SUMÁRIO:
I – Ainda que indiferente para estabelecer a sua conformidade com o Direito da União, a natureza da Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) como contribuição financeira ou imposto é decisiva para determinar a vinculação da Autoridade Tributária (AT) à jurisdição dos Tribunais Arbitrais do CAAD.
II – Uma parcela de um imposto especial de consumo não deixa de ser um imposto especial de consumo por o legislador lhe atribuir uma narrativa (de resto oscilante entre a compensação de custos e a contrapartida de benefícios) e lhe providenciar uma consignação orgânica (mormente se a entidade que dela beneficia deixa de ter como função única providenciar a suposta contrapartida que justificaria a alteração de género).
III – Muito embora haja fundamento legal para excluir a legitimidade do sujeito passivo da relação tributária solicitar a revisão oficiosa quando não seja “contribuinte”, não há nenhum para excluir que possa pôr em causa, de outra forma, essa relação tributária.
IV – Quando um tribunal tem tantas dúvidas sobre a solução conforme ao Direito da União que suscita uma questão de reenvio prejudicial (ou suspende a instância na sua pendência, ou pondera fazê-lo), é contraditório concluir que a AT (que não tem ao seu dispor essas faculdades) cometeu um erro que lhe é imputável se a solução que deu antesnão corresponde à que o TJUE fixou depois.
V – Nem por alegado desrespeito do Direito da União, nem por alegado desrespeito da Constituição, pode a AT estar investida na possibilidade de recusar a aplicação de normas legais. O Direito que cabe à AT aplicar é diferente (tanto para mais como para menos) do Direito que cabe aos Tribunais aplicar.
VI – No caso dos autos, a Requerente não imputou um erro à AT – imputou um erro ao legislador. Ora, como o processo de revisão oficiosa dos actos tributários por parte de quem está vinculado à lei, com fundamento no erro de assim se considerar, não pode permitir ultrapassar erros dessa lei, esse pedido (fora do prazo previsto na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT) foi intempestivo. Assim, sendo insusceptíveis de modificação os actos de liquidação pretendidos rever, caducou o direito de acção.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. Em 30 de Setembro de 2021, A..., S.A., contribuinte n.º..., com morada na Rua ..., n.º..., ...-..., ... (doravante designada por “Requerente”), que tem como objecto social, entre outras actividades, a exploração de postos de abastecimento e comércio por grosso de produtos petrolíferos, veio requerer, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante designado por “RJAT”), em conjugação com os artigos 1.º e 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 Março, a constituição de tribunal arbitral.
2. Pretendia que o Tribunal se pronunciasse
“sobre a ilegalidade do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa formulado pela Requerente, proferido em 5 de Julho de 2021, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (…), no âmbito do processo n.º ...2021... e, consequentemente, sobre os actos de liquidação – melhor identificados infra – que englobam o Imposto sobre Produtos Petrolíferos (“ISP”), a Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) e outros tributos que são alvo daquele pedido, referentes ao período decorrido entre Janeiro e Dezembro de 2017, apenas na parte que respeita ao montante total de € 4.787.419,42 liquidado a título de CSR”.
3. O quadro reproduzido abaixo, transcrito do artigo 60.º do Pedido de Pronúncia Arbitral, sistematiza a informação referente às liquidações em causa:
4. Nomeados os árbitros que constituem o presente colectivo, que aceitaram a designação no prazo aplicável, e não tendo a Requerente, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 16 de Dezembro de 2021.
5. Seguindo-se os normais trâmites, em 2 de Fevereiro do corrente ano a AT juntou o processo administrativo (PA) e apresentou resposta, na qual suscitou três excepções:
- incompetência do Tribunal Arbitral;
- ilegitimidade da Requerente; e
- caducidade do direito de acção.
6. Em 25 de Fevereiro foi proferido despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e a conceder prazo para que a Requerente, querendo, se pronunciasse sobre as referidas excepções.
7. Em 14 de Março a Requerente submeteu a sua Resposta e, em 13 de Abril veio, ao abrigo dos princípios da boa fé e da cooperação processual, por um lado, reiterar as informações já prestadas quanto à existência de outro processo idêntico no CAAD (que corria sob o n.º 564/2020-T, diferindo do presente apenas por se reportar a valores de 2016, em vez de 2017) e, por outro lado, actualizar os seus desenvolvimentos: decisão, por Despacho de 7 de Fevereiro de 2022 do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), do pedido de reenvio prejudicial suscitado nesse processo, e decisão, em 30 de Março, do referido processo do CAAD; juntou cópias de ambas as decisões.
8. A 20 de Abril, a AT veio, também ao abrigo do princípio da cooperação processual, dar nota de que a referida decisão do processo n.º 564/2020-T do CAAD não transitara e iria ser objecto de recurso.
9. Em 16 de Maio, face ao dissenso no Colectivo quanto à procedência das excepções invocadas, foi proferido despacho a determinar a produção de alegações sucessivas e a determinar, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, a prorrogação por dois meses do prazo fixado no seu n.º 1 para a pronúncia da decisão arbitral.
10. A Requerente apresentou as suas alegações em 3 de Junho, e a Requerida no dia 22 desse mesmo mês.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
11. O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
12. As Partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.
13. Como referido antes, a AT invocou três excepções que impediriam o conhecimento do mérito do recurso:
- incompetência do Tribunal Arbitral, uma vez que “A espécie tributária da CSR é qualificada como contribuição financeira e não como imposto, encontrando-se, assim, excluída da arbitragem tributária, por força do disposto no nos artigos 2.º e 3.º do RJAT, aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de janeiro e do artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição.”;
- ilegitimidade da Requerente, porquanto “dedicando-se a Requerente à comercialização de produtos petrolíferos, tais produtos já foram vendidos sendo que, no respetivo preço de venda foram incluídos os montantes pagos pela vendedora, designadamente para a sua introdução no consumo, tendo repercutido no preço de venda todas as despesas por si assumidas a título de liquidação de CSR”; e
- caducidade do direito de acção, uma vez que “Para a apreciação da tempestividade da apresentação do pedido arbitral, não pode deixar de ser previamente apreciada a questão da tempestividade do pedido de revisão.”. Ora, diz a AT,
“No que concerne ao prazo previsto na 1ª parte do nº 1 do artigo 78º da LGT (prazo da reclamação administrativa), o mesmo já se encontra precludido, uma vez que o termo do prazo de pagamento voluntário relativo ao último dos 12 DUCs ocorreu em 31/01/2018 e o prazo para apresentação da reclamação graciosa (de 120 dias a contar do termo do prazo do pagamento da CSR) terminou em maio de 2018, face ao estatuído no nº 1 do artigo 78º da LGT, conjugado com a alínea a) do nº 1 do artigo 102º do Código de Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo D.L. nº 433/99, de 26 de Outubro.”
“Relativamente ao prazo previsto na 2ª parte do nº 1 do artigo 78º da LGT só é aplicável se o fundamento de revisão do ato tributário consistir em erro e esse erro for imputável aos serviços.”
“Com efeito, não podendo invocar a ilegalidade das liquidações como fundamento para o pedido de revisão (apesar de os considerar ilegais no pedido de revisão), uma vez que para o fazer teria que observar o prazo de reclamação, longamente ultrapassado, a Requerente fundamenta o pedido em erro dos serviços, a estes imputável, o que permitiria utilizar o prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º da LGT, tratando-se de um erro de direito por, conforme alega, ter sido aplicada uma lei nacional que viola o direito comunitário.”
14. Importa, portanto, conhecer dessas invocadas excepções antes de o Tribunal poder fixar os factos necessários ao conhecimento do mérito e aplicar-lhes o Direito:
A. Quanto à possibilidade de o Tribunal Arbitral conhecer de questões referentes à Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR)
A questão da possível incompetência do Tribunal Arbitral[1] suscita-se porque, embora o artigo 2.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) delimite a competência dos tribunais arbitrais por referência à categoria dos “tributos”, o n.º 1 do seu artigo 4.º determina que a “A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.”[2] Quer dizer que a vinculação da AT (a entidade que sucedeu à Direcção-Geral dos Impostos e à Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo) à jurisdição dos tribunais arbitrais pode não cobrir a totalidade dos tributos, tal como pode, em cada um, ter valores limite. Isso não releva do âmbito de competência do tribunal, releva do âmbito de sujeição a ele de um dos intervenientes processuais.
E de facto, nos termos da actual redacção do artigo 2.º dessa Portaria (n.º 112-A/2011, de 22 de Março), não cobre todos os tributos (nem, por força do seu artigo 3.º, todos os valores):
“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”
A referência a “impostos cuja administração lhes esteja cometida” tem sido entendida, para o que ora importa, como uma exclusão da competência[3] dos tribunais arbitrais para decidirem sobre as outras espécies de imposições que partilham com os “impostos” (nas categorias doutrinais e no n.º 2 do artigo 3.º da Lei Geral Tributária - LGT) o génerodos “tributos”, a saber, as “taxas” e as “contribuições especiais”. Diga-se que uma invocada desconformidade constitucional dessa divergência de regimes quanto à arbitrabilidade das diferentes espécies de tributos já foi afastada pelo Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 545/2019, de 16 de Outubro[4]). Por razões que adiante se tornarão evidentes, porém, não cabe cuidar da possibilidade de, não obstante se estar perante contribuições financeiras, haver ainda assim a possibilidade de as submeter ao escrutínio do Tribunal Arbitral[5].
Sendo a premissa maior a de que os tribunais arbitrais do CAAD só são competentes em matéria de impostos (administrados pela AT), a premissa menor para obter a exclusão da arbitrabilidade do presente diferendo é a qualificação da CSR como uma “contribuição financeira” – rectius, como um “não-imposto”.
Uma vez que é reconhecida aos tribunais arbitrais a competência de determinação da sua competência, e como esta depende, assim, da natureza da CSR, importa preliminarmente estabelecer essa natureza[6]. E para isso, claro, o nomen iuris adianta pouco.
A Requerente invoca que a CSR é um imposto
- com base em argumentação desenvolvida no PPA (artigos 75.º a 95.º e 109.º a 150.º - estes últimos por referência ao Parecer de Sérgio Vasques que juntou aos autos);
- com base “na qualificação sustentada em sede graciosa” pela AT (referindo-se, designadamente, aos pontos 3.37 a 3.51 da Decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa);
- com base nos pontos 102 e 113 da Resposta da AT (este último por apelo à Informação n.º 01-CMCN/2022, da Unidade dos Grandes Contribuintes); e
- com base em anterior jurisprudência do CAAD (listando, a mais da já referida Decisão proferida no Processo n.º 564/2020-T, 19 decisões em que – não obstante a questão da competência ser de conhecimento oficioso – houvera pronúncia sobre questões que envolviam a CSR).
Por seu turno, a Requerida considera que a CSR é uma contribuição financeira, invocando decisões do CAAD sobre a Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético (CESE) e a existência de “um vínculo entre o destino dado às receitas da CSR e o motivo específico que levou à sua criação” (que teria sido, na lógica do utilizador-pagador, “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis” e, portanto, “uma contraprestação pela utilização dos serviços prestados pela IP [Infraestruturas de Portugal, IP, S.A.] aos utentes das vias rodoviárias, em nome do Estado”).
Ainda que a qualificação jurídica de um tributo como imposto ou não-imposto tenha de depender das suas características intrínsecas (a que voltaremos), não são indiferentes os índices que – sendo externos a essa qualificação – foram invocados pela Requerente e pela Requerida. Assim, para começar, a jurisprudência do CAAD (e dos tribunais estaduais que a examinaram) não é indiferente – mesmo que, a propósito de (outras) contribuições financeiras (por exemplo, a Contribuição sobre o Sector Bancário) tenha oscilado na sua qualificação e no reconhecimento da sua competência para adjudicar os litígios que lhe foram submetidos. É dizer que dessa outra jurisprudência não se extrai uma indicação segura[7].
Menos indiferente (a relevância da invocação de outras contribuições financeiras implica o apuramento e uma análise adicional das suas semelhanças e das suas características específicas) seria, claro, um juízo reiterado de competência dos tribunais arbitrais constituídos no CAAD em matéria de CSR. Acontece que apenas DUAS das 19 decisões do CAAD que a Requerente invoca (na sua Resposta às excepções) para afirmar que tais tribunais arbitrais têm aceite a sua jurisdição sobre a CSR o poderiam substanciar (as dos processos n.os 483/2014-T e 147/2015-T[8], que autonomizaram o seu tratamento), sendo as demais resultantes da consideração indiferenciada da CSR com o imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP)[9].
O mesmo se diga para a jurisprudência dos Tribunais superiores, ainda que estes não tenham de cuidar da delimitação da sua competência em função da natureza do tributo, e se não conheçam decisões suas sobre a CSR.
Também não é indiferente que o Tribunal de Contas, a pp. 90 do seu Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2008 (https://erario.tcontas.pt/pt/actos/parecer-cge/2008/pcge2008-v1.pdf ), tenha considerado o seguinte:
“Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspectos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança.”
Acontece que, na mesma página, se relativiza esse enquadramento:
“Admitindo, ainda assim, que a contribuição de serviço rodoviário possa ter a natureza de contribuição especiala respectiva receita não está sujeita às regras da não consignação – e respectivas excepções – previstas no artigo 7.º da Lei de enquadramento orçamental, já que a referida receita não pode ser legalmente desviada para fim diverso.”
Em contrapartida, a tentativa de vinculação da AT a expressões por ela empregues em fases anteriores e ao longo do processo, ainda que pudesse relevar para efeito da sindicância da fundamentação empregue por esta nas liquidações, é obviamente irrelevante para estabelecer a competência do Tribunal.
Finalmente, também não é indiferente o modo como a doutrina mais especializada se tem pronunciado sobre a natureza da CSR ou de figuras próximas:
- na recolha de Casalta Nabais Estudos sobre a Tributação dos Transportes e do Petróleo, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 42-43, refere-se, a propósito da CSR (e de outras figuras aí referidas), “estarmos perante tributos que, atenta a sua estrutura unilateral, se configuram como efectivos impostos, muito embora dada a titularidade activa das correspondentes relações tributárias (e o destino da sua receita), tenham clara natureza parafiscal.”. Como o A. escreve em Direito Fiscal, 11.ª ed, Almedina, Coimbra, 2021, pp. 53-54, “o critério para a distinção entre os tipos de tributos[reporta-se] exclusivamente à estrutura da relação tributária, ao tipo de relação que se estabelece entre os respetivos sujeito ativo e passivo, e não à titularidade activa dessa relação (…) É, pois, a estrutura bilateral da relação jurídica, em que assentam tanto as taxas como as contribuições financeiras, que revela a natureza comutativa destes tributos, os quais, porque concretizam uma efectiva troca de utilidades económicas, têm por base […] uma legitimidade económica. / O que vale também relativamente à titularidade da receita dos tributos. De facto, esta titularidade, até porque está para além da relação tributária integrando [-se …] numa relação financeira a constituir-se a jusante da relação tributária, nada pode dizer sobre o tipo de tributo.” (destaques aditados).
- Sérgio Vasques, no Parecer junto aos autos, é ostensivamente evasivo quanto à caracterização da CSR como imposto ou contribuição financeira, não obstante notar que “No quadro do Sistema de Normalização Contabilística para as Administrações Públicas (SNC-AP), regime contabilístico actualmente aplicável de modo transversal a toda a administração pública, a CSR é integrada nos “impostos indirectos”, com código de conta próprio (70212), distinto do código aplicável ao ISP (70201).” - p. 7). A essa “omissão de qualificação” não é alheia, claro, a sua compreensão dinâmica da evolução dos tributos: em O Princípio da Equivalência como Critério de Igualdade Tributária, Almedina, Coimbra, 2008, defende que se tem verificado um “deslizamento” e que, hoje em dia, não são as chamadas contribuições que se revestem das características dos impostos, são os chamados impostos que se revestem das características das contribuições. Nas suas palavras:
“os tributos paracomutativos nascem muitas vezes pela conversão progressiva de tributos unilaterais (…)
Os impostos especiais de consumo oferecem-nos uma ilustração paradigmática desta transformação. Cobrados até há pouco tempo atrás com o único propósito de angariar receita, os impostos sobre (…) os produtos energéticos vieram nas últimas décadas a ser associados de forma cada vez mais clara à compensação de custos de natureza ambiental (…) perdendo a unilateralidade característica dos impostos e ganhando progressivamente os contornos típicos das contribuições. Os impostos especiais de consumo são isso mesmo, contribuições em formação.” (p. 179).
No seu Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, vai ainda mais longe: “As modernas contribuições compreendem figuras tão diversas quanto as contribuições para a segurança social (…), as taxas de regulação económica (…), os tributos associativos devidos às ordens profissionais (…), ou os modernos tributos ambientais e impostos especiais de consumo (…)” - p. 257. Na página seguinte acrescenta que as contribuições financeiras a favor de entidades públicas cobrem “tributos que sempre apresentaram os contornos das contribuições, tributos que estão a deixar de ser contribuições e tributos que se estão a transformar em contribuições. Estes últimos casos são especialmente importantes, pois que um dos fenómenos comuns da fiscalidade dos nossos dias está na transformação progressiva dos impostos em contribuições, substituindo-se a sua estrutura unilateral típica por uma estrutura paracomutativa, orientada a uma relação de troca com os contribuintes. Entre nós, são exemplo dessa transformação os impostos especiais de consumo, antes orientados à mera angariação de receita e que hoje se encontram voltados à compensação de externalidades negativas.*” (destaques aditados, *nota suprimida).
- Suzana Tavares da Silva, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 165, recusa, porém, essa “miscigenização das categorias tributárias” e a “compreensão contínua do conceito de tributos comutativos”[10] (sem dúvida porque a disciplina constitucional dos impostos seria facilmente subvertida com a adscrição de uma qualquer finalidade plausível e a sua consignação). Procurando identificar os critérios de distinção das taxas, das contribuições financeiras[11], das contribuições especiais e dos impostos, a A. recorre, para a delimitação dos contornos das contribuições financeiras, aos critérios desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional Alemão:
“1) incidir sobre um grupo homogéneo; 2) manter uma proximidade com a obrigação tributária e as suas finalidades; 3) corresponder a uma relação encargo/benefício capaz de demonstrar que as receitas geradas são fruídas pelos membros do grupo” (p. 91).
- Filipe de Vasconcelos Fernandes, As contribuições financeiras no Sistema Fiscal Português - Uma Introdução, Gestlegal, Coimbra, 2020, p. 188, também assume que “a condição parafiscal de um determinado tributo [“a consignação de receita de um determinado tributo a certa entidade pública”] não pode influir para aquela que será a respetiva qualificação no plano jurídico” (destaques aditados). E adiante (p. 200), transcrevendo um trecho do Acórdão n.º 363/2019 do Tribunal Constitucional, escreve o seguinte:
““a estrutura destes tributos [comutativos] deve ser concebida de modo a que contribuintes que provoquem custos iguais ou que aproveitem benefícios iguais sejam chamados a pagar tributo igual e que contribuintes que provoquem custos diferentes ou aproveitem benefícios diferentes paguem tributos também diferente”*.
Esta adequação ao custo do serviço prestado por parte do ente público – que expressa a preferência por uma lógica de equivalência de custo (…) e relega para um plano supletivo uma lógica alternativa de equivalência de benefício (…) – requer, para além de uma igualdade de tratamento entre sujeitos passivos, que o montante exigido a título do tributo corresponda aos custos efetivamente reais e não a meros custos projetados ou ideais, concedendo-se que, no caso das contribuições financeiras, pelo caráter presumido que inere à própria relação de benefício gerada, os referidos custos sejam projetados em termos médios (…)”.
Visto isto, quais são então as características intrínsecas da CSR que a podem caracterizar como uma contribuiçãoou um imposto?
Diz a AT:
“9. A CSR representa, assim, uma contraprestação pela utilização dos serviços prestados pela IP aos utentes das vias rodoviárias, em nome do Estado, por força das bases da referida concessão, aprovadas pelo Decreto-Lei nº 380/2007, de 13 de novembro.
10. De acordo com o contrato de concessão, a IP está obrigada a “serviços públicos” específicos, como a conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional.
11. Tratando-se de um tributo de carácter comutativo, embora baseado numa relação de bilateralidade genérica ou difusa que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários (os utilizadores da rede rodoviária nacional), se efetiva na compensação da conservação e requalificação da rede rodoviária nacional, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira e não de (uma taxa nem) imposto.”
Se bem que esteja assente a necessidade de, nas contribuições financeiras, se estabelecer um sinalagma entre o que se paga e o que se custa ou o que se recebe, a delimitação da comutatividade não é unívoca. Por exemplo, Filipe de Vasconcelos Fernandes, ob. cit., p. 116, sublinha que “o nexo bilateral que subjaz ao respetivo facto tributário [tem]caráter derivado, já que resulta de uma presunção de benefício ou utilidade na esfera dos sujeitos passivos, por pertencerem ou integrarem, num determinado intervalo de tempo, um grupo, tendencialmente homogéneo de interesses”, e desdobra este, na página seguinte, numa “homogeneidade de interesses” – que, segundo informa, na literatura alemã por vezes se designa por “homogeneidade de grupo” – e numa “responsabilidade de grupo (…) que se deve ao facto de os sujeitos passivos deste tipo de tributo partilharem um ónus ou responsabilidade de custeamento ou suporte da atividade pública que não pode atribuir-se isoladamente, mas apenas em face daquela que é a respetiva inserção no grupo a que efetivamente pertencem.”
Ora, a CSR apresenta diferenças muito significativas em relação ao comum das contribuições financeiras, sejam elas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas” de regulação ou as “grandes contribuições” que foram surgindo a título transitório e se vão mantendo (Contribuição sobre o Sector Bancário, Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético - CESE, Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, …).
Em primeiro lugar, nessas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições”, o sujeito passivo é o contribuinte (na CESE há mesmo uma proibição da sua repercussão), enquanto que na CSR um e outro são diferentes: o sujeito passivo (quem tem de entregar o imposto ao Fisco) é o introdutor dos produtos no mercado e o contribuinte (quem tem de suportar a exacção fiscal) é o adquirente dos combustíveis (incluindo, como a já citada jurisprudência arbitral evidencia, adquirentes de combustíveis que nada têm a ver com a utilização das estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal).
Em segundo lugar, o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas colectivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária. Ou seja, ao invés do tal nexo estruturalmente identificador de um tributo comutativo que supõe uma relação extra-tributária indirecta e presumida entre o sujeito passivo e o prestador e se encontra nas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas” de regulação ou “grandes contribuições”, não se apura na CSR qualquer relação extra-tributária entre o sujeito passivo e o prestador, mas só uma relação indirecta e presumida entre o contribuinte (terceiro) e o prestador.
Em terceiro lugar, enquanto nas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições” é a pertença ao grupo que permite de imediato a identificação do devedor – sendo a indução de um custo ou a obtenção de um benefício presumida a partir dessa inclusão nele – na CSR não há nenhum grupo prévio a que se possa imputar o pagamento: é porque se paga a CSR que se supõe que se integra o grupo. A integração no tal “grupo homogéneo” resulta da actividade futura de qualquer motociclista ou automobilista que use veículos com motores de combustão (deixando de fora todos os outros) – e nem sequer do uso da rede rodoviária nacional (a fracção das estradas existente que é a invocada possibilidade de contraprestação): tal integração no grupo é feita derivar do índice escolhido para a imposição da CSR, ou seja, do abastecimento de combustíveis (e, evidentemente, daria lugar a outro “grupo homogéneo” se o índice fosse outro…)[12].
Em razão do benefício, indica a AT que esse grupo seria o dos “utilizadores da rede rodoviária nacional”, mas nem os sujeitos passivos da CSR o são (são as empresas que introduzem no mercado os combustíveis fósseis), nem os adquirentes de combustíveis têm de o ser (mesmo descontando a anomalia dos adquirentes de gasóleo colorido e marcado que a pagam nem sequer o poderem ser, podem os demais automobilistas circular exclusivamente em autoestradas e vias municipais) – menos ainda na proporção dessas aquisições de combustíveis –, nem os utilizadores da rede rodoviária nacional com veículos eléctricos (ou velocípedes) têm de pagar CSR.
Em quarto lugar, o princípio da equivalência – a que se recorre para conferir unidade de sentido às contribuições financeiras[13], equiparando-se o pagamento feito à repartição, tendencialmente idêntica (ou, pelo menos, com base em características dadas e estáveis), dos custos especificamente gerados pelo grupo homogéneo (ou dos benefícios auferidos pelo grupo homogéneo, como nas “taxas” das autoridades reguladoras, ou, forçando mais ou menos a nota, nas tais “grandes contribuições”) – assume na CSR uma ligação a um índice variável: o do consumo dos “grandes combustíveis rodoviários”[14]. Com a agravante de o presumido benefício não ter uma relação directa com esse índice variável: por um lado, as vias da Rede Rodoviária Nacional (que foram concessionadas, em 2007, à EP - Estradas de Portugal, E.P.E.) não são a totalidade das estradas nacionais (além das auto-estradas concessionadas, e da rede municipal – urbana e rural –, o Plano Rodoviário Nacional prevê a transferência para as autarquias das estradas que não estejam nele incluídas). Noutras palavras: a utilidade proporcionada pela circulação nas estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal não é segmentável da que é proporcionada pelas demais; por outro lado, uma fracção crescente dos utilizadores dessa sub-parcela das vias de circulação automóvel – a rede rodoviária nacional – não fica sujeita a essa “contribuição”: o dos utilizadores dela com veículos eléctricos ou velocípedes.
Quer dizer que a presunção de uso das estradas hoje concessionadas à Infraestruturas de Portugal em função do gasto de combustíveis rodoviários (ou de gasóleo colorido e marcado, ou de outros combustíveis em que seja cobrada, indevidamente, CSR) não tem consistência. Até pelo seguinte: a doutrina tem entendido que “a pertença de um determinado indivíduo a um grupo é condição necessária e suficiente para que se lhe imponha a condição de sujeito passivo de uma contribuição financeira existente, mesmo sabendo que o serviço público prestado se projetou inicialmente sobre o próprio grupo e apenas derivadamente, na medida da respetiva pertença a este último, sobre cada sujeito passivo.” - Filipe de Vasconcelos Fernandes, ob. cit., pp. 120-121. Ou seja, “o facto tributário relevante [delimita-se], no que à sua vertente temporal diz respeito, no momento da mera disponibilidade da utilização e não da utilização efetiva dos bens ou serviços correspondentes, a qual pode efetivamente nem sequer vir a suceder.” (idem, p. 69, destaques aditados). Não havendo na CSR – ao contrário das contribuições financeiras – um grupo homogéneo prévio à tributação (pagar a CSR é que é o critério de integração no grupo…), não é possível replicar o argumento da disponibilidade à partida.
Em quinto lugar, e não obstante – como já referido – não ser bom critério determinar a natureza de um tributo a partir da sua consignação material ou orgânica[15], certo é que a EP - Estradas de Portugal, E.P.E. só gastava o dinheiro em estradas (e no mais necessário a poder fazê-lo, incluindo as suas despesas correntes), mas, com a fusão, em 2015, com a Rede Ferroviária Nacional - REFER E.P.E. para dar origem à Infraestruturas de Portugal, isso deixou de ser assim. A consignação orgânica ainda podia ser suficiente garantia de afectação de receitas quando a entidade beneficiária era mono-especializada, mas deixou de o ser logo que essa entidade alargou o âmbito da sua intervenção a outras áreas de actividade e utilização de recursos[16].
Quer dizer que a consignação orgânica de receitas à EP - Estradas de Portugal, que ainda permitia presumir que o destino da CSR fosse a “conservação e requalificação da rede rodoviária nacional”, deixou de ter sustentação suficiente a partir da sua conversão em Infraestruturas de Portugal.
Se cada uma das anteriores diferenças – e o seu conjunto – afastam a CSR de uma contribuição financeira, a razão definitiva para a excluir como tal tem a ver com a sua génese. A Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (“Regula o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E.”) criou a CSR por desdobramento do ISP – que é, indiscutivelmente, um imposto especial de consumo[17]. Como se escrevia no artigo 7.º dessa lei, sob a epígrafe “Fixação das taxas do ISP”,
“As taxas do ISP são estabelecidas por portaria conjunta nos termos do Código dos Impostos Especiais de Consumo, por forma a garantir a neutralidade fiscal e o não agravamento do preço de venda dos combustíveis em consequência da criação da contribuição de serviço rodoviário.”
No já citado Relatório do Tribunal de Contas escrevia-se:
“A lei que criou esta contribuição também determinou* a fixação das taxas de ISP de forma a garantir a neutralidade fiscal e o não agravamento do preço de venda dos combustíveis, em consequência da criação da contribuição de serviço rodoviário que, deste modo, representou, no ano de 2008, uma quebra de € 525,1 milhões na receita de ISP.”
Isso implica que a única diferença entre os € 525,1 milhões que o ISP perdeu e os € 525,1 milhões que a CSR ganhou em 2008 residiu na alteração da sua designação e na sua afectação. Enquanto imposto especial de consumo louvava-se na cobertura de um custo: os custos ambientais que o preço dos combustíveis não internalizavam (uma externalidade). A partir do momento em que uma parte – arbitrária – da receita gerada pelo ISP passou a ter a designação de CSR, passou (parece – mas contra o já referido pelo legislador[18]) a louvar-se no benefício proporcionado aos causadores do custo. Quer dizer que a alteração da designação é suposta ter operado, certamente por magia, uma conversão do imposto em contribuição, dos custos em benefícios, e dos poluidores-pagadores em beneficiados-pagadores[19].
Ora, mesmo admitindo que a relação financeira subsequente podia interferir com a qualificação da relação tributária, se a afectação da receita deixou, supervenientemente, de poder comprovar o invocado benefício, somos reconduzidos à evidência de que – num momento ou em outro –, a mudança de designação de uma parte da receita do ISP de “imposto” para “contribuição” é juridicamente inepta para volver um imposto numa contribuição financeira – por muito que tal travesti acompanhe, como nos dizem, o evoluir dos tempos em matéria tributária (e que teria como consequência o desmantelamento dos controlos sobre o poder tributário do Estado). Inepta, excepto, ironicamente, para os efeitos decorrentes da decisão do TJUE: um montante que era legitimamente arrecadado enquanto ISP deixou de o ser enquanto CSR.
Conclui-se, portanto, que improcede a primeira excepção suscitada pela AT: sendo competente para estabelecer a sua competência, o presente Tribunal Arbitral é competente para a decisão do pleito e a AT está vinculada a ela, já que a CSR não é uma contribuição financeira – mantém-se como o imposto que sempre foi.
B. Quanto à ilegitimidade da Requerente
Invoca a AT, no essencial, que
“embora o sujeito passivo de CSR seja o que se encontra definido para efeitos de ISP, o encargo desta contribuição financeira é suportado pelo consumidor do combustível.
19. Ora, a Requerente pretende que lhe seja restituído o montante de € 4.787.419,42, liquidado a título de CSR, relativamente a introduções no consumo efetuadas no período de janeiro a dezembro de 2017, que teria pago indevidamente, sem ter como provar, o que alega no pedido de pronúncia arbitral, de ter efetivamente suportado o custo do pagamento desse montante ao Estado.
20. Efetivamente, dedicando-se a Requerente à comercialização de produtos petrolíferos, tais produtos já foram vendidos sendo que, no respetivo preço de venda foram incluídos os montantes pagos pela vendedora, designadamente para a sua introdução no consumo, tendo repercutido no preço de venda todas as despesas por si assumidas a título de liquidação de CSR,
(…)
21. E, assim sendo, não se vislumbra que exista na esfera jurídica da Requerente, um interesse juridicamente protegido.
22. Outrossim, nos termos dos nºs 1 a 3, do artigo 30.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º nº 1 alínea e) do RJAT, “O autor é parte legítima quando tem um interesse direto em demandar (…)” e “O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação (…)”.
(…)
26. Ora, comprovado que está que a Requerente repercutiu os custos da liquidação do CSR no custo de venda dos combustíveis, resulta que a eventual anulação do ato tributário contestado beneficiaria de modo imediato a esfera da Requerente, consubstanciando uma situação de enriquecimento sem causa, não sendo por isso legítimo (direto) o seu interesse na presente demanda.
27. Assim, não existindo causa de pedir, como se verifica, carece a Requerente de legitimidade (ativa) que sustente a sua pretensão, devendo o Tribunal arbitral abster-se de conhecer do mérito da causa e absolver a AT da instância (…)”.
Em contrapartida, a Requerente invocou, em resumo,
- por força da remissão do artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, o disposto no artigo 9.º, n.os 1 e 4, do Código de Procedimento e Processo Tributário:
“1 - Têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.
(…)
4 - Têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.”);
- que, sendo “contribuinte directo figura como sujeito passivo nesta relação jurídico-tributária”;
- que a decisão proferida em reenvio prejudicial no processo n.º 564/2020-T “exclui toda e qualquer presunção ou regras em matéria de prova que tenha como efeito fazer recair sobre a Requerente o ónus de provar que a CSR não foi repercutida ou que obste à apresentação de elementos de prova a contestar a sua pretensa repercussão.”;
- que “à luz do próprio Direito da União não pode ser recusada à Requerente legitimidade para reivindicar o reembolso do imposto indevidamente cobrado, atestando sem margem para dúvida o interesse legítimo da Requerente em agir.”;
- que, sendo a legitimidade de conhecimento oficioso, a decisão que viesse a ser tomada em sentido contrário à que foi tomada no processo n.º 564/2020-T “– em que as partes e o objecto são os mesmos – redundaria numa contradição evidente”;
Vejamos.
No Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Abril de 2009, proferido no processo n.º 065/09, escreveu-se o seguinte:
“«Revisão oficiosa» é a realizada por iniciativa dos serviços, sendo esse o alcance natural da expressão «oficiosa» na terminologia jurídica. Mas, é inequívoco pela referência a «pedido do contribuinte» «para a sua realização» que, afinal, essa revisão não tem de ser de iniciativa da administração tributária, podendo ser assentar também em iniciativa do contribuinte. Das infelizes redacções dos n.ºs 1 e 7, conclui-se assim, que os dois tipos fundamentais de revisão do acto tributário são afinal os seguintes:
– há um em que a revisão é pedida pelo contribuinte no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade;
– há outro em que a revisão é da iniciativa dos serviços ou é pedida pelo contribuinte, que se denomina sempre «revisão oficiosa», que pode ser efectuada no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.”.”
Na decisão do Proc. 140/2021-T escreveu-se, em nota, a propósito desse aresto:
““é hoje jurisprudência consolidada que, podendo a AT, por sua iniciativa, proceder à revisão oficiosa do acto tributário, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços (...), também o contribuinte pode, naquele prazo da revisão oficiosa, pedir esta mesma revisão com aquele fundamento”.[[20]]
O destaque introduzido nas citações (do texto e da nota) tem a ver com o facto de a referência que consta do n.º 1 do artigo 78.º da LGT ser feita ao “sujeito passivo”. Ora, a Requerente é (foi) sujeito passivo mas, na medida em que, presumivelmente, alienou os veículos repercutindo o pagamento que fez de ISV, não é (não foi) contribuinte. Quer dizer que, mesmo em face do alargamento jurisprudencial do âmbito da norma aos contribuintes, se poderia eventualmente discutir a legitimidade da Requerente para pedir a revisão oficiosa. Essa questão, porém, não parece ter ainda assomado à discussão (tal como não assomou o tratamento fiscal dos montantes “devolvidos” a quem não os suportou).”
Ora, justamente, neste caso é suposto discutir-se a devolução de montantes que, indiciariamente, se pode admitir que foram repercutidos nos adquirentes de combustíveis (a AT invoca, aliás, que a Requerente teria tido prejuízo se o não tivessem sido – e, como já notou a doutrina, não havia razão para não fazer essa repercussão: “Sendo rígida a procura de um bem, o vendedor pode efectuar a repercussão tributária mais facilmente, sabendo que o comprador é pouco sensível ao aumento do preço que daí resulta. Como sucede quando se agrava o imposto sobre os combustíveis.”[21]).
A distinção entre sujeito passivo – enquanto interveniente na relação jurídica tributária, seja como devedor do pagamento ou de outra obrigação acessória ou complementar – e contribuinte – enquanto quem suporta a exacção fiscal – é uma distinção básica no Direito Tributário (aliás, tem vindo a ser desdobrada pela doutrina[22]). O facto de o legislador ter utilizado esses dois diferentes termos no mesmo artigo (e a jurisprudência do STA o continuar a fazer a propósito dele) não pode ser desconsiderado, mesmo que haja flutuação terminológica na utilização de ambos os conceitos em diferente legislação[23].
Levando a sério essa distinção, como parece a este colectivo que tem de se levar, a Requerente não teria tido legitimidade para pedir a “revisão oficiosa” (por não ser “contribuinte”) e o fundamento legal que a jurisprudência divisa para a admitir estar na prerrogativa que o n.º 7 do artigo 78.º da LGT[24] atribui ao contribuinte.
Acontece que a AT não rejeitou o pedido de revisão oficiosa com o fundamento de que tinha sido formulado por um sujeito passivo que não era contribuinte, e vem agora invocar – embora não com essa formulação – exactamente isso: que a Requerente recuperou o que pagou ao Fisco e que, portanto, sendo sujeito passivo, não é contribuinte[25].
Ora, parece claro que a razão que a AT teria tido nessa anterior fase procedimental não a tem na presente fase impugnatória: não há nenhum fundamento legal para excluir a legitimidade do sujeito passivo da relação tributária para a pôr em causa. Pelo contrário: como resulta expressamente da primeira parte do artigo 65.º da LGT, “Têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária”. Aliás, a já referida[26] alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT serve justamente para estender a quem não é sujeito passivo (ao abrigo da segunda parte desse artigo 65.º: “e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”) as possibilidades de impugnar essa relação jurídico-tributária.
Ex abundante, ainda se poderia dizer que ao invocar o enriquecimento sem causa como forma de corrigir a devolução ao sujeito passivo de valores que este repercutiu nos pagadores dos impostos especiais de consumo (que a CSR só nominalmente deixou de ser), ou seja, nos contribuintes[27], a AT teria de conceder que este tem legitimidade para recuperar esses valores. A pretensão de aferição do que a Requerente pagou mas não suportou implica que a Requerente se possa enriquecer – ou seja, que tenha legitimidade para receber do Fisco o que entregou ao Fisco mas facturou aos seus clientes. Fora do quadro de delimitação da possibilidade de fazer reabrir um procedimento que estava fechado por via impugnatória ou de reclamação – o do pedido do contribuinte para que a AT use em seu benefício (seu, do contribuinte, não de quem o não é) a extensão de prazo que a Lei Geral Tributária concedeu literalmente só à AT –, a invocação de um enriquecimento sem causa não implica ilegitimidade, implica uma espécie de pedido reconvencional[28], mesmo que invocado de forma preventiva. Como tal, seria ponderado em sede de mérito, não em sede de verificação dos pressupostos do conhecimento do mérito.
Improcede, portanto, a segunda excepção invocada pela AT.
C. Quanto à caducidade do direito de acção
Invoca a AT o seguinte:
“32. A Requerente apresentou, em 01/10/2021, o presente pedido de pronúncia arbitral, na sequência do despacho de indeferimento, datado de 05/07/2021, do pedido de revisão oficiosa apresentado em 19/02/2021, dos atos de liquidação de ISP, CSR e outros tributos, na parte relativa aos montantes liquidados a título de CSR, com base nas declarações de introdução no consumo submetidas pela Requerente, no período de janeiro a dezembro de 2017, tituladas pelos 12 DUC constantes do PA, cujo termo do prazo de pagamento do imposto ocorreu, sucessivamente, em 28/02/2017, 31/03/2017, 30/04/2017, 31/05/2017, 30/06/2017, 31/07/2017, 31/08/2017, 29/09/2017, 31/10/2017, 30/11/2017, 29/12/2017 e 31/01/2018.
(…)
34. Efetivamente, conforme o nº 1 do artigo 78º da LGT,
“Artigo 78º
Revisão dos atos tributários”
1. A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de 4 anos após a liquidação, ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços. (…)”
35. No que concerne ao prazo previsto na 1ª parte do nº 1 do artigo 78º da LGT (prazo da reclamação administrativa), o mesmo já se encontra precludido, uma vez que o termo do prazo de pagamento voluntário relativo ao último dos 12 DUCs ocorreu em 31/01/2018 e o prazo para apresentação da reclamação graciosa (de 120 dias a contar do termo do prazo do pagamento da CSR) terminou em maio de 2018, face ao estatuído no nº 1 do artigo 78º da LGT, conjugado com a alínea a) do nº 1 do artigo 102º do Código de Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo D.L. nº 433/99, de 26 de Outubro.
36. Relativamente ao prazo previsto na 2ª parte do nº 1 do artigo 78º da LGT só é aplicável se o fundamento de revisão do ato tributário consistir em erro e esse erro for imputável aos serviços.
(…)
38. Com efeito, não podendo invocar a ilegalidade das liquidações como fundamento para o pedido de revisão (apesar de os considerar ilegais no pedido de revisão), uma vez que para o fazer teria que observar o prazo de reclamação, longamente ultrapassado, a Requerente fundamenta o pedido em erro dos serviços, a estes imputável, o que permitiria utilizar o prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º da LGT, tratando-se de um erro de direito por, conforme alega, ter sido aplicada uma lei nacional que viola o direito comunitário.
(…)
tais atos de liquidação foram praticados em aplicação de uma lei da República em vigor há 14 anos, cuja conformidade com o direito comunitário nunca foi posta em causa por qualquer tribunal, nacional ou comunitário - competindo a esses órgãos a declaração de ilegalidade de quaisquer normas - e a AT não pode deixar de aplicar a norma, com base num “julgamento de não conformidade” com o direito comunitário.
(…)
44. Assim sendo, perante a norma em vigor, a Administração Tributária e Aduaneira (AT), em obediência ao Princípio da Legalidade, não poderia ter atuado de modo diferente, sob pena de estar ela a violar essa legalidade, e, nessa conformidade entende a Requerida que, inexistindo erro imputável aos serviços, inexiste fundamento que legitime o procedimento de revisão do ato tributário, nos termos da 2ª parte do nº 1 do artigo 78º da LGT.”
Invocou ainda decisões da jurisdição arbitral (as proferidas nos processos n.os 345/2017-T, 362/2020-T, 19/2021-T, 189/2021-T e 250/2021-T) e a do processo n.º 114/2019-T, que, por sua vez, invocava outra decisão arbitral (a do processo n.º 527/2018-T)[29].
Na decisão do processo n.º 114/2019-T escreveu-se o seguinte (destaques aditados):
“é premente que Tribunal Arbitral determine se, no caso em apreço houve ou não erro imputável aos serviços, uma vez que daqui decorre a determinação do prazo de apresentação do pedido de revisão, que irá condicionar, em última instância, o prazo de apresentação de impugnação no CAAD, via pedido de pronúncia arbitral.”
Uma questão metodológica prévia – que, no entanto, não foi abordada pelos intervenientes processuais – é a de apurar se para saber se houve ou não erro imputável aos serviços é necessário conhecer de mérito. Evidentemente que se for, não pode haver procedência da excepção de intempestividade. A decisão terá de passar pelo escrutínio da liquidação feita pela AT (ou imputável à AT).
A outra questão – essa tratada tanto pela Requerente como pela Requerida – é a da determinação do que pode constituir “erro imputável aos serviços”. A este propósito, na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa já se tinha escrito o que seguidamente se transcreve a partir da sua reprodução na Resposta da AT:
“3.8) Atendendo a que a Administração Tributária se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, sempre sobre o espectro do princípio da legalidade e, não tendo, como referido, a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num “julgamento” de pretensa desconformidade com o direito comunitário (atribuição reservada aos Tribunais), será forçoso concluir pela inexistência de imputabilidade aos serviços de “erro”, que fundamente um procedimento de revisão do ato tributário, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
3.9) Não pode ser imputado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. n.º 2 do art. 266º, da CRP e art. 55º da LGT). Nessa conformidade, inexistindo erro imputável aos serviços, inexiste fundamento que legitime o procedimento de revisão do ato tributário, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, a que acresce o facto de a própria requerente, referir no pt. 17º da sua exposição que devem ser considerados “ilegais”, os atos de liquidação praticados pela Administração Tributária (1ª parte do n.º 1 do art. 78º da LGT – prazo de 120 dias, há muito precludido)”.
Em relação a esta possível causa de não conhecimento do recurso, que a Requerente já pretendera afastar no PPA, retorquiu esta, quando lhe foi dada ocasião de se pronunciar sobre as excepções suscitadas pela AT, que resultava da jurisprudência do STA que o “erro” para efeitos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT compreendia “o lapso, o erro de facto e o erro de direito – incluindo o Direito da União – sendo por isso um conceito amplo que engloba em termos genéricos todos os vícios de violação de lei.” E invocava o seguinte:
“As normas do Direito da União integram o bloco de legalidade a que a Autoridade Tributária está sujeita nos termos do artigo 3.º do Código de Procedimento Administrativo, vigorando directamente no ordenamento jurídico português, em posição hierárquica superior em relação à legislação ordinária nacional, tal como decorre do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
(…)
Resulta do primado do Direito Europeu e do princípio da legalidade, portanto, que sobre a Autoridade Tributária recai o dever de recusar a aplicação de normas nacionais contrárias ao Direito da União, como sublinha o Tribunal Arbitral no acórdão de19.3.2021, proc. n.º 396/2020-T.
(…)
Essa recusa deve ser assegurada pela Autoridade Tributária, por sua própria iniciativa se for o caso, desaplicando qualquer disposição nacional contrária ao Direito da União sem pedir nem aguardar pela sua eliminação prévia por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional, como bem regista o TJUE no acórdão de 14.9.2017, proc. n.º C-628/15.
(…)
Em suma, os actos de liquidação objecto do pedido de revisão oficiosa e dos presentes autos foram praticados em violação do Direita da União Europeia, como resulta do despacho emitido pelo TJUE em resposta ao reenvio prejudicial
(…)
… o que consiste num erro sobre os pressupostos de facto e de direito única e exclusivamente imputável aos serviços, porquanto estão em causa actos heteroliquidados em que a Autoridade Tributária aplicou normas internas contrárias ao Direito da União…
(…)
… pelo que é inegável que se encontram verificados os pressupostos de que dependia a revisão do acto tributário pela Autoridade Tributária no prazo de 4 anos após a liquidação.”
Acrescentava ainda a Requerente que tal questão fora conhecida e decidida no saneamento do processo arbitral n.º 564/2020-T em que, como sublinhava, “as partes e o objecto são os mesmos”.
Por muito respeito que se devote aos precedentes, na medida em que eles contribuem para a certeza e a segurança do direito – o que neste ponto não acontece porque divergem – cremos que não é possível seguir, nesse passo, o doutamente decidido nesse processo (que, de resto, como advertiu a AT, ainda não transitou em julgado).
Desde logo porque o presente Tribunal ponderou suspender a instância até que houvesse pronúncia do TJUE sobre as questões que lhe foram suscitadas em processo arbitral idêntico (o já referido n.º 564/2020-T) – até tendo em conta que a suscitação de questões prejudiciais para o TJUE lhe tinha sido peticionada pela Requerente e pela AT. Ora, há-de convir-se que é ilógico o Tribunal (e, aparentemente, tanto Requerente como Requerida) não ter(em) uma convicção definitiva sobre qual seria a solução que o TJUE daria à questão e concluir (na sequência da pronúncia deste) que antes a AT cometera um erro que lhe era imputável por se ter desviado da interpretação do Direito que o TJUE fixou depois.
Acontece que esta prerrogativa que os Tribunais têm de recorrer ao TJUE para aclarar dúvidas que tenham sobre a interpretação do Direito da União não está ao alcance da AT. Nem o nosso sistema de controlo da constitucionalidade tem os mecanismos de recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional que decorrem da recusa de aplicação de normas pelos tribunais com fundamento em desconformidade constitucional[30]. Quer dizer que nem por alegado desrespeito do Direito da União, nem por alegado desrespeito do Direito Constitucional, a AT pode estar investida na possibilidade de recusar a aplicação de normas legais[31].
O que nos leva de volta à questão metodológica – prévia – a que antes se fez referência. Uma vez que está em causa saber se a Requerente estava em tempo para pedir a “revisão oficiosa” – e isso implica ajuizar sobre se podia haver “erro imputável aos serviços” (único fundamento para poder beneficiar do prazo alargado de 4 anos da parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT) –, a questão é a de saber se se pode atender à inexistência desse erro (que foi expressamente invocada pela AT na altura em que o sujeito passivo lhe solicitou o desencadear da “revisão oficiosa”) em sede de apreciação das excepções – ie, sem entrar no mérito.
Se o juízo sobre esse erro constituísse averiguação de mérito e, portanto, pressupusesse a admissão do pedido, isso implicaria que a jurisprudência – incluindo a citada pela AT – não poderia ter chegado em caso algum à conclusão da intempestividade[32].
Ora, tal consequência nunca foi, que se saiba, defendida: pelo contrário, a jurisprudência e a doutrina têm admitido diferenças entre a recusa de abertura desse procedimento de “revisão oficiosa” com fundamento em intempestividade (ou outro fundamento processual, em que não tenha havido, portanto, reapreciação do acto prévio) e indeferimento dessa pretensão, com fundamento no reexame do acto prévio (fosse ele o de 1.º ou de 2.º grau)[33], ou, o que se considera equivalente a tal reexame, por indeferimento tácito[34]. O que implica que essa doutrina e jurisprudência não podem fazer depender a avaliação da tempestividade da apreciação do mérito (embora tal razão seja externa e subsequente – e, portanto, alheia – à questão especificamente jurídica que se estava a colocar).
Em termos lógicos, se há dois prazos (um curto, e um longo) para se obter uma apreciação jurídica, e se a aplicação de um ou de outro depende de uma certa qualificação a realizar no quadro dessa apreciação jurídica, as opções são simples:
- ou se considera que o prazo longo é sempre aplicável;
- ou se considera que nunca é aplicável;
- ou tem de se admitir que, previamente à fase da apreciação jurídica, umas vezes é de aplicar o prazo curto, e outras o prazo longo.
Como nenhuma das soluções extremas é compatível com a existência desses dois tipos de prazos (porque, na verdade, só haveria um – ainda que, dependendo da concepção que se adoptasse, pudesse ser um ou o outro) tem de haver um critério para a decisão vestibular que habilita, ou não, a passagem à fase de apreciação jurídica que só deve ocorrer quando é possível invocar, adequadamente, um dos dois prazos (o curto, porque se está dentro dele, o longo porque se está perante uma das situações a que ele é aplicado).
Reponderando, cremos que a explicação para tal jurisprudência (e para a doutrina que a suporta) deve estar na distinção entre dois tipos de “erro imputável aos serviços”: haverá situações em que o que está em causa é a possibilidade de a AT ter interpretado defeituosamente as normas aplicáveis, ou ter apreendido mal os contornos da situação de factosubjacente. Nestes casos, ligados à especificidade de cada situação, parece normal que a possibilidade de se aceitar a invocação de “erro imputável aos serviços” que subjaz ao pedido de revisão oficiosa tenha de passar pela sua aferiçãoconcreta. E aí, sem dúvida, a AT terá de se pronunciar sobre a situação específica, de modo a poder dizer-se que a rejeição expressa desse pedido “comporta” a apreciação dos fundamentos da decisão. É dizer que nestes casos haverá uma antecipação do conhecimento perfunctório do mérito, mesmo que para efeitos de decisão de inadmissão. São casos como os das decisões arbitrais proferidas nos processos n.os 345/2017, 499/2017-T, 527/2018-T e 114/2019-T, em que se tornava necessário, para se poder decidir, fazer um apuramento concreto dos factos.
Em contrapartida, quando a questão suscitada pelo contribuinte (e – embora essa seja outra questão – entendemos que só por este) tenha a ver com o estrito cumprimento das normas a que a AT está vinculada, decorrendo o “erro imputável aos serviços” de uma invocada desconformidade de tais normas com a Constituição, ou com o Direito da União, já se deve aceitar que a AT proceda à rejeição liminar do pedido com base na inexistência abstracta de um erro seu (e, portanto, com fundamento na intempestividade do pedido – rectius: na insusceptibilidade de invocação da última parte do n.º 1 do artigo 78.º) sem que tenha de proceder a uma avaliação, sequer perfunctória, do mérito da pretensão que lhe é dirigida. E isto com o fundamento na irrazoabilidade radical de conferir à Administração o poder de se desvincular do princípio da legalidade a que está obrigada e com o fundamento na atribuição exclusiva aos tribunais (justamente apetrechados em exclusivo com os mecanismos de sindicância desses juízos) da competência para a desaplicação de normas desconformes com Direito de nível superior. São casos como os das decisões arbitrais proferidas nos processos n.os 362/2020-T, 19/2021-T, 189/2021-T e 250/2021-T.
Ora, em caso de rejeição liminar de pedido de revisão (seja por ilegitimidade, seja por vinculação da AT ao princípio da legalidade – ie: por impossibilidade legal de preenchimento da hipótese normativa da parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT), a decisão da AT pode, certamente, ser sujeita a reapreciação judicial, mas não com fundamento na reaferição da legalidade do acto de 1.º grau (uma vez que estaremos perante uma das situações em que a rejeição do pedido de revisão oficiosa não a comporta).
Quer dizer que o presente Tribunal entende que o critério da admissibilidade do pedido de revisão oficiosa e, em estrita decorrência, do conteúdo de reapreciação do acto de 1.º grau feito na eventual decisão da sua inadmissão se recorta menos pelo conteúdo da fundamentação adoptada pela AT (que implicaria variações ad hoc e, portanto, desigualdade de tratamento dos peticionantes) do que pelo tipo de questão que suscita esse pedido de revisão:
- se tiver a ver com as circunstâncias de facto ou a interpretação da lei na sua aplicação ao caso, a AT tem de considerar as particularidades deste e, portanto, a sua decisão “comportará” sempre possibilidade de reapreciação jurisdicional (o que quer que diga ou omita);
- se tiver a ver com uma alegada desconformidade da lei aplicável com o “bloco de legalidade” ou com o “bloco de constitucionalidade” a possibilidade de a AT rever o acto é-lhe legalmente vedada e, portanto, seja qual for a fundamentação da decisão de indeferimento, deve entender-se que esta não “comporta” a reapreciação do acto de 1.º grau.
Ora, como resulta do que já se escreveu a propósito das anteriores excepções, é exactamente esta última a situação dos autos: a Requerente não imputou um erro à AT – imputou um erro ao legislador.
Ora, o processo de revisão oficiosa dos actos tributários por parte de quem está vinculado à lei não pode permitir ultrapassar erros dessa lei.
Conclui-se, portanto, que o pedido da Requerente, dirigido em 19 de Fevereiro de 2021 à AT, para a abertura de um processo de revisão oficiosa dos montantes pagos a título de Contribuição de Serviço Rodoviário pela introdução no consumo de produtos petrolíferos durante o ano de 2017, não tinha fundamento possível no quadro da parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
Tendo esse pedido sido, consequentemente, intempestivo e sendo, por isso, insusceptíveis de modificação os actos de liquidação de 2017, são intangíveis tais actos, que há muito se consolidaram[35].
Procede, portanto, a excepção de “caducidade de direito de acção” invocada pela AT, ficando prejudicada a fixação dos demais factos e a resolução das demais questões de Direito.
III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, o presente Tribunal Arbitral decide:
a) julgar procedente a excepção de “caducidade de direito de acção” invocada pela AT;
b) julgar, em consequência, prejudicadas todas as demais questões e pedidos;
c) condenar a Requerente no pagamento das custas, nos termos abaixo especificados.
IV. VALOR DO PROCESSO
Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e Processo Tributário, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em € 4.787.419,42 (quatro milhões setecentos e setecentos e oitenta e sete mil quatrocentos e dezanove euros e quarenta e dois cêntimos), que foi o valor indicado pela Requerente e não contraditado pela AT.
V. CUSTAS
Custas a cargo da Requerente, no montante de € 60.282,00 (sessenta mil duzentos e oitenta e dois euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que a decisão do pedido lhe foi inteiramente desfavorável.
Lisboa, 3 de Agosto de 2022
O Árbitro Presidente e Relator
Victor Calvete
A Árbitro Adjunta
Maria do Rosário Anjos
A Árbitro Adjunta
Magda Feliciano
(Com voto de vencida)
A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.
VOTO VENCIDO
Entendo não poder subscrever a posição que fez vencimento, nem no que concerne à arbitrabilidade do thema decidendum, nem no que respeita à caducidade do direito de acção da Requerente, pelas razões que, sinteticamente, passo a expor:
No que respeita à competência do Tribunal Arbitral:
Por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e do artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, a vinculação da Administração Tributária (“AT”) à jurisdição dos tribunais arbitrais reporta-se apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição (Vide, entre outros, CAAD, Proc. 138/2019-T, Proc. 248/2019-T, Proc. 123/2019-T, Proc. 182/2019-T, Proc. 585/2020-T, Proc. 714/2020-T).
Na verdade, é hoje consensual que a jurisdição arbitral abrange apenas pretensões relativas a impostos, não incluindo outros tributos cuja administração seja conferida por lei à AT, decorrente do artigo 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112‑A/2011, de 22 de Março, não sendo tal limitação nem inconstitucional nem violadora do princípio da igualdade, na vertente de proibição do arbítrio, previsto no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, ou do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 545/2019).
No caso em análise está em causa determinar a legalidade da Contribuição sobre o Serviço Rodoviário (CSR), sendo certo que este Tribunal não pode julgar matérias que não respeitem a impostos.
A este propósito, contrariamente ao defendido na Decisão, entende-se que a CSR é uma contribuição financeira e não um imposto, razão pela qual este Tribunal deveria declarar-se incompetente em razão da matéria.
Conquanto, atendendo ao elemento literal verifica-se que, de acordo com letra da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, a CSR foi concebida e designada de Contribuição (e não de imposto), com o objectivo de financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP – Estradas de Portugal, E.P.E., actualmente Infraestruturas de Portugal (IP), através dos respectivos utilizadores e, subsidiariamente pelo Estado, constituindo receita própria da IP.
De acordo com o referido regime legal, a CSR constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, que constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal.
Configurando-se a CSR numa lógica bilateral assente numa óptica grupal (utilizadores) para financiar a IP, a quem cabe desenvolver a actividade de concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional entende-se que a CSR não é um imposto, uma vez que só é devido pela utilização de gasolina e gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos (ISP) e dele não isentos.
Também não se afigura concebível qualificar a CSR como uma taxa, na medida em que a CSR não assenta numa equivalência estritamente individual, não se dirige à compensação de prestações efectivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, numa relação de bilateralidade genérica.
Deste modo, e em face da mais actual conceptualização entre impostos, taxas e contribuições desenvolvida pelos Tribunais e pela Doutrina, entendemos que as contribuições financeiras não constituem por presunção/atracção/conversão um imposto (Vide Filipe de Vasconcelos Fernandes, As contribuições financeiras no sistema fiscal português, pág. 71 e ss, Gestlegal).
Na verdade, as contribuições financeiras constituem figuras “híbridas” ou “tertium genius” entre as taxas e os impostos “que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa)” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora). Na mesma linha, seguem, por exemplos, as decisões proferidas pelo TC n.º 539/2015, 344/2019 e 255/2020.
À luz do regime legal da CSR e da Jurisprudência do TC, considera-se que a CSR é uma contribuição e não um imposto, conquanto e, em síntese, constitui um tributo que resulta da necessidade financiar uma entidade pública que tem como propósito gerir a rede rodoviária nacional, encontrando-se a sua receita consignada a esse fim/entidade; incide sobre os utilizadores da rede rodoviária nacional, que beneficiam da gestão da IP, enquanto utilizadores das estradas da rede nacional; e o facto gerador do tributo consubstancia uma prestação administrativa (a cargo da IP) presumivelmente provocada ou aproveitada por um grupo em que o sujeito passivo se integra, conclui-se que estamos perante uma contribuição – (Cfr. Acórdão do TC n.º 255/2020).
Pelo exposto, não obstante a ilegalidade do regime da CSR em face da decisão de Reenvio Prejudicial de 7.02.2022, Proc C-460/21, entende-se que as questões submetidas a este Tribunal são não arbitráveis.
No que respeita à caducidade do direito de impugnação:
Não se acompanha a decisão no sentido da procedência da “caducidade do direito de ação”, por se entender que o pedido de revisão oficiosa constitui um meio processual residual, que pode ser utilizado, caso se configure um qualquer erro de facto ou de direito imputável ao acto de liquidação (não à AT), em linha com as várias decisões já proferidas sobre o tema (Cfr., entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Proc. 1019/14, de 8.03.2017, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Proc. 1058/10.0BELRS, de 31.01.2019, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Proc. 262/04, de 11.05.2005, Proc. 1349/10BELRS, de 23.03.2017).
É o que se me oferece dizer.
Razões pelas quais voto vencido.
Magda Feliciano
[1] Ou da não vinculação da AT à sua jurisdição, caso se distinga entre competência – delimitada legislativamente – e vinculação – delimitada pela portaria dentro da liberdade de opção atribuída por lei. Nesse sentido, v. a decisão do caso n.º 146/2019-T (com um voto de vencido) que acaba por reconduzir a primeira a incompetência absoluta e a segunda a incompetência relativa.
[2] Certo que, assim, só a partir da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que alterou a redacção anterior.
[3] Cfr. o que se escreveu na nota 1.
[4] Considerando os termos do artigo 2.º da Portaria, refere o Acórdão que
“Em face desta redação, concluem Sérgio Vasques e Carla Castelo Trindade (O âmbito material da arbitragem tributária, Cadernos de Justiça Tributária, 00, abril-junho, 2013. pp. 24 e 25) que são duas as consequências que podemos assacar: (i) que o âmbito material da arbitragem se resume à análise de questões relativas a impostos, não sendo portanto suscetíveis de recurso a arbitragem, porquanto fogem aos termos de vinculação da administração tributária questões relativas a taxas e contribuições; e (ii) que o âmbito material da arbitragem se resume à análise de questões relativas aos impostos que sejam administrados pela (hoje) Autoridade Tributária e Aduaneira – ficando então de fora os impostos administrados por outras entidades. ”
[5] Em todo o caso, o presente Tribunal também se afasta das sugestões de “actualização” da competência dos tribunais arbitrais do CAAD, ou da vinculação da AT a estes, baseadas na alteração introduzida no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro (uma última alínea com expressa menção a “liquidação de tributos”, como se destacou na sua transcrição em texto) - v. ponto II.1 c) da Decisão n.º 305/2020-T do CAAD. Não deixa de se sublinhar que, na argumentação que aí se colhe da Decisão n.º 312/2015-T, se dilui, para efeitos de competência arbitral, exactamente o mesmo que depois se enfatiza para efeito de decisão de mérito: a distinção entre impostos e contribuições (vg: “é um tributo administrado pela AT, cujo procedimento de liquidação e cobrança é estruturalmente idêntico ao dos impostos” – ie, são semelhantes; “a qualificação de um tributo como contribuição exige “uma clara conexão entre a origem das receitas [o pressuposto do tributo] e o destino [finalidade] que a lei lhes assinala”; conexão que possa ser reconduzida a uma ‘relação de troca’ ou a uma ‘relação causal’ entre o Estado e o sujeito passivo.”- ie, não são semelhantes aos impostos).
O entendimento do presente colectivo é o de que, por um princípio de boa-fé para quem se vinculou em abstracto – e, portanto, não goza do direito potestativo de decidir se pretende fazer intervir a arbitragem num litígio concreto –, fora do perímetro dos impostos administrados pela AT não há competência arbitral.
[6] Acrescente-se que, na sequência da decisão já referida do TJUE, a qualificação jurídica da CSR como imposto (o enquadramento que aí lhe foi dado) ou como contribuição financeira é irrelevante para qualquer decisão de mérito: em qualquer caso será uma receita inadmissível, e os montantes cobrados serão certamente recuperados pelos sujeitos passivos que os pagarem – desde que preencham os requisitos para obter uma decisão jurisdicional. O facto de tal qualificação ser indiferente para o mérito não impede que seja decisiva para estabelecer a jurisdição do presente tribunal arbitral.
[7] Recusando a competência do CAAD para apreciar questões referentes à contribuição sobre o sector bancário podem ver-se as decisões proferidas nos processos n.os 347/2017-T, 123/2019-T, 138/2019-T (com voto de vencido a considerá-la um imposto), 179/2019-T, 182/2019, 280/2019-T, 847/2019-T, 855/2019-T e 868/2019-T; aceitando-a, podem ver-se as proferidas nos processos n.os 139/2017-T, 437/2017-T, 142/2018-T, 156/2018-T e 879/2019-T.
[8] No qual, aliás, se escreve o seguinte: “não se subscreve a tese apresentada pela Requerente. Com efeito, a conclusão por esta tirada, segundo a qual “Resulta do regime legal exposto que a CSR é a contrapartida paga pelos utilizadores da rede rodoviária nacional pela sua utilização, verificada pelo consumo de combustíveis, incidindo sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao ISP”, não encontra qualquer sustentação, no que à primeira parte diz respeito, nos textos legais onde se baseia.”
[9] 18 das decisões do CAAD que a Requerente cita no artigo 11.º da sua Resposta às excepções (as dos processos n.os 81/2012-T, 83/2012-T, 483/2014-T, 23/2015-T, 147/2015-T, 628/2015-T, 38/2017-T, 557/2017-T, 640/2017-T, 58/2018-T, 69/2018-T, 73/2018-T, 322/2018-T, 394/2018-T, 395/2018-T, 459/2018-T, 506/2019-T e 685/2019-T) são referentes a casos de Gasóleo Colorido e Marcado em que houve cobrança de CSR – a excepção é a decisão do processo n.º 752/2016-T.
Por essa via acentua-se a falta de correspectividade com a suposta contraprestação da Infraestruturas de Portugal (e, portanto, as características de imposto), tendo em conta que a venda desse combustível, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 93.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, só pode servir para:
- Motores estacionários utilizados na rega;
- Embarcações de navegação costeira e interior, destinadas a pesca, aquicultura e dragagem;
- Tratores agrícolas, ceifeiras-debulhadoras, moto-cultivadores, moto-enxadas, moto-ceifeiras, colhedores de batata automotrizes, colhedores de ervilha, colhedores de forragem para silagem, colhedores de tomate, gadanheiras-condicionadoras, máquinas de vindimar, vibradores de tronco para colheita de azeitona e outros frutos, bem como outros equipamentos, incluindo os utilizados para a atividade aquícola, aprovados por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da agricultura e do mar;
- Veículos de transporte de passageiros e de mercadorias por caminhos-de-ferro;
- Motores fixos;
- Motores frigoríficos autónomos, instalados em veículos pesados de transporte de bens perecíveis, alimentados por depósitos de combustível separados, e que possuam certificação ATP (Acordo de Transportes Perecíveis), nos termos a definir em portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da agricultura e dos transportes.
Ou seja: a consideração da CSR na jurisprudência do CAAD fez-se em situações em que nem o invocado sinalagma grupal identificador da figura da “contribuição” estava presente, nem a afectação da receita à concessionária das estradas nacionais fazia sentido.
[11] Como referido por Vital Moreira na Assembleia da República durante os trabalhos da IV Revisão Constitucional, “a expressão “contribuições financeiras” foi aquela que se encontrou para ser mais neutra, para não se falar de contribuições especiais, em contribuições parafiscais”, citado por Filipe de Vasconcelos Fernandes, ob. citada a seguir, p. 66. Ana Paula Dourado, Direito Fiscal - Lições, 3.ª ed, Almedina, Coimbra, 2018, pp. 64-65, mantém a indistinção entre ambas as contribuições (especiais e financeiras).
[12] Veja-se que o suposto “grupo homogéneo” dos utilizadores das estradas da rede rodoviária nacional não incluía, antes de 2015, os veículos movidos a GPL e continua a não englobar os condutores de veículos eléctricos e de velocípedes.
[13] No Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, que aprovou o Código dos Impostos Especiais de Consumo escrevia-se:
“Aproveitou-se também para contemplar no texto normativo, enquanto princípio legitimador destes impostos, o princípio da equivalência, distinto do da capacidade contributiva, e que dita a respectiva adequação ao custo provocado pelos contribuintes nos domínios da saúde pública ou do ambiente.”
[14] Inicialmente, em termos legais, só a gasolina e o gasóleo. A partir de 2014, por efeito de alteração introduzida na Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, também o GPL. Já se viu que, na verdade, também o gasóleo colorido e marcado – que não pode ser utilizado como combustível nas estradas (concessionadas ou não à Infraestruturas de Portugal IP, SA), está sujeito ao pagamento da CSR…
[15] A distinção tem a ver com a forma de consignação das receitas: se forem afectas a um conjunto identificado de despesas, será material; se forem afectas a uma entidade, no pressuposto de que esta individualiza a realização desse tipo de despesas, será orgânica. Evidentemente, a consignação orgânica é muito menos densa – e sindicável – do que a material.
[16] Sérgio Vasques, “As taxas de regulação económica em Portugal: uma introdução”, in Sérgio Vasques (coord.), As taxas de regulação económica em Portugal, Almedina, Coimbra, 2008, p. 47, nota 40, remete para o relatório de 1998 do Ministério das Finanças sobre a Reforma da Lei do Enquadramento Orçamental “onde se afirma que só nos casos de consignação material se dispõe efectivamente quanto ao “conteúdo intrínseco de um orçamento” vinculando a receita a finalidade determinada, ao passo que nos casos de consignação orgânica se trata apenas de atribuir receitas próprias a serviços que gozam de autonomia financeira, faltando então qualquer vinculação da receita a finalidades determinadas.” (destaques aditados). O A., que atribui importância fundamental à afectação de receitas como forma de legitimação dos tributos comutativos, escrevia na página anterior:
“sempre que se onere um grupo determinado de contribuintes com um tributo comutativo e se afecte depois a receita ao financiamento de prestações provocadas ou aproveitadas por terceiros ou ao financiamento de prestações dirigidas ao todo da comunidade, está-se perante uma discriminação arbitrária destes contribuintes, violadora do princípio da igualdade e do princípio da equivalência que é sua expressão.”
[17] Como se escreve no ponto 3.26) da Informação da Alfândega de Braga que sustentou o indeferimento do pedido de revisão oficiosa, “Por sua vez, o art. 7º, estatui que as “taxas do ISP são estabelecidas por portaria conjunta nos termos do Código dos Impostos Especiais de Consumo, por forma a garantir a neutralidade fiscal e o não agravamento do preço de venda dos combustíveis em consequência da criação da contribuição de serviço rodoviário” (…). Tais taxas vieram a ser estabelecidas pela Portaria n.º 16-C/2008, de 09/01 e em obediência ao disposto no referido art. 7º, tornou-se necessário “baixar” as taxas unitária do ISP incidentes sobre a gasolina e o gasóleo, no exato montante do valor da CSR, conforme referido expressamente no preâmbulo da referida portaria. Não se procedeu (nem foi essa a intenção do legislador) a um desagravamento da tributação do produto em causa, uma vez que este continuou a ser tributado exatamente no mesmo montante, embora em moldes diferentes.”
[19] Uma magia que, como a dos aprendizes de Hogwarts, exige alguma prática até ser dominada: assim, enquanto no ponto 9 da sua Resposta a AT invoca que a CSR é uma “contraprestação pela utilização dos serviços prestados pela IP aos utentes das vias rodoviárias, em nome do Estado”, ou seja, uma contribuição de benefício, no ponto 16 do mesmo texto a AT “reitera” que “a CSR foi criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 deagosto, com a finalidade de onerar os automobilistas pela utilização da rede rodoviária nacional”, ou seja, uma contribuição de compensação de custo.
[20] Citava-se o Sumário do Acórdão do STA de 4 de Maio de 2016, proferido no processo n.º 0407/15.
No Sumário da decisão desse processo n.º 140/2021-T, proferida pelo relator do presente aresto, escrevia-se o que segue, sem que daí se tivesse retirado na altura todas as devidas implicações:
“Porque a Administração está simultaneamente vinculada a menos Direito do que os Tribunais (na medida em que a Constituição e o Direito da União que imponham soluções diversas da lei não lhe são acessíveis), e a mais Direito do que os Tribunais (na medida em que está sujeita a circulares e normas fundadas no poder hierárquico que não vinculam os Tribunais), o que é o Direito para a Administração não é o mesmo que é o Direito para os Tribunais. Consequentemente, o que é erro de Direito para a Administração difere do que é erro de Direito por parte da Administração para os Tribunais. Isso tem implicações sobre o preenchimento dos requisitos para suscitar a revisão oficiosa dos actos de liquidação (artigo 78.º, n.º 1, da LGT).”
[21] Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, cit., p. 399, destaque aditado.
[22] Casalta Nabais, Direito Fiscal, cit., ponto 24, considera, além do sujeito passivo (“toda e qualquer pessoa, singular ou colectiva, a quem a lei imponha o dever de efectuar uma prestação tributária, seja a prestação de imposto sejam as prestações correspondentes às múltiplas e diversificadas obrigações acessórias” - p. 251) e do contribuinte (“a pessoa relativamente à qual se verifica o facto tributário, o pressuposto de facto ou o facto gerador do imposto, isto é, o titular da manifestação de capacidade contributiva que a lei tem em vista atingir e que, por conseguinte, deve suportar a ablação ou corte patrimonial que o imposto acarreta” - p. 250) o devedor do imposto (“um sujeito passivo qualificado ou o sujeito passivo que deve satisfazer perante o credor fiscal a prestação ou prestações em que o imposto se concretiza” - p. 251). Suzana Tavares da Silva, Direito Fiscal, 2.ª ed., p. 118, considera, a mais desses três, ainda o Suportador do encargo do imposto por repercussão legal (“Pessoa que suporta financeiramente o imposto através do mecanismo da repercussão legal (obrigação estipulada na lei de repercutir no adquirente do bem ou serviço o valor do imposto)”). Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, cit., p. 387, critica a formulação do artigo 18.º da LGT sobretudo porque “deixa de fora do conceito de sujeito passivo mais do que nele fica dentro. Referimo-nos muito concretamente ao repercutido tributário, categoria da maior importância na gestão dos tributos indirectos e ao qual o artigo 18.º, n.º 4, da LGT recusa a qualidade de sujeito passivo (…)”. E adiante (pp. 399 e ss.) trata desse instituto, definindo a repercussão tributária como o “fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem.”
[23] Vejam-se as críticas de Casalta Nabais, Direito Fiscal, cit., ponto 24, e, na sequência do referido na nota anterior, a observação de Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, cit., p. 397: “toda a LGT foi redigida com larga dose de miopia”.
[24] Cuja redacção é a seguinte:
“Interrompe o prazo da revisão oficiosa do acto tributário ou da matéria tributável o pedido do contribuinte dirigido ao órgão competente da administração tributária para a sua realização.”
Compare-se com o disposto no n.º 1 do mesmo artigo, que claramente distinguia os prazos e os fundamentos da possibilidade de dar azo a uma revisão oficiosa:
“A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.”
[25] Ainda que as classificações legais não sejam vinculativas, e não obstante as críticas que são dirigidas à oscilação e imprecisão conceptual das leis fiscais, veja-se a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT:
“Não é sujeito passivo quem:
a) Suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias;”
Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, cit., p. 397, observa, com toda a razão, que “a substituição tributária de que esta lei cuida é a substituição tributária com retenção na fonte característica dos impostos sobre o rendimento e não a substituição tributária sem retenção.” Antes (pp. 394-395), explicara a diferença entre a “substituição com retenção” e a “substituição sem retenção”: “na substituição com retenção o substituto é a fonte dos rendimentos do contribuinte, pelo que ao substituto cabe reter dada percentagem desses valores, ao passo que na substituição sem retenção o contribuinte é a fonte de rendimentos do substituto, pelo que a tarefa deste é a de cobrar o tributo juntamente com os valores que tem a haver.” Embora se trate de figuras próximas, a substituição sem retenção não se confunde com a repercussão: “É que nos casos de substituição tributária sem retenção é o comprador quem concretiza o facto gerador apresentando-se por isso como sujeito passivo, ao passo que nos casos de repercussão tributária é o vendedor quem concretiza o facto gerador e prefigura o sujeito passivo.” (p. 400).
[27] “a função típica dos impostos indirectos está em onerar o comprador, e não o vendedor, pois numa transacção é o gasto do comprador o que revela capacidade contributiva. Se, em vez do comprador, a generalidade dos impostos indirectos toma como sujeito passivo o vendedor é simplesmente por razões de praticabilidade” - Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, cit., p. 400 (destaque aditado).
[28] Como escreve Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, cit., p. 403, “A doutrina do enriquecimento sem causa constitui, portanto, uma válvula de segurança que tem permitido lidar com os casos em que o reembolso ao sujeito passivo leva a uma distribuição do encargo do imposto contrária ao princípio da neutralidade e, diríamos nós, contrária ao princípio da capacidade contributiva.”
[29] A AT também aludiu aos acórdãos de 11 de Outubro de 2017 do Tribunal Central Administrativo Norte no processo n.º 01584/09.3BEPRT, e de 23 de Março de 2017 do Tribunal Central Administrativo Sul no processo n.º 07644/14, ambos referidos infra, nota 35.
[30] Ao contrário do invocado pela Requerente (“às normas que violem o Direito da União não se aplica tratamento idêntico ao que é aplicável a normas que sejam declaradas inconstitucionais”), julga o presente Tribunal que, para efeito de desaplicação de normas, não há diferença entre as que violem o Direito da União e as que violem a Constituição. Seria bizarro, aliás, que normas integradas no “bloco de legalidade” gozassem de maior protecção do que normas integradas no “bloco de constitucionalidade”.
Contra a admissibilidade de a Administração recusar a aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade, segundo o inventário de Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, Universidade Católica Ed., 1999, pp. 160-161 (que depois se afasta dessa quase unanimidade), estavam, não apenas o Tribunal Constitucional e o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, mas também, entre outros, Jorge Miranda, Marcelo Rebelo de Sousa, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Alves Correia, João Caupers, Paulo Otero, Carlos Blanco de Morais, Mário Esteves de Oliveira e Vitalino Canas. E, mesmo no âmbito de “leis violadoras de direitos liberdades e garantias” os defensores de um “controlo administrativo da constitucionalidade das leis” (Vieira de Andrade e Manuel Afonso Vaz) invocavam critérios de proporcionalidade para o admitirem (e restringirem). Em todo o caso, o Tribunal revê-se na seguinte posição de Pedro Gonçalves, Manual de Direito Administrativo, Vol. 1, Coimbra, 2020, p. 362:
“não existe, nem se afigura aceitável em geral, um poder administrativo de “desaplicação” ou de “rejeição” (…) de leis inconstitucionais. (…)
A tese da admissibilidade generalizada da competência administrativa para “julgar as leis”, as quais têm precisamente o propósito de vincular a Administração Pública, constituiria, em rigor, uma inversão da ordenação de poderes, que, em termos práticos, atribuiria a um poder subordinado uma posição de supremacia (…) e conduziria a considerar próprio da Administração um poder que a Constituição confia aos tribunais.”,
e que, a propósito do invocado “princípio de aplicação preferencial” do Direito da União escrevera antes (pp. 313-314):
“a mobilização do princípio de aplicação preferencial pressupõe uma atitude da Administração Pública que, em termos práticos, envolve o consciente e deliberado “desrespeito” (desaplicação) de uma norma de direito nacional.
Assim, na nossa interpretação, a desaplicação de norma de direito nacional só deve ser possível e, porventura, obrigatória, se a violação da norma europeia pela norma nacional se apresentar objectivamente certa, indiscutível, manifesta ou patente”.
Como referido, o próprio recurso ao TJUE – ou a sua sugestão ou ponderação – é evidência prática de que nada disso ocorria no caso. Na jurisprudência do CAAD, vejam-se as decisões proferidas nos processos n.os 19/2021-T e 250/2021-T.
[31] Note-se que a invocação do Acórdão do STA de 13 de Março de 2002, proferido no âmbito do processo n.º 026765 (de que se transcreve no PPA a seguinte passagem: “A obediência que a Administração deve à lei (vejam-se os artigos 266.º n.º 1 da Constituição e 55.º da LGT) abrange a de todos os graus hierárquicos, e a de todas as origens, não excluindo, nem a lei constitucional, nem a comunitária, não podendo considerar-se legal o acto que aplica lei ordinária que afronte princípios constitucionais ou normas de direito comunitário cuja observância se imponha ao Estado Português.”) em nada contende com a diferença entre o juízo do Tribunal – que poderá assim censurá-lo à Administração – e o juízo da Administração (que terá de ser necessariamente conforme à lei, até para permitir o funcionamento dos respectivos mecanismos de controlo judicial que os tribunais podem fazer actuar – justamente porque podem formular esses juízos – mas a Administração não).
[32] E, se bem vemos, implicaria que também a AT estaria impossibilitada de indeferir liminarmente pedidos de revisão oficiosa ao abrigo da parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT com fundamento na sua intempestividade: sempre ela teria de avaliar se teria ou não havido “erro imputável aos serviços” e, para o efeito, teria de admitir – em termos práticos – o pedido de revisão.
[33] Por exemplo, entre as últimas Decisões arbitrais, as dos processos
- 614/2021-T (“Se o ato expresso proferido na impugnação administrativa não conheceu da legalidade do ato de liquidação (por ter entendido existirem obstáculos formais, como a ilegitimidade ou a intempestividade), o indeferimento tácito presume-se ter mantido o ato anterior e, por isso, se este não comporta a apreciação da legalidade de ato de liquidação, o indeferimento tácito do recurso hierárquico também não a comporta.”;
- 538/2021-T (onde se enconta a mesma exacta passagem); e
- 88/2020-T (“torna-se necessário avaliar se o acto de indeferimento da revisão oficiosa se trata de um acto administrativo que comporta a apreciação da legalidade de um acto tributário.
No caso em apreço, os motivos invocados para o indeferimento da revisão oficiosa foi a intempestividade da pretendida regularização do acto, o que, obviamente, não implica apreciação da legalidade ou não de qualquer acto de liquidação.
Porém, à face do critério de repartição dos campos do processo de impugnação judicial e da acção administrativa especial delineado pelas alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, não é necessário que a apreciação da legalidade de um acto de liquidação seja o fundamento da decisão procedimental ou que no pedido formulado se peça a apreciação da legalidade de um acto de liquidação, bastando que esse acto a comporte, o que, neste contexto, significa que no acto impugnado se inclua um juízo sobre a legalidade de um acto de liquidação, mesmo que não seja a sua legalidade ou ilegalidade o fundamento da decisão.”)
[34] Vg, entre as últimas Decisões arbitrais, as dos processos
- 756/2021-T (“No indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, que tem por objecto um acto de liquidação de AIMI, o acto ficcionado (de indeferimento) conhece da legalidade do acto recorrido, pelo que o meio adequado à tutela judicial é a impugnação judicial. De que o pedido de pronúncia arbitral constitui um meio alternativo. “O indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação, baseado na sua ilegalidade, deve considerar-se (…) como um acto que comporta a apreciação da legalidade (…)”, conforme o acórdão do STA no processo n.º 1166/04, de 6 de Outubro de 2005. Em idêntico sentido, salientamos os acórdãos do STA de 2 de Fevereiro de 2005 Processo n.º 01171/04, de 8 de Julho de 2009 (Processo n.º 0306/09) e de 12 de Novembro de 2009 (Processo n.º 0681/09).”);
- 673/2021-T (“O indeferimento tácito presume-se que se baseia em razões de mérito e não em obstáculos processuais. Ao deixar de se pronunciar sobre a pretensão do contribuinte em que imputa ilegalidades ao ato impugnado, a administração tributária indeferiu-a, presumindo-se que não reconheceu nesse ato as ilegalidades que lhe foram imputadas.”); e
- 631/2021-T (“É entendimento dos Tribunais que a falta de decisão expressa de um ato de indeferimento tácito, não retira só por si o objeto ao pedido de revisão oficiosa, antes se devendo assumir que o mesmo põe em causa em absoluto a legalidade do ato tributário de liquidação que se pretende anular. Ou seja, presume-se que foi dada resposta negativa a todos os vícios de ilegalidade invocados. (Vd Procº. 696/2019-T do CAAD abaixo transcrito).”).
[35] Como se escreveu com toda a propriedade na Decisão do referido processo n.º 114/2019-T,
“tendo em consideração, com as necessárias adaptações, nomeadamente, o teor do Acórdão do TCAN (processo nº 01584/09.3BEPRT), de 11-10-2017, no sentido que “só a tempestividade da reclamação graciosa abre à impugnante, a possibilidade de discutir a legalidade das liquidações impugnadas, pois a extemporaneidade da reclamação (…) conduz à sua necessária improcedência, por se reagir, então, contra um caso decidido ou resolvido”, bem como o teor do Acórdão do TCAS (processo nº 07644/14), de 23-03-2017, no sentido que “estando a reclamação graciosa fora de prazo à data em que foi apresentada, em consequência e independentemente da mesma ter sido ou não decidida, a impugnação judicial também será intempestiva”, a intempestividade do pedido de revisão oficiosa das liquidações de IUC em crise terá repercussões no mecanismos de reação subsequentes, ou seja, em matéria do próprio pedido de pronúncia arbitral (sublinhado nosso).”