Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 448/2020-T
Data da decisão: 2022-02-13  IRC  
Valor do pedido: € 206.711,11
Tema: IRC/IVA: Ocultação de Rendimentos; Gasto com financiamentos; Disposições patrimoniais gratuitas a favor de terceiros.
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SUMÁRIO:

  1. Não serão de aceitar as correcções por omissão de rendimentos, quando não se verifica que tenham sido afectadas as demonstrações financeiras da Requerente do período, nem em contas de balanço, nem em contas de resultados.
  2. A omissão de rendimentos poderia ser sustentada pelo recebimento de valores que não foram facturados, desde que em tal se fundamente a inspecção tributária.
  3. O artigo 23.º do CIRC aplicável (redacção 2016), não legitima a desconsideração de encargos com financiamentos que não se demonstre que não foram aplicados na exploração do sujeito passivo, em função de disposições patrimoniais gratuitas, ou abaixo do custo, que o sujeito passivo efectue, a favor de entidades relacionadas ou de terceiros.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 09 de Setembro de 2020, A..., LDA., NIPC..., com sede na ..., Rua..., ... ..., ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos seguintes actos de liquidação, referentes ao ano fiscal de 2016, no valor total de € 206.711,11:
  2. liquidação de IRC e juros compensatórios n.º 2020...; e
  3. liquidações de IVA e juros compensatórios n.ºs 2020..., 2020..., 2020..., 2020... .

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que:
  2. A situação identificada pela AT, como omissão de rendimentos (G...), se deveu, unicamente, a um erro no lançamento contabilístico;
  3. Nas situações identificadas pela AT como ocultação de rendimentos com viaturas, não houve quaisquer rendimentos ocultados;
  4. As situações identificadas pela AT como encargos não devidamente documentados, incluem o valor de € 2,861,25, relativo a seguros, que se encontra devidamente documentado, bem como o valor de € 36,189,24, relativo à Sociedade Portuguesa de Autores;
  5. Os gastos de financiamento e de imposto de selo não aceites pela AT, estão relacionados com a actividade da Requerente;
  6. As liquidações de IVA, fundando-se nas correcções de IRC relativas à ocultação de rendimentos com viaturas, deverão ser, pelas mesmas razões, anuladas.

 

  1. No dia 10-09-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 30-10-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 02-12-2020.

 

  1. No dia 19-01-2021, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

  1. No dia 15-06-2021, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pela Requerente, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

  1. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas dedicada à “angariação, organização e promoção de leilões de bens móveis e imóveis, compra e venda de bens móveis e imóveis, novos e usados, e revenda dos adquiridos para esse fim ”.
  2. No âmbito da sua atividade, normalmente a Requerente leiloa oportunidades, sendo todos os lotes colocados à venda por €1,00.
  3. No que diz respeito a viaturas, normalmente são celebrados contratos com os fornecedores e é definido um preço mínimo de venda ao público, sendo que o valor mínimo de alienação é normalmente atribuído pelo fornecedor.
  4. Atingido esse valor, as viaturas são vendidas ao melhor preço obtido através de leilão.
  5. No âmbito dos contratos celebrados com proprietários de viaturas, muitas vezes a Requerente efectua adiantamentos que têm a finalidade de dissuadir os proprietários de tentar vender as referidas viaturas por outras formas.
  6. A viatura de marca ... (encarnado), com a matrícula ..., faz parte de um lote de viaturas que foi colocada em leilão pelo fornecedor B... S.A. (contrato n.º 141001), e que incluía as seguintes viaturas:

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  1. Ao abrigo deste contrato, foi efectuado, a favor do proprietário do lote, um adiantamento no valor de € 349.941,00, foi efectuado o registo de propriedade da viatura ..., a favor da Requerente.
  2. O adiantamento efectuado relativamente a todas as viaturas, e não apenas à de matrícula ... .
  3. No que diz respeito à viatura ..., o leilão não atingiu o valor de referência que havia sido combinado entre as partes.
  4. A mesma teve um interessado, que a 18 de Novembro de 2016, ofereceu o valor de € 170.000,00.
  5. A viatura...– com a matrícula ...–nunca foi entregue à Requerente para ser colocada em leilão e foi vendida pela B..., SA.
  6. A viatura ...– com a matrícula ...–nunca foi entregue à Requerente para ser colocada em leilão e foi vendida pela B..., SA;
  7. A viatura...– com a matrícula ...- viatura nunca foi entregue à Requerente para ser colocada em leilão, e foi vendida pela B..., SA, tendo o valor da venda desta viatura sido remetido à Requerente para amortizar o adiantamento inicial, por transferência (de €45.000,00) em 21-08-2014.
  8. A viatura...– com a matrícula ..., foi entregue à Requerente, entrou em leilão e foi vendida por €29.600,00;
  9. A viatura...– com a matrícula..., nunca foi entregue à Requerente para ser colocada em leilão e foi vendida pela B..., SA;
  10. A viatura...– com a matrícula ...- nunca foi entregue à Requerente para ser colocada em leilão e foi vendida pela B..., SA.
  11. Em substituição das viaturas não entregues, e cujo valor de venda não foi transferido, a B... entregou, em substituição, as seguintes viaturas:
    1. ... – com a matrícula ...- que foi vendida por €16.000,00;
    2. ...– com a matrícula ...– que foi vendida por €10.700,00;
    3. ...– com a matrícula...– que foi vendida €21.619,00.
  12. Os valores recebidos da B..., ou provenientes da venda de viaturas entregues por esta, foram abatidos ao adiantamento feito inicialmente.
  13. A viatura de marca..., com a matrícula..., foi colocada em leilão pelo fornecedor C... .
  14. Na altura da entrega da viatura, foi efetuado um adiantamento no valor de € 27.500,00.
  15. A viatura foi colocada em leilão em 2013 e não foi vendida por não ter atingido o valor de referência, combinado entre as partes.
  16. A referida viatura ficou no armazém da Requerente, até que o Sr. D... apresentou uma proposta de aquisição desta viatura, constituída pela entrega de uma viatura ... (que posteriormente foi colocada em leilão e vendida e devidamente faturada) e pela entrega de vários cheques pré-datados e uma entrada inicial.
  17. No decorrer deste tempo a viatura esteve em nome da Requerente, até ao pagamento total da viatura ser efetuado, passado nessa data para nome do adquirente.
  18. O valor do negócio foi de € 24.760,00, integrando as seguintes parcelas:
    1. Entrega da viatura para permuta ... (matrícula...) - € 10.700,00;
    2. Entrada: € 5.000,00;
    3. Prestações (12 x € 755,00 mês) € 9.060,00;
  19. A Requerente não apresentou factura da venda da viatura com a matrícula ... .
  20. De acordo com o registo automóvel, a alteração do registo de propriedade ocorreu em 06-09-2016.
  21. A Requerente foi alvo de um procedimento de inspecção no âmbito da ordem de serviço n.º OI2019... .
  22. Do relatório de inspecção, consta, para além do mais, o seguinte:

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  1. O procedimento de inspecção deu origem à liquidação adicional de IRC e juros compensatórios n.º 2020 ... de 22.04.2020, e respectiva Nota de Demonstração de Acerto de Contas, na qual foi apurado um valor global a pagar de € 138.695,73.
  2. Na sequência foram também emitidas as seguintes liquidações adicionais de IVA:
    1. n.º 2020 ..., no valor de € 4,629,92;
    2. n.º 2020 ..., no valor de € 625,10 (juros compensatórios);
    3. n.º 2020 ..., no valor de € 7.137,95 (juros compensatórios); e
    4. n.º 2020 ..., no valor de 55,622,41.
  3. Por despacho datado de 2020-11-10, da Subdiretora-Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento e Relações Internacionais, foi determinada a revogação parcial da Liquidação Adicional de IRC no 2020 ... de 22-04-2020, e respectiva Demonstração de Acerto de Contas, referente ao período de 2016, nos seguintes termos:

“B.1 – Quanto à omissão de rendimentos do G... no valor de 5.533,70 €

Relativo à omissão de rendimentos do G... no valor de 5.533,70 €, e em completa consonância com a posição da Direção de Finanças de Lisboa, é de aceitar a alegação da Requerente, pois não se verificou qualquer omissão de rendimentos, mas somente o reconhecimento do rendimento numa conta SNC errada, ou seja, em vez do seu reconhecimento ter sido efetuado na conta “752 – Subsídios” foi reconhecido na conta “7888 – Outros Proveitos”, não resultando daqui qualquer prejuízo para a Administração Tributária.

Em face do que, nesta parte, se propõe a anulação da correção promovida pela inspeção tributária. (...)

B.2.2 – Viatura com a Matrícula ...

Está em causa uma viatura da marca ... com a matrícula ..., que conforme cópia do contrato de “Prestação de Serviços para Entrega e Venda em Leilão (contrato no 1373 junto como documento 13 ao pedido arbitral), faz parte de um lote de cinco bens, colocada em leilão pelo fornecedor “E...”, NIF não identificado no contrato.

Refere a Requerente que com a realização do contrato foi efetuado um adiantamento de 50.000,00 € ao fornecedor, em face do que, para salvaguardar este valor, procedeu ao registo da viatura com a matrícula ... em seu nome (parágrafo 47o da petição do processo arbitral).

Ora,

Quanto à viatura supra referida, verifica-se que a Requerente alienou a mesma pelo preço de 179.000,00 € (valor de martelo), conforme fatura FA A2016/14842, de 28-11-2016 (junta como documento 14 ao pedido arbitral), tendo acrescido a este valor a comissão do comprador mais IVA e as despesas de alteração de titular.

Em face do que, se constata que a Requerente declarou a obtenção de um rendimento com a alienação desta viatura.

Sucede que,

Os serviços da inspeção referem que o "consignor settlement" nº 35671, de 13.12.2016, onde se inclui esta viatura e um relógio de pulso, faz referência, em relação a estes 2 artigos, à existência dos seguintes adiantamentos: 50.000,00 € em 21.11.2016, 25.000,00 € em 03.11.2016, 25.000,00 € em 09.11.2016 e 50.000,00 € em 29.11.2016, adiantamentos estes que a entidade não comprovou ter efetuado, nem se encontram evidenciados na contabilidade.

Assim,

Perante esta circunstância, os serviços da inspeção concluíram que “estando a referida viatura inserida no valor global do "consignor settlement" no 35671 (que inclui 2 itens), de 13/12/2016, relativamente ao qual a A... indicou ter efetuado adiantamentos no valor de €150.000,00, que não comprovou, considera- se omissão de rendimentos com IVA incluído, em relação a esta viatura, no exercício de 2016, ou seja de €121.951,22 (=€150.000,00/1,23) o que constitui infração ao disposto no art.º 20.º do CIRC.

Com efeito a própria Requerente, nos parágrafos 47º e 48º da petição do processo arbitral, refere que:

“47º

Com a realização do contrato de prestação de serviços foi efetuado um adiantamento de 50.000,00 €, pelo que foi necessário colocar a viatura em nome da Requerente, para salvaguardar o montante adiantado”

48º

Além deste adiantamento terão sido efetuados mais adiantamentos que totalizaram um valor de 150.000,00 €.”

Sucede que,

Conforme relatado pelos próprios serviços da inspeção tributária, a Requerente não apresentou comprovativos destes pagamentos, nem os mesmos se encontram evidenciados na sua contabilidade, nem nos extratos bancários disponibilizados (pela Requerente).

Em face do que,

Os serviços da inspeção tributária concluíram ser de considerar como omissão de rendimentos o valor dos adiantamentos no total de 150.000.00 €, considerando que este valor já inclui o valor do IVA.

Vejamos então,

Um adiantamento efetuado ao fornecedor dos bens entregues para venda em leilão trata-se de uma entrega ao comitente, que deverá ser reembolsada no seu total, ou, de acordo com o disposto no artigo 11º do Regime Especial de Tributação da Margem (Decreto lei nº 199/96, de 18 de outubro), deduzido do preço de adjudicação do bem em leilão e do montante da comissão obtida (de acordo com o estabelecido no contrato de comissão de venda).

E, em termos contabilísticos afeta apenas contas de Balanço, disponibilidades financeiras (conta 12 – Depósitos à ordem) e conta de terceiros (conta 22 – Fornecedores).

Sucede que, no caso em apreço, e conforme relatado pelos próprios serviços da inspeção, não foram apresentados documentos comprovativos do pagamento destes adiantamentos ao fornecedor, pois: (i) nem se encontram evidenciados na contabilidade, (ii) nem nos extratos bancários disponibilizados pela Requerente.

Em face do que, não existindo evidencia de que este valor tenha afetado as demonstrações financeiras da Requerente no período de 2016, nem em contas de balanço, nem em contas de resultados, não se pode corroborar com a conclusão de que o valor em causa consubstancie rendimentos omitidos.

A omissão de rendimentos poderia ser sustentada pelo recebimento de valores que não foram faturados, e no caso em concreto, a inspeção tributária nada refere sobre rendimentos ocultados.

Pelo que se considera que a correção em sede de IRC, no valor de 119.885,36 € é de anular.

(...)

IV - Conclusão

Após apreciação do pedido de pronúncia arbitral, afigura-se-nos que se devem manter as correções propostas pelos serviços da inspeção tributária, com exceção das correções referente à omissão de rendimentos:

no valor 5.533,70 € (conforme explicitado no ponto B.1 da presente informação), e,

no valor de 121.951,22 € (conforme explicitado no ponto B.2.2 da presente informação).

Em face do que o ato objeto do pedido deve ser parcialmente anulado, nos termos propostos”.

 

 

A.2. Factos dados como não provados

1- A factura F 2016/01702808, da Companhia de Seguros F..., respeite a algum dos valores desconsiderados pela AT, na correcção a que se refere o ponto III.1.4 do RIT.

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal e por declarações de parte produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

O facto dado como não provado deve-se à ausência ou insuficiência da prova a seu respeito.

Com efeito, a Requerente limita-se a juntar um documento de cobrança da factura em questão, e o comprovativo do seu pagamento, sem, todavia, explicar ou esclarecer, por qualquer forma, a falta de correspondência de valores, entre a correcção operada no RIT e o valor dos documentos que apresenta.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

 

B. DO DIREITO

 

Questões prévias

  1. Da inutilidade superveniente da lide,

Conforme resulta dos factos dados como provados, por despacho da Sra. Subdiretora-Geral com competências delegadas na área do IRC, proferido a 22-04-2020, a liquidação de IRC sindicada nos presentes autos foi parcialmente anulada, na parte relativa a:

- Omissão de rendimentos do G... no valor de € 5.533,70; e

- Omissão de rendimentos com a viatura com a matrícula ... (...), no montante de € 119.885,36.

                Face ao ocorrido, torna-se inútil, nessa parte, o prosseguimento da presente lide, quanto às correcções já objecto de anulação por parte da AT, na medida em que, do prosseguimento daquela, não resultará qualquer efeito sobre a relação jurídica material controvertida, no que as partes estão, de resto, de acordo.

Como se sabe, verifica-se a inutilidade superveniente da lide quando, por facto ocorrido na pendência da causa, a solução do litígio deixe de ter interesse e utilidade, o que justifica a extinção da instância (cfr. artigo 277.º, al. e), do Código de Processo Civil). Como referem LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA, RUI PINTO, a inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide “dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou se encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio”.

Assim, se, por virtude de factos novos ocorridos na pendência do processo, parte do escopo visado com a pretensão deduzida em juízo já foi atingido por outro meio, pelo que a decisão a proferir não envolve efeito útil, ocorre, nesse âmbito, inutilidade superveniente da lide.

Decorre da actuação administrativa dada como provada que a pretensão formulada pela Requerente, que tinha como finalidade a declaração de ilegalidade e anulação por este Tribunal do acto sindicado, ficou, em parte, prejudicada porquanto a anulação das correcções e dos seus efeitos foi conseguida por outra via, depois de iniciada a instância. Na verdade, a revogação parcial da liquidação impugnada, implica que a instância atinente à apreciação da legalidade dessa liquidação na parte respeitante às correcções relativas aos gastos financeiros não aceites fiscalmente e gastos com depreciações e amortizações, se extinga por inutilidade superveniente parcial da lide, dado que, por terem sido eliminados os seus efeitos, perde utilidade a apreciação, em relação a tais liquidações, dos vícios alegados em ordem à sua invalidade, ficando sem objecto a pretensão impugnatória contra elas deduzida.

Permanecendo, porém, parcialmente na ordem jurídica o acto de liquidação, não tendo a Requerente encontrado totalmente na via administrativa a satisfação da sua pretensão, sempre se deverá manter a instância para apreciação da liquidação na parte relativa à correcção da anulação de acréscimos de rendimentos não documentada, no valor de €48.476,00.

Nestes termos, verifica-se a inutilidade superveniente parcial da lide no que concerne ao pedido de anulação do acto tributário relativamente às correcções indicadas, objecto do presente processo, o que implica a extinção parcial da correspondente instância nos termos do disposto no artigo 277.º, al. e) do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.

 

*

            ii. Da desistência do pedido

            A Requerente, na sequência da prova produzida na reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT, desistiu do pedido respeitante à correcção relativa a encargos não documentados – valores relativos à Sociedade Portuguesa de Autores, no montante de € 36,189,24.

            Nos termos do artigo 286.º, n.º 2, a desistência do pedido é livre.

            A procuração junta aos autos contém, para além do mais, poderes especiais para desistir.

            Deve, assim, ser homologada a desistência do pedido, na parte em questão, absolvendo-se, nessa mesma medida, a Requerida do pedido.

 

***

Do fundo da causa

            Aqui chegados, cumpre apreciar a legalidade das correcções subsistentes, tendo em conta que a Requerente não contesta, aceitando expressamente, as seguintes:

- Omissão de rendimentos da ... (€ 2.443,96); - Gastos lançados em duplicado (€ 5.482,26);

-  Gastos lançados em duplicado  (€ 5.482,26);

- Tributação autónoma em falta (€ 690,50).

Subsistem, assim, para apreciar as seguintes correcções:

- Omissão de rendimentos - alienação de viaturas (viaturas de matrícula ...e ...- IVA e IRC), no valor de valor de € 147.459,00 e € 20.130,08;

- Omissão de rendimentos - alienação de viaturas (viatura de matrícula ... - IVA), no montante de € 119.885,36

- Encargos não devidamente documentados, no valor de € 9.544,01, tendo em conta a desistência parcial do pedido, acima abordada (IRC);

- Gastos de financiamento e de imposto de selo não aceites - € 235.863,19 (IRC).

Vejamos, então.

 

*

            A AT revogou, oficiosamente, para além do mais, a correcção relativa à omissão de rendimentos com a viatura com a matrícula ... (...), no montante de € 119.885,36.

            No que releva para esta correcção, entendeu a AT, nessa revogação, que:

“Está em causa uma viatura da marca ... com a matrícula ..., que conforme cópia do contrato de “Prestação de Serviços para Entrega e Venda em Leilão (contrato no 1373 junto como documento 13 ao pedido arbitral), faz parte de um lote de cinco bens, colocada em leilão pelo fornecedor “E...”, NIF não identificado no contrato.

Refere a Requerente que com a realização do contrato foi efetuado um adiantamento de 50.000,00 € ao fornecedor, em face do que, para salvaguardar este valor, procedeu ao registo da viatura com a matrícula ... em seu nome (parágrafo 47o da petição do processo arbitral).

Ora,

Quanto à viatura supra referida, verifica-se que a Requerente alienou a mesma pelo preço de 179.000,00 € (valor de martelo), conforme fatura FA A2016/14842, de 28-11-2016 (junta como documento 14 ao pedido arbitral), tendo acrescido a este valor a comissão do comprador mais IVA e as despesas de alteração de titular.

Em face do que, se constata que a Requerente declarou a obtenção de um rendimento com a alienação desta viatura.

Sucede que,

Os serviços da inspeção referem que o "consignor settlement" nº 35671, de 13.12.2016, onde se inclui esta viatura e um relógio de pulso, faz referência, em relação a estes 2 artigos, à existência dos seguintes adiantamentos: 50.000,00 € em 21.11.2016, 25.000,00 € em 03.11.2016, 25.000,00 € em 09.11.2016 e 50.000,00 € em 29.11.2016, adiantamentos estes que a entidade não comprovou ter efetuado, nem se encontram evidenciados na contabilidade.

Assim,

Perante esta circunstância, os serviços da inspeção concluíram que “estando a referida viatura inserida no valor global do "consignor settlement" nº 35671 (que inclui 2 itens), de 13/12/2016, relativamente ao qual a A... indicou ter efetuado adiantamentos no valor de €150.000,00, que não comprovou, considera- se omissão de rendimentos com IVA incluído, em relação a esta viatura, no exercício de 2016, ou seja de €121.951,22 (=€150.000,00/1,23) o que constitui infração ao disposto no art.º 20.º do CIRC.

Com efeito a própria Requerente, nos parágrafos 47º e 48º da petição do processo arbitral, refere que:

“47º

Com a realização do contrato de prestação de serviços foi efetuado um adiantamento de 50.000,00 €, pelo que foi necessário colocar a viatura em nome da Requerente, para salvaguardar o montante adiantado”

48º

Além deste adiantamento terão sido efetuados mais adiantamentos que totalizaram um valor de 150.000,00 €.”

Sucede que,

Conforme relatado pelos próprios serviços da inspeção tributária, a Requerente não apresentou comprovativos destes pagamentos, nem os mesmos se encontram evidenciados na sua contabilidade, nem nos extratos bancários disponibilizados (pela Requerente).

Em face do que,

Os serviços da inspeção tributária concluíram ser de considerar como omissão de rendimentos o valor dos adiantamentos no total de 150.000.00 €, considerando que este valor já inclui o valor do IVA.

Vejamos então,

Um adiantamento efetuado ao fornecedor dos bens entregues para venda em leilão trata-se de uma entrega ao comitente, que deverá ser reembolsada no seu total, ou, de acordo com o disposto no artigo 11º do Regime Especial de Tributação da Margem (Decreto lei nº 199/96, de 18 de outubro), deduzido do preço de adjudicação do bem em leilão e do montante da comissão obtida (de acordo com o estabelecido no contrato de comissão de venda).

E, em termos contabilísticos afeta apenas contas de Balanço, disponibilidades financeiras (conta 12 – Depósitos à ordem) e conta de terceiros (conta 22 – Fornecedores).

Sucede que, no caso em apreço, e conforme relatado pelos próprios serviços da inspeção, não foram apresentados documentos comprovativos do pagamento destes adiantamentos ao fornecedor, pois: (i) nem se encontram evidenciados na contabilidade, (ii) nem nos extratos bancários disponibilizados pela Requerente.

Em face do que, não existindo evidencia de que este valor tenha afetado as demonstrações financeiras da Requerente no período de 2016, nem em contas de balanço, nem em contas de resultados, não se pode corroborar com a conclusão de que o valor em causa consubstancie rendimentos omitidos.

A omissão de rendimentos poderia ser sustentada pelo recebimento de valores que não foram faturados, e no caso em concreto, a inspeção tributária nada refere sobre rendimentos ocultados.

Pelo que se considera que a correção em sede de IRC, no valor de 119.885,36 € é de anular.”.

            Relativamente a esta situação, note-se, desde logo, que o entendimento assumido pela AT é directamente aplicável à correcção relativa a IVA, respeitante à mesma viatura (ponto III.2.1.b. do RIT), apenas se explicando a manutenção de tal correcção (em sede de IVA), porquanto o despacho revogatório foi emitido pela Sr.ª Subdiretora-Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento e Relações Internacionais, sem competência, portanto, em sede de IVA.

            Daí que a referida correcção em sede de IVA, deve ser, directamente e pelas mesmas razões, anulada.

            Por outro lado, o que se constata é que argumentação em que assenta o despacho revogatório é directamente transponível para as correcções relativas às viaturas de matrícula ... e ... .

            Com efeito, também relativamente a tais correcções, não se verifica que tenham sido afectadas as demonstrações financeiras da Requerente no período de 2016, nem em contas de balanço, nem em contas de resultados, pelo que não se pode corroborar a conclusão de que o valor em causa consubstancie rendimentos omitidos.

E, também aqui, a omissão de rendimentos poderia ser sustentada pelo recebimento de valores que não foram facturados, e no caso em concreto, a inspecção tributária nada refere sobre rendimentos ocultados.

Daí que, devam tais correcções ser também anuladas, quer em sede de IRC quer em sede de IVA, procedendo nesta parte o pedido arbitral.

*

            Seguidamente, contesta a Requerente as correcções em IRC relativas a encargos não devidamente documentados, no valor inicial de € 45.733,25, reduzido a € 9.544,01, por via da desistência parcial do pedido, acima já tratada.

            Relativamente a esta correcção remanescente, a Requerente apenas refere que o valor de € 2,861,25 diz respeito a um seguro de responsabilidade civil.

            Não obstante, conforme resulta da matéria de facto não provada, e respectiva fundamentação, não se apurou que o valor em causa respeitasse à correcção em causa.

            Daí que não possa senão o pedido arbitral improceder nesta parte, absolvendo-se, nessa mesma parte, a Requerida do pedido.

 

*

            Por fim, contesta a Requerente as correcções, em IRC, relativas a gastos de financiamento e de imposto de selo não aceites (ponto III.1.6).

A Requerida fundou, nesta parte, a liquidação de IRC impugnada na alegada conexão entre os encargos financeiros incorridos pela Requerente, no ano de 2016, com financiamentos contraídos junto de terceiros, e a manutenção de créditos a terceiros, que nesse ano não foram remunerados.

Embora, no RIT, se refira que, relativamente a diversas das situações em que se fundam as correcções ora em apreço, não foi apresentada documentação justificativa, designadamente no que respeita aos movimentos financeiros de concessão de crédito a terceiros pela Requerente, e à causa desses mesmos movimentos, o que se constata é que o RIT assume a existência desses movimentos financeiros de crédito a terceiros, e funda essas mesmas correcções no entendimento de que o sujeito passivo estaria a suportar encargos financeiros com empréstimos bancários efectuados em seu nome, e simultaneamente a conceder empréstimos não remunerados.

É, portanto, esta a questão a ora apreciar e decidir nos autos.

Com efeito, como se escreve no Acórdão do STA de 28-10-2020, proferido no processo 02887/13.8BEPRT:

 “No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial previsto no art. 99.º e segs. do CPPT, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam”.

Relativamente à matéria agora em questão, na vigência da redacção vigente em 2013 da norma aplicanda (art.º 23.º/1/c) do CIRC então vigente), a jurisprudência do STA na matéria foi clara e reiterada, no sentido de que “Não sendo a recorrente uma SGPS nem estando abrangida pelo regime de tributação de grupos de sociedade os encargos financeiros por si suportados decorrentes dos suprimentos e prestações suplementares efectuados a empresas associadas de forma gratuita não podem ser considerados como custos fiscalmente dedutíveis por não serem indispensáveis para a realização de proveitos da recorrente sujeitos a imposto ou para a sua manutenção como fonte produtora dos mesmos nos termos do artigo 23 do CIRC na redacção vigente à data dos factos.” [2].

No caso sub iudice, não está em causa a aplicação daquela redacção da norma do art.º 23.º do CIRC, já que, no ano de 2014, a norma em questão (o art.º 23.º do CIRC) foi alterada na sua redacção, de modo significativo e intencional, passando a referir como critério geral da dedutibilidade dos gastos, que estes tenham sido incorridos “para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, quando antes dispunha no sentido da necessidade de os mesmos serem “comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora”.

         Conforme resulta, inequivocamente, do “Anteprojeto de Reforma” do Código do IRC[3], a alteração introduzida foi no sentido de deixar claro que “o critério da indispensabilidade foi criado para impedir a consideração fiscal de gastos que não se inscrevem no âmbito da atividade das empresas sujeitas ao IRC” se destina a excluir os “encargos que foram incorridos no âmbito da prossecução de interesses alheios, mormente dos sócios”.

         À luz de tal critério, julga-se que, por princípio, os gastos com financiamentos de uma empresa, deverão considerar-se como tendo carácter empresarial, dado que, não só a obtenção de crédito é um acto normal de gestão empresarial, como, também, a norma do artigo 23.º, n.º 2, al. c) do CIRC o faz presumir[4], como, ainda, a declaração do contribuinte se presume verdadeira e de boa fé, nos termos do artigo 75.º, da LGT, notando-se, conforme já anteriormente referido, que embora a AT formule reparos à documentação das operações contabilizadas, acaba por assumir a sua existência nos termos em que o foram.

         Daí que a problemática da concessão de crédito gratuito (ou abaixo de custo) a terceiros se deva formular noutra sede, julga-se, que não a da empresarialidade dos gastos de financiamento suportados, sede essa que variará segundo a qualidade desses terceiros.

         Assim, se o terceiro for uma entidade relacionada, em termos de se qualificar como tal, para efeitos de preços de transferência, deverá ser, nessa sede que tal questão deve ser analisada.

Com efeito, em tal situação, o que poderá estar em causa seria a transferência de resultados entre entidades relacionadas, a corrigir, sendo caso disso, nos termos do artigo 63.º do actual CIRC.

         Pelo que, como se escreveu já no processo arbitral 695/2015T do CAAD, quando “... a AT corrige apenas o diferencial de juros e não a totalidade dos juros pagos pela [participante]. ..., esta lógica de ajustamento fiscal afigura-se desajustada. Querendo-se questionar o diferencial de preços (taxas de juro) pagos e cobrados, seriam as normas de preços de transferência as que se deveriam aplicar, e não as do artigo 23.º do CIRC”.

Efectivamente, julga-se que o problema fiscal da concessão de empréstimos por sociedades participantes a sociedades participadas, e bem assim entre entidades relacionadas, reside, não na falta de interesse empresarial na operação, mas, antes, na possibilidade de esses interesses serem prosseguidos de maneira abusiva, permitindo a transferência de resultados entre as sociedades envolvidas, de forma não permitida pela lei, sendo que, de resto, o art.º 63.º do CIRC se refere expressamente a tais situações, ao incluir nas suas previsões as “operações financeiras”.

         Já se o terceiro for uma entidade não relacionada, a concessão de crédito gratuito (ou abaixo de custo) ao mesmo, deverá ser tratada como uma liberalidade, nos termos e para os efeitos do artigo 24.º, n.º 1, alínea a) do actual CIRC.

         Efectivamente, o raciocínio subjacente à concessão de crédito gratuito, em que assenta a correcção ora em crise, não é substancialmente alterado, seja qual for o tipo de disposição patrimonial a título gratuito realizado.

         Concretizando: nas suas linhas estruturantes, o raciocínio empregue pela AT, reconduz-se ao de que, no fundo, o sujeito passivo, em lugar de conceder crédito gratuito (ou abaixo de custo) a um terceiro, podia amortizar o seu financiamento, pelo que o encargo suportado com o mesmo não se justificaria empresarialmente.

         Ora, se, por exemplo, em lugar de fazer conceder um crédito gratuito (ou abaixo de custo), o sujeito passivo fizer uma disposição patrimonial gratuita, em numerário, a um terceiro, o mesmo tipo de raciocínio poderia ser feito. Não obstante, não se tem dúvidas que a situação seria enquadrada na al. a) do n.º 1 do art.º 24.º do CIRC, e não no art.º 23.º.

         De resto, mesmo que a disposição patrimonial gratuita, não seja em numerário, a conclusão a tirar, julga-se, que não se alterará. Assim, prosseguindo o exemplo, se aquela consistir num bem do activo imobilizado corpóreo, sempre se poderia dizer que, em lugar de abrir mão de tal bem, o sujeito passivo poderia realizar o seu valor mercado, e amortizar, da mesma forma, os financiamentos pendentes geradores de encargos. Todavia, da mesma forma se julga, que a sede própria do tratamento fiscal de tal hipótese, será o artigo 24.º, n.º 1, alínea a) do CIRC, aplicado à disposição patrimonial gratuita, e não o artigo 23.º do mesmo código, aplicado aos encargos financeiros pendentes.

         Assim, e em suma, julga-se que o artigo 23.º do CIRC aplicável (redacção 2016), não legitima a desconsideração de encargos com financiamentos em que não se demonstre que não foram aplicados na exploração do sujeito passivo, em função de disposições patrimoniais gratuitas, ou abaixo do custo, que o sujeito passivo efectue, a favor de entidades relacionadas ou de terceiros.

         Ao proceder de outra forma, ou seja, ao efectivar as correções ora em crise, com fundamento em que os encargos financeiros suportados pela Requerente, não estão relacionados com a sua actividade, em função de outros actos de disposição patrimonial efectuados por aquela (nomeadamente a concessão de crédito não remunerado), em lugar de proceder ao devido enquadramento fiscal de tais actos, incorreu, nesta parte, a liquidação impugnada, em erro sobre os pressupostos de Direito, pelo que deverá, nessa mesma parte, ser anulada, procedendo, em igual medida, o pedido arbitral.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

  1. Declarar a inutilidade superveniente parcial da lide, na parte respeitante às correcções em IRC relativas a:
    1. Omissão de rendimentos do G... no valor de € 5.533,70; e
    2. Omissão de rendimentos com a viatura com a matrícula ... (...), no montante de € 119.885,36.
  2. Anular parcialmente o acto de liquidação de IRC n.º 2020 ..., na parte relativa às seguintes correcções:
    1. alienação de viaturas (viaturas de matrícula ... e...), no valor de valor de € 147.459,00 e € 20.130,08;
    2. Gastos de financiamento e de imposto de selo não aceites - € 235.863,19;
  3. Anular as liquidações de IVA n.ºs 2020..., 2020..., 2020

..., 2020...;

  1. Absolver a Requerida da restante parte do pedido, mantendo, nessa medida, a parte subsistente da liquidação de IRC n.º 2020...;
  2. Condenar as partes nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimento, fixando-se o montante de € 534,00, a cargo da Requerente, e de € 3.750,00, a cargo da Requerida.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 206.711,11, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 4.284,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelas partes na proporção do respectivo decaimento, acima fixado, uma vez que o pedido foi parcialmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2022

 

O Árbitro Presidente

 

 

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

 

 

(A. Sérgio de Matos)

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Rui Miguel Zeferino Ferreira)

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[2] Ac. do STA de 19-04-2017, proferido no processo 0925/16.

[3] Cfr. pp. 98 e ss.

[4] Conforme já defendia o Prof. Teixeira Ribeiro (Comentário ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de Outubro de 1985, LJ n.º3743, p. 39-43.).