácito das reclamações graciosas, o direito constitucionalmente consagrado de acesso ao direito e à justiça seria negado, e seriam mantidos na ordem jurídica actos ostensivamente ilegais, e, com eles, uma situação de injustiça grave ou notória, traduzida em locupletamento injustificado por parte do credor de imposto.
Por outras palavras, a circunstância de os actos de fixação do VPT serem “destacáveis”, isto é, autonomamente sindicáveis, o que é inegável, é ao mesmo tempo irrelevante, porque não tem a susceptibilidade de impedir que os actos de liquidação emitidos com base no VPT sejam naturalmente sindicáveis – até porque são as próprias liquidações, e não as avaliações, correctas ou incorrectas, em que as liquidações assentam, os verdadeiros actos lesivos de direitos e interesses dos particulares, cuja tutela jurisdicional efectiva a Constituição garante, em defesa dos contribuintes e dos meios de tutela das respectivas posições substantivas.
Mas insistamos: tal regime dos actos destacáveis pura e simplesmente não tem, nem poderia ter, aplicação adequada em casos destes, porque neles estamos perante uma situação em que os contribuintes declararam correctamente todos os elementos, e os peritos avaliadores consideraram correctamente todos os elementos declarados pelos contribuintes, mas em que, fruto de uma fórmula pré-estabelecida e incorporada no sistema informático da AT – ou seja, fruto de um acto prévio aos procedimentos de avaliação, e inacessível para modificação ou emenda por parte dos avaliadores –, os VPTs que foram fixados na sequência da inclusão da informação declarada pelos contribuintes, e inseridos no ficheiro electrónico da AT, se tornaram ostensivamente ilegais (essa proeminência do factor informático e do algoritmo é devidamente sublinhada no ponto 3.2 do Acórdão do STA de 14 de Novembro de 2018, Processo nº 0398/08.2BECTB 0133/18).
Estamos aqui, portanto, perante um elemento prévio aos procedimentos de avaliação, e sobre o qual nem os contribuintes nem os peritos avaliadores têm qualquer influência, seja em sede de primeiras avaliações seja em sede de segundas avaliações, o que bastará para retirar relevância ao tema dos “actos destacáveis”.
Bastará formular esta pergunta: dado o vício no algoritmo que determinou o erro sistémico nas avaliações, como poderíamos nós ter a certeza de que uma segunda avaliação corrigiria os erros da primeira avaliação?
A reacção à injustiça criada tem de encontrar-se, como é evidente, noutro plano.
Resulta claro que não foi para casos destes que o legislador estabeleceu o regime dos actos destacáveis: certamente que o legislador nunca teria a intenção de criar um regime que anulasse totalmente as garantias dos contribuintes em casos deste tipo, nos quais se veio a constatar, tantos anos depois da aprovação do Código do IMI, que a fórmula assumida pelo sistema informático da AT tinha sido contaminada por erro e se tornara ostensivamente ilegal.
17. A QUESTÃO DA “SEGUNDA AVALIAÇÃO”
Quanto à referida “segunda avaliação” prevista no art. 76º do CIMI, e respectiva impugnação prevista no art. 77º do CIMI, convirá lembrar a distinção entre reclamações e recursos necessários e facultativos, assente na circunstância de depender, ou não, da sua prévia utilização a possibilidade de acesso aos meios contenciosos – e a consequência explícita de todas as reclamações e recursos terem carácter facultativo, a menos que uma disposição legal estabeleça expressamente o contrário.
Melhor será transcrevermos os n.os 1 e 2 do art. 185º do CPA:
“1 - As reclamações e os recursos são necessários ou facultativos, conforme dependa, ou não, da sua prévia utilização a possibilidade de acesso aos meios contenciosos de impugnação ou condenação à prática de ato devido.
2 - As reclamações e os recursos têm caráter facultativo, salvo se a lei os denominar como necessários.”
Ora, como a segunda avaliação não é obrigatória, nem está prevista no art. 77º, 1 do CIMI uma impugnação administrativa necessária – o que, insistamos, teria que ocorrer expressamente, por força do estabelecido no art. 185º, 2 do CPA –, também não existe um ónus de impugnação judicial do acto de fixação do VPT que tenha resultado da segunda avaliação: uma segunda avaliação que, de resto, o particular não está sequer vinculado a requerer, porque no art. 76º, 1 não se prevê essa segunda avaliação como uma forma de impugnação administrativa necessária, destinada a permitir o ulterior acesso à via contenciosa [12].
18. A DUPLA IRRELEVÂNCIA PROCEDIMENTAL EM PROCESSOS ARBITRAIS TRIBUTÁRIOS
Não tem fundamento, portanto, a alegação – aliás frequente – de que o legislador estabeleceu um regime específico para a contestação do acto de fixação do VPT, e com ele gerou um desvio propositado ao regime-regra de impugnação unitária previsto no art. 54º do CPPT, bloqueando por preclusão a sua apreciação na impugnação judicial da subsequente liquidação de IMI.
Aliás, mesmo que o tivesse feito, ainda dele estaria isento o processo arbitral tributário, no qual não é exigível o esgotamento dos meios graciosos previstos no procedimento de avaliação – isto porque não há qualquer referência aos actos de fixação do VPT no art. 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, a norma na qual se estabelecem as excepções à vinculação da Administração à jurisdição dos tribunais arbitrais.
É que, como já vimos anteriormente, não é por essa via que se chega à consolidação jurídica dos actos de fixação do VPT ou das liquidações, formando caso decidido – seja pela circunstância genérica, já sublinhada, de essa consolidação só poder decorrer do esgotamento dos meios jurisdicionais, seja pela circunstância específica de estarem previstos mecanismos de revisão oficiosa no art. 78º da LGT e no art. 115º CIMI – este último, aliás, sem qualquer barreira temporal –.
Isto sem perdermos de vista o já assinalado: que os actos de avaliação se repercutem, ano após ano, em liquidações de imposto de valor superior ao que resultaria da correcta aferição da base de incidência, gerando todos os anos novos erros de direito, novas ilegalidades e novas injustiças notórias – cada uma a merecer um similar nível de tutela jurídica, já que gera imposto em excesso – um excesso que a Constituição desobriga os cidadãos de pagar.
19. DIREITOS ACRESCIDOS DE IMPUGNAÇÃO NO NOVO DIREITO ADMINISTRATIVO E TRIBUTÁRIO
Ora, como já determinámos que as excepções ao princípio da impugnação unitária (previsto no art. 54º do CPPT) são muito menos abundantes do que aquilo que tradicionalmente se concebia, convirá relembrar que o sistema jurídico que operou essa transformação o fez com o objectivo de ampliar as garantias dos contribuintes, de conferir-lhes “direitos acrescidos de impugnação”[13], e de continuar a fazê-lo até que a revisão das liquidações e dos seus pressupostos dê lugar, de modo definitivo (jurisdicionalmente definitivo) a liquidações expurgadas dos factores de ilegalidade: o objectivo, relembremos, foi o de permitir uma defesa autónoma por adição a uma impugnação unitária que se mantinha incólume, e não por subtracção e erosão das possibilidades dessa impugnação unitária.
E, de facto, a jurisprudência dominante, como já vimos, tem consistentemente afirmado que, se a errónea quantificação dos VPT constitui ilegalidade que fundamenta a apresentação de impugnações judiciais de actos tributários de liquidação do IMI e do AIMI, não tem razão de ser que tal fundamento seja afastado pelo mero facto de o acto de quantificação desses valores patrimoniais ser susceptível de impugnação prévia e autónoma pelo contribuinte.
Entender de outro modo, reafirmemo-lo, equivaleria a esvaziar totalmente a susceptibilidade de impugnação judicial de liquidações de IMI e AIMI com base em fundamento de errónea fixação do VPT no cálculo da base tributável daqueles impostos.
Seria enveredar por um caminho que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 410/2015, de 19 de Novembro, na sua interpretação do art. 54º do CPPT, declarou inconstitucional – além de o considerar ilegal, por contradição com o art. 66º, 2 da LGT que estabelece que a reclamação de qualquer acto interlocutório não preclude o direito de “recorrer ou impugnar a decisão final com fundamento em qualquer ilegalidade”.
Convirá lembrar não somente que o direito à tutela jurisdicional efectiva é um direito fundamental, que deve levar-nos a afastar interpretações meramente ritualistas e formais (art. 20º, 1 da Constituição), mas também que a reforma da justiça administrativa condenou expressamente o excesso de formalismo (“Para efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas.” – art. 7º do CPTA). E dir-se-á que o moderno direito processual, começando pelo CPC, visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância, tendo em vista o máximo aproveitamento dos actos processuais.
Daí que, no âmbito da ponderação dos pressupostos processuais, os princípios antiformalistas, “pro actione” e “in dubio pro favoritate instantiae” impõem uma interpretação que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, pelo que, suscitando-se quaisquer dúvidas interpretativas nesta área, deve optar-se por aquela que favoreça a acção, e assim se apresente como a mais capaz de garantir a real tutela jurisdicional dos direitos invocados pela parte.[14]
20. CONCLUSÕES
Recapitulando:
1) É consensual que a fixação do VPT de terrenos para construção foi universalmente viciada durante alguns anos.
2) O erro / ilegalidade na fixação desse VPT situou-se num algoritmo utilizado pela AT, sem intervenção dos particulares e sem que estes pudessem sequer aperceber-se disso.
3) A solução de uma segunda avaliação não resolveria, pois, o problema, dado que o algoritmo continuava viciado.
4) Essa segunda avaliação é, à luz dos mais recentes desenvolvimentos do Direito Administrativo (CPA, CPTA), meramente facultativa, não representando um ónus do contribuinte.
5) Só a AT dispunha de meios para resolver a situação gerada pelo algoritmo viciado, através de uma revisão oficiosa de todo o universo de VPT de terrenos para construção, no período em que o algoritmo operou.
6) É consensual que essa revisão oficiosa pode resultar, indiferentemente, de iniciativa da Administração ou da iniciativa dos particulares.
7) A revisão oficiosa, por imperativo constitucional e em harmonia com a primazia do princípio da impugnação unitária, reforçado pelo actual Direito Administrativo, não pode ser condicionada pela falta de exercício de meras faculdades procedimentais relativas a actos interlocutórios “destacáveis”.
8) Mesmo que esse condicionamento existisse para a impugnação judicial em geral, ele continuaria a ser irrelevante em processos arbitrais tributários, por força do disposto na Portaria “de vinculação”.
9) A possibilidade de impugnação autónoma desses actos “destacáveis” visa somente aumentar – por antecipação – as garantias dos particulares, não reduzir essas garantias quando os particulares se socorram, a final, da impugnação unitária.
10) Os actos tributários só se consolidam quando se esgotam os prazos de impugnação judicial – não quando se esgotam os prazos da anulação administrativa, se estes terminarem antes daqueles, pois entender de outro modo redundaria em violação directa dos princípios constitucionais da justiça e da tutela jurisdicional efectiva.
11) Todas as liquidações inquinadas por fixação ilegal do VPT, causada por um erro do algoritmo de uma “Aplicação de Gestão das Avaliações” utilizada pela AT, devem ser anuladas, dentro dos prazos de impugnação judicial, salvo se tiverem sido anteriormente sanadas por anulação administrativa, por restituição do imposto pago em excesso, acrescido de juros, e por realização de novas avaliações expurgadas do erro no VPT dos terrenos para construção.
De tudo o que precede decorre a procedência total do pedido de anulação das liquidações, com todas as suas consequências legais.
Ocorrendo a anulação das liquidações, deve ser reconhecido, igualmente, para lá do direito à restituição do imposto pago em excesso, o direito a juros indemnizatórios, nos termos e para os efeitos previstos no art. 24º, 5 do RJAT, no art. 43º, 3, c), da LGT e no art. 61º do CPPT.
(Fernando Araújo)
Declaração de voto
I. Sentido do meu voto
Votei favoravelmente a presente decisão, devendo porém clarificar a minha posição sobre a matéria.
Por um lado, existindo uma relação de prejudicialidade entre a fixação em 2014 do valor patrimonial do prédio em causa e as liquidações de IMI e AIMI datadas de 2020, aqui objecto de pedido de declaração de ilegalidade, considero, tal como se concluiu no processo arbitral nº 510/2021-T: «1.Os atos de avaliação de valores patrimoniais previstos no CIMI são atos destacáveis, para efeitos de impugnação contenciosa, sendo objeto de impugnação autónoma, não podendo na impugnação dos atos de liquidação que com base neles sejam efetuadas discutir-se a legalidade daqueles atos. 2. Os vícios de atos de avaliação de valores patrimoniais não podem ser invocados em impugnação de atos de liquidação de IMI e AIMI que os têm como pressupostos.3. A não impugnação tempestiva dos referidos atos de avaliação conduz à formação de caso decidido ou resolvido sobre a avaliação do prédio em causa».
Por outro lado, não julgo que a interpretação do artigo 45.º do CIMI, adoptada pela AT durante um longo período de tempo, deva, atendendo ao histórico de aplicação das normas do mesmo Código – questão que abordo a seguir - ser qualificada como “injustiça grave ou notória” susceptível de fundamentar um pedido de revisão oficiosa nos termos do n.º 4 do artigo 78.º da LGT.
II. Tributação de prédios e avaliação
1.Muito sinteticamente, recorde-se que o Imposto Municipal sobre Imóveis, regido pelo Código de Imposto Municipal sobre Imóveis, CIMI (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12/11) substituiu a Contribuição Autárquica (criada pelo Código Contribuição Autárquica, CCA, aprovado pelo Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro).
A Contribuição Autárquica surgida na Reforma Fiscal do final da década de 80, pretendeu instituir um imposto sobre o património, com natureza diferente da «velha» contribuição predial (cf. nº 2 do preâmbulo do CCA).
O novo imposto incidiria sobre o valor do património predial e não sobre o rendimento dos prédios o que pressupunha um sistema adequado de determinação do valor patrimonial dos imóveis.
Contudo, o DL nº 443-C/84, previu normas transitórias até à publicação de um Código das Avaliações, dispondo designadamente que o valor patrimonial dos prédios seria determinado pela capitalização do rendimento colectável, aplicando-se o factor 15 ou 20, conforme prédios urbanos ou rústicos, e remetendo para avaliação de acordo com as regras do anterior Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (CCPIIA), ou seja, com base no rendimento real ou imputado.
A alteração de sistema de avaliações só veio a concretizar-se com o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), aprovado pelo Decreto-Lei nº 287/2003, de 12 de Novembro, pretendendo-se operar «uma profunda reforma do sistema de avaliação da propriedade, em especial da propriedade urbana. Pela primeira vez em Portugal, o sistema fiscal passa a ser dotado de um quadro legal de avaliações totalmente assente em factores objectivos, de grande simplicidade e coerência interna, e sem espaço para a subjectividade e discricionariedade do avaliador. (…) A concepção do novo sistema de avaliações beneficiou de um vasto acervo de informação, análises e estudos preparados desde há vários anos pelos serviços da Direcção-Geral dos Impostos (…), acolhendo designadamente recomendações do relatório da Comissão de Desenvolvimento da Reforma Fiscal, bem como os critérios do anteprojecto do Código de Avaliações elaborado em 1991, actualizados mais tarde no âmbito da Comissão da Reforma da Tributação do Património» (cf. preâmbulo do Código).
A avaliação geral ainda tardou (Lei nº 60-A/2011, de 30/11) mas o regime previsto no CIMI aplicava-se de imediato aos prédios novos ou omissos, com regras de transição para os que se encontravam já inscritos (cf. artigos 32º, nº 1, e 15.º a 27º do DL nº 287/2003).
III. Funções da administração tributária relativamente aos dados prediais
Ao longo da evolução legislativa referida coube sempre à administração fiscal um papel muito relevante na criação e manutenção das matrizes prediais assim como no processo de avaliação. O CCPPPA, com 382 artigos, dispunha no capítulo III (artigos 36.º a 219.º) sobre o procedimento a seguir pela DGCI na determinação da matéria colectável, descrevendo com minúcia as funções atribuídas para conservação de matrizes, do cadastro, em articulação estreita com o Instituto Geográfico de Cadastral, e os processos de avaliação de prédios urbanos e rústicos. E as normas 258.º a 268.º referiam-se à função de fiscalização, em articulação com muitas outras entidades[15] com vista à garantia da veracidade factual do cadastro.
As matrizes apresentavam a função de tombo dos prédios de uma freguesia, constituindo «documentos ou instituições do mais decisivo efeito no campo do processo tributário ou de aplicação da lei fiscal e cuja organização está, por isso, sujeita a tramitação rigorosa»[16]
Independentemente da evolução dos procedimentos, a importância do papel da administração fiscal relativamente a estas matérias continua muito relevante. O CIMI contém um elevado número de disposições referentes a matrizes, procedimentos e elementos (coeficientes) para avaliação de prédios, organismos de coordenação e de avaliação, peritos, comissões. A organização e conservação das matrizes constitui uma actividade importante, continuando a existir ligação com o cadastro nacional, em colaboração com o Instituto Geográfico Português. Essas funções estão distribuídas por serviços da administração tributária, locais, regionais e centrais, existindo a nível destes uma Direcção de Serviços de Avaliações que “executa os procedimentos relativos à gestão das avaliações dos prédios rústicos e urbanos” (cf. artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15/12, e artigo 8º da Portaria n.º 320-A/2011, de 30 de Dezembro). [17]
A informação tratada e guardada pela administração fiscal, designadamente o VPT fixado, não só é relevante na aplicação de vários impostos para além do IMI (e agora do AIMI), designadamente IMT, IRS, IRC, Imposto do Selo, como eventualmente importante em outras áreas da administração (como p. ex. Habitação, Agricultura, Território).
Os valores patrimoniais tributários de imóveis têm tido frequentemente efeitos na aplicação da legislação de arrendamento e a sua importância em relação ao mercado imobiliário é (ou deveria ser) relevante, como indicia a composição da CNAPU (art.º 61.º do CIMI).
IV. O novo processo de avaliação
1. A avaliação de terrenos para construção
Sobre os terrenos para construção, o novo CIMI dispunha no artigo 45.º «1 - O valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é o somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor do terreno adjacente à implantação. 2 - O valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas.3 - Na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação têm-se em consideração as características referidas no n.º 3 do artigo 42.º 4 - O valor da área adjacente à construção é calculado nos termos do n.º 4 do artigo 40.º».[18]
2. Doutrina sobre a fixação do VPT
Em comentário a esta norma, disseram então Silvério Mateus e Corvelo, in Os Impostos sobre o Património, Ed. Engifisco, 1.ª edição, 2005, p. 214: «o valor patrimonial dos terrenos para construção depende, em primeiro lugar e no essencial, da área de construção que for autorizada para esse terreno, valor esse que terá de situar-se entre 15% e 45% do valor da edificação autorizada. Em segundo lugar é também relevante o coeficiente de localização onde o terreno se encontra, uma vez que o valor da edificação depende, em grande medida, deste coeficiente. Finalmente, caso a edificação não ocupe todo o terreno e haja uma parte sobrante, esta terá igualmente repercussão no seu valor. Vejamos cada um destes elementos. Quanto ao valor da área de construção, esta calcula-se pela fórmula prevista no artigo 38.º adaptada a esta realidade»
Por sua vez, José Maria Fernandes Pires, nas suas “Lições de Impostos Sobre o Património e do Selo”, Almedina, 2010, referia designadamente: «No mercado, o valor de um terreno para construção não depende apenas das suas características intrínsecas, como sejam a sua área e a sua localização ou a sua orografia. Mais importante que isso é um factor que lhe é extrínseco e que depende dos poderes públicos, que é o seu potencial de construção, nomeadamente a volumetria autorizada e as características de uma realidade que ainda nâo existem, que é o prédio urbano que nele se vai poder construir» (…) «devemos ter em conta que no terreno ainda nada está construído, mas a mera constituição de um direito de nele se vir a construir faz aumentar imediatamente o seu valor» (…). «O regime de avaliação do valor patrimonial dos terrenos para construção consta do artigo 45.º do Código do IMI. O modelo de avaliação é igual ao dos edifícios construídos, mas partindo-se da avaliação do edifício a construir, com base no respectivo projecto».
E, apresentando a metodologia seguida na avaliação e a fórmula matemática utilizada pela administração fiscal VPTv= Vcx ((Aa+Ab) x % + (Ac+Ad)) x Ca x Cl x Cq, explicava que «A determinação da percentagem a aplicar na avaliação dos terrenos para construção, que é aplicada para a determinação do valor da área de implantação do edifício, será efectuada nos termos do nº 3 do art.º 45º do CIMI, utilizando-se a mesma metodologia prevista no nº 3 do art.º 42.º do mesmo Código, que é usada para determinação do coeficiente de localização».
Em relação à determinação das percentagens, correspondente ao sexto tipo de zonamento, aplicado em todo país na aplicação do coeficiente de localização, levanta então a dúvida (cf. pp. 103 e 104, edição 2010): «será que na fórmula de avaliação dos terrenos para construção haverá lugar à aplicação simultânea do coeficiente de localização e das percentagens aplicáveis à área de implantação, sabendo-se que os factores que os determinam são exactamente os mesmos?».
Indicando que a administração entendia que sim, comentou então que a lei poderia ser mais clara nessa matéria.
E, tendo em conta o teor do nº 3 do art. 45º do CIMI, «que prevê que na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação têm-se em consideração as características referidas no nº 3 do art. 42º», e que estas últimas são as mesmas que determinam a construção do factor de localização, observa que «é legítimo questionar-se se não se trata da mesma realidade, e nesses casos, se esta percentagem não repetirá o factor de localização». Conclui que dada a coincidência (…) «parece também ser defensável a ideia de que não seria aplicável na fórmula de avaliação dos terrenos para construção o coeficiente de localização» (sublinhado nosso).
Suscita ainda uma dúvida acerca da aplicação do coeficiente de ajustamento de áreas na avaliação dos terrenos para construção (art. 4º-A do CIMI), manifestando-se em sentido positivo e propondo que a fórmula de avaliação deve ter a seguinte expressão: VPT= Vc ((Aa+Ab) x caj x% + (Ac+Ad)) x Ca x Cl x Cq.
Deste comentário - de um autor que veio posteriormente a ser citado em diversas decisões jurisprudenciais – realçamos:
- a descrição do sentido da posição da administração fiscal, considerando-a claramente transmitida;
- dúvidas do autor quanto à eventual duplicação de critério na aplicação do factor localização e da possibilidade de outra interpretação.
No respeitante ao coeficiente de ajustamento, vai em edições posteriores considerar que a sua leitura foi confirmada pelo legislador em alteração legislativa entretanto introduzida.
Quanto a outros coeficientes não suscita dúvidas e logo em 2010 comentava a decisão proferida pelo STA em 18/11/2009, no proc. 765/09, nestes termos: «vem levantar dúvidas acerca da aplicabilidade na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção dos coeficientes de afectação e de qualidade e conforto, mas essa utilização parece-nos derivar da Lei, quando estabelece que o valor da área da implantação é determinado em função do valor das edificações autorizadas ou previstas, e esse só pode ser o que resulta da aplicação do sistema de avaliações ao projecto de construção» (cf. nota 61, p. 102, mantida na 3ª edição, de 2015, como nota 79, p.114).
3. A jurisprudência
A conclusão inserida no Acórdão do STA de 2 de Julho de 2009, no processo n.º 765/09, de que o art.º 45.º do CIMI deve ser interpretado restritivamente, rejeitando-se a sua aplicação conjunta com o artigo 38.º do mesmo Código, não se veio a impor como unânime no seio daquele tribunal nem influenciou de imediato e decisivamente a posição de todos os outros tribunais.
4. Evolução da posição do STA
Em 14 de Julho de 2010, mais de um ano após a decisão acima referida, o STA negou provimento a um recurso (proc. 0377/10) interposto de sentença proferida em impugnação judicial deduzida, contra os valores patrimoniais tributários (VPT) atribuídos em segunda avaliação, onde se alegava, designadamente, que: “Os factores de majoração com base na localização, previstos nos artigos 38° e 45° do CIMI, não são cumuláveis mas alternativos: (i) aos prédios edificados aplica-se o CI na fórmula do artigo 38° e respectiva majoração de até 3 vezes, prevista no artigo 42°, nº 1, ambos do CIMI, e (ii) aos lotes de terreno para construção aplica-se idêntica majoração, mas, desta feita, a prevista no artigo 45°, nº 2, do CIMI, de entre 15% e 45% do valor do prédio edificável, mas expurgado da majoração específica que a lei atribui às edificações em função da respectiva localização (CI).”
A Secção de CT do STA, considerou que «antes, a aplicação cumulativa das majorações em causa é imposta pela única interpretação consentânea com a letra da lei, nomeadamente com a previsão normativa constante do artigo 45.º, n.º 3 do CIMI». E veio a concluir: «I - Os critérios estabelecidos quanto aos coeficientes de localização que afectam o valor dos prédios edificados de harmonia com o previsto no n.º 3 do artigo 42.º do CIMI e que se encontram estipulados na Portaria n.º 982/04, de 4 de Agosto são de aplicação cumulativa, e não alternativa, com a percentagem prevista no n.º 2 do artigo 45.º, ainda do CIMI, no referente ao valor da área de implantação dos terrenos para construção. II-Dessa majoração cumulativa não resulta qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade.»
E, em 25 de Junho de 2015, no proc.n.º 01083/13, o STA ainda decidia (embora com um voto de vencido) que: «O método de determinação do valor do valor patrimonial dos terrenos para construção adoptado pelo Código do IMI, e que consta do referido artigo 45.°, é muito semelhante ao dos edifícios construídos, mas partindo-se da avaliação edificações autorizadas ou previstas (n.º 2 do art.º 45.º). (…) o valor de um terreno para construção corresponde, fundamentalmente, a uma expectativa jurídica, consubstanciada num direito de nele se vir a construir um prédio com determinadas características e com determinado valor. É essa expectativa de produção de uma riqueza materializada num imóvel a construir que faz aumentar o valor do património e a riqueza do proprietário do terreno para construção, logo que o terreno passa a ser considerado como sendo para construção. Por essa razão, quanto maior for o valor dos prédios a construir, maior é o valor do terreno para construção. Pese embora no terreno ainda nada esteja construído, a mera constituição de um direito de nele se vir a construir faz aumentar imediatamente o seu valor. Foi nesta perspectiva que o legislador do Código do IMI concebeu o modelo de avaliação de terrenos para construção (Cf., neste sentido, José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, ed. Almedina, 2010, pp. 100/103). Daí que não proceda a argumentação do recorrente quando sustenta que nos terrenos para construção não há lugar a consideração do coeficiente de qualidade e conforto. Como bem nota o Exm.º Procurador-Geral Adjunto destinando-se o prédio em causa à construção de uma moradia unifamiliar não poderia deixar de se relevar na sua avaliação o coeficiente de qualidade e conforto (Cq). Aliás tal é o que resulta do nº 2 do art.º 45 do CIMI quando dispõe que o valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas, já que esse valor só pode ser o que resulta da aplicação do sistema de avaliações ao projecto de construção. Assim para se determinar o valor dessa parte do terreno é necessário proceder-se à avaliação do edifício a construir, como se já estivesse construído. Para tal utiliza-se o projecto de construção aprovado e na área não se considera, naturalmente a área do terreno livre nem a área do terreno excedente. Efectuada essa determinação do valor, reduz-se o valor apurado a uma percentagem entre 15% e 45%, como prevê o n.° 2 do artigo 45.° do Código do IMI, redução esta que se justifica pelo facto de o prédio não estar ainda construído (Neste sentido, José Maria Fernandes Pires, ob. citada, pag. 102.)» (sublinhados nossos).
5. A uniformização de jurisprudência
Da decisão de 25 em Junho de 2015 da Secção de CT do STA foi interposto recurso para o Pleno da Secção, com fundamento em oposição com o Acórdão proferido em 18 de Novembro de 2009 no processo nº 0765/09.
Reconhecendo a oposição de decisões, o STA, em Pleno, por Acórdão de 21 de Setembro de 2016 (proc. 1083/13), identificando a questão decidenda como a de «saber se na avaliação dos terrenos para construção se deve relevar o coeficiente de qualidade e conforto (Cq.), decidiu: «III - Na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção há que observar o disposto no artigo 45.º do Código do IMI, não havendo lugar à consideração do coeficiente de qualidade e conforto (cq). IV - O artigo 45 do CIMI é a norma específica que regula a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção. V - O coeficiente de qualidade e conforto, factor multiplicador do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços não pode ser aplicado analogicamente por ser susceptível de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto».
6. A alteração de posição dos Tribunais Centrais
Após esta decisão do Pleno, generalizou-se uma interpretação restritiva do art.º 45.º do CIMI, que passou a ser adoptada pelos tribunais, com alteração de posições anteriores [19].
Os Tribunais Centrais Administrativos que tinham, antes da uniformização de jurisprudência proferido diversas decisões no sentido da aplicação cumulativa dos artigos 45.º e 38.º do CIMI (como p. ex. os Acórdãos do TCAS, de 14/02/2012, proc. nº 04950/11, e do TCAN, de 26/04/2012, proc 01250/07) passaram após 2016, a adoptar a jurisprudência uniformizada, como explicitou o TCAS, no Acórdão de 08/02/2018, no proc. 117/14.4BELLE ao dizer: «Sucede que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou sobre a aplicação do coeficiente de qualidade e conforto (cq), no sentido de que na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção há que observar o disposto no artigo 45.º do Código do IMI, norma específica que regula a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, não havendo lugar à consideração do coeficiente de qualidade e conforto (cq) – cfr. acórdão do Pleno do STA de 17/05/2017, proc.n.º 0902/16, e de 21/09/2016, proc. n.º 01083/13». [20]
A interpretação restritiva veio depois a ser reafirmada diversas vezes pelo STA, em Secção e em Pleno, afastando também outros coeficientes, como os de “afectação” e “localização”.
Por todos, fazendo uma síntese da evolução, e referindo-se ao coeficiente de localização, cf. p. ex. o Ac. do STA de 12 de Junho de 2021, proc. 0118/2009.
IV. Injustiça grave ou notória?
Resulta, quanto a mim, da inexistência, durante um longo período, de discussão doutrinal contra a interpretação defendida e aplicada pela AT, assim como da existência de jurisprudência dos tribunais superiores acolhendo expressamente a interpretação da administração, que esta interpretação, por muito errada que actualmente possa parecer, não pode ser invocada como injustiça “grave” ou “notória” para efeitos de aplicação do n.º 4 do art. 78.º da LGT.
Grave, sem ter desencadeado durante largo período reacções relevantes, invocando graves prejuízos, grande distorção nos valores encontrados?
Notória, mas passando despercebida, e merecendo a interpretação contrária de magistrados dos tribunais superiores?
Uma interpretação mais realista nos parece ser a de que o n.º 4 do art. 78.º da LGT passou a ser invocado quando os proprietários de terrenos para construção se aperceberam de que a interpretação adoptada pela AT passara a ser afastada por uma jurisprudência importante, que se tornou uniformizada, vindo então solicitar a respectiva aplicação a actos de fixação de valores patrimoniais tributários contra os quais não reagiram na altura em que foram deles notificados[21]antes tendo, na sequência de subsequentes liquidações, procedido ao pagamento de imposto (frequentemente durante anos sucessivos).
A reacção havida será, na óptica dos interessados, perfeitamente adequada e justa!
Sempre poderá ser sentida como “injusta” uma situação em que se aplica uma nova interpretação a casos antigos, apenas decididos agora, face à solução oposta dada a muitos outros quando nem se pensava pôr em causa a fórmula existente, ou em que, tendo reagido contra ela, viram ser a sua tese rejeitada por não ser então a dominante.
Mas trata-se de uma situação frequente na aplicação do direito, traduzindo a inerente conflitualidade dinâmica entre os valores da justiça e da segurança.
Como também se disse na decisão do CAAD de 28/2/2022, no proc. n.º 667/2021-T: «Não é, assim, o princípio da justiça mas o princípio da legalidade que é violado, quando, na fixação do valor patrimonial tributário, não obstante o nº 3 do art. 45.º do CIMI, a administração fiscal considere outras qualidades dos prédios urbanos para além das ponderadas na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação. A tal violação aplica-se, não o n.º 4 mas o n.º 1 do art.º 78.º da LGT»
VII A segurança do direito - a confiança na aplicação das normas e o interesse público
Porém, a sensibilidade jurídica que conduz a uma interpretação ampliativa dos direitos, invocando cada vez mais frequentemente o processo de revisão oficiosa, usando-o como uma “válvula de escape”, pode arriscar-se a coincidir com uma visão de que toda a tributação é, por natureza, uma compressão de direitos, generalizando-se a todas as situações em que se firme uma nova orientação doutrinária ou jurisprudencial, independentemente da duração da interpretação anteriormente coexistente ou mesmo dominante.
Com efeito, sendo desejável que o direito seja fonte de certeza, segurança, e também justiça, a (crescente) complexidade da vida dificilmente evita a divergência de interpretações jurídicas.
A forma como os sistemas jurídicos têm enfrentado essa inevitabilidade é o que muitos já trataram superiormente e para cuja reflexão remeto.
Contudo, uma interpretação crescentemente extensiva do n.º 4 do artigo 78º da LGT como a que parece estar a verificar-se, arrisca-se a ter efeitos financeiros difíceis de compatibilizar com as finalidades globais do sistema jurídico e, em última instância, com os fins e políticas do Estado social de direito.
A própria Constituição da República Portuguesa encara esse tipo de dificuldade, ao proceder à fixação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral de uma norma (artigo 282º da CRP).
Com efeito o nº 4 do mesmo art. 282.º da CRP, prevê que «quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restritivo (…)» [22], sendo que esta restrição temporal é uma «hipótese que encontra o seu exemplo porventura mais paradigmático na limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade de normas orçamentais, quando determinada por razões de interesse público de excecional relevo» (in Acórdão do Tribunal Constitucional nº 68/2022, de 20/01/2022)
Como exemplos, cite-se o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 353/2012, de 5 de Julho de 2012, ao fundamentar um caso de restrição de efeitos de inconstitucionalidade:
«Ora, encontrando-se a execução orçamental de 2012 já em curso avançado, reconhece-se que as consequências da declaração de inconstitucionalidade acima anunciada, sem mais, poderiam determinar, inevitavelmente, esse incumprimento, pondo em perigo a manutenção do financiamento acordado e a consequente solvabilidade do Estado. Na verdade, o montante da poupança líquida da despesa pública que se obtém com a medida de suspensão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal ou prestações equivalentes a quem aufere por verbas públicas, assume uma dimensão relevante nas contas públicas e no esforço financeiro para se atingir a meta traçada, pelo que dificilmente seria possível, no período que resta até ao final do ano, projetar e executar medidas alternativas que produzissem efeitos ainda em 2012, de modo a poder alcançar-se a meta orçamental fixada».
Ou o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 497/2007, de 9 de outubro de 2007 (neste caso abstendo-se até de apreciar um pedido de declaração de inconstitucionalidade de norma que previa aplicação de taxa devida por concessão de zonas de caça), onde se diz: «Se juntarmos à circunstância, acabada de demonstrar, de que uma eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, seria inteiramente desprovida de qualquer alcance prático, aquela outra de que a fixação de efeitos retroactivos (ex tunc) no caso em análise iria acarretar a realização de inúmeras e custosas operações de natureza administrativa e burocrática, certamente com acentuada repercussão a nível orçamental, forçoso é admitir que o caso dos autos consubstancia uma daquelas situações em que é previsível que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de alcance prático a declaração de inconstitucionalidade que porventura viesse a proferir, fixando, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, efeitos temporais mais restritos (efeitos prospectivos ou ex nunc em vez dos efeitos retroactivos). A limitação dos efeitos temporais seria justificada, ainda à luz daquela disposição, pela existência de um interesse público de excepcional relevância. Assim sendo, o prosseguimento do presente processo revelar-se-ia desproporcionado. Face ao exposto, há que concluir pela inexistência de interesse jurídico relevante e a consequente inutilidade superveniente no conhecimento do mérito do pedido.»
Ora, nos casos como o dos autos, em que nem tem sido alegada propriamente existência de inconstitucionalidade de uma norma, os efeitos da referida aplicação do artigo 78º, nº 4, da LGT, como um escape, abre a possibilidade de anulação de liquidações baseadas em pressupostos considerados à época legalmente preenchidos, que representaram receitas públicas (locais, recorde-se) tidas então como certas, tudo isto com um reflexo financeiro completamente imprevisível [23].
Como reflexo de preocupação com efeitos financeiros imprevisíveis, cito ainda a fundamentação de um Acórdão do STA (de 1 de Julho, proc. n.º 0640/140) num caso em que a área do prédio constante da matriz, se encontrava errada, há anos, com valores de área inferiores à realidade. A área foi corrigida, por declaração do SP, em 2008, levando a emissão de liquidações para os anos anteriores, dentro do prazo de caducidade. O Tribunal veio a decidir, embora com um voto contrário, pela ilegalidade dessas liquidações, considerando que como a rectificação do teor do artigo matricial quanto à área, por desconformidade com a realidade física do prédio, pode ser efetuada a todo o tempo, o legislador pretendeu obstar que, a todo o tempo, essas rectificações tivessem efeitos retroativos relativamente às liquidações de IMI já realizadas.
E advertiu-se para o resultado indesejável de interpretação contrária: “Caso contrário, as liquidações nunca estariam consolidadas e bastaria uma alteração no valor patrimonial tributário resultante da reclamação da matriz para as liquidações anteriores desse imposto serem alteradas, o que poderia levar até à obrigação de restituição de imposto relativamente aos quatro anos anteriores no caso de a área ser menor do que a referenciada na matriz e vir a determinar um valor patrimonial tributário menor e um imposto inferior ao que havia sido liquidado. Sustentar posição contrária representaria, no caso em análise, atribuir ao valor patrimonial tributário fixado em 2008 uma retroactividade para efeitos de incidência de imposto relativo a anos anteriores sem norma que o permitisse, e, por conseguinte, constituiria uma violação do princípio da legalidade e da proibição de retroactividade de normas de incidência tributária”.
Pois bem, e que dizer das situações que vimos analisando?
VIII. Ainda sobre a impugnabilidade do acto de fixação de VPT
Voltando à questão da interpretação do artigo 45.º do CIMI, e o invocado erro na aplicação dos critérios nele consagrados, recorde-se que, no caso de o contribuinte não concordar com o resultado da avaliação directa de prédios urbanos, pode requerer ou promover uma segunda avaliação, no prazo de 30 dias contados da data em que o primeiro tenha sido notificado (artigo 76.º, n.º 1, do CIMI), cabendo do resultado das segundas avaliações (que esgotam os meios graciosos do procedimento de avaliação) impugnação judicial nos termos do CPPT (artigo 77.º, n.º 1 do CIMI).
A interpretação (ainda) propugnada por muitos de que não sendo impugnado tempestivamente o acto de fixação de valores patrimoniais, forma-se caso decidido ou resolvido sobre a avaliação, que se impõe em sede de liquidação de IMI (nos termos do artigo 113º do CIMI), não cabendo impugnação de liquidação posterior com fundamento em erro na avaliação, não constitui uma limitação inaceitável dos direitos dos contribuintes, antes resulta da especificidade do procedimento tributário de fixação de valor patrimonial.
Esse valor fixado deve gozar de estabilidade, para poder servir de base a sucessivos actos de liquidação de vários impostos e, eventualmente, a outras decisões da Administração. Admitir que esse VPT – relativamente ao qual existem adequados meios de defesa administrativos e judiciais - pode ser posto em causa a propósito de qualquer um dos actos da administração que neles se baseie, parece, isso si, desproporcionado.
VIII. A tutela jurídica
1. As garantias constitucionais e o princípio pro actione
Não vejo também que considerar-se que a não impugnação autónoma do ato de fixação de VPT impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios próprios daquele viole princípios ou normas da CRP, designadamente os artigos 20.º e 268.º, n.º 4, por considerar como um ónus, e não como uma faculdade, a possibilidade de o contribuinte impugnar autonomamente os atos considerados imediatamente lesivos dos seus direitos (Acórdão do Tribunal Constitucional, proferido em 29 de Setembro de 2015, no proc.º 410/2015).
Antes subscrevo, no caso presente, da determinação do VPT, a análise empreendida no Acórdão do Tribunal Constitucional, de 15 de Novembro de 2017 (proc. nº 718/2017), numa situação em que se concluiu que “não parece estar em causa um procedimento complexo — no âmbito do qual se possa dizer que o ato de reconhecimento daquele estatuto constitui um mero ato preparatório do procedimento de liquidação do imposto —, mas antes dois procedimentos tributários autónomos”.
Com efeito, no caso que analisamos, a natureza do procedimento de avaliação de prédios, da fixação de VPT, é própria de uma situação – a da própria intervenção da AT relativamente ao património imobiliário – em que os factos fixados num procedimento se tornam relevantes para diversas outras situações jurídicas.
Ou seja, tal como o TC também concluiu, no mesmo proc. 718/2017, citando José Casalta Nabais (a propósito dos procedimentos de reconhecimento e extinção dos benefícios fiscais)[24], poderá dizer-se do acto de fixação do VPT, que:
- existe nestes casos, um grau de autonomia, a sua ligação aos atos de liquidação de impostos não resulta de um pretenso caráter preparatório relativamente a estes, mas do facto de constituir um acto pressuposto;
- de modo que a liquidação dos impostos calculados sobre aquele valor não pode fazer-se sem ter em conta o correspondente acto de fixação do VPT;
- mas a fixação do VPT visa também outros efeitos, podendo «dizer-se que se trata de um acto administrativo autónomo, com efeitos próprios e que se estendem para além do ato de liquidação do imposto que imediatamente se lhe segue, nada parece haver de anómalo, do ponto de vista da ratio subjacente a um tal regime, que a sua impugnação autónoma constitua para o contribuinte um ónus e não uma mera faculdade ou (…) na regra segundo a qual, se aquele ato não for judicialmente impugnado, no prazo legalmente fixado para o efeito, não mais o poderá ser, excluindo-se a possibilidade de impugnação do ato consequente — como o de liquidação do tributo —, com fundamento em vícios que atinjam aquele seu ato pressuposto».
E, continuando a citar o Acórdão nº 718/2017 do Tribunal Constitucional:
«Ou, dito de outro modo, apenas de (mais) uma concretização do princípio, comum a tantas outras soluções processuais, segundo o qual a não impugnação de um determinado ato dentro do prazo para o efeito fixado implica a respetiva consolidação na ordem jurídica, com consequente preclusão da faculdade de invocação dos vícios que lhe correspondam no âmbito da impugnação de um ato ulterior. Contendo-se tal efeito dentro dos limites a cuja imposição se encontra indissociavelmente ligada a função inerentemente disciplinadora de qualquer ordenamento jurídico-processual, não se vê que ocorra qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, constante do artigo 20.º da Constituição.»
2. E inexiste tutela jurídica?
Mas será que esse VPT se torna inamovível, insusceptível de alteração, apesar de posteriormente se revelar “injusto”, por ter sido fixado de acordo com critérios que passaram a ser considerados errados, segundo a nova interpretação uniformizada, generalizada?
Não parece que se imponha tal conclusão, não cremos que exista uma condenação a reprodução da incorrecção em múltiplos actos futuros, desprovidos de tutela jurídica porque a lei faculta solução para a respectiva reapreciação.
Quanto a essa questão, remetemos para o excerto da decisão arbitral de 28 de Fevereiro de 2022, no processo nº 667/2021-T, indicando a solução que julgamos adequada e justa, porque proporcional:
«Com efeito, qualquer incorreção da inscrição matricial dos prédios urbanos pode ser reclamada, nos termos do n.º 3 do art.130.º do CIMI, com base em qualquer dos fundamentos previstos nessa norma legal: valor patrimonial tributário considerado desatualizado; indevida inclusão do prédio na matriz, erro na designação das pessoas e residências ou na descrição dos prédios, erro de transcrição dos elementos cadastrais ou das inscrições constantes de quaisquer elementos oficiais, duplicação ou omissão dos prédios ou das respetivas parcelas, não averbamento de isenção já concedida ou reconhecida, alteração na composição dos prédios em resultado de divisão, anexação de outros confinantes, retificação de estremas ou arredondamento de propriedades, não discriminação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos por andares ou divisões de utilização autónoma, passagem do prédio ao regime de propriedade horizontal, erro na representação topográfica, confrontações e características agrárias dos prédios rústicos, erro nos mapas parcelares cometidos na divisão dos prédios referidos na alínea anterior, erro na atualização dos valores patrimoniais tributários ou erro na determinação das áreas de prédios rústicos ou urbanos, desde que as diferenças entre as áreas apuradas pelo perito avaliador e a contestada sejam superiores a 10% e 5%, respetivamente.
A enumeração feita essa norma dos fundamentos de reclamação das incorreções não é taxativa, mas apenas exemplificativa, como resulta da expressão “nomeadamente”.
Assim, o erro de avaliação dos terrenos para construção, por indevida aplicação dos coeficientes previstos no art.º 38.º do CIMI, não obstante ser meramente de direito, pode ser fundamento dessa reclamação, devendo no entanto, o chefe de finanças, por a pretensão do reclamante implicar nova avaliação, notificar o contribuinte para apresentar a Declaração modelo 1 (Ofício-circulado n.º 40.083, de 29/3/2006, da Direção de Serviços do Imposto Municipal sobre Imóveis, DSIMI) (….).
Idêntica faculdade é simetricamente reconhecida ao chefe do serviço de finanças competente, através da correção oficiosa prevista no n.º 5 desse art.º 130.º. Essa reclamação, bem como a correção oficiosa prevista nesse n.º 5, pode ser deduzida a todo o tempo, salvo quando o fundamento for o erro na atualização dos valores patrimoniais tributários a que se refere a alínea m) desse n.º 3, caso em que o valor patrimonial inscrito na matriz só pode ser alterado por meio de nova avaliação decorridos três anos após a data do encerramento da matriz em que tenha sido inscrito o resultado daquela avaliação. O indeferimento da reclamação é impugnável nos termos do n.º 3 do art.º 134.º do CPPT. Caso a reclamação ou correção impliquem nova avaliação, o resultado desta é também impugnável, mas nos termos do n.º 1 e 7 dessa norma do CPPT. No entanto, segundo o n.º 8 dessa norma, os efeitos dessas reclamações e correções só se produzem na liquidação do ano em que for apresentado o pedido ou promovida a retificação, não tendo os efeitos retroativos típicos do regime de anulação dos atos tributários ou em matéria tributária»
Manuela Roseiro
[1] Processo n.º 760/2020‐T, de 2 de Julho de 2021 (árbitro Rui Duarte Morais)
[2] Não consigo acompanhar a inferência que é estabelecida, a partir da distinção de prazos, entre os n.os 1 e 6 do art. 78º da LGT e os n.os 4 e 5, reservando àqueles os actos de liquidação, e a estes os actos de fixação de VPT, por exemplo no acórdão arbitral do Processo n.º 487/2020‐T, de 10 de Maio de 2021 (árbitros Jorge Lopes de Sousa, Arlindo José Francisco e Jesuíno Alcântara Martins): se é possível reagir a uma liquidação porque ela está contaminada por uma avaliação ilegal, essa avaliação ilegal pode ser indiferentemente apreciada, mediata ou imediatamente, em qualquer daqueles n.os do art. 78º da LGT. OU, como se refere na fundamentação de outro acórdão arbitral, “na medida em que esses atos de avaliação se repercutem em liquidações de imposto de valor superior ao que resultaria da correta aferição da base de incidência, não existe razão para que não mereçam um nível de tutela similar” - Acórdão arbitral de 26 de Novembro de 2021, proferido no Processo n.º 486/2020‐T (árbitros Alexandra Coelho Martins, Carla Alexandra Pacheco de Almeida Rocha da Cruz e Eduardo Paz Ferreira).
[3] Veja-se, por todos, Rocha, Joaquim Freitas da (2021), Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, págs. 227-228; Neto, Serena Cabrita & Carla Castelo Trindade (2017), Contencioso Tributário, I- Procedimento, Princípios e Garantias, Coimbra, Almedina, pág. 605; Leonardo Marques dos Santos (2013), “A Revisão do Acto Tributário, as Garantias dos Contribuintes e a Fiscalidade Internacional”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, Vol. II, págs. 14 e ss..
[4] “Foi revisto e aprovado e divulgado, em 29-10-2020, um novo Manual de Avaliação de Prédios Urbanos, tendo-se alterado o entendimento e as instruções administrativas relativas á avaliação dos terrenos para construção, de modo a conformar esse entendimento com a jurisprudência do STA e dos tribunais centrais administrativos.” – Instrução de Serviço n.º .../2021 da DSJT.
[5] Também quanto a este Manual se dirá que se trata de um documento não disponibilizado pela AT nos presentes autos, mas que é um documento cuja junção seria sempre possível, ao abrigo do disposto no art. 436º do CPC, aplicável ex vi arts. 2º, e) e 13º do CPPT, e 29º, 1, e) do RJAT.
[6] “Embora [a] Autoridade Tributária e Aduaneira qualifique esta quest[ão] como uma excepção, ela não tem essa natureza, pois a alegada impossibilidade, a verificar-se será uma razão para improcedência e não um obstáculo ao conhecimento do mérito do pedido de pronúncia arbitral” – Processo n.º 41/2021‐T, de 27 de Julho de 2021 (árbitros Jorge Lopes de Sousa, André Festas da Silva e Nuno Cunha Rodrigues).
[7] Refira-se, de passagem, que o erro verificado ao nível da determinação dos Valores Patrimoniais Tributários se revela-se apto a alterar a colecta do AIMI nos mesmos termos em que se revelaria apta a alterar a colecta do IMI, o que, por exemplo, permite deduzir o procedimento de contestação do AIMI, que o legislador não regulou expressamente nos artigos 135.º-A a 135.º-M do CIMI.
[8] Nos próximos parágrafos, seguimos de perto a fundamentação contida no acórdão arbitral de 5 de Maio de 2022, Processo n.º 835/2021‐T (árbitros Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Leonardo Marques dos Santos e Arlindo José Francisco).
[9] Seguimos, nos próximos parágrafos, a fundamentação contida no acórdão arbitral de 5 de Maio de 2022, Processo n.º 835/2021‐T (árbitros Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Leonardo Marques dos Santos e Arlindo José Francisco).
[10] Cfr. Almeida, Mário Aroso de & Carlos Fernandes Cadilha (2021), Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, pág. 374.
[11] Novamente seguimos, neste ponto, a fundamentação contida no acórdão arbitral de 5 de Maio de 2022, Processo n.º 835/2021‐T (árbitros Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Leonardo Marques dos Santos e Arlindo José Francisco).
[12] Também neste ponto seguimos a fundamentação contida no acórdão arbitral de 5 de Maio de 2022, Processo n.º 835/2021‐T (árbitros Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Leonardo Marques dos Santos e Arlindo José Francisco).
[13] Uma expressão que retivemos da fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 410/2015, de 19 de Novembro.
[14] Seguimos aqui a fundamentação da decisão arbitral proferida em 4 de Outubro de 2021, Processo n.º 759/2020‐T (árbitro André Festas da Silva).
[15] Desde logo, as conservatórias prediais (art. 260º), mas também autarquias locais, entidades fornecedoras de água e energia eléctrica, direcções de estradas, direcções hidráulicas, DG do Ordenamento territorial, serviços de notariado e outros serviços públicos de âmbito nacional ou regional, e até os Caminhos de Ferro Portugueses, EP e concessionárias.
[16] Vítor Faveiro, Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, II volume, Coimbra Editora, 1986, p. 422.
[17] Antes Portaria 348/2007, de 30 de Março. Ao tempo da vigência da Reforma de 89, artigo 5º, nº1, j) do Decreto-lei 408/93, de 14 de Dezembro.
[18] A que veio a ser aditado o nº 5 (Lei nº 64-B/2011, de 30/12): “5 - Quando o documento comprovativo de viabilidade construtiva a que se refere o artigo 37.º apenas faça referência aos índices do PDM, devem os peritos avaliadores estimar, fundamentadamente, a respectiva área de construção, tendo em consideração, designadamente, as áreas médias de construção da zona envolvente”.
[19] Encontrando-se ainda ecos da anterior posição, como por ex. no Acórdão do STA de 17 de Maio de 2017, no proc. 902/16 (voto de vencido).
[20] Antes, porém, encontramos decisões, algumas bem extensas e amplamente fundamentadas, em sentido contrário. Citando pequenos excertos dos sumários recorda-se o o Ac do TCAN de 26/04/2012, proc 01250/07, «5- Nos termos do n.º 1 artigo 45.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis o valor dos terrenos para construção corresponde ao somatório do valor de duas áreas: (1) o valor da área de implantação do edifício a construir; 2) o valor do terreno adjacente à implantação.6- Por força do disposto no n.º 2 do artigo 45.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, que estabelece que o valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas, a determinação do valor da área de implantação implica a apuramento do valor das edificações autorizadas ou previstas, o qual só pode ser efectuado através das regras da avaliação dos prédios urbanos - artigos 38.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis – nas quais se inclui o coeficiente de afectação (artigo 41.º do mesmo diploma legal).» e o Ac. do TCAS de 14/02/2012, no proc. 04950/11 «5. Na avaliação dos terrenos para construção o legislador quis que fosse aplicada a metodologia de avaliação dos prédios urbanos em geral, assim se devendo levar em consideração todos os coeficientes identificados no nº.2, nomeadamente o coeficiente de afectação previsto no artº.41, do C.I.M.I., mais resultando tal imposição legal do nº.2, do artº.45, do C.I.M.I., ao remeter para o valor das edificações autorizadas ou previstas no mesmo terreno para construção».
[21] Ou, ainda que não sendo proprietários aquando da avaliação, tomaram conhecimento do VPT no momento da aquisição sem que tivessem desencadeado procedimento no sentido da respectiva alteração.
[22] A declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral que tem, em regra, efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal Ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido (art. 282º, nº 3, CRP).
[23] Como exemplo, cito o caso de um pedido arbitral apresentado na sequência de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado em 2020, das liquidações emitidas em 2016, do IMI referente a 2015, invocando erro na avaliação e fixação do valor patrimonial, realizadas em 2008.
[24] Refere-se a citação de “A impugnação unitária do ato tributário”, in Cadernos de Justiça Tributária, n.º 11, Janeiro-Março, 2016, pp. 18 e 19”.