Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 704/2021-T
Data da decisão: 2022-05-20  IRC  
Valor do pedido: € 130.498,84
Tema: IRC - Artigo 51º
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SUMÁRIO:

  1. O artigo 51º do IRC consagra um regime de eliminação de dupla tributação internacional através  de um mecanismo, denominado por “participation exemption”, que aplica o método da isenção (dedução integral à matéria colectável) a lucros distribuídos por entidades participadas.
  2. Na situação em apreço, estão reunidas todas as condições para que tal  regime seja integral e plenamente aplicável. A norma não prevê regimes diferenciados para os montantes correspondentes à percentagem de participação detida e para os montantes que excedam essa percentagem.
  3. Qualquer rendimento decorrente de uma participação social detida numa sociedade de capitais (como o é a sociedade brasileira participada pela Requerente) deve ser qualificado como dividendo, quer o montante desse rendimento seja proporcional à participação detida, quer seja inferior ou superior a essa percentagem.

 

Decisão arbitral

 

1. RELATÓRIO

 

1. A..., doravante “Requerente”, requereu, em 2-11-2021, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 2º e no artigo 10º do Decreto-Lei 10/2011 de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), a constituição de TRIBUNAL TRIBUTÁRIO COLECTIVO com designação dos Árbitros pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, pedindo a anulação da correção à matéria coletável de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC) que deu origem à liquidação com o nº 2021 801..., de 19 de Julho de 2021, no valor de € 130.498,84 (cento e trinta mil quatrocentos e noventa e oito euros e oitenta e quatro cêntimos), relativa ao exercício de 2018

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante AT).

 

A Requerente optou por não designar Árbitro.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado em 03.11.2021.

Em 23.12.2021, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 7 do Artigo 11º do RJAT.

Desta forma, em face do disposto no nº 8 do artigo 11º do RJAT, tendo decorrido o prazo estabelecido no nº 11 do mesmo artigo 11º sem que as Partes se pronunciassem, o Tribunal Tributário Colectivo ficou constituído em 11.01.2022, tendo, nesta mesma data, sido notificada a AT para apresentar a sua contestação e juntar o processo administrativo.

A AT apresentou a sua contestação em 23.02.2022, concluindo que se deve julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho do Senhor Árbitro Presidente, datado de 09.03.2022, foi decidido não realizar a reunião prevista no artigo 18º do RJAT bem como dispensar as Partes da apresentação de alegações. As partes não se opuseram.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituido.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4º e 10º nº 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

 

 

2. MATÉRIA DE FACTO

 

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

A. A Requerente é uma sociedade comercial que exerce uma actividade de engenharia e técnicas afins, a que corresponde o CAE 71120, e está enquadrada como sujeito passivo de IRC sujeita ao regime geral de tributação.

B. No ano de 2018, a Requerente era titular de uma participação de 50% no capital social da sociedade de direito brasileiro denominada “B...”, de ora em diante B....

C. No exercício de 2018, a Requerente recebeu dividendos decorrentes da participação detida na sociedade de direito brasileiro identificada supra, no seguinte valor:

  • Relativos ao exercício de 2017 – a quantia de € 203.495,89 (duzentos e três mil, quatrocentos e noventa e cinco euros e oitenta cêntimos);
  • Relativos ao exercício de 2018 – a quantia de € 99.320,44 (noventa e nove mil trezentos e vinte euros e quarenta e quatro cêntimos);

D. O montante de dividendos distribuidos à Requerente, relativos ao ano de 2017, corresponderam a 90% dos lucros distribuidos pela B..., ao passo que o montante distribuído relativo ao exercício de 2018, correspondeu a 84% do valor dos lucros distribuídos.

E. Esta distribuição foi aprovada em assembleia geral de accionistas da B... realizada em 2018.

F. O valor dos dividendos distribuídos à Requerente não foi propocional à percentagem da participação,  50%, por ela detida na B....

H. A distribuição de dividendos por esta forma está prevista no artigo 16.2 do contrato social da B...

I. A Requerente efectuou, na sua declaração Modelo 22 (campo 771 do quadro 7) respeitante ao exercício de 2018, uma dedução de € 302.816,33 (trezentos e dois mil oitocentos e dezasseis euros e trinta e três cêntimos), relativa à eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribudos pela filial brasileira e por ela auferidos, referidos no item C. supra.

J. Em 3 de Feveiro de 2021, ao abrigo da Ordem de Serviço com o nº OI2021..., os Serviços de Inspecção Tributária (SIT) da Direcção de Finanças de Lisboa (DFL) iniciaram um procedimento de inspecção de natura interna e âmbito parcial, em sede de IRC e de IVA e na qual se analisou a situação tributária da Requerente no exercicio de 2018.

K. Em 24 de Maio de 2021, através do Oficio nº 8..., a Requerente foi notificada do Projecto de Relatório de Inspecção, pelo qual a AT se propunha ralizar as seguintes correcções, em sede de IRC:

  • Correcção projectada à materia colectável, no valor de € 130.498,84, relativa a uma incorrecta eliminação de dupla tributação económica dos lucros distribuídos (cf. artigo 51º do CIRC);
  • Pagamento de imposto em falta relativo a tributação autónoma, resultante de prémios pagos a gerentes, no valor de € 55.800,00 (cf. artigo 88º do CIRC)J.

L. No que se refere à situação decorrente da aplicação do regime da tributação autónoma, a Requerente regularizou-a espontâneamente, entregando a respectiva declaração de substituição e pagando o imposto considerado em falta.

M. Relativamente à parte do projecto de Relatório de Inspecção que propunha a correcção à matéria colectável relativa à eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos, por não concordar com a correcção proposta, a Requerente exerceu o seu direito de audição prévia.

N. Em resposta ao exercício deste direito de audição prévia, a AT manteve a correcção, convertendo a proposta em decisão definitiva.

O. Em consequência, a AT emitiu a liquidação de IRC com o nº 2021 801..., na qual se fixou um prejuizo fiscal de € 28.623,96, resultante da diferença entre o prejuízo fiscal declarado pela Requerente, no valor de € 159.122,80, e a correcção efectuada pela AT de € 130.498,84.

 

Os factos dados como provados resultam da documentação junta aos autos, não sendo controvertidos por qualquer das partes.

 

2.2- Factos não provados

Não ficaram por provar factos relevantes para a decisão da causa.

 

3. MATÉRIA DE DIREITO

 

3.1. Dos fundamentos da correcção à matéria colectável apresentados pela Autoridade Tributária (AT)

 

A AT determinou uma correcção à matéria colectável com fundamento no incorrecto apuramento da dedução relativa à eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos, ou seja, dos dividendos pagos pela sociedade B... à Requerente.

Entendeu a AT que apenas os rendimentos auferios na proporção da participação social detida pela Requerente na sociedade brasileira seriam qualificáveis como dividendos e que o montante que excede essa percentagem não poderia ser qualificado como tal e, em consequência, não poderia beneficiar do regime de dedução integral fixado no artigo 51º do CIRC.

Concluindo, por isso, a AT que, em virtude dessa “desqualificação” do rendimento como “dividendo”, o valor recebido em “excesso” deveria integrar a matéria colectável da Requerente, concorrendo para a formação seu lucro tributável, por não poder beneficiar do do regime de eliminação de dupla tributação consagrado no citado artigo 51º do CIRC.

 

3.2. Dos fundamentos do pedido de pronúncia da Requerente

 

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente contesta a correcção efectuada pela AT ,considerando-a manifestamente ilegal, devendo, como tal, ser anulada.

Neste sentido, entende que o artigo 51º do Código do IRC, onde está consagrado um mecanismo que visa a eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos por sociedades participadas, apenas impõe, no que aqui interessa,  como condições para a eliminação da dupla tributação internacional uma percentagem mínima (10% ou mais) de participação e um período mínimo (um ano) de detenção dessa participação. Que, tal como reconheceu a AT no Relatório de Inspecção, na situação em apreço, estavam reunidas todas as condições para que o regime estabelecido no artigo 51º do CIRC fosse integral e plenamente aplicável.

Entende ainda a Requerente que a norma citada, não prevê, de forma alguma, a aplicação de um regime diferenciado entre dividendos correspondentes à percentagem de participação detida, e dividendos que excedam essa percentagem. Ou seja, que a interpretação que a AT fez da referida norma  carece de acolhimento, na medida em que se a intenção do legislador tivesse sido a de a distribuição dos lucros fosse efectuada de forma proporcional às participações de capital, essa intenção teria que ser determinada de forma clara e expressa, não cabendo ao intérprete distinguir o que o legislador não distinguiu.

Acresce ainda que a legislação societária brasileira permite a distribuição de lucros de uma forma desproporcional à participação detida por cada sócio/accionista, e que, para as próprias autoridades fiscais brasileiras, os lucros distribuidos na parte que excedem a proporção da participação detida são igualmente considerados e tratados, de um ponto de vista fiscal, como lucros/dividendos.

Por fim, salientou ainda a Requerente, que também a Convenção para Eliminar a Dupla Triburtação (CDT) celebrada entre Portugal e o Brasil, dispõe, na definição dada o seu artigo 10º nº 3, que os rendimentos auferidos de uma participação detida numa sociedade não podem deixar de ser qualificados como dividendos, não distinguindo, em caso algum, entre os dividendos correspondentes à percentagem de participação detida e os que excedem essa mesma percentagem.

 

4. ANÁLISE DO PEDIDO FORMULADO PELA REQUERENTE

 

Feita a análise, em primeiro lugar, dos fundamentos invocados pela Requerida para a correcção da matéria colectável e, de seguida, dos argumentos constantes do pedido formulado pela Requerente, deve agora o Tribunal decidir.

 Para este efeito, é fundamental, como vimos, o artigo 51º nº 1 do Codigo do IRC, cuja redacção completa é a seguinte:

“1 - Os lucros e reservas distribuidos a sujeitos passivos de IRC com sede ou direcção efectiva em território português não concorrem para a determinação do lucro tributável, desde que se verifiquem, cumulativamente os seguintes requisitos:

  1. O sujeito passivo detenha direta ou indiretamente, nos termos do nº 6 do artigo 69º, uma participação não inferior a 10% do capital social ou dos direitos de voto da entidade que distribui os lucros ou reservas;
  2. A participação referida no número anterior tenha sido detida, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à distribuição ou, se detida há menos tempo, seja mantida durante o tempo necessário para completar aquele período;
  3. O sujeito passivo não seja abrangido pelo regime da transparência fiscal previsto no artigo 6º;
  4. A entidade que distribui os lucros ou reservas esteja sujeita e não isenta de IRC, do imposto referido no artigo 7º, de um imposto referido no artigo 2º da Diretiva nº 2011/96/EU, do Conselho, de 30 de novembro, ou de um imposto de natureza idêntica ou similar ao IRC e a taxa legal aplicável à entidade não seja inferior a 60% da taxa do IRC prevista no nº 1 do artigo 87º;
  5. A entidade que distribui os lucros ou reservas não tenha residência ou domicilio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças

 

Como se referiu no ponto 3.2. supra, a AT fundamentou a correcção efectuada à matéria colectável da Requerente no facto de o montante dos lucros distribuídos à Requerente – 90% e 84%,nos anos de 2017 e 2018 respectivamente - exceder a percentagem por ela detida no capital social da entidade de direito brasileiro em que participa.

Facto este que deve levar a não considerar esse “excesso” como lucros referentes a uma participação social.

Entendimento que levou a que essa correcção não correspondesse ao valor global dos dividendos auferidos pela Requerente - € 302.816,33 –,  mas apenas a € 130.498,84, sendo este o montante que acresceu à matéria colectável, reduzindo o valor dos prejuízos fiscais declarados pela Requerente.

No Relatório de Inspecção, não aduziu a Requerida qualquer outro fundamento para efectuar esta correcção, mais concretamente a falta de algum  dos requisitos constantes do artigo 51º do CIRC.

Ou seja, a AT não pôs em causa a perccentagem ou o perido de detenção da participação ou o facto de a sociedade participada poder ser incluida nas previsões das alíneas d) e e) do artigo 51º acima transcritas.

Com esta argumentação,  a AT mais não fez do que “desqualificar” uma parte do rendimento auferido pela Requerente, não o considerando, nem o tratando, de um ponto de vista fiscal, como um verdadeiro rendimento derivado de uma participação social.

É entendimento deste Tribunal que a fundamentação da AT não encontra qualquer suporte na lei, quer na lei interna (cf. artigo 51º do CIRC, acima transcrito), quer no artigo 10º  nº 3 da CDT celebrada entre Portugal e o Brasil – a qual, embora não diretameente em causa, não pode deixar de constituir importante elemento de interpretação sistemática -, onde se define dividendos como:

O termo “dividendos” usado neste artigo, significa os rendimentos provenientes de acções, acções ou bónus de fruição,(…), que permitam participar nos lucros, assim como os rendimentos derivados de outras partes sociais sujeitos ao mesmo regime fiscal que os rendimentos de acções pela legislação do Estado de que é residente a sociedade que os distribui. Considera-se ainda que o termo dividendos inclui os rendimentos derivados de conta ou de associação em participação.” (sublinhado nosso).

Como refere o Prof. Alberto Xavier na sua obra “Direito Tributário Internacional”, “O elemento nuclear em torno do qual se articulou o conceito convencional de dividendo foi, pois, o de rendimento de uma participação de capital, assim entendida a participação numa sociedade de capitais (joint stock companies).” (sublinhado nosso)

Mais adiante, na mesma obra, refere ainda o Prof. Alberto Xavier “Desde que, face a um dado sistema juridico, uma sociedade se possa caracterizar como sociedade de capitais, dotada de personalidade jurídica distinta da dos seus sócios, os rendimentos a estes distribuidos podem classificar-se como dividendos, seja qual for a forma juridica que revistam.” (sublinhado nosso)

Conclui-se assim  que qualquer rendimento decorrente de uma participação social detida numa sociedade de capitais (como o é a sociedade brasileira participada pela Requerente), deve ser qualidicado como dividendo, quer o montante desse rendimento seja proporcional à participação detida, quer seja inferior ou superior a essa percentagem.

Ou seja, todo o rendimento auferido pela Requerente da sua participação na sociedade brasileira B... só pode ser qualificado como rendimento – dividendo – decorrente dessa participação.

Sendo qualficado como dividendo derivado de uma participação social, resta apurar, para que a regra do artigo 51º do CIRC seja aplicável, se os requisitos ai previstos, mais concretamente, o da percentagem minima da participação e o do periodo mínimo da sua detenção se verificam ou não.

Ora, da documentação vertida pela Requerente para os autos, parece claro e inequívoco que essas condições se verificam, na medida em que a participação é de 50% do capital social e, à data da disribuição dos dividendos, já era detida pela Requerente há mais de um ano.

Como o reconhece, aliás, a própria Requerida ao permitir a dedução de um montante correspondente a 50% os dividendos auferidos pela Requerente.

 

Assim, considera o Tribunal que a correcção efectuada pela AT à matéria colectável da Requerente é ilegal por violação de lei, pelo que deve proceder, integralmente, os pedidos formulados pela Requerente,

 

5. DECISÃO

  1. É declarada ilegal a correcção à matéria colectável da Requerente, no valor de € 130.498,84, que se anula, sendo assim  mantido inalterado o prejuizo fiscal de € 159.122,80 declarado na Modelo 22 do exercício de 2018
  2. Consequentemente, é anulada a liquidação de IRC com o nº 2021 801..., no decorrente de tal correção.

 

6. VALOR DA CAUSA

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 130.498,84, que a Autoridade Tributária não questionou, o qual corresponde ao valor das liquidações de imposto a que se pretendia obstar. Face ao disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, pelo que se fixa-se nesse montante o valor da causa.

 

7. CUSTAS

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.

 

Notifique.

 

Lisboa, 20 de Maio de 2022

 

 

O Árbitro Presidente

 

Rui Duarte Morais

 

 

O Árbitro vogal

 

João Marques Pinto (relator)

 

 

O Árbitro vogal

 

Maria do Rosário Anjos