Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 859/2021-T
Data da decisão: 2022-06-23  IMI  
Valor do pedido: € 3.242,93
Tema: AIMI – Sujeito Passivo - Inutilidade Superveniente da Lide.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

A Signatária, Dra. Elisabete Flora Louro Martins Cardoso, foi designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Singular, o qual foi constituído em 7 de março de 2022.

 

  1. Relatório

 

1. A... Lda., com o NIF ... e domicílio fiscal na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ..., cujo serviço periférico local do seu domicílio é o Serviço de Finanças de Guimarães –..., com domicílio na ..., ..., ...-... Guimarães (doravante, Requerente), apresentou no dia 28 de dezembro de 2021 pedido de pronúncia arbitral (PPA), nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto‑Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro, Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida).

No PPA, a Requerente pede ao Tribunal:

TERMOS EM QUE,

A.   se requer a constituição de Tribunal Arbitral;

B. Consequentemente, deverá a presente impugnação ser julgada procedente por provada e determinar-se a ilegalidade e consequente anulação parcial da liquidação n.º 2021 ..., referente a ADICIONAL DE IMPOSTO MUNICIPIAL DE IMÓVEIS, relativa ao período de 2021, expurgando-se da mesma o valor correspondente à tributação do imóvel inscrito nas matrizes prediais urbanas n.ºs ...º e ...º, da União de freguesias de ... e ..., ao qual foi posteriormente atribuído o artigo provisório P-...;

C. Deverá a Requerida ser condenada a restituir à Requerente o valor indevidamente pago, no âmbito da referida liquidação, no valor de € 3.242,93 (três mil, duzentos e quarenta e dois euros e noventa e três cêntimos);

D. Deverá a Requerida ser condenada no pagamento ao Requerente de juros indemnizatórios, à taxa de 4%, contabilizados sobre o valor de 3.242,93 (três mil, duzentos e quarenta e dois euros e noventa e três cêntimos), desde a data em que o Requerente efetuou o pagamento do imposto (15.09.2021), até ao momento do integral pagamento do montante que deve ser reembolsado.

 

Na fundamentação do seu pedido, a Requerente alega que em 31 de dezembro de 2020 não era a proprietária do prédio melhor identificados no PPA (sito em ...), sobre o qual a AT liquidou AIMI (ato impugnado).

Alega a Requerente que em “17.10.2019, a propriedade do referido imóvel foi transmitida para a sociedade B..., LDA., com o NIPC ..., mediante negócio de compra e venda, formalizado por escritura pública realizada no Cartório Notarial da Sra. Dra. C..., sito na ..., ..., salas ... e ..., cidade do Porto”; entidade que beneficia da posse pública do imóvel, goza de todos os direitos inerentes ao direito de propriedade do imóvel e está registada na Conservatória do Registo Predial como proprietária.

Alega ainda a Requerente que “Em face disto, em 22.05.2020, a Recorrente remeteu para o Serviço de Finanças de Matosinhos ... um requerimento, no qual pede a alteração da titularidade do imóvel supra melhor identificado, a favor de B..., LDA., com o NIPC ..., em virtude de a ter transmitido, por Escritura de Compra e Venda outorgada em 17.10.2019”; requerimento ao qual não foi dada resposta. Assim, uma vez que nos termos do artigo 8.º do CIMI o IMI “é devido pelo proprietário do prédio em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeitar, presumindo-se proprietário, para efeitos fiscais, quem como tal figure na matriz nessa data”, o AIMI em causa nos autos é devido pela B..., LDA.

Em conclusão “Em 15.09.2021, a Requerente procedeu ao pagamento do imposto titulado na liquidação objeto de impugnação, no valor de € 4.862,40 (quatro mil, oitocentos e sessenta e dois euros e quarenta cêntimos)”; “A determinação da anulação da liquidação aqui discutida, como se espera, leva à conclusão de que ocorreu um pagamento indevido do imposto pela Requerente, no valor de € 3.242,93 que gerou, na esfera da AT, um enriquecimento em função dos juros que o montante prestado rendeu. Enriquecimento esse totalmente indevido porque resulta da prática de um ato ilegal. Assim, no caso da verificação da anulação parcial da liquidação aqui discutida, por ilegal, deverá a AT ser condenada no pagamento à Requerente dos juros indemnizatórios, contabilizados sobre o valor de € 3.242,93, desde a data do respetivo pagamento (15.09.2021), por força da aplicação do art. 43º, n° 1 da LGT”.

 

No presente PPA, a Requerente impugna: “O ato de liquidação objeto de impugnação reporta-se a uma liquidação de Adicional de IMI (doravante AIMI), referente ao período de 2021, cuja respetiva nota de liquidação aqui se junta sob o doc. n.º 1” (doravante, ato impugnado).

 

2. O pedido de pronúncia arbitral (PPA) foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 30 de dezembro de 2021 e foi automaticamente notificado à Requerida.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, em 15 de fevereiro de 2022, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a Signatária como Árbitro do Tribunal Arbitral Singular, tendo a Signatária comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. Ainda em 15 de fevereiro de 2022, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 7 de março de 2022.

 

6. Em 9 de março de 2022, o Tribunal proferiu o seguinte despacho arbitral:

Notifique o dirigente máximo do serviço da administração tributária, nos termos do artigo 17.º n.º 1 e n.º 2 do RJAT, para: (i) apresentar resposta; (ii) solicitar a produção de prova adicional; e (iii) remeter cópia do processo administrativo (na falta de remessa é aplicado o disposto no artigo 110.º n.º 5 do CPPT). Prazo: 30 dias.

 

7. Em 19 de abril de 2022, a Requerida veio aos autos apresentar Resposta:

“Em 28-01-2022, foi proferido despacho pela Sra Subdiretora Geral dos Impostos da área do Património que diz, conforme se transcreve:

« (...) 6. Verificou-se, também que a liquidação de AIMI referente ao ano de 2021 objeto do presente pedido de pronúncia arbitral foi já corrigida em 12 de janeiro de 2022, tendo sido substituída uma liquidação no valor €4.862.40 por uma liquidação no valor de €1.1619,47.

Desta correção da liquidação, resulta a anulação de coleta no montante de €3.243,93 aqui requerida e que corresponde ao prédio que foi objeto da transmissão acima referida e que, em 1 de janeiro de 2021, já não era da titularidade da Requerente.

Assim, mostra-se satisfeita a pretensão da Requerente e que constitui o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral no CAAD.

Apenas quanto ao direito aos juros indemnizatórios, propõe-se o respetivo reconhecimento nos termos do n.o 1 do artigo 43.º da LGT, porquanto a iniciativa do procedimento arbitral ocorreu em momento anterior ao da revisão oficiosa da liquidação do AIMI contestada, a qual ocorreu em 2022.01.12.»

Satisfeita a pretensão material da Requerente, o objeto dos presentes autos, fica esvaziado de conteúdo e desprovido de utilidade.

A inutilidade superveniente da lide é, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 277.o do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º do RJAT, uma causa de extinção da instância, a qual ocorre quando, «por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio.» - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 0875/14, de 30.07.2014”; “Na verdade, a pretensão da Requerente encontra-se satisfeita, em virtude da anulação da liquidação objeto dos presentes autos e, não se vislumbrando a utilidade ou interesse na manutenção da pronúncia arbitral, pede-se desde já a extinção do processo arbitral, por inutilidade superveniente da lide em conformidade com o previsto no disposto na alínea c) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi da alínea e) do n.o 1 do artigo 29.o do RJAT”.

 

8. Em 28 de abril de 2022, foi proferido o seguinte despacho arbitral:

Notifique-se a Requerente para se pronunciar relativamente à questão suscitada na Resposta da Requerida”. Este despacho foi notificado às partes na mesma data.

 

9. Ainda em 28 de abril de 2022, a Requerente veio aos autos responder:

Nos termos do despacho datado de 28.01.2022, junto com a Resposta, a Requerida revogou totalmente o ato objeto de impugnação. De igual forma, o referido despacho reconhece o direito da Requerente no recebimento dos juros indemnizatórios peticionados no processo, nos termos do art. 43.º da LGT (e consequentemente reconhece a sua obrigação de pagamento). A Requerida deu conhecimento ao processo do ato de revogação do ato tributário após a constituição do Tribunal Arbitral e decurso do prazo previsto no n.º 1 do art. 13.º do RJAT. Sem prejuízo, atento a decisão de revogação total do ato tributário sindicado e reconhecimento do direito da Requerente ao recebimento dos juros indemnizatórios, a Requerente não se opõe ao pedido da Requerida, relativo à extinção do processo por inutilidade superveniente da lide, considerando que, salvo melhor entendimento, tal decisão da AT satisfazendo integralmente as pretensões da Requerente no processo, torna inútil o seu prosseguimento no que respeita à pretensão anulatória do ato tributário aqui em discussão, pois o mesmo deixa de se manter na ordem jurídica. Por outro lado, o art. 536.º, n.º 4 do CPC (aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), estatui, no que aqui importa atentar, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente, devendo, consequentemente, a Requerida ser responsabilizada pelas custas do processo”.

 

10. Em 26 de maio de 2022, foi proferido o seguinte despacho arbitral:

Tendo em consideração a simplicidade da questão colocada nos autos, que é exclusivamente uma questão de Direito, o Tribunal: 1.1) Dispensa a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT; 1.2) Dispensa a apresentação de Alegações; e 1.3) Comunica que a decisão final será proferida dentro do prazo de 30 dias, devendo a Requerente, até 10 dias antes do termo de tal prazo, proceder ao depósito da taxa arbitral subsequente.

 

11. Em 3 de junho de 2022 foi proferido o seguinte despacho arbitral:

Por aplicação do princípio do contraditório, notifica-se a Requerida para se pronunciar relativamente ao requerimento apresentado pela Requerente em 28 de abril de 2022, no que respeita especificamente à decisão de custas. Prazo: cinco dias”. Decorrido o prazo legal, a Requerida não respondeu a este despacho.

 

  1. Saneamento

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram‑se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º n.º 2 do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112‑A/2011 de 22 de Março).

O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

 

  1. Matéria de Facto

III.1    Factos Provados

  1. Para efeitos do cálculo do AIMI liquidado, em nome da Requerente, foi considerado o VPT dos seguintes prédios:

Uma imagem com mesa

Descrição gerada automaticamente

  1. Assim, nos termos da nota de liquidação de IMI n.º 2021....                           (ato impugnado), foi calculado imposto (AIMI) sobre o VPT dos seguintes prédios:

Uma imagem com mesa

Descrição gerada automaticamente

  1. A Requerente consta como proprietária na caderneta predial urbana dos respetivos prédios, identificados sob os artigos matriciais ... e ...;
  2. Ocorre que a Requerente não era a proprietária dos identificados prédios à data de 31 de dezembro de 2020;
  3. A Reclamante foi proprietária, até 17.10.2019, do seguinte imóvel: - prédio urbano, composto por terreno para construção, sito na Rua ..., união de freguesias de ... e ..., concelho de Matosinhos, descrito na Conservatório do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ... – Matosinhos;
  4. O imóvel em mérito encontrava-se inscrito nas matrizes prediais urbanas n.ºs ...º e ...º, da União de freguesias de ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o artigo ...;
  5. Em 19.07.2019 a Requerente apresentou, junto do Serviço de Finanças de Matosinhos ..., uma declaração do Modelo 1 que tinha como objeto o identificado prédio;
  6. Em sequência desta apresentação, ao prédio supra identificado (que anteriormente se encontrava inscrito nas matrizes prediais urbanas n.ºs ...º e ...º) foi atribuído o artigo provisório P-...;
  7. A alteração do artigo na matriz predial urbana foi traslada para a respetiva certidão predial do prédio, passando na mesma a constar o seguinte: “MATRIZ nº: ...-P NATUREZA: Urbana FREGUESIA: ... e ...” - cfr. certidão predial do imóvel, consultável in https://www.predialonline.pt/, através do código de acesso: PP-...;
  8. Em 17.10.2019, a propriedade do referido imóvel foi transmitida para a sociedade B..., LDA., com o NIPC ..., mediante negócio de compra e venda, formalizado por escritura pública realizada no Cartório Notarial da Sra. Dra. C..., sito na... – ..., salas ... e ..., cidade do Porto, por força da sua aquisição derivada, através da via contratual, o direito de propriedade do imóvel identificado supra, nos arts. 8.º e 9.º do presente articulado, pertence, com exclusão de qualquer outrem, à sociedade B...;
  9. Desde o momento da formalização do referido contrato de compra e venda (17.10.2019) a sociedade B... tem vindo a fruir da posse do imóvel aqui identificado, à vista de toda a gente, sem embargo nem oposição de ninguém, dia após dia;
  10. Sem nenhum hiato, e com o ânimo e convicção de quem pretende usar e usa legitimamente coisa própria e exercer os poderes que contemplam o direito de propriedade;
  11. Pela AP. ... de 2019/10/17 a propriedade do referido prédio foi registada a favor da sociedade B..., pelo que beneficia esta entidade da presunção do direito de propriedade gerada pela inscrição do registo, ao abrigo do art. 7.º do Código do Registo Predial;
  12. Aliás resulta, precisamente, do teor da certidão predial, que a B..., no exercício dos seus poderes de legitima proprietária do imóvel indicado supra, constituiu sobre o mesmo uma hipoteca voluntária, a favor da entidade D..., S.A., para garantia das obrigações financeiras por aquela assumidas, até ao montante de 1.287.000,00 Euros (ato registado pela AP. ... de 2019/10/17);
  13. Não obstante o supra exposto, presentemente, a Requerente figura como proprietária na matriz do referido prédio;
  14. Em face disto, em 22.05.2020, a Recorrente remeteu para o Serviço de Finanças de Matosinhos ... um requerimento, no qual pede a alteração da titularidade do imóvel supra melhor identificado, a favor de B..., LDA., com o NIPC ..., em virtude de a ter transmitido, por Escritura de Compra e Venda outorgada em 17.10.2019;
  15. Não obstante aquele requerimento ter sido remetido à AT há mais de um ano, até à presente data, a Requerente não foi notificada de qualquer ato de decisão referente ao pedido ali formulado;
  16. Em 15.09.2021, a Requerente procedeu ao pagamento do imposto titulado na liquidação objeto de impugnação, no valor de € 4.862,40 (quatro mil, oitocentos e sessenta e dois euros e quarenta cêntimos);
  17. Do referido valor de imposto pago, a fração correspondente ao montante de € 3.242,93 (três mil, duzentos e quarenta e dois euros e noventa e três cêntimos) corresponde ao AIMI tributado sobre os prédios inscritos nas matrizes prediais urbanas n.ºs ...º e ...º (336.137,55€+474.593,70€=810.731,25€*0,40%=3.242,93€);
  18. Em 28-01-2022, foi proferido despacho pela Sra. Subdiretora Geral dos Impostos da área do Património que diz, conforme se transcreve: « (...) 6. Verificou-se, também que a liquidação de AIMI referente ao ano de 2021 objeto do presente pedido de pronúncia arbitral foi já corrigida em 12 de janeiro de 2022, tendo sido substituída uma liquidação no valor €4.862.40 por uma liquidação no valor de €1.1619,47. 7. Desta correção da liquidação, resulta a anulação de coleta no montante de €3.243,93 aqui requerida e que corresponde ao prédio que foi objeto da transmissão acima referida e que, em 1 de janeiro de 2021, já não era da titularidade da Requerente. 8. Assim, mostra-se satisfeita a pretensão da Requerente e que constitui o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral no CAAD. 9. Apenas quanto ao direito aos juros indemnizatórios, propõe-se o respetivo reconhecimento nos termos do n.o 1 do artigo 43.o da LGT, porquanto a iniciativa do procedimento arbitral ocorreu em momento anterior ao da revisão oficiosa da liquidação do AIMI contestada, a qual ocorreu em 2022.01.12.»;
  19. Desta correção da liquidação, resulta a anulação de coleta no montante de €3.243,93 aqui requerida e que corresponde ao prédio que foi objeto da transmissão acima referida e que, em 1 de janeiro de 2021, já́ não era da titularidade da Requerente.

    

III.2    Factos não Provados

    

Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide.

    

III.3    Fundamentação da matéria de facto

    

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil [CPC], aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

    

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

    

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.

 

  1. DA APRECIAÇÃO JURÍDICA

 

O artigo 277.º alínea e) do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e) do RJAT, dispõe o seguinte: “A instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.

A impossibilidade da lide ocorre em caso de morte ou extinção de uma das partes, por desaparecimento ou perecimento do objeto do processo ou por extinção de um dos interesses em conflito. A inutilidade superveniente da lide tem lugar quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não tem qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo, ou porque o fim visado com a ação foi atingido por outro meio. Assim, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide traduz-se numa impossibilidade ou inutilidade jurídica, cuja determinação tem por referência o estatuído na lei.

 

Segundo José Lebre de Freitas, Rui Pinto e João Redinha (Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 555), “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio”.

 

Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 16/11/2017, no processo n.º 6108/16.3T8VNF-B.G1:

I- A inutilidade superveniente da lide é uma realidade absoluta, não se podendo extinguir a instância nos casos em que a utilidade existe, ainda que mínima ou pouco provável.

II- Emanação da proibição da prática de actos inúteis que, por sua vez, está relacionada com o princípio da economia processual, a inutilidade superveniente visa obstar a prática de actos absolutamente inúteis, ou seja, sem qualquer utilidade processual.

 

Nas palavras do Acórdão do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 12/05/2012, no processo n.º   1124/11.4TBTMR.C1:

I – A instância extingue-se sempre que se torne supervenientemente inútil, i.e., sempre que por facto ocorrido na pendência da instância, a continuação da lide não tenha qualquer utilidade (artº 287 e) do CPC).

II - A instância extingue-se ou finda de forma anormal todas as vezes que, ou por motivo atinente ao sujeito, ou por motivo atinente ao objecto, ou por motivo atinente à causa, a respectiva relação jurídica substancial se torne inútil, i.e., deixe de interessar a sua apreciação.

III - Não é suficiente, portanto, a existência de um facto que torne a lide inútil; exige-se, para que se verifique a causa de extinção da instância considerada, que o facto seja superveniente.

IV - Como a instância se considera iniciada com a proposição da acção e esta se considera proposta, intentada ou pendente logo que seja recebida pela secretaria a respectiva petição inicial, segue-se que só o facto ocorrido posteriormente ao recebimento da petição inicial se deve considerar superveniente (artºs 150 e 467 nº 1 do CPC).

 

Nos termos do disposto no artigo 13.º do RJAT:

1 - Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º.

 

No caso concreto, a Requerida foi notificada pelo CAAD da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral em 30 de dezembro de 2021. Decorrido o prazo legal de 30 dias previsto no artigo 13.º do RJAT, a Requerida revogou o ato impugnado (através do despacho proferido pela Sra. Subdiretora Geral dos Impostos da área do Património em 28-01-2022), mas não notificou o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão de revogação, tendo, por conseguinte, sido constituído o Tribunal Arbitral.

 

O texto do referido despacho de revogação (do qual a Requerida deu conhecimento ao Tribunal através da sua resposta) é o seguinte:

 

« (...) 6. Verificou-se, também que a liquidação de AIMI referente ao ano de 2021 objeto do presente pedido de pronúncia arbitral foi já corrigida em 12 de janeiro de 2022, tendo sido substituída uma liquidação no valor €4.862.40 por uma liquidação no valor de €1.1619,47. 7. Desta correção da liquidação, resulta a anulação de coleta no montante de €3.243,93 aqui requerida e que corresponde ao prédio que foi objeto da transmissão acima referida e que, em 1 de janeiro de 2021, já não era da titularidade da Requerente. 8. Assim, mostra-se satisfeita a pretensão da Requerente e que constitui o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral no CAAD. 9. Apenas quanto ao direito aos juros indemnizatórios, propõe-se o respetivo reconhecimento nos termos do n.o 1 do artigo 43.o da LGT, porquanto a iniciativa do procedimento arbitral ocorreu em momento anterior ao da revisão oficiosa da liquidação do AIMI contestada, a qual ocorreu em 2022.01.12.»;

 

Notificada para o efeito, a Requerente veio informar os autos que:

atento a decisão de revogação total do ato tributário sindicado e reconhecimento do direito da Requerente ao recebimento dos juros indemnizatórios, a Requerente não se opõe ao pedido da Requerida, relativo à extinção do processo por inutilidade superveniente da lide, considerando que, salvo melhor entendimento, tal decisão da AT satisfazendo integralmente as pretensões da Requerente no processo, torna inútil o seu prosseguimento no que respeita à pretensão anulatória do ato tributário aqui em discussão, pois o mesmo deixa de se manter na ordem jurídica.

 

Conclui-se do exposto, que a Requerida satisfez por inteiro e de modo voluntário as pretensões que a Requerente formou nestes autos (designadamente reconhecendo o direito da Requerente a juros indemnizatórios), e nessa medida, os resultados que a Requerente visava com o presente processo arbitral encontram-se integralmente atingidos. Assim sendo, não oferece dúvida que a decisão arbitral que, normalmente seria proferida, se afigura destituída de qualquer efeito útil, pelo que não se justifica a sua prolação. Termos em que, com as devidas adaptações, se julga verificada a inutilidade superveniente da lide.

 

Contudo, no que respeita à responsabilidade por custas, nos termos do artigo 536.º n.º 3 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, nos casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (excetuados os casos previstos nos números anteriores da mesma norma), a responsabilidade pelas custas fica a cargo do Autor ou Requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao Réu ou Requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas; o n.º 4 do mesmo artigo estatui, no que aqui importa atentar, que se considera, designadamente, que é imputável ao Réu ou Requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do Autor ou Requerente.

 

Vide neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de Agosto de 2014, proferido no processo nº 0828/14:

I - Se na pendência de reclamação da decisão do Director-Geral dos Impostos veio a ser revogado o acto reclamado, tal significa que o recorrente obteve a satisfação da sua pretensão por a autoridade tributária ter revogado o acto, ainda que sem ter decidido que lhe assistia razão.

II - Verifica-se, nesse caso a inutilidade da lide é superveniente na medida em que, instaurada esta, veio a ficar sem objecto por aquilo que a recorrente pretendia obter com a reclamação ter sido atingido pela revogação do acto sob reclamação.

III - A responsabilidade pela totalidade das custas, neste caso, fica a cargo do requerido por a inutilidade lhe ser imputável, face ao disposto no artº 536.º (art.º 450.º CPC 1961) do actual Código de Processo Civil, nos seus nºs 3 e 4.

 

No caso em apreço, como ficou demonstrado, a pretensão da Requerente foi satisfeita voluntariamente pela Requerida por esta ter revogado o ato tributário (e determinado o pagamento de juros indemnizatórios), dando assim plena satisfação à pretensão da Requerente — o que nos termos do disposto no artigo 536.º n.º 3 e n.º 4 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, basta para que este Tribunal determine que a inutilidade superveniente da lide é efetivamente imputável à Requerida, sendo a mesma a responsável pelo pagamento da totalidade das custas do processo.

 

Não obstante a tempestiva revogação do ato impugnado, a Requerida não respeitou todas as formalidades previstas no disposto no artigo 13.º do RJAT. A letra desta norma é a seguinte:

1 – Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º.

2 – Quando o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral seja, nos termos do número anterior, total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro, o dirigente máximo do serviço da administração tributária procede à notificação do sujeito passivo para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, prosseguindo o procedimento relativamente a esse último ato se o sujeito passivo nada disser ou declarar que mantém o seu interesse.

 

Ainda que a Requerida tenha revogado o ato impugnado dentro do prazo de 30 dias após a apresentação do PPA, nos termos do disposto da parte final do artigo 13.º n.º 1 do RJAT, a Requerida estava ainda obrigada a notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão de revogação do ato impugnado.

 

Como tal notificação não foi feita, o procedimento seguiu termos com a consequente:

  1. nomeação de árbitro (em 15 de fevereiro de 2022);
  2. notificação às partes do Árbitro designado (em 15 de fevereiro de 2022); e
  3. constituição do Tribunal Arbitral Singular (em 7 de março de 2022).

Assim, o prosseguimento do processo (rectius, do procedimento arbitral) só pode ser imputável à Requerida — o que determina que as custas deste processo, também com este fundamento, devem ser totalmente imputadas à Requerida.

   

  1. DECISÃO

   

Termos em que, decide este Tribunal:

a) Declarar extinta a presente instância arbitral, por inutilidade superveniente da lide;

b) Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

  1.     VALOR DO PROCESSO

  

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A n.º 1 alínea a) do CPPT, e no artigo 3.º n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de EUR 3 242,93.

 

   

  1. CUSTAS

  

O montante das custas (a cargo da Requerida) é fixado em EUR 612,00 (nos termos do disposto no artigo 12.º n.º 2 e no artigo 22.º n.º 4 do RJAT, e na Tabela I anexa do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária)[1].

  

Notifique-se.

Lisboa, 23 de junho de 2022.

 

 

Elisabete Flora Louro Martins Cardoso

(Árbitro Singular)

 



[1] Inclui o descritivo do despacho de retificação de um lapso de escrita proferido a 28-06-2022.