SUMÁRIO:
I - A questão do apuramento do imposto devido a final pelo titular dos rendimentos pagos ou colocados à disposição, é uma questão prévia à da responsabilização do substituto tributário, a título solidário ou subsidiário, pelo seu pagamento, pois o facto tributário de que deriva tal responsabilidade é a dívida da prestação tributária (imposto) efetivamente devida e não das quantias que, de acordo com as tabelas em vigor, deveriam ter sido objeto de retenção na fonte.
II - Os quantitativos apurados no Relatório dos Serviços de Inspeção Tributária, na base da liquidação objeto dos autos, não podem ser exigidos à Requerente, por não corresponderem ao imposto devido, pelo qual seria solidariamente responsável, mas tão só às retenções na fonte a que esta estaria obrigada e que não consubstanciam valores certos, líquidos e exigíveis.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
Em 10 de novembro de 2020, A..., S.A, com o NIPC ... e sede em ... Maia, (adiante designada por Requerente), na qualidade de sociedade incorporante de B..., LDA, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 10.º e seguintes, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.
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Objeto do pedido:
A Requerente pretende a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação adicional de IRS (retenções na fonte) com o n.º 2020 ... e respetivos juros compensatórios, emitida em nome da sociedade B..., LDA e referente ao ano de 2017, no valor de € 17 061,03, assim como o consequente reembolso das quantias indevidamente pagas, acrescidas de juros indemnizatórios.
B. Síntese da posição das Partes
a. Da Requerente:
Como fundamentos do pedido, a Requerente alega, em síntese, o seguinte:
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A Requerente é parte legítima, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 18.º e no artigo 95.º, por transmissão de todos os seus direitos e obrigações da sociedade incorporada, B... UNIPESSOAL, LDA (alínea a) do artigo 112.º, do Código das Sociedades Comerciais);
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A Requerente, que tem por objeto social o “exercício da atividade de gestão e consultoria de instalações desportivas e de health clubs, bem como a gestão e exploração de ginásios, educação física, fisioterapia, estética, massagens, tratamentos de beleza e saúde, restauração, formação, investimentos”, foi alvo de um procedimento inspetivo, de natureza externa e âmbito geral com incidência no exercício de 2017;
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No âmbito desse procedimento inspetivo foram efetuadas correções relativas a retenções na fonte de IRS pela quantia de € 15 333,00, no pressuposto de as importâncias pagas pela Requerente aos seus trabalhadores não respeitarem a efetivas compensações pela utilização de viatura própria ao serviço da entidade patronal, mas antes a rendimentos sujeitos e não isentos de IRS, enquadráveis na Categoria A;
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Serve-se a AT do preceituado na alínea h) do n.º 1 do artigo 23.º A do CIRC, para sustentar que os referidos encargos não são dedutíveis; no entanto, a Requerente disponibilizou à AT diversos boletins itinerários, de que constam o local e o objetivo da deslocação, a identificação da viatura e respetivo proprietário e o número de quilómetros percorridos, deslocações que tiveram como primordial objetivo ações comerciais com fornecedores e com potenciais parceiros ou ações de formação e planeamento estratégico do Grupo a diversos pontos do país, essenciais à harmonização dos procedimentos de gestão e dos serviços prestados aos clientes dos diversos ginásios do Grupo, a fim de aumentar sua fidelização e prosseguindo, sobretudo, a expansão e crescimento do Grupo;
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A AT alega que não foram apresentados “quaisquer comprovativos que demonstrem a efetividade das deslocações alegadamente efetuadas”; porém, de acordo com a alínea h) do número 1 do artigo 23.º-A, do CIRC, existindo encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador ao serviço da entidade patronal, esta entidade deve possuir, unicamente, um mapa através do qual seja possível efetuar o controlo das deslocações a que se referem aqueles encargos;
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Face à liquidação efetuada, importa sobretudo ressalvar que a Requerente constitui mero substituto tributário da obrigação de imposto, não lhe podendo este ser exigido na fase de pagamento voluntário, sem antes ter sido exigido ao devedor originário;
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Estando em causa retenções na fonte com natureza de pagamento por conta, cabe ao substituído, relativamente ao qual se verificam os factos tributários, a responsabilidade originária pelo imposto não retido, e ao substituto – ligado ao contribuinte por uma relação subjacente de direito privado, a responsabilidade subsidiária;
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Embora o artigo 21.º do CIRS estabeleça que, em caso de substituição tributária, se considera o substituto, para todos os efeitos legais, devedor principal do imposto, ressalva-se o disposto no artigo 103.º, cujo n.º 4, aditado pela Lei n.º 53A/2006, de 29 de dezembro, é potencialmente aplicável à situação em apreço, pois foi (indevidamente) imputado à Requerente não ter retido IRS relativamente a quantias que foram contabilizadas e pagas como deslocações efetuadas em viatura própria dos trabalhadores ao serviço da empresa, quando, no entender (incorreto) da AT, deveriam ser consideradas remunerações dos seus trabalhadores;
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Todavia, apesar de neste n.º 4 se prever a responsabilidade do substituto como solidária, o dever originário do pagamento do imposto não retido continua a caber ao substituído, pois devem distinguir-se as situações de devedores originários solidários (vide artigo 21.º, n.º 1, da LGT) e de responsabilidade solidária por dívidas de outrem (artigo 22.º, da LGT);
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Prevê o artigo 9.º, n.º 2, do CPPT que “a legitimidade dos responsáveis solidários resulta da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal”;
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Como revela a expressão final desta norma, em conjugação com o n.º 5 do artigo 22.º, da LGT, a exigência da dívida ao responsável solidário pode ser efetuada sem que o seja ao devedor principal, ainda na fase de pagamento voluntário, mas não sem previamente a liquidação ser notificada ao titular do rendimento sujeito a tributação, pois nos casos de retenção efetuada a título de pagamento por conta do imposto devido a final, só depois de efetuada a liquidação de IRS se pode saber se há ou não imposto a pagar pelo sujeito passivo e se pode saber se será necessário ou não responsabilizar o substituto pelo imposto não retido;
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Nesse sentido, a liquidação ora contestada deveria ter sido notificada não à Requerente (substituto), como sucedeu efetivamente, mas a cada um dos trabalhadores (substituído), na sua qualidade de sujeito passivo do imposto e responsável originário pelo pagamento do imposto não retido;
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Ainda que se admitisse que as importâncias recebidas a título de compensação por deslocação em viatura própria ao serviço da empresa, pudessem ser sujeitas a retenção na fonte às taxas progressivas globais, o imposto só se tornaria líquido, certo e exigível após a liquidação realizada, nos termos do CIRS, uma vez que só aí é que vai ser determinado o quantum de imposto legitimamente exigível pelo credor tributário;
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Por tudo quanto foi dito, considera a Requerente que inexiste o facto tributário que motivou a liquidação adicional de IRS de que está a ser alvo, pois, o facto tributário que gera a responsabilidade solidária é constituído pelo não pagamento voluntário pelos devedores principais dos montantes de IRS não retidos que possam ser exigidos a cada um destes (e não pelo montante que devia ser retido, que é apenas o limite máximo da responsabilidade do responsável solidário, a nível do imposto) situação essa que não ocorreu;
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A dever considerar-se como remuneração as quantias pagas aos trabalhadores a título de deslocações em viatura própria do trabalhador ao serviço da empresa, entende a Requerente que resulta inequívoco que os montantes em causa só lhe poderão ser exigidos depois do não pagamento voluntário pelos devedores originários, pelo que a liquidação agora impugnada é ilegal, devendo, por isso, ser anulada, com fundamento em vício de violação de lei, por inexistência de facto tributário.
b. Da Requerida
Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou Resposta e o processo administrativo, vindo defender a legalidade e a manutenção do ato de liquidação objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:
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A requerente foi alvo de procedimento de inspeção externo de âmbito geral, ao exercício do ano 2017, para análise da situação tributária do sujeito passivo em sede de IVA e IRC;
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Os gastos em questão, correspondem de forma exata ao valor constante das respetivas Declarações Mensais de Remuneração (DMR), e o montante na origem da liquidação contestada corresponde a pagamentos efetuados a três colaboradores a título compensatório por alegadas deslocações efetuadas ao serviço da empresa em viatura dos próprios;
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A dedutibilidade fiscal deste tipo de encargos está sujeita à disciplina fixada no n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, observadas as disposições constantes da alínea h) do n.º 1 do artigo 23.º-A do mesmo Código;
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A Requerente foi notificada para apresentar os documentos de suporte (todos) aos montantes pagos aos colaboradores em 2017 a título de ajudas de custo e deslocações em viatura própria do colaborador, de acordo com o conteúdo das respetivas declarações mensais de remuneração (DMR) daquele período, bem como cópia dos contratos de trabalho e informações detalhadas relativamente às deslocações efetuadas;
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Face aos documentos apresentados e esclarecimentos prestados, os SIT concluíram que a Requerente não apresentou quaisquer comprovativos que demonstrem a efetividade das deslocações alegadamente efetuadas verificando que, quanto à regularidade e periodicidade dos pagamentos, todos os meses foram pagas pela Requerente compensações por deslocação de três colaboradores em viatura própria, cujos valores quase duplicam (ou mais que), precisamente nos meses em que normalmente é pago o subsidio de férias e de Natal;
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Face dos factos carreados para o relatório de inspeção, os SIT concluíram que não restam dúvidas de que as importâncias pagas pela Requerente aos colaboradores em causa não respeitam a efetivas compensações pela utilização de viatura própria ao serviço da entidade patronal, porquanto, não existem quaisquer elementos que levem a supor tratar-se de entregas a título provisório, nem a entidade inspecionada reclama que assim tenha acontecido;
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Nos termos da alínea a), do n.º 1 do artigo 98.º do CIRS, as entidades devedoras de rendimentos da categoria A, são obrigadas a reter o imposto no momento do seu pagamento ou colocação à disposição dos respetivos titulares, obrigação a que a entidade inspecionada não deu cumprimento na parte que designou por compensações pela utilização de viatura própria;
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Sobre a Requerente, na qualidade de substituto tributário, recai a responsabilidade solidária pelo pagamento do tributo antes referido, conforme resulta do artigo 28.º da LGT e do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS;
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Analisados os argumentos da Requerente, diremos que não lhe assiste razão, porquanto:
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os mapas de deslocações não cumpriam todos os requisitos fixados na Lei (na alínea h) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC), indispensáveis para o controlo das deslocações, a saber: a indicação do tempo de permanência, a indicação do objetivo que, sendo declarado de uma forma tão sucinta e genérica, acaba por não identificar, em concreto, o objetivo de cada deslocação, bem como o proprietário de duas das viaturas utilizadas;
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face aos registos apresentados pelo IMT, os mapas com elementos informativos respeitantes às deslocações apresentados pela Requerente são incoerentes e pouco rigorosos, pelo que não podem ser aceites para efeitos do disposto no art.º 23.º-A, n.º 1, al. h) do CIRC;
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No caso em apreço, uma vez que os montantes pagos pela Requerente, foram considerados como rendimentos do trabalho dependente, conforme o disposto no art.º 2.º do CIRS, estavam sujeitos a retenção na fonte nos termos dos artigos 98.º e n.º 1 do 99.º do CIRS, pelo que caberia ao sujeito passivo ora requerente ter comunicado aos respetivos beneficiários esses quantitativos;
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Porém, não o tendo feito, e de acordo com o que dispõe o n.º 4, do art.º 103.º do CIRS, “o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido”;
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Não houve qualquer erro de cálculo no apuramento do imposto, pois os SIT somaram todos os rendimentos da categoria A auferidos pelos colaboradores em cada um dos meses em causa, a fim de se apurar a taxa de retenção na fonte correspondente e o consequente imposto devido mensalmente, deduzindo, após essa operação, o imposto anteriormente retido na fonte, cumprindo, assim, o que a lei determina nos seus art.ºs. 99.º-C, n.ºs 1 e 2 e 99.º-E, n.º 2 do CIRS;
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O disposto no n.º 4 do art.º 103.º do CIRS não colide com as regras contidas no CIRS para as retenções na fonte da categoria A, pelo que não se verifica a violação desse preceito legal, devendo concluir-se pela improcedência do PPA.
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Sendo as questões suscitadas essencialmente de direito e não tendo sido requerida a produção de prova adicional, foi, pelo despacho arbitral de 16 de junho de 2021, dispensada a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, determinando-se que o processo prosseguisse com alegações escritas, no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias, com informação de que a decisão arbitral seria prolatada até ao termo do prazo estabelecido pelo n.º 1 do artigo 21.º, do RJAT, e advertindo-se os Requerentes de que deveriam, até essa data, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.
Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, tendo a Requerida remetido para quanto invocado em sede de Resposta e a Requerente reiterado e desenvolvido a argumentação expendida no pedido de pronúncia arbitral, impugnado “factos novos, os quais não foram suscitados no Relatório de Inspeção tributária (“RIT”)”.
II. SANEAMENTO
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O tribunal arbitral singular é competente e foi regularmente constituído em 3 de maio de 2021, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;
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As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março;
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O processo não padece de vícios que o invalidem;
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Não foram invocadas exceções que ao tribunal arbitral cumpra apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as
suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral
tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e ao processo administrativo (PA), fixa-se como segue:
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Através da Ordem de Serviço Externa n.º OI2019..., de 19.02.2019, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do Porto abriram um procedimento de inspeção externa em nome da B... Unipessoal, LDA, referente ao exercício de 2017, no âmbito do qual foram efetuadas correções meramente aritméticas em sede de IVA, IRC e IRS – Retenções na fonte (cfr. Relatório de Inspeção Tributária – RIT, anexo ao PPA como Doc. n.º 2 e ao PA);
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A B... Unipessoal, LDA (adiante designada por B...) foi constituída em 12.11.2013, com sede na freguesia de ... e..., ... e ..., concelho de Oeiras, com o objeto social de “Exercício da atividade de gestão e consultoria de instalações desportivas e de health clubs, bem como a gestão e exploração de ginásio, educação física, fisioterapia, estética, massagens, tratamentos de beleza e saúde, restauração, formação, investimentos” e cujo capital social, constituído por uma única quota, pertencia à entidade C..., SGPS, SA, adquirida pelo Grupo D... em 2018, encontra-se com atividade cessada desde 18 de abril de 2018, momento da conclusão do projeto de fusão por incorporação na entidade C..., SGPS, SA, que atualmente assume a designação de A..., SA, aqui Requerente (cfr. págs. 6 e 7 do RIT e Doc. 3 junto ao PPA);
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No exercício de 2017, a B... encontrava-se registada pela atividade principal de “Gestão de instalações desportivas”, CAE 93110 e secundária de “Cafés”, CAE 56301, explorando dois ginásios marca A..., um em Odivelas e outro na Amadora, tendo a sua atividade incluído ainda “os preparativos necessários para abertura em 2018 de um terceiro ginásio” da mesma marca, em Tercena (cfr. págs. 7 e 8 do RIT);
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“Em 2017, o Grupo “E...” integrava mais seis ginásios, explorados por outras cinco entidades (todas detidas pela C..., SGPS, SA (…)”, localizados em Lisboa (..., ...e ...), Almada, Barreiro e Faro (cfr. Pág. 8 do RIT);
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No que respeita às correções das retenções na fonte de IRS, consta a págs. 47 e ss. do RIT, que se dão por integralmente reproduzidas, além do mais, a seguinte fundamentação:
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(…);
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“Por outro lado, temos colaboradores (…), cujos mapas apresentados incluem deslocações em que o «n.º de km» percorridos só lhes permitia fazer a viagem de ida;
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“Mas atentando agora no objetivo indicado para as deslocações efetuadas por estes colaboradores (…)”, nos casos em que houve acesso ao mapa informativo, “o mesmo é tão sucinto e genérico” que, na maior parte dos …
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j.
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O Relatório dos Serviços de Inspeção Tributária parcialmente transcrito, que se dá por integralmente reproduzido, foi notificado ao representante legal da B... Unipessoal LDA, por ofício registado com aviso de receção da Divisão de Inspeção Tributária II da Direção de Finanças do Porto, datado de 16.06.2020;
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A Requerente, na qualidade de representante da sociedade B... Unipessoal LDA, foi notificada da liquidação n.º 2020..., de 26.06.2020, referente ao ano de 2017, da quantia de € 15 333,00 e da demonstração de liquidação de juros compensatórios, no montante de 1 728,03, de que decorreu o valor a pagar de € 17 061,03, com data limite de pagamento voluntário em 13 de agosto de 2020 (nota de cobrança n.º 2020..., junta ao PPA – Doc. 1);
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A Requerente procedeu ao pagamento da liquidação de IRS (retenções na fonte) n.º 2020..., de 26.06.2020 (facto não contestado pela Requerida).
B – Factos não provados:
Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.
C – Fundamentação da matéria de facto provada:
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos dados como provados decorrem da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral, do processo administrativo e da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados.
III.2 DO DIREITO
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A questão decidenda
A Requerente pretende a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) alegadamente não retido na fonte sobre os valores pagos aos seus colaboradores a título de ajudas de custo no ano de 2017, que a AT, de acordo com o Relatório dos Serviços de Inspeção Tributária, requalificou como rendimentos de trabalho dependente, por inexistência, quanto a si, do facto tributário que motivou a referida liquidação.
A questão a decidir consiste, pois, em saber se o IRS indevidamente não retido na fonte poderá ser liquidado e o seu pagamento exigido diretamente à entidade pagadora dos rendimentos, face à responsabilidade solidária do substituto tributário, estabelecida pelo artigo 103.º, n.º 4, do CIRS.
Em suma, não se verificando em relação à Requerente os pressupostos do imposto e não tendo este sido determinado (liquidado) na esfera jurídica do titular do rendimento alegadamente tributável, entende esta não poder ser responsabilizada pelo pagamento da quantia exigida.
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Da ilegalidade da liquidação impugnada, por inexistência do facto tributário
Para além das normas inseridas nos capítulos da incidência dos códigos tributários, outras há que, embora aparentemente disciplinem apenas relações tributárias formais, não podem deixar de ser consideradas como verdadeiras normas de incidência subjetiva.
São estas, entre outras, as nomas que regulam a substituição e a responsabilidade tributárias, através das quais o credor tributário garante o seu direito de crédito, transferindo para quem não é contribuinte nem titular da capacidade contributiva que está na base da tributação, o encargo de satisfazer a dívida de imposto. Porém, como nota a doutrina, este facto apenas altera a modalidade de gestão tributária, mas não o conteúdo substantivo da relação jurídica nem provoca qualquer alteração à sua natureza jurídica[1].
A figura da substituição tributária concretiza-se, via de regra, através do mecanismo da retenção na fonte, prevista de forma genérica no artigo 20.º, da Lei Geral Tributária (LGT) e, especificamente, no artigo 21.º, do Código do IRS, norma esta que, embora integrando o capítulo das normas de incidência (Capítulo I – Secção II – Incidência pessoal), ressalva o disposto no artigo 103.º, do mesmo Código.
Este artigo 103.º, do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, tinha a seguinte redação:
“Artigo 103.º - Responsabilidade em caso de substituição
1 - Em caso de substituição tributária, é aplicável o artigo 28.º da lei geral tributária, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - (Revogado.)
3 - (Revogado.)
4 - Tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido.
5 - Em caso de não cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 101.º e no artigo 120.º, as entidades emitentes de valores mobiliários são solidariamente responsáveis pelo pagamento do imposto em falta.”.
Por seu turno, o artigo 28.º, da LGT, para que remete o n.º 1 daquele artigo 103.º, do Código do IRS, dispunha, na redação aplicável:
“Artigo 28.º - Responsabilidade em caso de substituição tributária
1 - Em caso de substituição tributária, a entidade obrigada à retenção é responsável pelas importâncias retidas e não entregues nos cofres do Estado, ficando o substituído desonerado de qualquer responsabilidade no seu pagamento, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Quando a retenção tiver a natureza de pagamento por conta do imposto devido a final, cabe ao substituído a responsabilidade originária pelo imposto não retido e ao substituto a responsabilidade subsidiária, ficando este ainda sujeito aos juros compensatórios devidos desde o termo do prazo de entrega até ao termo do prazo para apresentação da declaração pelo responsável originário ou até à data da entrega do imposto retido, se anterior.
3 - Nos restantes casos, o substituído é apenas subsidiariamente responsável pelo pagamento da diferença entre as importâncias que deveriam ter sido deduzidas e as que efetivamente o foram.
Como decorre do n.º 2 deste artigo 28.º, da LGT, é ao substituído que cabe a responsabilidade originária sobre o imposto não retido, por ser relativamente a ele que se verificam os pressupostos de facto da tributação, ou seja, a perceção dos rendimentos sujeitos a imposto, cabendo ao substituto a responsabilidade meramente subsidiária.
Contudo embora este n.º 2 do artigo 28.º, da LGT, esteja em consonância com a regra de que a responsabilidade tributária solidária apenas é admissível nos casos expressamente previstos na lei, como se determina no n.º 4 do artigo 22.º, da LGT, a verdade é que, excecionalmente, tratando-se de “rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido” (sublinhado nosso).
Porém, o “imposto não retido” pode não equivaler exatamente às quantias a cuja retenção o substituto está legalmente obrigado a proceder e a entregar nos cofres do Estado, segundo as regras estabelecidas nos artigos 98.º e seguintes, do Código do IRS.
De facto, muito embora as tabelas de retenção na fonte sobre rendimentos das categorias A e H, relativamente aos quais a retenção na fonte assume a natureza de pagamento por conta do imposto devido a final, tenham em consideração a situação pessoal e familiar do contribuinte, as deduções específicas àqueles rendimentos e as (algumas das) deduções à coleta previstas no artigo 78.º (artigos 99.º e 99.º-B, do Código do IRS), nem a retenção na fonte “ é um imposto, mas um mecanismo de cobrança, instituído pelo sistema fiscal português com o objetivo de aumentar a eficácia na cobrança do imposto”[2], nem o ato de retenção na fonte é uma liquidação de imposto, podendo a liquidação final determinar imposto em falta em medida diferente das quantias que, de acordo com aquelas tabelas, deveria ter sido retido.
A liquidação, quer em sentido amplo, englobando as operações de verificação e determinação dos pressupostos da relação jurídico-tributária concreta, quer em sentido estrito, de aplicação da taxa à matéria tributável e, no caso do IRS, efetuando as deduções à coleta, é, neste imposto, da competência da Autoridade Tributária e Aduaneira (artigo 75.º, do Código do IRS), que tanto pode proceder a liquidações adicionais em consequência de “Erros de facto ou de direito ou omissões verificadas em qualquer liquidação, de que haja resultado prejuízo para o Estado” (artigo 89.º, n.º 2, alínea b), do Código do IRS), como reembolsar o contribuinte, em caso de se verificar um excesso de retenções na fonte sobre o valor do imposto devido a final (artigo 102.º-B, do Código do IRS).
A liquidação (ato tributário) é, em suma, o ato de aplicação do direito por parte da Administração Tributária a cada situação concreta, verificados os pressupostos de que depende a tributação, através do qual a dívida de imposto se torna certa, líquida e exigível.
Assim sendo, só após o imposto ter sido liquidado na esfera do titular do rendimento, é possível determinar a responsabilidade pelo seu pagamento.
Descendo ao caso dos autos, não obstante o disposto no n.º 4 do artigo 103.º, do Código do IRS, cujo teor literal aponta para a responsabilidade solidária da Requerente pelo pagamento do imposto não retido, não poderia este ser-lhe exigido sem que previamente tivesse sido determinado (liquidado) na esfera dos colaboradores a quem foi pago o rendimento eventualmente sujeito a retenção na fonte.
A questão do apuramento do imposto devido a final pelo titular dos rendimentos pagos ou colocados à disposição, é uma questão prévia à da responsabilização do substituto tributário, a título solidário ou subsidiário, pelo seu pagamento, pois o facto tributário de que deriva tal responsabilidade é a dívida da prestação tributária (imposto) efetivamente devida e não das quantias que, de acordo com as tabelas em vigor, deveriam ter sido objeto de retenção na fonte.
A não ser assim, poderia dar-se um enriquecimento sem causa do credor tributário – no caso de o contribuinte, após reforma da liquidação inicial, ter direito a um reembolso superior ao anteriormente apurado, porque, por exemplo, apresentou despesas dedutíveis superiores às que constavam da liquidação inicial ou, pelo contrário, uma perda de receita tributária – se do englobamento das quantias indevidamente não tributadas resultasse, por exemplo, a inclusão do rendimento coletável num escalão superior para efeitos de determinação da taxa aplicável.
Em face do que vem de dizer-se, conclui-se que os quantitativos apurados no Relatório dos Serviços de Inspeção Tributária, na base da liquidação de retenções na fonte de IRS do ano de 2017 objeto dos autos, não podem ser exigidos à Requerente, por não corresponderem ao imposto devido, pelo qual seria solidariamente responsável, mas tão só às retenções na fonte a que esta estaria obrigada e que não consubstanciam valores certos, líquidos e exigíveis na esfera dos titulares do rendimento sujeito a tributação.
No mesmo sentido expresso se pronunciou o Tribunal Arbitral constituído no processo que correu termos sob o n.º 119/2015-T, conforme se transcreve:
“A única – e fundamental – diferença introduzida pela norma do artigo 103.º/4 do CIRS aplicável, ora em causa, é a alteração do tipo de responsabilidade tributária do substituto, do regime regra da responsabilidade subsidiária (decorre da regra geral do artigo 22.º/4 da LGT, e específica do artigo 28.º/2 da mesma Lei), para o regime excepcional da responsabilidade solidária, e não uma alteração do objecto daquela mesma responsabilidade tributária.
Ou seja: o artigo 103.º/4 do CIRS, em questão, altera o tipo de responsabilidade tributária, mas não o seu objecto, que não deixa de ser o imposto, para passar a ser a importância não retida.
Por isso, e em suma, no caso do artigo 103.º/4 do CIRS, em análise, o substituto não se torna responsável por nada diferente do que já o era, nos termos do artigo 28.º/2 da LGT, apenas variando o grau de responsabilidade, pelo mesmo, por assim dizer, objecto.
Tudo isto, bem se compreenderá, se se atender às regras próprias do cálculo do imposto devido em sede de IRS, e à circunstância de o respectivo funcionamento normal poder, com facilidade, gerar situações em que o imposto devido pelo sujeito passivo originário, seja nulo ou, não o sendo, inferior à retenção devida. Daí que, apenas liquidado, devidamente, o IRS devido pelo(s) sujeito(s) passivo(s) originários, e contrastado com este o montante das importâncias cuja retenção foi devida, seja possível determinar a extensão da responsabilidade solidária do substituto, sob pena de se poderem gerar situações de enriquecimento injustificado para a Fazenda Pública.
Deste modo, atenta a arguida inexistência de facto tributário subjacente às liquidações objecto da presente acção arbitral, e tendo em conta que “como vem afirmando a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, inexistindo facto tributário (...), não se verifica o pressuposto do imposto” (no caso, o artigo 1.º do CIRS).
Tratando-se o vício em questão, de um vício de violação de lei, e inexistindo qualquer norma legal que o fulmine com nulidade, deverão as liquidações objecto da presente acção arbitral, então, ser anuladas”.
Justificando-se a anulação da liquidação de IRS impugnada nos autos, com fundamento em vício de violação de lei, por inexistência de facto tributário, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento das demais questões colocadas pela Requerente.
2. Dos pedidos de restituição do indevido e juros indemnizatórios
O processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 (primeira parte), da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), devendo entender-se incluídos na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD os poderes que, na impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, como é o de apreciar o erro imputável aos serviços.
Por outro lado, face ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, fica a AT vinculada a, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”.
De igual modo, o n.º 1 do artigo 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, estabelece que “1 - A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.
O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º da LGT, de acordo com cujo n.º 1 estes são devidos “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Padecendo a liquidação de IRS de vício de violação de lei, imputável aos serviços, que justifica a sua anulação, há que reconhecer o direito da Requerente à restituição do imposto indevidamente pago, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos legais.
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando inteiramente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral:
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Declarar a ilegalidade da liquidação de IRS (retenções na fonte) n.º 2020...;
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Condenar a AT na restituição à Requerente do imposto pago em excesso;
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Reconhecer à Requerente o direito a juros indemnizatórios sobre o valor do imposto a restituir, calculados desde a data do pagamento indevido até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 17 061,03 (dezassete mil e sessenta e um euros e três cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 1 224,00 (mil, duzentos e vinte e quatro euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se.
Lisboa, 11 de outubro de 2021.
O Árbitro,
/Mariana Vargas/
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.
[1] Neste sentido, cfr, SERRANO, Carmelo Lozano “Las Prestaciones Patrimoniales Públicas en la Financiación del Gasto Público”, in Civitas, Revista Española de Derecho Financiero n.º 97, janeiro-março de 1998.
[2] Cfr. Neste sentido o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 23/09/2015, processo n.º 0997/15, disponível em http://www.dgsi.pt/.