DECISÃO ARBITRAL
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo nº 69/2014 – T
Tema: IS – isenção; art.º.7º, nº1, d), CIS.
Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Paulo Ferreira Alves e Jorge Carita, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte
I – RELATÓRIO
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No dia 28 de Janeiro de 2014, “A” - S.G.P.S., S.A, pessoa colectiva …, com o mesmo número matriculada na Conservatória do Registo Comercial do …, com sede no largo …-… Funchal, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto de Selo no montante de EUR 136.797,00, e do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa submetido pela Requerente no dia 1/07/2013, que sobre ela recaiu.
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Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que estará isenta do imposto liquidado, por força do disposto no artigo 7.º/1/d) do Código do Imposto do Selo.
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No dia 29 de Janeiro, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 14 de Março de 2014, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 9 de Abril de 2014.
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No dia 19 de Maio de 2014, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se unicamente por excepção.
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Cumprido o contraditório quanto à matéria de excepção, tendo em conta as especificidades da situação concreta, afigurou-se conveniente a este Tribunal emitir desde logo pronúncia parcial limitada às questões de excepção suscitadas nos autos pela AT, pelo que foi proferida, a 30 de Junho, decisão julgando improcedentes as excepções suscitadas, no seguintes termos:
“Para efeitos da presente decisão, consideram-se desde já assentes os seguintes fatos:
1- Em causa nos autos está a liquidação de imposto do selo, no montante de EUR 137.797,00 (centro e trinta e seis mil setecentos e noventa e sete euros), liquidado na constituição de uma hipoteca unilateral pela “B” - Sociedade de Investimento Hoteleiro, S.A., sociedade dominada pela Requerente, com sede em Lisboa, na Rua …, … - …, sobre diversos imóveis situados na Freguesia de …, Concelho de …, no dia 27 de Novembro de 2012, para garantia do cumprimento pontual e tempestivo das obrigações de reembolso do capital e do pagamento de juros devidos pela Requerente em virtude de uma emissão de Obrigações.
2- O referido imposto foi liquidado pelo notário do Cartório Notarial de “C”, sito na …, n.º …, …, Lisboa.
3- A Requerente tem sede na Região Autónoma da Madeira (RAM).
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Os fatos dados como provados decorrem da prova documental integrada nos autos.
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Alega a AT, em suma, que sendo a Requerente uma pessoa coletiva sedeada na RAM, será o respectivo Governo Regional (GRM) o sujeito ativo da relação jurídico-tributária em questão nos autos.
Ora, não tendo aquela entidade aderido à jurisdição arbitral do CAAD, serão os tribunais arbitrais a funcionar neste Centro, na perspetiva sustentada pela AT, incompetentes para a apreciação da legalidade do ato tributário impugnado.
Para além disso, sendo o sujeito ativo da relação jurídico-tributária controvertida o GRM, verificar-se-ia nos autos, ainda na perspetiva sustentada pela AT, uma situação de ilegitimidade passiva, já que é esta, e não aquele, que ora assume a posição de Requerida.
Vejamos, então.
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Quanto ao quadro legal aplicável, de acordo com o art.º 21.º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas (Lei Orgânica 1/2007, de 19 de fevereiro, que revogou a Lei 13/98 de 24 de fevereiro e que foi, entretanto, ela própria revogada pela LO 2/2013, de 2 de setembro):
“1 - Constitui receita de cada Região Autónoma o imposto do selo devido por sujeitos passivos referidos no n.º 1 do artigo 2.º do Código do Imposto do Selo que:
a) Disponham de sede, direcção efectiva, estabelecimento estável ou domicílio fiscal nas Regiões Autónomas;
b) Disponham de sede ou direcção efectiva em território nacional e possuam sucursais, delegações, agências, escritórios, instalações ou quaisquer formas de representação permanente, sem personalidade jurídica própria nas Regiões Autónomas.
2 - Nas situações referidas no número anterior, as receitas de cada Região Autónoma são determinadas, com as necessárias adaptações, nos termos das regras da territorialidade previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo, relativamente aos factos tributários ocorridos nessas Regiões, devendo os sujeitos passivos proceder à discriminação nas respectivas guias do imposto devido.”.
A titularidade das receitas provenientes do IS, da parte da RAM, é definida, não apenas pelo n.º 1 do artigo que se vem de transcrever – único que é citado pela AT – mas, antes, pela conjugação dessa norma com a do número 2.
Ora, operada tal conjugação verifica-se que apenas serão receitas da RAM, as decorrentes dos fatos tributários ocorridos no respetivo território, em função das regras da territorialidade previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo.
De resto, as coisas não poderiam ser de outra maneira, sob pena de, face à amplitude da previsão do n.º 1 do artigo 21.º citado, serem deferidas à RAM grande parte, senão a maioria, das receitas do IS. Efetivamente, se se entendesse que pertence à RAM, como parece sustentar a AT, todo o IS devido por sujeitos passivos que:
a) Disponham de sede, direção efectiva, estabelecimento estável ou domicílio fiscal nas Regiões Autónomas;
b) Disponham de sede ou direcção efectiva em território nacional e possuam sucursais, delegações, agências, escritórios, instalações ou quaisquer formas de representação permanente, sem personalidade jurídica própria nas Regiões Autónomas.
Então o IS devido por todos os sujeitos passivos com atividade a nível nacional seria destinado àquela Região, já que tais sujeitos passivos, naturalmente, terão, por norma, pelo menos uma forma de representação permanente na mesma.
Deste modo, a única leitura razoável, que, de resto, se coaduna com o próprio teor literal das normas em causa, é, conforme se apontou, a de que apenas serão receitas da RAM, as provenientes do referido grupo de sujeitos passivos, desde que decorrentes dos fatos tributários ocorridos no respetivo território, em função das regras da territorialidade previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo.
No caso dos presentes autos, o facto tributário ocorreu, notoriamente, no território do Continente, e não da RAM, pelo que o imposto a que aquele deu causa, não deverá ser, desde logo e independentemente do mais, considerado receita daquela região.
Prosseguindo, e de acordo com o art.º 51.º da referida LFRA:
“1 - As competências administrativas regionais, em matéria fiscal, a exercer pelos governos e administrações regionais respectivas, compreendem:
a) A capacidade fiscal de as Regiões Autónomas serem sujeitos activos dos impostos nelas cobrados, quer de âmbito regional quer de âmbito nacional, nos termos do n.º 2; (...)”.
A norma transcrita confirma, precisamente, o que vem de se dizer, ao dispor que as RRAA podem ser sujeitos activos dos impostos, quer de âmbito regional quer de âmbito nacional, desde que nelas cobrados, o que, manifestamente, se viu não ser o caso, já que estamos perante um imposto de âmbito nacional – o IS – cobrado no Continente.
Daí que, e em suma, se entenda não assistir razão à AT quando afirma que o GRM é o sujeito ativo da relação jurídico-tributária controvertida.
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Acresce ainda, como bem aponta a Requerente, que, sem prejuízo daquela ser a onerada com o encargo do tributo que contesta, nos termos dos n.ºs 1 e 3, alínea e), do artigo 3.º do CIS, o sujeito passivo do mesmo é o notário que outorgou a escritura, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do mesmo Código, que, conforme se determinou acima, está sedeado na … n.º…, …, Lisboa, não se reconduzindo, como tal, a qualquer das previsões do n.º 1 do artigo 21.º da LFR.
Nota-se ainda, tendo em conta a referência que é feita pela AT ao artigo 1.º/2 do Decreto-Lei 18/2005 de 18 de janeiro, que uma coisa é a administração e gestão dos impostos, outra é a administração e gestão das receitas fiscais por aqueles geradas.
Quanto ao n.º 1 do mesmo artigo 1.º, também referido pela AT , entende-se que apenas comportará a transferência para a RAM das atribuições e competências fiscais próprias da Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira e de todos os serviços dela dependentes, e não outras competências exercidas por delegação ou por qualquer forma de representação de outros órgãos.
Nada obsta ao que vem de se dizer quer o Despacho conjunto n.º 309-F/2005, de 19 de Abril, quer o Decreto Regulamentar Regional n.º 2/2013/M, já que tais diplomas se referem única e exclusivamente, como não podia deixar de ser, às competências que, nos termos da Lei da República, são conferidas à RAM.
Por tudo o que vem de se expor, não estando – nem devendo, legalmente, estar – em causa nos autos qualquer receita legalmente cometida à RAM, nem sendo – nem devendo, legalmente, ser – o GRM sujeito passivo da relação jurídico-tributária controvertida, não se verifica, igualmente, qualquer inconstitucionalidade, ao contrário do sustentado pela AT (artigo 35.º da sua resposta).
Conclui-se, assim, em suma, que nenhum dos argumentos convocados pela AT é susceptíveis de sustentar quer a excepção da incompetência material deste tribunal arbitral para apreciar a matéria sub iudice, quer a excepção da ilegitimidade passiva, pelo que deverão as mesmas improceder.”
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Posteriormente, notificadas para o efeito, ambas as partes vieram aos autos comunicar que prescindiam da realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, pelo que a realização da primeira reunião do Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no referido artigo do RJAT, foi dispensada, atendendo a que, no caso, não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, e que o processo arbitral se rege pelos princípios da economia processual e proibição da prática de actos inúteis.
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Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, a Requerente quedou-se silente, enquanto a AT exerceu esse direito, apresentando a sua posição sobre a questão de fundo que se coloca nos autos.
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Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações da AT, prazo esse que foi posteriormente prorrogado até ao fim do mês de Novembro do corrente.
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O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
Tudo visto, cumpre proferir
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- Na sequência da aprovação de um empréstimo obrigacionista no montante total de €20.000.000,00 (vinte milhões de euros), as respectivas obrigações foram colocadas ao abrigo de um contrato de colocação com garantia de subscrição celebrado entre a Requerente e o “D” ("D").
2- O “D” foi mandatado para representar a Requerente no referido processo, nomeadamente para a representar perante a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, a “E” – Sociedade Gestora de Sistemas de Liquidação e de Sistemas Centralizados de Valores Mobiliários, S.A e a Agência Nacional de Codificação, tendo ainda sido designado como agente pagador dos montantes referentes a juros e amortizações de capital devidos aos titulares das Obrigações.
3- A emissão das Obrigações ocorreu no dia 11 de Dezembro de 2012.
4- A creditação ou "entrega" da quantidade de Obrigações emitidas na conta de intermediário financeiro aberta pelo “D” na CVM, foi realizada na “E”.
5- Em virtude dessa operação, a emissão das Obrigações ficou inscrita na Central de Valores Mobiliários ("CVM"), um sistema centralizado de valores mobiliários gerido pela “E” - Sociedade Gestora de Sistemas de Liquidação e de Sistemas Centralizados de Valores Mobiliários, S.A., em conformidade com o disposto no Regulamento da “E” n.º …/2000, conforme alterado ("Regulamento da CVM"), tendo sido atribuído pela “E” à inscrição o código … e à emissão das Obrigações o código internacional de identificação de valores mobiliários (ISIN) PT….
6- Para garantia do cumprimento pontual e tempestivo das obrigações de reembolso do capital e do pagamento de juros devidos pela Requerente em virtude da emissão das obrigações, a “B” - Sociedade de Investimento Hoteleiros, S.A., enquanto sociedade dominada pela Requerente, constituiu uma hipoteca unilateral mediante escritura pública outorgada no dia 27 de Novembro de 2012 sobre diversos imóveis identificados naquela escritura, incluindo capital, juros e despesas, até ao montante máximo de € 27.359.400,00 (vinte e sete milhões trezentos e cinquenta e nove mil e quatrocentos euros).
7- Pela constituição da hipoteca foi liquidado o montante de € 136.797.00 (cento e trinta e seis mil setecentos e noventa e sete euros) a título de Imposto do Selo, montante que a Requerente entendeu não ser devido, tendo para o efeito apresentado, em 1/07/2013, um pedido de revisão oficiosa, que não foi decidido no prazo legalmente previsto para o efeito.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
B. DO DIREITO
Antes de prosseguir com a análise do fundo da questão, cumpre fazer uma referência à excepção da ilegitimidade da Requerente, suscitada, novamente (agora com diferentes fundamentos), pela Requerida.
Ressalvado o respeito devido a outras opiniões, entende-se que a alegação em causa é extemporânea e encontra-se precludida face ao caso julgado formado pela decisão parcial proferida a 30 de Junho de 2014, que apreciou já a questão da legitimidade da Requerente.
Com efeito, e para além do mais, o art.º 18.º é inequívoco no sentido de que a apreciação da matéria de excepção, e, consequentemente, a respectiva alegação, ocorre antes da fase de produção de alegações.
De resto, nem poderia ser de outra forma, já que, atento o princípio do carácter sucessivo das alegações de direito em processo tributário, não haveria possibilidade de pronúncia dos requerentes relativamente à matéria e excepção.
Acresce, ainda que nos autos, não houve qualquer despacho que, dentro dos poderes da livre fixação da tramitação processual pelo Tribunal, haja disposto diferentemente em tal matéria.
Não quer isto dizer que matérias de conhecimento oficioso, como é o caso da legitimidade, não possam/devam ser conhecidas pelo Tribunal, respeitado o contraditório, e ainda que incidentalmente suscitadas pelas partes. Contudo, e no caso, uma vez que foi proferida nos autos decisão parcial sobre a matéria de excepção em causa nos autos, incluindo a legitimidade da Requerente, entende-se que já se terá formado, nessa parte, caso julgado, pelo que estará vedado a este Tribunal conhecer tal questão, conforme agora (re) colocada pela AT.
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Avançando, então para o fundo da questão, em causa nos presentes autos, está a aplicação da norma do artigo 7.º/1/d) do Código do Imposto do Selo, que dispõe que:
“1 - São também isentos do imposto: (...)
d) As garantias inerentes a operações realizadas, registadas, liquidadas ou compensadas através de entidade gestora de mercados regulamentados ou através de entidade por esta indicada ou sancionada no exercício de poder legal ou regulamentar, ou ainda por entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM, que tenham por objecto, directa ou indirectamente, valores mobiliários, de natureza real ou teórica, direitos a eles equiparados, contratos de futuros, taxas de juro, divisas ou índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas;”.
Entende a Requerente que tal norma a isenta do imposto que lhe foi liquidado e contra o qual se insurge nos autos, sustentando a AT, precisamente, o contrário.
Vejamos, então.
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Conforme, com precisão, aponta a AT, o ónus da prova na matéria que nos ocupa, impende sobre a Requerente. Em cumprimento do disposto no artigo 74.º/1 da LGT, sendo a Requerente quem se pretende prevalecer do regime da norma legal transcrita, será contra ela que se terá de decidir, caso não estejam devidamente provados, nos autos, os pressupostos de tal norma.
Para que um garantia, nos termos do normativo em questão, esteja isenta de IS, será, então, necessário que:
a) seja inerente a operações realizadas, registadas, liquidadas ou compensadas através de:
i. entidade gestora de mercados regulamentados;
ii. entidade indicada ou sancionada por entidade gestora de mercados regulamentados, no exercício de poder legal ou regulamentar;
iii. entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM.
b) e tenham por objecto, directa ou indirectamente, valores mobiliários, de natureza real ou teórica, direitos a eles equiparados, contratos de futuros, taxas de juro, divisas ou índices sobre valores mobiliários, taxas de juro ou divisas.
O requisito a que alude a al. b) supra, é consensualmente reconhecido por ambas as partes como, in casu, verificado. A garantia em causa – hipoteca – destina-se a cobrir as responsabilidades da Requerente no quadro de um empréstimo obrigacionista, sendo que, consabidamente, as obrigações são valores mobiliários.
Daí que cumpra apenas aferir se, face aos factos dados como provados, está demonstrado que a operação relativa aos valores mobiliários causais da garantia tributada pela liquidação ora em crise, foi realizada, registada, ou compensada através de uma das entidades descritas nos pontos a)i. ou a)ii. supra.
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Estando dado como provado que a operação em causa foi registada na “E”, tendo-lhe sido atribuído “o código … e à emissão das Obrigações o código internacional de identificação de valores mobiliários (ISIN) PT….”[1], resta apurar se aquela entidade – a “E”– é ou não uma:
i. entidade gestora de mercados regulamentados;
ii. entidade indicada ou sancionada por entidade gestora de mercados regulamentados, no exercício de poder legal ou regulamentar; ou
iii. entidade gestora de mercados organizados registados na CMVM.
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A norma ora em apreciação reporta-se directamente a conceitos relativos aos mercados de valores mobiliários cujo regime central está fixado no Código de Valores Mobiliários.
Compulsado o referido diploma, verifica-se que, se é relativamente fácil obter um conceito de “mercados regulamentados”, não é, ali, efectuada qualquer definição do que sejam “mercados organizados”.
Assim, se o primeiro dos conceitos é de fácil e imediata apreensão – mercados organizados serão aqueles que correspondam à respectiva definição do CVM – o segundo requer já alguma elaboração doutrinal.
Como refere António Soares[2], “Para o novo Código dos Valores Mobiliários a grande distinção é agora, à semelhança do que já ocorre com a Directiva 93/22/CEE (Directiva de Serviços de Investimento), entre mercados regulamentados de valores mobiliários e outros mercados organizados.”.
Continuando com o mesmo autor:
“Para além dos mercados regulamentados prevê ainda o novo Código dos Valores Mobiliários a possibilidade de existirem outros mercados organizados de valores mobiliários, os quais funcionarão de acordo com as regras que para o efeito venham a ser livremente estabelecidas pela respectiva entidade gestora. Contrariamente ao que sucede com os mercados regulamentos, cuja criação depende de autorização do Ministro das Finanças, a prestar através de Portaria, a constituição de mercados organizados não regulamentados passa a ser livre, afastando-se também aqui o novo Código dos Valores Mobiliários do Código do Mercado de Valores Mobiliários que fazia depender a criação de qualquer mercado secundário de valores mobiliários de autorização prévia do Ministro das Finanças. A criação de mercados não regulamentados deixa portanto de ficar sujeita a qualquer autorização, dependendo o seu funcionamento apenas de um controlo prévio da respectiva legalidade por parte da CMVM, o que ocorrerá no momento em que se deva proceder ao respectivo registo junto dessa entidade. Admite ainda o novo Código dos Valores Mobiliários a criação de mercados organizados em que haja intervenção directa dos investidores institucionais que assumirão, para o efeito, a qualidade de membros desse mercados – n.º 3 do artigo 203º – do novo Código dos Valores Mobiliários ou de mercados em que a função tradicional dos membros pode ser exercida pela respectiva entidade gestora – n.º 6 do artigo 203º do mesmo diploma legal.”
É neste contexto que o art.º 198.º do CVM dispõe que:
“1 - É permitido o funcionamento em Portugal, sem prejuízo de outras que a CMVM determine por regulamento, das seguintes formas organizadas de negociação de instrumentos financeiros:
a) Mercados regulamentados;
b) Sistemas de negociação multilateral;(...) ”[3]
Verifica-se, então, que a “E” não é uma entidade gestora de mercados regulamentados[4], ou organizados. Colocar-se-á a questão de saber se é uma “entidade indicada ou sancionada por entidade gestora de mercados regulamentados, no exercício de poder legal ou regulamentar.”.
O conceito de “indicada ou sancionada” não é retirável da legislação relativa a mercados de valores mobiliários pelo que terá que ser construído pelo intérprete.
Em tal percurso hermenêutico, ter-se-á de ter em conta o contexto da norma interpretanda que se refere a “operações realizadas, registadas, liquidadas ou compensadas através de entidade gestora de mercados regulamentados”.
Ora, como, de resto, aponta a Requerente, no quadro do actual sistema de organização dos mercados de valores mobiliários, e como se verá mais abaixo, as entidades gestoras de mercados regulamentados estão vedadas de exercer, cumulativamente, as actividades de Gestão de Sistemas Centralizados, Compensação e Liquidação, que integram o objecto social da “E”.
Daí que, desde logo, a referências da norma em causa do CIS, à liquidação e compensação através de entidade gestora de mercados regulamentados, se haja de ter por desfasada da realidade jurídica a que se dirige.
Complementarmente, a interpretação dos conceitos de “indicada ou sancionada”, devem compreender-se como reportando-se a uma relação funcionalmente próxima, no quadro do sistema de mercados de valores mobiliários em vigor.
Nesse sentido, considerar-se-ão como indicadas ou sancionadas por entidades gestoras de mercados regulamentados, aquelas que, no quadro da orgânica de funcionamento do mercado regulamentado, se encontram num elevado grau de integração com a entidade gestora.
Ora, é público e notório – sendo revelado, para além do mais, por uma simples pesquisa electrónica, e exteriorizado nos vários regulamentos publicados – que a “E”, para além de ser detida (à data do facto tributário em questão no processo) em 100% pela Euronext (entidade gestora de mercado regulamentado[5]), é a operadora do sistema de liquidação das operações realizadas por aquela no mercado regulamentado cuja gestão está entregue àquela.
Ora, o artigo 207.º/5 do CVM dispõe que:
“Os membros de mercado regulamentado e sistema de negociação multilateral podem designar o sistema de liquidação de operações por si realizadas nesse mercado ou sistema se:
a) Existirem ligações e acordos entre o sistema de liquidação designado e todos os sistemas ou infra-estruturas necessários para assegurar a liquidação eficiente e económica da operação em causa; e
b) A CMVM não se opuser por considerar que as condições técnicas para a liquidação de operações realizadas no mercado ou sistema, através de um sistema de liquidação diferente do designado pela entidade gestora desse mercado ou sistema, permitem o funcionamento harmonioso e ordenado do mercado de instrumentos financeiros.”[6]
Sendo, então a “E” a gestora do sistema de liquidação de operações realizadas no mercado regulamentado cuja gestão está entregue à Euronext, designada por esta no âmbito do poder legal que o referido artigo 207.º/5 lhe confere, conclui-se, assim, que a “E” preencherá o requisito legal de constituir uma “entidade indicada ou sancionada por entidade gestora de mercados regulamentados no exercício de poder legal ou regulamentar.”.
Assim, mostrando-se preenchidos os pressupostos do artigo 7.º/1/d) do CIS, e gozando, consequentemente, a Requerente da isenção aí consagrada, deverá o presente pedido arbitral ser julgado procedente.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular a liquidação de IS objecto dos presentes autos, com todos os efeitos legais daí decorrentes;
b) Condenar a AT nas custas do processo, no montante de €3.060,00.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €136.797,00, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €3.600,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi apenas totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa
30 de Novembro de 2014
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho - Relator)
O Árbitro Vogal
(Paulo Ferreira Alves)
O Árbitro Vogal
(Jorge Carita)
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Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.
[1] Não se trata aqui de qualquer “equivalência” a registo. A inscrição é um acto de registo, como o são o averbamento e o cancelamento, por exemplo. Considera-se, assim, que a inscrição, pressupõe, justamente, um registo onde ocorre, sendo que no caso, tal registo é expressamente referido como tal, no Aviso 3/2004 da “E”.
Questão diferente, que é a que se aborda de seguida, é se a “E” é, ou não, uma entidade das referidas na norma sob aplicação, o que, obviamente, condiciona a relevância do registo para efeitos de tal norma.
[2] “Mercados Regulamentados e Mercados Não Regulamentados” in Cadernos da CMVM, N.º 7 - Abril 2000, p. 281 e s..
[4] A própria requerente o reconhece, no artigo 51.º do seu Requerimento Inicial.