Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 663/2021-T
Data da decisão: 2022-06-22  IMI  
Valor do pedido: € 20.238,58
Tema: IMI –VPT dos terrenos para construção
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SUMÁRIO

 

  1. O Tribunal Arbitral tem competência para conhecer atos de indeferimento tácito de pedidos de revisão oficiosa contra atos de liquidações de impostos.
  2. Não obstante a fixação do valor patrimonial tributário ser um ato destacável, é impugnável a liquidação que teve por base esse valor determinado de forma ilegal.
  3. Na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não eram aplicáveis, à data dos factos, os coeficientes previstos no artigo 38.º do Código do IMI.

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Jorge Belchior de Campos Laires, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:

  1. Relatório

A..., com o número de identificação fiscal …, e com sede na …, … - Óbidos (doravante “Requerente”), requereu a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito do Pedido de Revisão Oficiosa com vista à anulação (parcial) dos atos tributários do Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”)  com os números 2016 639..., 2016 639..., 2016 639..., 2016 675..., 2017 278..., 2017 617..., 2017 617..., 2017 644..., 2018 123..., 2018 123..., 2018 123..., 2019 213..., 2019 213... e 2019 213..., referentes aos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019.

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida por “AT” ou “Requerida”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral deu entrada no dia 17 de outubro de 2021, tendo sido aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à AT.

Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 27 de dezembro de 2021.

Em 1 de fevereiro de 2022, a Requerida apresentou a Resposta com defesa por exceção e impugnação, concluindo que o PPA deve ser julgado improcedente.

Por Despacho de 3 de fevereiro de 2022, o Tribunal notificou a Requerente para se pronunciar, querendo, sobre a matéria de exceção suscitada na resposta pela Autoridade Tributária, tendo a Requerente respondido a 11 de fevereiro 2022.

Por Despacho de 7 de março de 2022, o Tribunal considerou dispensável a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo indicado a possibilidade de alegações escritas facultativas, pelo prazo sucessivo de dez dias, tendo a Requerida produzido alegações a 4 de abril de 2022.

A Requerida solicitou a dispensa de junção do Processo Administrativo, o que teve a anuência da Requerente, tendo o Tribunal deferido o pedido, considerando que as partes não apresentam divergências quanto à matéria de facto, estando os factos relevantes sustentados documentalmente.

  1. Saneamento

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

  1. Matéria de Facto

 

  1. Factos Provados

Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente foi notificada dos seguintes atos tributários de liquidação de IMI:
  1. Liquidações com as notas de cobrança n.ºs 2016 639..., 2016 639..., 2016 639... e 2016 675..., referentes ao ano 2016, no montante total de € 152.286,00;
  2. Liquidações com as notas de cobrança n.ºs 2017 278..., 2017 617..., 2017 617... e 2017 644..., referentes ao ano 2017, no montante total de € 150.211,77;
  3. Liquidações com as notas de cobrança n.ºs 2018 123..., 2018 123... e 2018 123..., referentes ao ano 2018, no montante total de € 157.868,09;
  4. Liquidações com as notas de cobrança n.ºs 2019 213..., 2019 213... e 2019 213..., referentes ao ano 2019, no montante total de € 147.735,47.

(cf. Documento n.º 2 junto com o PPA)

  1. As referidas liquidações de IMI incluíam terrenos para construção cujos valores patrimoniais tributários estavam fixados com a aplicação de coeficientes de localização, de afetação e/ou de qualidade e conforto (cf. cadernetas prediais urbanas juntas com o PPA).
  2. A Requerente procedeu ao pagamento das respetivas liquidações de IMI supra identificadas (cf. Documento n.º 2 junto com o PPA).
  3. O Requerente apresentou, no dia 30 de abril de 2021, ao abrigo do disposto no artigo 78.º da LGT, Pedido de Revisão Oficiosa dos referidos atos de liquidação, não tendo obtido qualquer resposta da AT até à data de entrada do PPA (cf. Documentos juntos com o PPA).

 

  1. Factos não Provados

Não existem factos não provados com relevância para a decisão.

  1. Motivação da Decisão de Facto

A convicção do Tribunal fundou-se unicamente na análise crítica da prova documental junta aos autos, que está referenciada em relação a cada facto julgado assente.

  1. Matéria de Direito

 

  1. Exceções invocadas pela Requerida

 

  1. Incompetência do Tribunal Arbitral

A Requerida considera que os vícios do ato que definiu o valor patrimonial tributário (VPT) não são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo, concluindo que o Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objeto do litígio sub judice, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT.

O Requerente, por sua vez, entende que os atos tributários de liquidação de IMI podem ser impugnados com fundamento em errónea fixação dos valores patrimoniais tributários, e que a suscetibilidade de impugnação autónoma dos atos instrumentais/destacáveis de fixação destes valores não obsta à possibilidade de impugnação do ato de liquidação, sendo que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD são competentes, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, quer para apreciar a legalidade das liquidações de IMI, quer dos atos de fixação de valores patrimoniais que lhes estão subjacentes.

Analisando:

A argumentação da Requerida assenta no pressuposto de que os atos de fixação do VPT são destacáveis para efeitos de impugnação contenciosa e que, por tal, não são suscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base nos mesmos.

 

Ora, este tema já foi tratado diversas vezes na jurisprudência, acompanhando-se a posição sufragada pelo TCAS no âmbito do Acórdão proferido no Proc. 2765/12.BELRS, de 31.10.2019, que se transcreve parcialmente: “de facto, deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o VPT, nem assim fica impossibilitado de arguir a ilegalidade do VPT fixado, embora com efeitos restritos às liquidações posteriores à reclamação. Defender o contrário é o mesmo que defender a perpetuidade da conduta ilegal da Administração, o que repugna ao bom senso e ao Direito admitir”.

 

Cite-se ainda o Acórdão do Tribunal Arbitral Tributário proferido no âmbito do Processo n.º 500/2020-T: “sendo o pedido de revisão oficiosa meio próprio para se obter a revisão de uma liquidação, mesmo quando inquinada por vicio de quantificação da matéria coletável que lhe serve de base, é meio próprio para conhecer tais questões o recurso judicial ou arbitral interposto no seguimento do silêncio administrativo quanto a tal pedido.

Resulta assim da posição acima, que se acompanha, que o que está em causa no presente processo é a reação contra as liquidações de IMI e não contra a fixação do VPT. É verdade que o vício que se aponta ao ato de liquidação respeita a uma alegada ilegalidade cometida pela AT na fixação do VPT, mas tal não invalida que seja o ato de liquidação que está a ser contestado, o que determina a competência dos tribunais arbitrais, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

Improcede assim esta exceção invocada pela Requerida.

  1. Exceção dilatória inominada - ilegalidade do pedido

A Requerida considera que não é legítimo ao Tribunal a prática de atos administrativos ou tributários em concorrência com a AT, na medida em que o que está a ser pedido pela Requerente é que o Tribunal Arbitral profira despachos de deferimento do pedido de revisão oficiosa, competência essa que é exclusiva da AT.

A Requerente invoca que é entendimento pacífico, tanto na Jurisprudência como na Doutrina, que os atos de indeferimento de pretensões dos sujeitos passivos – i.e., atos de segundo grau ‐ poderão ser arbitráveis junto do CAAD, na condição de eles próprios terem apreciado a legalidade de um ato de liquidação de imposto – i.e., de um ato de primeiro grau.

Analisando:

Assiste razão à Requerente quando alega que decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT que estão abrangidos no âmbito da jurisdição do Tribunal Arbitral todos os tipos de atos passíveis de serem impugnados através de impugnação judicial, desde que tenham por objeto os atos mencionados nos nºs 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT, prevendo a alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT a possibilidade de apresentação de impugnação judicial no prazo de três meses contados a partir da formação da presunção de indeferimento tácito.

Desta forma, o que é pedido no presente processo não é que o Tribunal profira um despacho de deferimento do processo de revisão oficiosa, mas sim que o Tribunal julgue a legalidade das liquidações de IMI, fundamentado no direito que a lei confere ao contribuinte de reagir por via de impugnação contra uma liquidação de imposto, na sequência de um indeferimento expresso por parte da AT ou, como é o caso, na ausência de resposta da AT no prazo que a lei determina.

Improcede assim a exceção invocada pela AT.  

  1. Questão de fundo

 

  1. Tempestividade dos pedidos de revisão oficiosa 

A Requerida alega que o prazo para ser autorizada a revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço não é o previsto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, mas sim o prazo reduzido aos “três anos posteriores ao do ato tributário” previsto no n.º 4 do mesmo artigo, concluindo que, tendo em conta que a data da avaliação dos terrenos para construção ocorreu há mais de 5 anos, o pedido de revisão oficiosa é intempestivo.

Ora, dispõe o artigo 78.º, n.º 1 da LGT que “a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”

O n.º 4 da norma citada dispõe que “o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excecionalmente, nos três anos posteriores ao do ato tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte”.

Quanto a esta matéria considera o Tribunal que o prazo de revisão oficiosa aplicável é o do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, porquanto o pedido de revisão oficiosa foi dirigido contra os atos de liquidação do IMI, ainda que com base em erro de direito quanto à fixação da matéria tributável.

E, no pressuposto que essa ilegalidade deriva de um erro imputável aos serviços, o que se analisará mais à frente, a revisão do ato tributário nos termos do citado artigo 78.º, n.º1, da LGT, tem de ser admitida.

Esta posição foi, aliás, acolhida pelo TCAS no âmbito do Acórdão proferido no Proc. 2765/12.BELRS, de 31.10.2019, que se transcreve parcialmente abaixo:

(…) da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo 78.º da LGT com o disposto no artigo 115.º, n.º 1, alínea c), do CIMI, resulta que a revisão oficiosa das liquidações deve ser realizada pela administração tributária, ainda que sob impulso inicial do contribuinte, quando tenha ocorrido erro imputável aos serviços. O que se verifica, precisamente, no caso em apreço, erro esse que se traduziu até numa injustiça grave e notória concretizada na fixação de um VPT em valor claramente superior ao que resultaria das disposições legais que deveriam ter sido aplicadas. Erro esse que, independente da inércia impugnatória da recorrida após a notificação do VPT, não pode ser imputável a qualquer comportamento negligente desta, visto que o erro no cálculo e fixação do VPT ocorre num procedimento desencadeado e concretizado pela administração e que sempre justificaria a revisão ao abrigo do n.º 4 do normativo em questão, se o n.º 1 não fosse inteiramente aplicável. O que reforça o entendimento de que o direito que a recorrida reclamou, de ver as últimas quatro liquidações anteriores à reclamação serem anuladas, ter pleno apoio legal”.

Cite-se ainda o Acórdão do Tribunal Arbitral Tributário proferido no âmbito do Processo n.º 500/2020: “sendo o pedido de revisão oficiosa meio próprio para se obter a revisão de uma liquidação, mesmo quando inquinada por vicio de quantificação da matéria coletável que lhe serve de base, é meio próprio para conhecer tais questões o recurso judicial ou arbitral interposto no seguimento do silêncio administrativo quanto a tal pedido.

Assim, admitindo, como ficou dito, que o pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação pode ser formulado por erro da fixação do VPT, independentemente de ter sido ou não autonomamente impugnado, nada obsta a que se considere aplicável o referido prazo do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, o que determina que o pedido de revisão tenha sido tempestivo, dado que foi apresentado a 30 de abril de 2021, sendo de notar que, nos termos do artigo 129.º, n.º 2, do CIMI, “os prazos de reclamação e de impugnação contam-se a partir do termo do prazo para pagamento voluntário da primeira ou da única prestação do imposto”. Conclui-se assim pela tempestividade do pedido de revisão oficiosa para todas as liquidações objeto do presente PPA.

  1. Da consolidação do ato tributário que determinou o VPT; impugnabilidade dos atos de liquidação com fundamento em vícios próprios do ato de fixação do VPT

A Requerida defende que o procedimento avaliativo constitui um ato autónomo e destacável para efeito de impugnação arbitral, que, se não for impugnado nos termos e prazo fixados, se consolida na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, semelhante ao caso julgado, que a posterior liquidação tem que acolher. Não tendo a Requerente colocado em causa o valor patrimonial obtido pela primeira avaliação, requerendo uma segunda avaliação, o mesmo fixou-se, não sendo possível conhecer na posterior liquidação eventuais erros ou vícios cometidos nessa avaliação.

Invoca igualmente a Requerida que os vícios da fixação do VPT não são sindicáveis na análise da legalidade do ato de liquidação, porquanto os mesmos, sendo destacáveis e antecedentes destes, já se consolidaram na ordem jurídica.

Analisando:

Esta questão já foi tratada a propósito da exceção invocada relativamente à incompetência material deste Tribunal Arbitral. Nesta matéria, este Tribunal revê-se no entendimento proferido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 31/10/2019 (processo nº 2765/12.8BELRS) de que: “o ato de fixação do VPT (…) é encarado, de forma pacífica, como ato administrativo em matéria tributária, destacável e autonomamente impugnável. É verdade que uma vez firmada a fixação do VPT, por não ter sido utilizado qualquer dos meios de defesa ao dispor do contribuinte, nos termos do artigo 20.º do Decreto-Lei 267/2003, esse VPT servirá de base às liquidações de IMI subsequentes, até eventual alteração do seu valor. De facto, deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o VPT, nem assim fica impossibilitado de arguir a ilegalidade do VPT fixado, embora com efeitos restritos às liquidações posteriores à reclamação. Defender o contrário é o mesmo que defender a perpetuidade da conduta ilegal da Administração, o que repugna ao bom senso e ao Direito admitir”.

De notar que esta posição foi igualmente seguida em inúmeras decisões do Tribunal Arbitral. Acompanha-se as razões apontadas na decisão do processo n.º 760/2020‐T, que se transcreve abaixo:

“A nosso ver, a questão não é a de saber se a lei configura a fixação do VPT como um ato destacável, prevendo a sua impugnação judicial autónoma – o que é um facto -, mas sim saber se existem razões que obstem a que tal ato, quando surja como instrumental relativamente a um ato de liquidação, possa, também, ser objeto de apreciação em processo dirigido à impugnação desta.

Há, pois, que ponderar sobre a ratio das normas que preveem a impugnabilidade judicial autónoma de atos administrativos que constituem pressuposto de outros atos administrativos.

Estas razões serão, essencialmente, três:

(i) O ato ser imediatamente lesivo, produzir diretamente efeitos negativos na esfera do particular, o que não é o caso, pois a ablação do património pela via do imposto só acontece após a prática de um ato de liquidação.

(ii) A sindicância judicial imediata oferecer maiores garantias ao particular: é o caso, desde logo porquanto o decidido em tal recurso produzirá efeitos de caso julgado relativamente a todas as liquidações que tiverem por base o VPT impugnado.

Está, pois, presente uma intencionalidade garantística (consagração de meio de garantia mais abrangente) e não um intuito de restrição dos normais meios de garantia, como resultaria do acolhimento do pensamento sufragado pela Requerida)

(iii) Previsão legal de um “filtro” pré-judicial que possa contribuir para reduzir o número de casos que os tribunais sejam chamados a apreciar, quando a decisão dependa essencialmente de conhecimentos técnicos próprios de outras áreas do saber, que não a jurídica (o “filtro” aqui existe - a segunda avaliação dos prédios urbanos).

Porém, atenta a razão de ser destes sistemas, há que entender que a previsão da impugnabilidade direta e imediata, em processo a tal diretamente dirigido, do «resultado das segundas avaliações», como diz a lei, só se mostra «indispensável» quando esteja em causa o resultado da aplicação da lei (das normas que regulam o procedimento de avaliação) num caso concreto, pois é em tal aplicação que poderão estar envolvidos conhecimentos técnicos, não jurídicos, e não, como acontece no presente caso, quando esteja em causa a determinação da lei aplicável à avaliação. Esta é uma questão exclusivamente jurídica, para a qual, por definição, um tribunal é mais qualificado para a precisar que uma comissão de peritos avaliadores.

Em resumo, entendemos que a previsão da impugnabilidade autónoma de atos destacáveis visa, em geral, conferir maiores garantias aos particulares e não reduzir o âmbito das garantias que a lei, em geral, prevê.

Assim, tal previsão legal não deve ser entendida - salvo existindo razões substanciais que a tal se oponham, o que não acontece no presente caso - como precludindo a possibilidade de impugnação dos vícios do ato instrumental (fixação do VPT) em processo de impugnação do ato conclusivo do procedimento (liquidação). Num quadro interpretativo da lei que procura dar relevância à sua conformidade com os princípios constitucionais, não podemos subscrever, como constituindo uma regra sem exceções, o pensamento do distinto Autor em que a Requerida, no essencial, se louva.

Como referido no citado acórdão do TCA, há que não esquecer que a coberto de um VPT ilegal foram produzidas liquidações de um tributo, que foi exigido à Requerente”.

Efetivamente, ressalvando o respeito pela posição contrária, a posição acima transcrita é a única que assegura a tutela judicial efetiva, na medida em que impede que se perpetuem liquidações de IMI que assentem numa base tributável ilegalmente determinada pela AT. O argumento de que a inércia na reação contra a determinação do VPT deve inibir a possibilidade de reagir contra a liquidação é uma solução que se afigura incompatível com o elemento teleológico, uma vez que, em tese, o terreno para construção pode ter um proprietário que não o era à data da avaliação.   

Improcede assim a alegação da Requerida. 

  1. Impossibilidade de anulação administrativa

A Requerida alega, ainda, o regime do artigo 168.º do Código de Procedimento Administrativo, segundo o qual “1 - Os atos administrativos podem ser objeto de anulação administrativa no prazo de seis meses, a contar da data do conhecimento pelo órgão competente da causa de invalidade, ou, nos casos de invalidade resultante de erro do agente, desde o momento da cessação do erro, em qualquer dos casos desde que não tenham decorrido cinco anos, a contar da respetiva emissão.”

Sustenta assim que apenas são passíveis de anulação os atos de fixação dos VPT que contrariam o recente entendimento jurisprudencial nos casos em que não tenha decorrido cinco anos desde a respetiva emissão.

Ora, conforme diversas vezes aqui sustentado, o que está em causa no presente processo não é uma reação contra os atos de fixação do VPT, mas sim contra os atos de liquidação de IMI, pelo que esta alegação da Requerida não procede. 

  1. Ilegalidade das liquidações de IMI

O Requerente sustenta que os coeficientes de afetação, de localização, de qualidade e conforto, e de vetustez não eram aplicáveis aos “terrenos para construção”, por não fazerem parte da fórmula de cálculo consagrada no n.º 1 do artigo 45.º do Código do IMI na redação vigente à data do facto tributário relevante para efeitos das liquidações de IMI sub judice.

Analisando:

O artigo 45.º do Código do IMI, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, e que esteve em vigor até à alteração introduzia pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, dispunha o seguinte:

Artigo 45º

Valor Patrimonial tributário dos terrenos para construção

1 – O valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é o somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor do terreno adjacente à implantação.

2 – O valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas

3 – Na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação têm-se em consideração as características referidas no nº 3 do artigo 42º

4 – O valor da área adjacente à construção é calculado nos teros do nº 4 do artigo 40º.

5 – Quando o documento comprovativo da viabilidade construtiva a que se refere o artigo 37º apenas faça referência aos índices do PDM, devem os peritos avaliadores estimar, fundamentadamente, a respetiva área de construção, tendo em consideração, designadamente, as áreas médias de construção da zona envolvente (aditado pela Lei 64-B/2011 de 30 de dezembro).

Por seu lado, os números 3 e 4 do artigo 42º do Código do IMI dispõem que:

“3 – Na fixação do coeficiente de localização têm-se em consideração, nomeadamente, as seguintes características:

a) Acessibilidade, considerando-se como tais a qualidade e variedade das vias rodoviárias, fluviais e marítimas;

b) Proximidade de equipamentos sociais, designadamente escolas, serviços públicos e comércio;

c) Serviços e transportes públicos

d) Localização em zonas de elevado valor de mercado imobiliário.

4 – O zonamento consiste na determinação das zonas homogéneas a que se aplicam os diferentes coeficientes de localização do município e as percentagens a que se refere o nº 2 do artigo 45º.”

A norma acima citada, a qual prevê as regras de cálculo do VPT para terrenos de construção, não acolhia efetivamente quaisquer coeficientes de afetação, localização, qualidade e conforto. 

Estes coeficientes encontravam-se unicamente previstos no artigo 38º do Código do IMI, o qual não é aplicável na determinação do VPT dos prédios que tenham sido classificados como terrenos para construção.

Esta matéria já foi objeto de inúmeras decisões arbitrais, bem como pelo STA. O Acórdão proferido pelo STA, no Processo n.º 016/10, de 3 de julho de 2019, conclui que “na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não tem aplicação integral a fórmula matemática consagrada no artigo 38º do CIMI onde expressamente se prevê, entre outros, o coeficiente de qualidade e conforto. Para a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, o legislador consagrou a regra específica constante do supra referido artigo 45º do CIMI e não outra, onde se tem em conta o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à implantação, bem como as características de acessibilidade, proximidade, serviços e localização descritas no nº 3 do artigo 42.º, tendo em conta o projeto de construção aprovado, quando exista, e o disposto no nº 2 do artigo 45º do CIMI, mas não outras características ou coeficientes”.

Cite-se outras decisões no mesmo sentido, como a proferida pelo STA no âmbito do Proc. 170/16.6BELRS, de 23 de outubro de 2019, onde se decidiu que: “I – Na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção há que observar o disposto no artigo 45º do Código do IMI, não havendo lugar à consideração do coeficiente de qualidade e conforto (cq). II – O artigo 45 do CIMI é a norma específica que regula a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção. III – O coeficiente de qualidade e conforto, fator multiplicador do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38.º do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio, indústria e serviços não pode ser aplicado analogicamente por ser suscetível de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto”.

Também o Tribunal Arbitral Tributário do CAAD tem proferido inúmeras decisões no mesmo sentido das tomadas pelo STA e acima indicadas.

Em face da letra da lei e da referida orientação jurisprudencial, é de concluir que, na avaliação de terrenos para construção, não deveriam ter sido considerados, nem aplicados na determinação do VPT desses prédios, os coeficientes previstos no artigo 38º do CIMI, entre eles os coeficientes de localização, de qualidade e conforto e de afetação.

Pelo exposto, deve proceder, integralmente, o pedido efetuado pela Requerente de anulação parcial dos atos de liquidação de IMI e de reembolso do imposto indevidamente pago, devendo o imposto pago a mais ser determinado pela AT em execução da sentença, tendo por base a presente decisão arbitral.

Conforme determina a alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

Desta forma, em resultado da anulação parcial do ato tributário, há lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

Fica prejudicada a análise da questão suscitada pela Requerente de inconstitucionalidade da norma pretensamente extraída do artigo 45.º do Código do IMI, quando interpretada no sentido de os coeficientes de avaliação consagrados no artigo 38.º terem aplicação na determinação do VPT de terrenos para construção, bem como a contra-alegação produzida pela Requerida, uma vez que o Tribunal não acolhe essa interpretação.

Não colhe igualmente o argumento da Requerida de que a posição da Requerente acarretaria uma violação do princípio da igualdade tributária, privilegiando os contribuintes que em tempo não contestaram o VPT, face àqueles que o fizeram tempestivamente. Efetivamente, não se vislumbra em que medida a posição de que os atos de liquidação de IMI são contestáveis quando tenham por base uma determinação ilegal do valor tributável põe em causa o princípio da igualdade entre contribuintes.

A Requerida invoca ainda a proibição legal de prolação de pronúncia arbitral conforme a equidade, invocação que também não colhe, dado que o que está em causa no presente processo, e que fundamenta a decisão, é a determinação do valor tributável assente em critérios ilegais, e não uma decisão com base em juízos de equidade.

  1. Juros indemnizatórios

O Requerente peticiona igualmente o pagamento de juros indemnizatórios.

O artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. A alínea c) do n.º 3 da norma citada estabelece que são também devidos juros indemnizatórios “quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.

Deste modo, considerando que o pedido de revisão foi apresentado em 30 de abril de 2021, os juros indemnizatórios contar-se-ão a partir de 30 de abril de 2022 até ao reembolso integral.

  1. Decisão

De harmonia com o supra exposto, decide o Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar improcedentes as exceções invocadas pela Requerida;
  2. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando a ilegalidade parcial e anulação das liquidações de imposto contestadas;
  3. Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no reembolso do imposto pago em excesso, devendo o respetivo montante ser quantificado em execução da presente decisão arbitral;
  4. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, a contar desde 30 de abril de 2022 até ao reembolso integral do imposto pago em excesso.

 

  1. Valor do Processo

Nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, quando seja impugnada a liquidação, o valor da causa é o da importância cuja anulação se pretende. Fixa-se o valor do processo em € 20.238,58, valor este indicado pela Requerente como constituindo o valor cuja anulação se pretende, valor esse não contestado pela Requerida.

  1. Custas

Custas no montante de € 1.224,00, a cargo da Requerida, por decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

Notifique-se.

Lisboa, 22 de junho 2022

O Árbitro,

                                                       

Jorge Belchior de Campos Laires