SUMÁRIO:
- Existindo contrato promessa de venda de um imóvel e tradição da posse do mesmo, o facto gerador de imposto ocorre neste último momento, por força do disposto na al. a) do n.º 3 do artº 10 do CIRS.
- Em tais casos, é ilegal a liquidação que tenha subjacente a realização da escritura do negócio prometido.
DECISÃO ARBITRAL
A..., NIF..., apresentou, nos termos legais, pedido de constituição de tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
-
O pedido
A Requerente pede a anulação da liquidação de IRS nº. 2020..., bem como da liquidação de juros compensatórios e demonstração de acerto de contas que lhe estão associadas, as quais implicam um pagamento no montante de € 101.072,84
Pede ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
-
Posição das partes
A Requerente entende, em suma, que ela e o seu falecido marido “alienaram”, onerosamente, em 1993, um imóvel de que eram proprietários, muito embora, pelo circunstancialismo que a seguir se referirá no probatório, a escritura pública de tal venda apenas tenha tido lugar em 2016.
Assim, consideram que o facto gerador de imposto ocorreu em 1993, e que, portanto, é à luz das circunstâncias factuais que se verificavam nessa data e da lei que lhes era aplicável que deve ser determinada a sua obrigação de imposto (em IRS, categoria G – mais-valias imobiliárias). E que a liquidação impugnada sempre estaria ferida de caducidade.
A título subsidiário, invoca a ilegalidade da tributação presuntiva, feita nos termos do artigo 44º nº. 2 CIRS, por considerar ter feito prova que o valor recebido foi inferior ao do VPT do imóvel em 2016.
Na sua resposta, a Requerida sustenta não estar provada a ocorrência de um dos elementos do facto gerador de imposto (tradição da posse do imóvel) em 1993 e a irrelevância da outorga de uma “procuração irrevogável”, pelo que conclui que a obrigação de imposto só “nasceu” com a realização da escritura pública, sendo, portanto, relevantes, em termos de liquidação, as circunstâncias factuais que se verificavam nessa data e a lei que lhes é aplicável.
Mais, sustenta que só pela realização da escritura teve conhecimento da alienação, pelo que a liquidação impugnada é tempestiva (não ferida de caducidade) e que não enferma de qualquer ilegalidade.
Relativamente ao pedido subsidiário, conclui pela impossibilidade de ilisão da presunção legal.
-
Tramitação processual
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 03/12/2020.
A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a designação dos árbitros que integram este coletivo competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição.
Os árbitros designados aceitaram tempestivamente a nomeação.
O tribunal arbitral ficou constituído em 03-05-2021.
A Requerida apresentou, tempestivamente, a sua resposta.
Em 15/06/2021, foi ouvida a testemunha arrolada pela Requerente, conforme consta da respetiva ata.
Em tal sessão, a Requerida foi notificada para juntar um documento, tido de interesse para a decisão da causa. A Requerida veio informar, em 07-06-2021, que tal documento era o por si já junto com a resposta.
As partes apresentaram tempestivamente alegações escritas, nas quais mantiveram as suas posições iniciais.
II - SANEAMENTO
O Tribunal encontra-se regularmente constituído, é competente e a ação é tempestiva. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas. O processo não enferma de nulidades e não existem exceções de que cumpra conhecer.
III – PROVA
III.1 - Factos provados
-
Em 24/02/1955, a Requerente e o seu marido, B... adquiriram o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo... da freguesia da ... (mais tarde, artigo ... e, posteriormente, artigo ...).
-
Em 13/10/1987, por contrato promessa escrito, a Requerente e o seu marido prometeram vender tal imóvel a C..., pelo preço de 72.500.000$00 (correspondentes a € 361.628,23).
-
De tal contrato consta que o promitente comprador declara que “desde já renuncia a qualquer direito de retenção sobre o imóvel, obrigando-se a entregá-lo completamente livre e desocupado em caso de resolução, declaração de nulidade ou anulação do presente contrato"' (número 1 da cláusula Sexta) e que ambas as partes declaram que “a partir desta data, os consumos de água, eletricidade, telefone e taxas de saneamento ficam a cargo do PROMITENTE COMPRADOR, cabendo-lhe também o pagamento dos respetivos alugueres mensais"" (cláusula Quinta)
-
O promitente-comprador foi adiando sistematicamente a realização da escritura, não comparecendo nas datas e cartórios notarias indicados pela Requerente e marido, apesar das sucessivas interpelações destes, a última das quais sob a forma de notificação judicial avulsa.
-
Pelo que a Requerente e o seu marido se viram obrigados a intentar contra ele e sua mulher uma ação judicial de execução específica que correu termos no 15º Juízo Cível de Lisboa sob o nº. ... .
-
Tal processo terminou por transação, em 23/03/1993, homologada judicialmente, nos termos da qual:
- a Requerente e o seu marido desistiram do pedido formulado por terem recebido do Réu a parte remanescente do preço acordado;
- “a escritura definitiva de compra e venda do prédio objeto da ação será celebrada quando o R. desejar”;
- “ a partir da presente data, todos os impostos e taxas respeitantes ao prédio dos autos serão pagos pelo R.”.
-
A Requerente e o seu marido outorgaram a favor do mandatário do promitente-comprador, uma “procuração irrevogável”, conferindo-lhe poderes para a outorga da escritura de venda e compra do imóvel.
-
De tal procuração consta que a mesma é conferida “no interesse do Sr. Dr. C... (…), ficando o procurador dispensado de prestar contas, por [os mandantes] já terem recebido a totalidade do preço ajustado.”
-
C... instalou a sua residência no referido imóvel, tendo feito as obras que considerou necessárias.
-
E passou a suportar os encargos fiscais relativos a tal prédio.
-
A partir de, pelo menos, essa data, a Requerente e marido nunca mais tiveram qualquer contacto com o Imóvel ou tomaram quaisquer decisões a ele relativas, por considerarem ser C... e mulher os proprietários do mesmo.
-
Em 2013, a Requerente, em resposta a uma notificação relativa à atualização das matrizes prediais, remeteu ao Chefe de Finanças de Cascais ... a carta junta como doc. 12 ao requerimento inicial, na qual sintetizou os factos dados como provados nas alíneas anteriores, concluindo que “a responsabilidade desta situação insólita é, pois, do promitente comprador, Sr. C..., que, além do mais, detém a posse do imóvel há cerca de 25 anos”.
-
Em 13/04/2016, C..., no uso de um substabelecimento da procuração que fora outorgada ao seu mandatário, vendeu, por escritura pública, o referido prédio a D... .
-
Por a Requerente não ter declarado a alienações do imóvel, AT procedeu à liquidação oficiosa do imposto, considerando que:
- a alienação havia acontecido em 2016, ou seja, na data da celebração da escritura pública.
- a Requerente havia adquirido 50% do imóvel em 1955 e igual quota por óbito do seu marido.
- o valor de alienação a ser considerado era o do VPT do imóvel, porque superior ao preço declarado da venda.
-
O marido da Requerente faleceu em 1998.
Os factos dados como provados em i) e j) e K), além de conformes ao teor do contrato-promessa e coerentes com os termos da transação judicial, foram confirmados pela testemunha, a qual, na opinião do tribunal arbitral, depôs (apenas) sobre o que era do seu conhecimento pessoal, com rigor e escrúpulo, dizendo a verdade.
O depoimento da testemunha confirmou as conclusões que, segundo as regras de experiência, o tribunal arbitral também extrairia dos demais factos dados como provados, em particular as circunstâncias que envolveram a transação judicial, a qual implicou a desistência da execução específica do contrato promessa e a outorga da procuração irrevogável.
O facto dado como provado em k) foi, também, confirmado pela testemunha, que afirmou ter sido ela própria a proceder à entrega de tal carta no Serviço de Finanças de Cascais ... .
Todos os demais factos dados como por provados constam de documentos juntos aos autos, não tendo sido objeto de controvérsia.
III.2 - Factos não provados
A Requerente não alegou nem provou ter procedido ao pagamento do imposto devido em razão da liquidação impugnada.
Não existem outros factos não provados relevantes para a decisão a causa.
IV- O DIREITO
O artigo 10.º do CIRS, sob a epígrafe Mais-valias, dispõe, no que releva para o presente caso:
1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis;
(…)
3 - Os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no n.º 1, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes:
a) Nos casos de promessa de compra e venda ou de troca, presume-se que o ganho é obtido logo que verificada a tradição ou posse dos bens ou direitos objeto do contrato;
(…)
Temos assim que a lei configura duas diferentes hipóteses em que considera ter ocorrido o facto gerador de imposto: uma - que corresponderá à situação regra - é a alienação do imóvel (ou seja, a celebração da escritura pública); outra, é a tradição ou (sic) posse dos imóveis objeto de um contrato promessa de compra e venda.
Havendo contrato promessa e tradição da posse, a lei considera, pois, outro facto gerador de imposto que não a alienação. O que fez, certamente, com intuito de evitar formas de diferimento da tributação.
A lei não estabelece uma opção, segundo a qual a AT poderia «escolher» o facto gerador, tributar a transmissão da posse ou a alienação.
Uma tal interpretação é de recusar liminarmente em virtude do princípio da tipicidade da lei de imposto, em matéria de elementos essenciais, a qual exclui em absoluto a concessão de quaisquer poderes discricionários à AT nestes domínios.
A questão que cumpre decidir é, assim, simples: dada como provada, sem objeção, a existência de um contrato promessa, celebrado em 1987, verificou-se a tradição da posse, passou a existir posse pelo promitente comprador?
Se sim, haverá que determinar a data em que tal posse se iniciou (se verificou, no dizer da lei). Esta será a data da ocorrência do facto gerador.
A questão que cumpre apreciar nada tem, pois, a ver com a relevância da outorga de uma procuração irrevogável, como sustenta a AT, pela simples razão de que tal facto, para efeitos de IRS, não é, só por si, equiparável a uma alienação diferentemente do que acontece relativamente ao IMT.
Dos factos dados por provados em i) a k) há que concluir que, pelo menos a partir da data da transação judicial (1993), se não antes, o promitente-comprador adquiriu a posse do imóvel, pois não só passou a ter, em exclusivo, a sua detenção (nele instalando a sua residência de família) – preenchendo assim o elemento material da posse, o corpus – como passou atuar como seu proprietário, nomeadamente fazendo obras, sem qualquer intervenção ou autorização do anterior proprietário, o promitente vendedor, passou a pagar os encargos inerentes à propriedade do imóvel, ou seja, passou a agir como se fosse ele o seu proprietário – animus.
Uma posse pública, porque à vista de todos, e pacífica, porque expressamente consentida pelos anteriores proprietários/possuidores.
Verifica-se, pois que, pelo menos em 1993, ocorreu o facto gerador de imposto previsto no citado n.º 3 do art. 10º do IRC.
Era, pois, relativamente a esse facto gerador, tendo presentes os factos relevantes tal como se verificavam em tal ano e a lei a eles aplicáveis que cumpria à AT fazer a liquidação.
A liquidação impugnada é assim totalmente ilegal, porquanto tem como pressuposto um facto que, é certo, a lei configura como sendo gerador da obrigação de imposto, mas cuja relevância resulta prejudicada pela ocorrência de outro facto gerador de imposto, anterior.
Assim sendo, resulta irrelevante saber se ocorreu ou não a caducidade do direito à liquidação, pois tal questão só se poderia colocar se a liquidação impugnada tivesse subjacente o facto gerador previsto no corpo do n.º 3 do art. 10º do IRC (escritura de alienação do imóvel), o que não é o caso, pelo que o conhecimento de tal questão resulta prejudicado.
Como resulta também prejudicado o conhecimento do vício que a Requerente alegou a título subsidiário.
Uma consideração final: em 1993, o marido da Requerente ainda era vivo, pelo que, em relação a ambos os cônjuges era aplicável o disposto no artº 5º do DL n.º 442-A/88[1], ou seja, o desconhecimento da tradição do imóvel, argumento em que a AT, na resposta, sustenta, em larga medida, o seu entendimento – surge como irrelevante em termos de arrecadação de receita, pois, mesmo tendo tido a AT conhecimento oportuno de tal facto, também não haveria lugar a imposto.
V - Juros indemnizatórios
Nos termos do n.º 1 do art. 43º da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
O primeiro pressuposto está verificado: existiu erro imputável aos serviços na liquidação impugnada, da autoria da AT, uma vez que foi feita uma errónea aplicação da lei.
Porém, a Requerente não fez prova do pagamento do imposto indevidamente liquidado.
Tal não prejudica o posterior reconhecimento de tal direito – caso se confirmem os seus pressupostos -, atento o disposto no n.º 2 do art.º 61º do CPPT.
V – Decisão
Anula-se, na totalidade, a liquidação impugnada, devendo a AT, como é de lei, extrair todas as legais consequências, nomeadamente devolvendo à Requerente o montante que haja pago indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios.
CUSTAS pela Requerida, por ter sido total o seu decaimento, que se fixam em € 3.060,00.
VALOR: € 101.072,84
Lisboa, 20 de Agosto de 2021
O Árbitro – Presidente
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
O Árbitro-vogal
Rui Duarte Morais
O Árbitro-vogal
Martins Alfaro
(Tem voto de conformidade nos termos do disposto no artigo 15.°-A, do Decreto-Lei n.° 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo artigo 3.°, do Decreto-Lei n.° 20/2020, de 1 de Maio).
[1] Segundo o qual os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965 só ficaram sujeitos a IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efetuada depois da entrada em vigor deste Código