Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 268/2021-T
Data da decisão: 2022-07-11  IRC  
Valor do pedido: € 13.377,58
Tema: Ajudas de custo não especificadas na faturação aos clientes como encargo dedutível no IRC, havendo modo de se efetuar o respetivo controlo contabilístico, ainda que não se cumprindo todos os requisitos exigidos no art. 23º-A, al. h), do CIRC, que possuem natureza exemplificativa.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

 

O Árbitro-Singular, Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, designado pelo Conselho Deontológico do CAAD para formar o Tribunal Arbitral (TA), constituído em 12 de julho de 2021, acorda no seguinte: 

 

 

            I – RELATÓRIO

 

1. A Requerente, A..., LDA., com o NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ...-... ..., veio apresentar um pedido de pronúncia arbitral (PPA) contra o indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada em relação à Demonstração de Liquidação de Retenções na Fonte de IRC nº 2019..., relativa ao ano de 2016, no valor de 13.377,58 € (a qual inclui juros).

Os fundamentos para o pedido da ilegalidade da liquidação fundam-se no erro sobre os pressupostos de facto em que tal liquidação se baseou na medida em que na mesma se considerava que as indicadas “ajudas de custo” relativas a três pessoas – dois técnicos, B..., e o gerente, C...– deviam ser consideradas “remunerações”, com um diverso enquadramento fiscal. 

 

2. A AT – Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para responder, em 6 de setembro de 2022, veio dizer que discordava de tal ponto de vista, pedindo a absolvição do pedido, porquanto tais valores não foram provados a esse título, antes como remunerações a tributar em sede de IRC, pelo que considerou correta a liquidação adicional determinada. 

 

3. Entretanto, por despacho de 15 de fevereiro de 2022, veio fixar-se para 3.3.2022 a inquirição de testemunhas arroladas, o âmbito da prova testemunhal requerida.

Nessa data, o TA reuniu, com a presença dos mandatários das partes, com o propósito de se proceder à audição das testemunhas, tendo estado presentes o Dr. D..., advogado, Exmº Senhor Mandatário da requerente, e o Dr. E..., jurista, Exmº representante da Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo a diligência, presidida pelo Árbitro-Singular, Prof. Doutor Jorge Bacelar Gouveia, sido assistida, no respetivo secretariado, pelo Dr. ..., jurista do CAAD. 

Foram ouvidas as seguintes testemunhas: 

-  F..., programador; 

- G..., técnico de informática; 

- H..., administrativa; 

- I..., investigador.

            Nessa altura, o TA decidiu ainda prorrogar o prazo para a prolação da decisão arbitral por mais de dois meses, perante a circunstância da diligência que acabara de se realizar.            

 

            4. Em 14.3.2022, a Requerente veio apresentar as suas alegações escritas, não tendo a Requerida apresentado as suas, nas quais reiterou o seu entendimento inicial, considerando ter sido feita a prova que a sustentaria. 

 

5. Mais tarde, TA, por despacho de 12 de maio de 2022, decidiu de novo prorrogar o prazo para a decisão arbitral considerando as peças processuais apresentadas e a necessidade de ter mais tempo para melhor ponderar os elementos probatórios entretanto alcançados. 

 

II – SANEADOR

 

6. Não foram suscitadas exceções.

7. A apresentação do PPA foi tempestiva.

8. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas quanto ao PPA e estão devidamente representadas, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

9. Não se verificam nulidades, pelo que se impõe conhecer do mérito.

 

III – OS FACTOS

 

10. Dos elementos processuais disponíveis nos documentos apresentados, é possível considerar os seguintes factos como relevantes para a presente decisão: 

a) a A..., LDA. (doravante requerente ou A...), com o NIPC ..., tem sede na Rua ... ..., dedicando-se à atividade de prestação de serviços de assistência informática e vendendo de equipamento respetivo;

b)  a Requerente foi objeto de uma inspeção que abrangeu o ano de 2016, determinada pela Ordem de Serviço nº OI2018..., realizada pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do Porto; 

c) um dos resultados de tal inspeção foi a decretação de uma liquidação oficiosa, em IRC, com o nº 2019..., referente a 2016, no montante de 13.377,58 euros (11.820,73 euros de capital, mais juros compensatórios no montante de 1.556,85 euros), não tendo sido retido na fonte pela requerente e, consequente, entre ao Estado; 

d) Não tendo havido o seu pagamento voluntário, seguiu-se a execução fiscal, titulada com o documento nº ...2020...; 

e) Para evitar a aplicação de penhoras, a Requerente procedeu, depois, ao pagamento daquele valor, relativo a dívidas atinentes a retenções de IRS e de IVA;

f) Em 3.4.2020, a Requerente pagou o total de 52.180,68 euros, incluindo o valor de 13.398,63 euros a título de retenção na fonte, respeitantes a IRS de 2016;

g) A empresa A..., a Requerente, realiza a sua atividade com prestações presenciais e também por via telemática, através da celebração de contratos de avença e de outro tipo de contratos de aquisição de horas (“senhas”); 

h) As deslocações dos colaboradores e gerente da empresa Requerente são habituais no âmbito da atividade empresarial quanto à assistência informática que se imponha por via presencial;

i) Os custos para os clientes são de vária ordem, incluindo as deslocações às suas instalações, com todas as despesas que lhe estão associadas, sem excluir a disponibilidade dos técnicos através da prestação de serviços via telefone ou correio eletrónico, não autonomizados na faturação realizada; 

j) Esses custos, quanto ao ano de 2016, podem ser qualificados como “ajudas de custo” em razão dos kms feitos nas suas viaturas particulares, para tanto se fazendo “Mapas de Quilómetros”, com a indicação de diversos “items”, como a identificação do trabalhador, da viatura, dia e hora, o serviço prestado e o número de quilómetros percorridos por cada viagem, no âmbito da contabilidade da empresa.  

            A prova testemunhal produzida na diligência de 3.3.2022, a ver do TA, reforçou a convicção obtida pela apreciação feita dos documentos apresentados.

            Não há factos não provados relevantes para a decisão.  

 

            IV – O DIREITO

 

a)    Em geral

            

11. Há uma única questão de Direito a ser decidida, perante os factos que ficaram provados e que têm relevância para a decisão, qual seja a de considerar a que título os pagamentos controvertidos foram feitos pela Requerente aos seus colaboradores, por esta considerados como “ajudas de custo” e como tal devendo ser encargos dedutíveis em sede de IRC, uma vez que é abissal a diferença dos respetivos regimes: 

(i) caso esses pagamentos sejam considerados “ajudas de custo”, ou seja, despesas relacionadas com a sua atividade, valem como encargo que integram o custo da atividade empresarial, dedutível para a quantificação do lucro tributável; 

(ii) caso esses pagamentos sejam entendidos como “remunerações” aos seus colaboradores, a tributação que sobre os mesmo recai é no âmbito do IRS, além da agravante de ter de haver retenção na fonte do correspondente valor por parte da entidade patronal. 

Em todo o caso, esta mesma questão pode, na verdade, desdobrar-se em duas: sem esquecer aquela qualificação, suscita-se outra não menos relevante: a de saber, sendo aqueles valores considerados “ajudas de custo”, se para serem considerados fiscalmente neste âmbito não deviam constar das faturas correspondentes que a requerente foi emitindo aos seus clientes. 

Assim sendo, importante distinguir estes dois tópicos.   

 

b)    O grau de pormenorização das faturas aos clientes no tocante aos custos da atividade da Requerente

 

            12. Começando por este segundo tópico, importa determinar até que intensidade as despesas consideradas como custos operacionais dedutíveis, nas suas diversas espécies, incluindo as “ajudas de custo”, têm de ser inseridas nas faturas que se referem aos serviços prestados aos clientes por parte da Requerente. 

            Aqui emerge um dever contabilístico e declarativo, através do qual a fatura é um documento muito relevante porque o mesmo deve mostrar uma “verdade financeira” que ilustra a natureza da atividade prestada, com vista ao pagamento da mesma por parte do adquirente dos serviços. 

            

            13. O problema que, então, surge é o de determinar se a eventual omissão ou deficiente especificação de tais despesas na prestação dos serviços pode ser valorada pela legislação tributária como “coisa” diversa da que teria normalmente, que seria a de valores relacionados com o custo da atividade da prestação de serviços. 

            A natureza de uma despesa não muda conforme a mesma conste ou não conste de um documento, já que o pagamento é feito num contexto determinado, sendo um fluxo – subjetivo e objetivo – que se relaciona com uma prestação de serviços de cunho empresarial.

 

            14. Mas o sentido da disposição relativa ao conteúdo a inserir nas faturas é o de não se exigir que este documento seja um relato minucioso sobre tudo o que se passa com a atividade operacional, até porque essa conclusão poria parcialmente em causa a função da contabilidade a que as empresas estão concomitantemente obrigadas. 

É por isso adequada a decisão do Tribunal Central Administrativo através da qual fixou o entendimento de que “[n]a redação da Lei 87.º-B/98, de 31/12, a expressão ajudas de custo “faturadas a clientes”, que constava da alínea f) do n.º 1 do art.º 41.º do CIRC para efeitos da dedutibilidade integral do seu valor, correspondia a encargos a esse título debitados aos clientes e incluídos no valor da fatura, não se exigindo a discriminação do seu montante na própria fatura, nem qualquer formalidade na sua escrituração.”

Vem a ser este o caso: a omissão ou deficiente descrição de despesas havidas pela Requerente na sua atividade de prestação de serviços aos seus clientes, como as ajudas de custo, não é de tal modo intensa que possa colocar em crise o cumprimento deste dever declarativo na elaboração das respetivas faturas aos seus adquirentes perante uma exigência legal tributária que apenas supõe a sua identificação essencial. 

            

c)    Os pagamentos como “ajudas de custo”, não como “remunerações”

 

            15. O TA entende que os pagamentos controvertidos devem ser considerados como despesas que a Requerente suportou com vista à realização da sua atividade de prestação de serviços aos seus diversos clientes, por isso dedutível a título de “ajudas de custo”. 

            A natureza de tais pagamentos não se transmuta pelo facto de estarem ou não estarem inscritos nas respetivas faturas, ou de estarem mais ou menos detalhados nas mesmas. É que a inscrição nos documentos das faturas não tem uma virtualidade qualificativa quanto à sua natureza fiscal, que decorre da sua própria essência, nos termos em que a mesma foi provada nos autos. 

             

            16. A apreciação dos documentos apresentados mostra que tais pagamentos foram feitos em contexto operacional da prestação de serviços da empresa, que – embora sediada na Maia – tem clientes espalhados pelo território continental. 

            A diversidade da localização dos clientes implicou o pagamento de várias despesas relacionadas com tal atividade, sobretudo relacionada com a deslocação dos seus colaboradores em viaturas automóveis próprias, tratando-se de serviços prestados fisicamente juntos de diversos clientes, globalmente considerados como “ajudas de custo”. 

            A prova testemunhal que foi produzida na inquirição veio a confirmar esta perceção que já se podia obter da leitura dos documentos, tendo sido possível aferir que as deslocações eram pagas como despesas relacionadas com esses trabalhos de assistência informática, objeto social da empresa, e não como remuneração dos seus colaboradores. 

 

            17. Essa convicção geral que o TA obteve é ainda especificamente sustentada pela interpretação que se deve fazer do art. 23º-A, nº 1, al. h), do CIRC, no qual se dispõe o seguinte: 

“1 — Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação: (…) h) As ajudas de custo e os encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, sempre que a entidade patronal não possua, por cada pagamento efetuado, um mapa através do qual seja possível efetuar o controlo das deslocações a que se referem aqueles encargos, designadamente os respetivos locais, tempo de permanência, objetivo e, no caso de deslocação em viatura própria do trabalhador, identificação da viatura e do respetivo proprietário, bem como o número de quilómetros percorridos, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário”. 

            Os termos em que este preceito está redigido assenta na ideia central de que não pode haver arbitrariedade na invocação das “ajudas de custo” – para evitar abusos no sentido de poderem ser “remunerações” encapotadas – e, por isso, se exige, e bem, em caso de viatura própria, um “mapa de controlo” com tais as deslocações, cujo conteúdo é densificado com alguns parâmetros. 

            

18. Só que esses parâmetros não são taxativos e apresentam-se, neste preceito, como uma “tipologia exemplificativa”, podendo haver outros modos de justificar a invocabilidade de ajudas de custo dedutíveis no rendimento coletável em sede de IRC. 

            Numa empresa com contabilidade, a existência de tais mapas de deslocações na posse da Requerente – que foram mais minuciosamente apreciados no contexto da inspeção, se bem que nem sempre com os parâmetros dados naqueles preceitos – não determina a sua rejeição porque se utiliza o advérbio “designadamente”, o que quer dizer que pode haver outros modos de se fazer essa demonstração. 

O que interessa é que, segundo aquela norma, exista “...um mapa através do qual seja possível efetuar o controlo das deslocações a que se referem aqueles encargos”, a despeito de não se impor somente uma “via única”, por certo até excessivamente detalhada, para se operar a concretização da sua demonstração. 

Essa é a doutrina que o TA acolhe, com a qual se concordando, a qual foi, aliás, recentemente adotada noutra decisão do CAAD, de 16.11.2021, no Processo n.º 60/2021 – T, a respeito da mesma disposição: 

“I - A alínea h) do n.º 1 do Artigo 23.º-A do CIRC existe desde 2001, tendo estabilizado a sua redação desde 2004, sendo certo que o seu propósito é muito claro: garantir que há controlo efetivo das deslocações do trabalhador em viatura própria, controlo este que deverá estar demonstrado por evidências substantivas e adjetivas exigidas por lei. II - O advérbio designadamente é claro quanto à natureza exemplificativa do conteúdo dos mapas de controlo de deslocações exigidos pela alínea h) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC.”

 

            19. Ora, o TA criou a convicção de que tais mapas de deslocações indicam despesas que devem ser consideradas como válidas ajudas de custo no âmbito da atividade da empresa. 

            O TA, no âmbito desta norma, diverge do entendimento que foi dado pela Requerida no âmbito do relatório de inspeção dos serviços do Porto (p. 5/11), que fundamenta a desconsideração das despesas como ajudas de custo – considerando-as, antes, como “remunerações” – porque em tais mapas não há a indicação dos locais onde foram feitas as deslocações.

            Todavia, essa indicação, perante os dados existentes, é um dos vários elementos possíveis, e tratando-se de uma tipologia exemplificativa de tais parâmetros, a sua omissão não é determinante da desconsideração das ajudas de custo como encargo dedutível. 

 

            V – DECISÃO

 

            20. Termos em que o TA dá procedência total às pretensões apresentadas pela Requerente;

a)    Condenando a Requerida no pedido, anulando a liquidação nº 2019..., no valor de 11.820,73, mais juros compensatórios de € 1.556,85;

b)    Fixando juros indemnizatórios em favor da Requerente desde o momento em que procedeu ao pagamento indevido do imposto; 

c)    Condenando a Requerida ao pagamento de 2/3 das taxas de arbitragem, devendo a Requerente pagar 1/3.

 

VI – VALOR DO PROCESSO 

 

21. Fixa-se ao processo o valor global de €13.377,58 (valor do imposto € 11.820,73 e juros compensatórios de € 1.556,85), aceitando-se a correção sugerida pela Requerida, ao qual devem acrescer os juros indemnizatórios a pagar por esta desde a Requerente procedeu ao seu (agora considerado indevido) pagamento, nos termos do artigo 97º-A, nº 1, al. a), do CPPT, aplicável ex vi artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII – CUSTAS 

 

            22. Custas no montante de 918,00 euros a suportar pela Requerida, em conformidade com a Tabela I, anexa ao RCPAT, e com os artigos 12º, nº 2, e 22º, n.º 4, do RJAT, artigos 4º, nº 5, do RCPAT, e artigos 527º e 536º, nºs 3 e 4, do CPC, ex vi artigo 29º, nº 1, al. e), do RJAT. 

Notifique-se.

                        

O Árbitro

 

Jorge Bacelar Gouveia

            

Lisboa, 11 de julho de 2022.