Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 721/2019-T
Data da decisão: 2022-07-14  IRC  
Valor do pedido: € 58.646,90
Tema: Artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais; organismo de investimento coletivo não residente; liberdade de circulação de capitais (art. 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia)
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SUMÁRIO:

I. O artigo 63.° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), conforme declarado pelo acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, AllianzGI‑Fonds Aevn, C-545/19, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

II. O regime constante do artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, que limita a isenção de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) aos dividendos pagos a OIC residentes, enquanto os dividendos recebidos de sociedades residentes em território português por OIC não residente em Portugal e estabelecido noutro Estado-Membro da União Europeia são objeto de retenção na fonte com caráter liberatório, mostra-se desconforme com a liberdade de circulação de capitais consagrada no art. 63.º do TFUE.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I. Relatório[1]

 

a) Partes e pedido de pronúncia arbitral

 

1. A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de identificação fiscal português ..., com sede em ..., Alemanha, representado por B... GMBH, na qualidade de sociedade gestora, com sede na mesma morada (a seguir o Requerente), apresentou, em 25.10.2019, em conformidade com os artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.1, com as alterações posteriores (a seguir Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), pedido de pronúncia arbitral (a seguir, abreviadamente PI), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (a seguir, Requerida ou AT), no qual peticiona a anulação, por vício de violação de lei, dos atos tributários de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos ao ano de 2017 e do ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada e o consequente reconhecimento do direito do Requerente à restituição da quantia em causa de €58.646,90.

 

b) Constituição do Tribunal Arbitral

 

2. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro singular o signatário, que aceitou o encargo e a cuja designação as partes não apresentaram recusa.

 

3. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 17.01.2020, tendo-se verificado a suspensão da instância entre 2.3.2020 e 21.3.2022.

 

4. O Tribunal foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.3) e encontram-se devidamente representadas.

 

 

c) Dinâmica processual

 

5. No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente peticionou a anulação dos atos tributários sindicados de indeferimento da reclamação apresentada e de retenção na fonte de IRC, por vício de violação de lei, sustentando que a norma constante do artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), em vigor à data dos factos, infringe os princípios da legalidade tributária e do primado do direito internacional e da liberdade de circulação de capitais, violando os artigos 8.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 18.º e 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). 

 

6. A AT, ao abrigo do artigo 17.º, n.º 1 do RJAT, apresentou resposta (a seguir abreviadamente R.) em que, invocando o quadro global da tributação nacional dos organismos de investimento coletivo (OIC), designadamente mediante a consideração da tributação em sede de Imposto do Selo e das tributações autónomas, que não abrangem os OIC não compreendidos no art. 22.º do EBF, sustentou que não são fiscalmente comparáveis as situações dos OIC residentes e dos OIC não residentes, pelo que peticionou que seja julgado improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

 

7. Na sua PI, o Requerente suscitou a questão da suspensão da instância até decisão por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) do pedido de reenvio a título prejudicial formulado no âmbito do processo arbitral então pendente no CAAD com o n.º 93/2019-T, dado colocar-se aí a mesma matéria, com relevância para a resolução do presente litígio, da compatibilidade do artigo 22.º do EBF com o Direito da União Europeia. A AT, na sua resposta, a título subsidiário em relação ao pedido de improcedência, subscreveu igualmente a suspensão do processo até decisão por parte do TJUE das questões prejudiciais formuladas no âmbito do processo n.º 93/2019-T.

 

8. Por despacho de 2.3.2020, foi determinada, ao abrigo dos arts. 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT, a suspensão da instância até à decisão do reenvio prejudicial apresentado no processo n.º 93/2019-T.

 

9. Pelo seu acórdão de 17.3.2022, AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, proferido na sequência do pedido de reenvio prejudicial formulado no indicado processo n.º 93/2019-T, o Tribunal de Justiça declarou que: “O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.

 

10. Na sequência da prolação deste acórdão pelo Tribunal de Justiça, o Tribunal Arbitral por despacho de 21.3.2022 determinou a cessação da suspensão da instância, a junção aos autos do referido acórdão e a notificação das partes para se pronunciarem, querendo, sobre a repercussão de tal acórdão prejudicial em relação ao litígio sub judice, o que foi concretizado apenas pelo Requerente, o qual veio a juntar aos autos em 3.6.2022 traduções certificadas dos documentos em língua estrangeira juntos à PI.

 

11. Por despacho de 27.06.2022, o Tribunal Arbitral, tendo em consideração a desnecessidade da definição de trâmites processuais específicos, que foi facultado o contraditório relativamente aos documentos juntos pela Requerente em 3.6.2022 e que foram oportunamente notificadas as partes para se pronunciarem sobre a repercussão nos presentes autos do acórdão prejudicial proferido no processo C-545/19, dispensou a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, bem como a produção de alegações.

 

12. Nos termos do n.º 2 do artigo 18.º e do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, tendo em conta o termo do prazo fixado no art. 21.º, n.º 1 do RJAT que decorre da suspensão da instância determinada por despacho de 2.3.2020 que cessou por despacho de 21.3.2022, foi designado o dia 25.7.2022 como data final para a prolação da decisão arbitral.

 

II. Thema decidendum

 

13. O thema decidendum concerne à legalidade dos atos de retenção na fonte de IRC sobre os dividendos auferidos de sociedades residentes em território português no ano de 2017 pelo Requerente, organismo de investimento coletivo constituído segundo a legislação alemã, e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada, em atenção à conformidade da normatividade constante do art. 22.º do EBF (na redação aplicável à data dos factos), cujo âmbito de aplicação se restringe aos “fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional” (n.º 1 do referido art. 22.º), com a liberdade de circulação de capitais consagrada pelo art. 63.º do TFUE.

 

III. Matéria de facto

 

14. Examinadas as alegações formuladas nas peças processuais das partes e a prova documental produzida, quer a que foi apresentada com a PI, quer a que resulta do procedimento administrativo de reclamação graciosa (PA) junto aos autos pela Requerida, julgam-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:

 

I. O Requerente é um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), constituído sob a forma contratual (Spezial Alternativer Investmentfonds (AIF) Sondervermögen), com residência fiscal na Alemanha no ano de 2017, gerido pela entidade gestora de fundos de investimento B... GmbH, igualmente com sede na Alemanha, que constitui um sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais sem estabelecimento estável em Portugal (cfr. os certificados de residência fiscal da Administração Fiscal alemã – Ansässigkeitsbescheinigung der deutschen Finanzverwaltung – juntos como docs. n.ºs 1 e 2 à PI, o acordo de constituição do fundo junto como doc. n.º 3 à PI, o memorando sobre German Special-AIFs/German Non-UCITS AIFs junto como doc. n.º 4 à PI, as Allgemeine Anlagebedingungen e Besondere Anlagebedingungen constantes do doc. n.º 5 à PI e o certificado emitido pelo Bundesanstalt für Finanzdienstleistungsaufsicht junto como doc. n.º 6).

II. O Requerente, como entidade residente fiscal e sujeito passivo na Alemanha, beneficiava no ano de 2017 de uma isenção fiscal do imposto sobre as pessoas coletivas, estando excluído o direito a qualquer crédito por dupla tributação internacional ou a reembolso quanto aos impostos suportados ou pagos no estrangeiro (cfr. o doc. n.º 4 junto à PI).

III. O Requerente no ano de 2017 era titular de lotes de participações sociais de 452.488 ações ao portador nos C..., SA e de 69.900 ações nominativas na E… SGPS, SA, sociedades residentes em território português (cfr. a declaração do Banco depositário D... junta como doc. n.º 7 à PI).

IV. O Requerente, no ano de 2017, como acionista das indicadas sociedades residentes em Portugal, recebeu dividendos no montante total de €234.587,60 e suportou em Portugal imposto por retenção na fonte à taxa de 25% no montante total de €58.646,90, conforme guia de pagamento n.º ... (2017-5), nos termos a seguir discriminados (cfr. a declaração e comunicações da instituição depositária D... juntas como docs. n.ºs 7 e 8 à PI):

Uma imagem com mesa

Descrição gerada automaticamente

V. O Requerente apresentou, em 28.12.2018, reclamação graciosa em relação aos indicados atos de retenção na fonte de IRC respeitantes ao ano de 2017, peticionando a sua anulação por violação do art. 63.º do TFUE, a qual correu termos na Direção de Finanças de Lisboa sob o número de processo ...2018... (REC …/…), que foi objeto de decisão de indeferimento datada de 17.7.2019 notificada ao Requerente em 29.7.2019, que se fundamentou, além do mais, no seguinte: “não compete à AT avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, tão-pouco apreciar da sua constitucionalidade, realçando-se que, na senda do entendimento acolhido pela recente jurisprudência emanada do Supremo Tribunal Administrativo, atendendo ao disposto nos artigos 266.º da CRP e 55.º da LGT, a Administração Tributária deve atuar em conformidade com a lei, não podendo, por regra, deixar de aplicar uma norma tributária constante de diploma legal, por alegada inconstitucionalidade, a não ser quando o Tribunal Constitucional já tenha declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nos termos do artº 281.º da CRP” e, por outro lado, “não pode a AT aceitar de forma direta e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação da compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu” (cfr. docs. n.ºs 9 e 10 juntos à PI e fls. 3 e seguintes do PA).

 

15. Não se descortina factualidade que releve dar como não provada para resolução do litígio.

 

16. Os factos acima elencados no n.º 14 resultaram provados, conforme se indica nos diversos números do probatório, pelos documentos juntos pelo Requerente com a PI e pelos documentos constantes do PA. Não se verifica, de qualquer modo, divergência entre as partes quanto à factualidade pertinente.

 

IV. Direito

 

17. A regulação nacional relevante para efeitos da tributação por retenção na fonte dos dividendos distribuídos ao Requerente no ano de 2017 afere-se, antes de mais nada, pelo disposto no art. 22.º do EBF que estabelecia o seguinte, no que aqui imediatamente releva:

 

1 - São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.

2 - O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 - Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1. (...)

8 - As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime. (...)

10 - Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1. (...)”.

 

Por força deste regime, os OIC constituídos de acordo com a legislação nacional encontravam-se no ano em causa de 2017 isentos de IRC e da correspondente retenção na fonte sobre os dividendos obtidos, dado o disposto nos citados n.ºs 3 e 10 do art. 22.º do EBF.

 

18. Dado que este regime possui o seu campo de aplicação delimitado aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, designadamente nos termos do Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, aprovado pela Lei n.º 16/2015, com as alterações posteriores, um OIC residente noutro Estado-Membro da União Europeia, que não é constituído segundo a legislação nacional, como sucede com o Requerente (cfr. factos provados n.ºs I e II), não se enquadra no referido art. 22.º do EBF.

Em consequência, a distribuição de dividendos por parte de sociedades residentes em Portugal a OIC não constituídos ao abrigo da lei portuguesa e não residentes em território português implica, como rendimentos obtidos em Portugal, a sujeição a retenção na fonte liberatória à taxa de 25%, conforme previsto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea c), 3.º, n.º 1, alínea d), 4.º, n.º 3, alínea c), n.º 3, 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b) e n.º 4 e 87.º n.º 4, todos do CIRC.

 

19. Segundo o Requerente (arts. 40.º e seguintes da PI), a regulação nacional descrita implica que “um OIC constituído ao abrigo do Regime Geral dos OIC, aquando da distribuição de dividendos provenientes de sociedades sediadas em Portugal, estava sujeito, no ano de 2017, a um regime fiscal mais favorável do que o aplicável a um OIC constituído de acordo com a legislação de um qualquer outro Estado Membro da União Europeia aquando da distribuição de dividendos de fonte portuguesa”, pois “a legislação nacional concede expressamente aos OIC constituídos em Portugal a possibilidade de beneficiarem de um regime que lhes permite receber os dividendos totalmente isentos de tributação, bastando, para tal, que estejam constituídos de acordo com a legislação nacional” enquanto que “no caso de OIC constituídos noutros Estados Membros da União Europeia, os mesmos não são passíveis de beneficiar de idêntica isenção, estando sujeitos a uma tributação efetiva e liberatória de 25% em sede de IRC, sobre os dividendos auferidos, no ano de 2017, em Portugal”, o que consubstanciaria, já que “as distribuições de dividendos efetuadas ao Requerente no ano de 2017 constituem um movimento de capital na aceção do artigo 63.º do TFUE”, “um tratamento discriminatório e uma clara restrição da liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.º do TFUE”.

Pelo seu lado, a Requerida (arts. 15.º e seguintes da R.) sustenta que os regimes fiscais aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional e aos OIC constituídos e estabelecidos na Alemanha não são genericamente comparáveis, o que prejudicaria a alegação de tratamento discriminatório e de restrição à liberdade de circulação de capitais, pois um OIC constituído e estabelecido em Portugal, embora isento de retenção na fonte, estava sujeito a uma tributação autónoma sobre os dividendos, à taxa de 23%, se as correspondentes partes sociais não forem detidas, de modo ininterrupto, pelo período de um ano e, além disso, esses rendimentos, enquanto forem parte integrante do valor líquido global do OIC, em cada trimestre, ainda sofrem a incidência do Imposto do Selo nos termos da verba 29 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), ao passo que um OIC constituído e estabelecido na Alemanha estava isento de tributação no imposto sobre o rendimento e, aparentemente, também de outros impostos, sendo que não se demonstra cabalmente que, embora o Requerente não consiga recuperar o imposto retido na fonte (Portugal) no seu Estado de residência (Alemanha), devido ao seu estatuto de entidade isenta de tributação, a parte do imposto não recuperado pelo fundo não venha a ser recuperado pelos investidores.

 

20. Pois bem, o Tribunal de Justiça, conforme acima se referiu, no seu acórdão de 17.3.2022, AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, pronunciou-se especificamente sobre a regulação fiscal aqui em jogo e acima descrita, tendo considerado que ao “proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa (...) procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes”, o qual “pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE” (n.ºs 38 e 39)

Especificamente, este acórdão, nos seus n.ºs 52 a 57, declarou que “a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.º 11, do [CIRC] não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa”, pois “a legislação nacional em causa (...) não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes”, sendo que, por um lado, “no que respeita ao imposto do selo, (...) pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas” e, além disso, “a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo”, pelo que “um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente” e, por outro lado, “no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do [CIRC] (...), este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período”, o que implica que “só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes”.

Deste modo, não é relevante, para efeitos de aferir a comparabilidade quanto à tributação incidente sobre os rendimentos de dividendos auferidos por OIC não residentes, a sujeição dos OIC residentes abrangidos pelo artigo 22.º do EBF (cfr. art. 4.º, n.º 7 do Código do Imposto do Selo – CIS) ao imposto do selo da verba 29 da TGIS incidente sobre o valor líquido global dos OIC (cfr. art. 9.º, n.º 5 do CIS), assim como a eventual aplicação da tributação autónoma em conformidade com o n.º 11 do art. 88.º do CIRC e o n.º 8 do art. 22.º do EBF.

 

21. Em particular quanto à consideração dos detentores das unidades de participação ou das participações sociais nos OIC e o objetivo do regime nacional de transferir a tributação na esfera dos OIC para a esfera dos respetivos participantes (cfr. art. 22.º-A do EBF), este acórdão do Tribunal de Justiça (n.ºs 59 e seguintes), para além de recordar que a comparabilidade de uma situação transfronteiriça com uma situação interna deve ser examinada tendo em conta o objetivo prosseguido pelas disposições nacionais controvertidas, bem como o seu objeto e conteúdo, e que apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta, destaca, por um lado, que “a partir do momento em que um Estado-Membro, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só as sociedades residentes mas também as sociedades não residentes, relativamente aos rendimentos que auferem de uma sociedade residente, a situação das referidas sociedades não residentes assemelha‑se à das sociedades residentes”, pelo que “[t]endo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram‑se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal”, e, por outro lado, que, perante o objetivo de uma legislação de transferir o nível de tributação do veículo de investimento para o acionista desse veículo “são, em princípio, as condições materiais do poder de tributação sobre os rendimentos dos acionistas que devem ser consideradas determinantes e não a técnica de tributação utilizada” e como “um OIC não residente pode ter detentores de participações sociais que tenham residência fiscal em Portugal e sobre cujos rendimentos este Estado-Membro exerce o seu poder de tributação”, isso envolve que “um OIC não residente encontra-se numa situação objetivamente comparável à de um OIC residente em Portugal”, sendo ainda que “o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa (...), que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes”, pois “a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia”.

 

22. Não tendo o Tribunal de Justiça, neste seu acórdão, reconhecido a existência de qualquer razão imperiosa de interesse geral, capaz de justificar uma restrição à livre circulação de capitais, impõe-se, então, a conclusão de que o artigo 63.° do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

Consabidamente, em consonância com o primado do Direito da União Europeia, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que depois de ter recebido a resposta do Tribunal de Justiça a uma questão relativa à interpretação do direito da União que lhe submeteu, ou quando a jurisprudência do Tribunal de Justiça já tenha dado um resposta clara a essa questão, um órgão jurisdicional deve, ele próprio, fazer tudo o que seja necessário para que essa interpretação do direito da União seja aplicada (cfr. em substância neste sentido, o acórdão de 5 de abril de 2016, PFE, C‑689/13, n.º 42) e o juiz nacional responsável pela aplicação, no âmbito da sua competência, das disposições do direito da União tem a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem que tenha de pedir ou aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v. acórdãos de 4 de junho de 2015, Kernkraftwerke Lippe‑Ems, C‑5/14, n.º 32, bem como o citado acórdão de 5 de abril de 2016, PFE, C‑689/13, n.º 40).

Este Tribunal está, assim, vinculado pela interpretação que foi indicada pelo Tribunal de Justiça no referido acórdão, sendo certo que a questão aí decidida coincide inteiramente com a matéria objeto dos presentes autos, como, aliás, logo resultou da suspensão determinada até à decisão do reenvio prejudicial.

 

23. Nestes termos, como a disciplina resultante dos artigos 2.º, n.º 1, alínea c), 3.º, n.º 1, alínea d), 4.º, n.º 3, alínea c), n.º 3, 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b) e n.º 4 e 87.º n.º 4, todos do CIRC, que acarretou que os dividendos auferidos pelo Requerente de sociedades residentes em Portugal no ano de 2017 foram sujeitos a retenção na fonte liberatória à taxa de 25% (cfr. facto provado IV), ao passo que o art. 22.º, n.ºs 3 e 10 do EBF consagra uma isenção de tributação em IRC e de retenção na fonte dos dividendos auferidos por OIC residentes, não é compatível com liberdade de circulação de capitais, conforme estabelecido no citado acórdão do Tribunal de Justiça de 17.3.2022, AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, cabe proceder à desaplicação da referida disciplina na parte em que excluiu da isenção de retenção na fonte um OIC constituído segundo a legislação alemã e residente fiscal na Alemanha, como é o caso do Requerente (cfr. factos provados I e II), por incompatibilidade com o art. 63.º do TFUE.

Em consequência, padecem de ilegalidade os atos de retenção na fonte de IRC incidentes sobre os dividendos auferidos pelo Requerente no ano de 2017 (cfr. facto provado IV) e o indeferimento da reclamação graciosa (cfr. facto provado V) sindicados nestes autos, o que determina a sua anulação ao abrigo do disposto no art. 163.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), ex vi art. 2.º, al. c) da LGT.

 

 

V. Reembolso do montante pago e juros indemnizatórios

 

24. O Requerente peticiona, na decorrência da anulação dos atos impugnados, a restituição da quantia de €58.646,90 e o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).

Prescreve a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

Pelo seu lado, o artigo 100.º, n.º 1 da LGT, aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, estabelece que: “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.

Prescreve, aliás, o art. 24.º, n.º 5 do RJAT que é devido o pagamento de juros, nos termos previstos na LGT e no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

 

25. No caso em apreço, está-se em presença, nos atos impugnados, da concretização de normas nacionais em vigor, as quais, todavia, contrariam o direito da União Europeia tal como é interpretado pelo Tribunal de Justiça.

Ora, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, “quando um Estado-Membro tiver cobrado impostos em violação das normas do direito da União, os particulares têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas também dos montantes pagos a esse Estado ou por este retidos, diretamente relacionado com esse imposto”, o que “inclui igualmente as perdas resultantes da indisponibilidade de quantias em numerário decorrentes da exigibilidade prematura do imposto”, do que resulta que “o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União” (vd., entre outros, o acórdão de 9.9.2021, XY, C-100/20, n.º 27).

Por outro lado, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado‑Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo, as quais devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (vd. o acórdão de 18.04.2013, Irimie, C-565/11, n.º 23).

A este respeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo até ao presente firmada entendeu, em face do disposto no n.º 1 do art. 43.º da LGT e do art. 61.º do CPPT, que: “tratando-se de atos de retenção na fonte e de pagamento por conta, fica arredada a possibilidade de existência de erro imputável aos serviços, na medida em que não só a determinação da matéria coletável como também a liquidação do imposto são operadas pelo próprio contribuinte ou por substituto, e não pelos serviços” sendo que: “o erro passa a ser imputável aos serviços caso o contribuinte deduza impugnação administrativa (reclamação graciosa e recurso hierárquico) contra tais atos e ocorra o seu indeferimento (expresso ou silente). Isto é, passará a ser imputável aos serviços a partir do momento em que, pela primeira vez, a administração tributária toma posição desfavorável ao contribuinte e indefere a sua pretensão” (vd. os acórdãos do STA de 28.4.2021, proc. n.º 016/10.9BELRS 0884/17 e de 6.12.2017, proc. n.º 0926/17).

 

26. Em face das razões expostas, que assim se acolhem, procede o pedido do Requerente de reembolso do montante indevidamente pago de €58.646,90, acrescido, por força do disposto no art. 43.º, n.º 1 da LGT, de juros indemnizatórios à taxa legal desde a data do indeferimento da reclamação graciosa ocorrida em 17.7.2019 (cfr. facto provado n.º V) até integral reembolso da quantia indevidamente paga.

 

VI. Decisão

 

Termos em que se decide:

a) julgar procedente o pedido objeto da presente pronúncia arbitral e, em consequência, anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa ...2018... (REC .../...) e dos atos de retenção na fonte de IRC objeto da guia de pagamento n.º ... (2017-05), no montante total de €58.646,90;

b)  condenar a Requerida na restituição do montante indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal desde a data de indeferimento da reclamação graciosa (17.7.2019) até integral reembolso da quantia indevidamente paga;

c) condenar a Requerida nas custas processuais.

 

VII. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 3 do CPPT, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, fixa-se ao processo o valor de €58.646,90 (cinquenta e oito mil, seiscentos e quarenta e seis euros e noventa cêntimos), que constitui a importância das retenções de imposto cuja anulação é objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

VIII. Custas

 

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.142,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, dada a procedência do pedido de anulação dos atos tributários objeto dos autos.

 

 Notifique-se.

 

Lisboa, 14.7.2022.

 

O Árbitro

 

 

 

 

(João Menezes Leitão)

 



[1] Adota-se a ortografia resultante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, com atualização, em conformidade, da grafia constante das citações efetuadas.