Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 76/2021-T
Data da decisão: 2021-07-21  ISV  
Valor do pedido: € 1.551,81
Tema: Artigo 11º do CISV – Conformidade com o artigo 110º do TFUE – Veículos usados provenientes de outros Estados-Membros.
Versão em PDF


DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. No dia 2-2-2021, o sujeito passivo A, com o NIF …., apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação parcial da liquidação de Imposto Sobre Veículos (ISV), resultante da Declaração Aduaneira de Veículo DAV nº 2020/056..., de 16.10.2020, praticada pelo Director de Alfândega de Leixões.

2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro ora signatário, disso notificando as partes.

3. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são os seguintes:

4.1. Em 10 de Dezembro de 2020 foi enviada à Autoridade Tributária na Alfândega de Leixões em carta registada uma reclamação graciosa de liquidação de ISV, invocando a ilegalidade da liquidação no que respeita ao cálculo da componente ambiental.

4.2. Em 29 de Janeiro de 2021 foi recebida a resposta da Alfândega de Leixões como indeferida.

 

4.3. Em 16 de Outubro de 2020, foi feita a liquidação de ISV da DAV 2020 / 020... no valor total de € 9.088,30 seguindo a norma com base na liquidação (art. 11º do CISV) o que viola o art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.

4.4. Por esse motivo, o Requerente vem por este meio requerer a revisão da liquidação do ISV, reduzindo o valor do imposto que incide sobre a componente ambiental pela aplicação do factor de correcção resultante do número de anos de uso do veículo, entendendo dever ser-lhe restituído o montante de € 1.551,81.

5. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual se defendeu, em súmula, nos seguintes termos:

5.1. Conforme resulta dos elementos constantes do Processo Administrativo (PA) que ora se junta, constituído pelo procedimento atinente à introdução no consumo do veículo titulado pela Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2020/020..., de 16.10.2020, e pelo procedimento de reclamação graciosa, ambos da Alfândega de Leixões, relativos a Imposto Sobre Veículos (ISV).

5.2. Através da identificada DAV, apresentada pelo ora Requerente, por transmissão electrónica de dados, operador sem estatuto, foi declarado o veículo ligeiro de passageiros, usado, proveniente da Alemanha, com a marca BMW, modelo 3C, cujas características constam das inscrições do Quadro E, para o qual se remete.

5.3. Constatando-se que, para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, o veículo se insere no escalão da tabela correspondente à redução de 43% (mais de 4 a 5 anos de uso), conforme resulta da referida tabela, constando, no Quadro E da DAV, na casa 50, quanto à Emissão de Gases CO2, o valor de 177 g/Km.

5.4. O cálculo do imposto sobre veículos, que consta do Quadro R das DAV, foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, e calculado o ISV atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, conforme o disposto na tabela D constante do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo, em função do número de anos de uso do veículo.

5.5. A liquidação do imposto, relativa ao veículo em causa, foi efectuada, conforme indicado nos Quadros S, T e V da declaração, constando desta, igualmente, a identificação do ato de liquidação e da data da liquidação (n.º 2020/020..., de 16.10.2020), montante, termo final do prazo de pagamento (19.10.2020) data de cobrança e a identificação do autor do acto.

5.6. Em 10.12.2020, o declarante, proprietário do veículo, apresentou reclamação graciosa da liquidação junto da Alfândega de Leixões, a qual veio a ser objecto de decisão de indeferimento, por despacho de 25.01.2021, do Director daquela estância aduaneira.  

5.7 Estando em causa, nos presentes autos, a admissão de veículos usados, oriundos de outros Estados-membros, deve atender-se, especificamente, ao artigo 11.º do CISV na redacção em vigor à data dos factos, isto é, à data da introdução do veículo no consumo.

5.8. Não obstante o artigo 11.º do CISV tenha sido objecto de várias alterações desde a sua entrada em vigor, para o caso em apreço releva, particularmente, a redação atual introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28.12.2016 (Lei do OE para 2017), a qual procedeu ao alargamento das percentagens de redução da tabela D, tendo sido criado o escalão “até um ano”, a que corresponde uma percentagem de redução de 10%, sendo ainda criados novos escalões a partir dos cinco anos de uso, com percentagens de redução que atingem os 80% para veículos com mais de 10 anos, permitindo estabelecer uma maior correspondência entre a desvalorização comercial média sofrida pelos veículos usados no mercado nacional e o seu nível de tributação, em sede de ISV, que na redacção anterior se cifrava no máximo de 52 % para veículos com mais de 5 anos de uso.

5.9. Relevando, também, no contexto da tributação automóvel, o disposto no artigo 1.º do CISV que consagra o Princípio da Equivalência, de acordo com o qual o imposto sobre veículos obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.

5.10. Não obstante o disposto no artigo 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), há ainda que considerar a previsão do artigo 191º do TFUE, que consagra, expressamente, que a política da União no domínio do ambiente contribuirá para a prossecução dos objectivos da preservação, a proteção e a melhoria da qualidade do ambiente, da protecção da saúde das pessoas e a promoção, no plano internacional de medidas destinadas a enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente e designadamente, a combater as alterações climáticas, acrescentando o nº2 que a política da União se baseará nos princípios da precaução e da acção preventiva, da correcção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador.

5.11. Resultando ainda do art. 66º, nº2, da Constituição que incumbe ao Estado: a) prevenir e controlar a poluição; f)  Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial; h)  Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida.

5.12. No caso concreto o imposto foi calculado de acordo com o previsto no artigo 7º do CISV, tendo sido aplicada uma redução para a componente ambiental nos termos deste artigo, não tendo sido aplicada outra/nova redução à componente ambiental porque tal redução não se encontra prevista no artigo 11º do CISV, ao contrário do estabelecido para a componente cilindrada, que prevê uma redução em função dos “anos de uso” de acordo com a tabela D.

5.13. Em última análise, procurou-se aplicar o princípio da equivalência consagrado no artigo 1º do CISV, bem como o princípio do poluidor pagador, já que, se o regime nacional atribuísse um desconto comercial à componente ambiental do ISV para veículos usados adquiridos noutro Estado-Membro da União Europeia, estaria a subverter aquele princípio e a atribuir um alívio fiscal à admissão e importação de veículos usados mais poluentes.

5.14. Por outro lado, a aplicação da mesma percentagem de redução às duas componentes, por não se encontrar prevista na lei, dá origem a um desagravamento que, por via da alteração à taxa do imposto, incentivava os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes, interpretação que não pode deixar de se considerar inconstitucional face ao disposto no nº 2 do artigo 103º da Constituição da República Portuguesa.

5.15. E, estando em causa matéria de elevada relevância social, e bem assim, a existência de disposições legais e objetivos de defesa ambiental definidos ao nível da União Europeia, internacional e nacional, entende-se que, no caso concreto, não deve ser aplicada à componente ambiental a mesma redução que é aplicada à componente cilindrada no âmbito da tributação automóvel, concretamente no que se refere ao cálculo do imposto, que deve ser efetuado nos termos dos artigos 7º e 11º do CISV, na redação que lhe foi aplicada.

5.16. Acrescendo que, em rigor, os artigos 7º e 11º do CISV não violam a norma prevista no artigo 110º do TFUE, por gerarem uma discriminação negativa dos veículos usados admitidos no território nacional, uma vez que estes artigos não são de aplicação exclusiva aos veículos usados admitidos no território nacional.

5.17. Pelo que, reitera-se, não se poderá concluir que, ao fazer incidir sobre os veículos usados, nacionais e comunitários, uma componente ambiental que não é objecto de redução, o Estado Português teve por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas sim como corolário orientar a escolha dos consumidores através da aplicação criteriosa das medidas de política ambiental europeia, tanto a veículos nacionais como aos provenientes de outro Estado- Membro.

5.18. Até porque não se pode olvidar, igualmente, o estabelecido no artigo 66º, relativo ao Ambiente e Qualidade de Vida, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito de todos a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender (nº 1), e, especificamente, o disposto na alínea h), do nº2 do mesmo artigo, quando se refere a um direito fiscal do ambiente que utilize os impostos, taxas, benefícios fiscais como instrumentos formais que propiciem a proteção do ambiente.

5.19. Configurando tal interpretação uma desaplicação do direito da União e do direito internacional - artigo 191º do TFUE, Protocolo de Quioto e Acordo de Paris - que vinculam o Estado Português, por força do artigo 8º da CRP, bem como uma violação do disposto no nº 1, e alíneas a), f) e h), do nº 2, do artigo 66.º e do nº 2 do artigo 103º da CRP.

5.20. Concluindo-se, assim, que a liquidação de ISV, ao aplicar o artigo 11º do CISV, foi efectuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110º e 191º do TFUE e nos artigos 66º e 103º da Constituição, não existindo, conforme o exposto, a invocada discriminação da tributação dos veículos usados nacionais relativamente aos admitidos de outros Estados-membros, não se verificando, consequentemente, a alegada violação do artigo 110º do TFUE.

5.21. Destarte, tendo o acto impugnado sido efetuado de acordo com o direito nacional e comunitário, não enferma de qualquer vício, devendo, consequentemente, o mesmo ato de liquidação, na parte que vem impugnada, quanto ao cálculo do imposto efetuado nos termos do nº 1 do artigo 11º do CISV, e à não aplicação de redução à componente ambiental nos termos deste artigo, considerar-se conforme ao direito constituído então em vigor.

5.22. A interpretação do artigo 11º do CISV defendida pela Requerente resulta, desde logo, uma violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual, além de estabelecer, no nº 1, que a administração pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, impõe aos órgãos e agentes administrativos a subordinação à Constituição e à lei, devendo atuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (nº 2).

5.23. Ora, no caso concreto a administração tributária agiu nos termos da lei, de acordo com as normas de incidência, taxas e liquidação do imposto em causa, não podendo ter atuado de modo diferente, face ao direito constituído sob pena de violar os referidos princípios da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da segurança jurídica.

5.24. Assim, relativamente à liquidação ora impugnada, a mesma foi efectuada de acordo com as normas aplicáveis em vigor, o artigo 7º e o artigo 11º do CISV, não sendo possível retirar da letra da lei, no caso, do artigo 11º do CISV, ou de outra norma do mesmo código, a aplicação da redução prevista na admissão de veículos usados, para a componente cilindrada, à componente ambiental, além da aplicada por força do artigo 7º.

5.25. Acrescendo que, pugnar pela aplicação de uma fórmula de cálculo, com atribuição de uma redução não prevista na tabela D do artigo 11º, acrescenta uma redução à componente ambiental que não está consagrada na letra da lei, que não foi querida pelo legislador, consubstanciando assim, também nesta parte, uma violação dos princípios constitucionais aludidos, da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica.

5.26. Por outro lado, a aplicação de tal redução, não pode deixar de se considerar como uma alteração à taxa do imposto que, não se encontrando prevista na lei, é inconstitucional face ao disposto no nº 2 do artigo 103º da CRP, que estabelece que os impostos são criados por lei, determinando esta igualmente a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, colocando, igualmente, o Requerente em situação de vantagem face aos demais sujeitos passivos, criando também, nesta parte, uma situação de desigualdade fiscal.

5.27. Ademais, a pretensão do Requerente, além de não se estribar na lei e violar os acima indicados princípios constitucionais, também olvida que estamos perante um imposto sobre o consumo não harmonizado, e que a tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo, conforme o consagrado no nº 4 do artigo 104º da CRP.

5.28. E, sendo um dos princípios gerais da interpretação das normas jurídicas e “critério de interpretação” o da interpretação conforme à Constituição, de acordo com este critério, no caso de o intérprete, mediante a aplicação dos elementos interpretativos, chegar a mais do que um sentido possível a atribuir a um preceito normativo, deve preferir aquele que mais se adeque à Constituição.

5.29. Não podendo, assim, deixar de se considerar o artigo 204º da CRP, que impõe que os tribunais não apliquem normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

5.30. Por outro lado, ao defender a ilegalidade das liquidações por entender que existe uma desconformidade do artigo 11º do CISV com o artigo 110º do TFUE, a Requerente, além de violar, por via de tal interpretação, os já referidos princípios, consagrados na nossa Lei Fundamental, viola ainda, por via da desaplicação do artigo 11º do CISV na redação actualmente em vigor, uma violação do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efectiva.

5.31. De facto, tendo as Requerentes recorrido à arbitragem tributária para impugnar as liquidações, a administração encontra-se coarctada no seu direito de reacção face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.

5.32. É que o RJAT prevê tão somente três tipos de reacções recursórias, sendo eles o recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso para uniformização de jurisprudência e a impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28º, n.º 1 do RJAT.

5.33. Ora, defendendo a Requerente a violação de um princípio do TFUE no caso concreto, e prevendo o RJAT que o recurso para o Tribunal Constitucional só pode ter como fundamento as alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do TC, não há dúvida que, a vingar tal interpretação, estamos perante uma violação do princípio do livre acesso aos tribunais.

5.34. Verifica-se, pois, face ao disposto nos artigos 20º, nº 1 e nº 4 e 266º, todos da CRP, a violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.

5.35. Em face do exposto, a interpretação das Requerentes do artigo 11º do CISV viola os princípios, acima mencionados, da legalidade e da legalidade fiscal, da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, do Estado de direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a apreciação da constitucionalidade de tal entendimento, o qual, desde já, reputamos de inconstitucional, não podendo por isso, ser aplicado no caso concreto.

5.36. Devendo a questão da desconformidade do direito nacional, em concreto das normas dos artigos 7º e 11º do CISV, aplicáveis à liquidação ora impugnada, ser suscitada junto do TJUE, conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional, designadamente, nos autos de recurso nº 173/20 e nº 649/20.

6. Em 23/6/2021 foi proferido despacho arbitral, dispensando a reunião prevista no art. 18º do RJAT por não estarem preenchidas as circunstâncias que justificam a sua realização, podendo as partes requerer que a mesma tivesse lugar, o que estas não fizeram.

 

II – Factos provados

7. Com base na prova documental junta pelo Requerente e a prova constante do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

7.1. O Requerente A, introduziu em Portugal o veículo automóvel de passageiros usado ...-...-..., sendo o referido veículo originário da Alemanha.

7.2. O Requerente A, procedeu à Declaração Aduaneira de Veículo DAV nº 2020/020..., de 16.10.2020.

7.3. Em virtude dessa Declaração, a AT liquidou o ISV correspondente a essa introdução no consumo do veículo, pelo valor de € 9.088,30, tendo o imposto sido integralmente pago pela Requerente em 6.10.2020.

7.4. No valor de ISV liquidado foi efectuada uma redução de 43% relativa à componente cilindrada, não tendo sido efectuada qualquer redução à componente ambiental.

7.5. A Requerente apresentou, em 2.2.2021, junto da Instância Arbitral, o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação parcial dessa liquidação de ISV e o reembolso do montante total de € 1.551,81.

 

III - Factos não provados

8. Não há factos não provados, com relevo para a decisão da causa.

 

IV - Do Direito

9. São as seguintes as questões a examinar no presente processo.

- A necessidade de desencadear o reenvio prejudicial junto do TJUE.

- Da ilegalidade da liquidação de ISV.

- Da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV em conformidade com o artigo 110.º do TFUE.

- Da restituição do imposto pago em excesso.

Examinar-se-ão assim essas questões:

 

— A DESNECESSIDADE DE REENVIO PREJUDICIAL PARA O TJUE

10. Solicitou a Requerida que fosse desencadeado o reenvio prejudicial junto do Tribunal de Justiça da União Europeia, uma vez que estaria em causa uma questão de Direito da União Europeia.

Acolhendo a doutrina defendida por este Centro de Arbitragem no processo 572/2018-T, “para se recorrer ao processo de reenvio de uma ou mais questões a título prejudicial, para interpretação de uma ou mais normas jurídicas de direito comunitário, originário ou derivado, é necessário que subsistam dúvidas sobre a interpretação do texto em causa, porquanto se o texto a interpretar é perfeitamente claro, não se trata já de interpretar, mas sim de o aplicar, o que é competência do Tribunal incumbido da competência de julgar o caso concreto (aplicando a lei, nacional e/ou comunitária, se for esse o caso)”.

Esta posição foi seguida no processo 202/2020-T, onde se salientou o seguinte:

"Retira-se desta doutrina [do acórdão CILFIT] que o Tribunal de Justiça, no âmbito de um reenvio prejudicial, se pronuncia sobre a “interpretação dos Tratados”, mas não sobre se uma medida nacional é ou não compatível com a norma dos Tratados.

Sendo assim, «uma questão desta natureza», para efeitos do art. 267º do TFUE será apenas estritamente uma questão de interpretação de uma disposição dos Tratados, e não uma questão de compatibilidade de uma medida nacional com essa mesma disposição.  Com efeito, cremos que é este o entendimento que melhor se coaduna com a formulação adotada pelo Tribunal no acórdão CILFIT, já citado (nº 21) em que se diz que não existe obrigação de reenvio quando a «disposição comunitária» de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça. 

Ora, no caso dos autos, está em causa a aplicação de uma disposição do TFUE – o art. 110.º - que já foi interpretado pelo Tribunal de Justiça por diversas vezes, como já foi referido acima. E em todas as vezes que foi chamado a interpretar essa disposição o Tribunal afirmou que «um sistema de tributação de um EstadoMembro só pode ser considerado compatível com o artigo 110.º TFUE se se verificar que está organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios». 

Perante isto, há que concluir que a disposição cuja aplicação está em causa – o art. 110.º do TFUE – já foi interpretado diversas e bastantes vezes pelo Tribunal de Justiça, de modo que não subsiste qualquer dúvida acerca do seu alcance e significado. 

O que cabe ao Tribunal Arbitral fazer é apenas averiguar a compatibilidade da medida nacional com essa disposição, com o sentido que o TJUE já por inúmeras vezes lhe fixou, pelo que se conclui que o Tribunal não está obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça".

Seguindo esta interpretação, que nos parece a mais adequada, não considera o Tribunal Arbitral necessário desencadear o processo de reenvio prejudicial junto do TJUE.

 

DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO DE ISV.

11. Sustenta a Requerente existir ilegalidade da liquidação de ISV, uma vez que a disposição do art. 11º do CISV contraria o art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.

Ora vejamos:

O art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia  dispõe expressamente o seguinte:

"Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções".

Dispõe o artigo 11.º, nº1, do CISV o seguinte:

O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:

TABELA D
http://www.pgdlisboa.pt/leis/imagens/1486394471_2016_lei42_artigo217d.gif

Esta redacção do art. 11º, nº1, do CISV foi introduzida pela Lei 42/2016, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), surgida após o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção) de 16 de junho de 2016, emitido no processo C-200/15 relativo à acção incumprimento interposta pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa no qual se declarou a desconformidade da anterior redacção desta disposição com o art. 110º TFUE, nos seguintes termos:

"A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro estado-membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 11º do TFUE (…)Este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU: C:2001:109, nº 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiames e Siilin, C-101/00, EU: C:2002:505, nº  53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, nº 25)” (nº 24 dos fundamentos do acórdão). Assim, a cobrança, por um Estado-Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-membro é contrária ao artigo 110º. do TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C-345/93, EU:C:1995:66, n.º 20, e de 22 de fevereiro de 2001, GomesValente, C-393/98, EU:C:2001:109, n.º 23)” (nº 25 dos fundamentos do acórdão).“ (…) Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 (…) ".

Sucede, porém, que a actual redacção do art. 11º do CISV mantém uma diferenciação com os valores do ISV aplicáveis aos veículos nacionais, e que constam do art. 7º CISV e tabelas anexas, dado que o legislador, em conformidade com o acima referido acórdão do TJUE, alargou as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso, mas introduziu uma outra alteração diferenciadora em relação aos veículos com origem noutros Estados-Membros, com impacto no cálculo do ISV, uma vez que a actual redacção do art. 11º CISV limita a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2), ao contrário do que sucede com os veículos usados já matriculados no território nacional.

Por esse motivo, a jurisprudência deste CAAD tem decidido uniformemente que a actual redacção do art. 11º CISV viola o disposto no art. 110º TFUE (cfr. as decisões dos processos 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350-2019-T, 459/2019-T e 660/2019-T).

É claramente essa a solução desta questão, uma vez que as normas do Direito da União Europeia, no caso o art. 110º TFUE, têm efeito directo e primado sobre o Direito Nacional, não podendo assim o art. 11º CISV contrariar aquela disposição. Ora, existe uma clara violação do artigo 110.° TFUE sempre que o montante de imposto que incide sobre um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro exceda o montante residual do referido imposto incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, o que é o caso.

Quanto à justificação apresentada pela Requerida que a diferenciação na tributação resulta de razões ambientais, a mesma não pode proceder. Como se escreveu na Decisão no processo 660/2019-T "decorre da jurisprudência do TJUE e da própria sistemática do TFUE que, ao contrário do que indica a AT, a norma do artigo 110.º do TFUE é imperativa e sobrepõe-se às normas de cariz ambiental do artigo 191.º do TFUE. Assim, ainda que um EM utilize componente ambientais na determinação do cálculo do regime de tributação de veículos, nunca poderá, com base nessa componente, agravar a tributação de veículos usados provenientes de outros EM face aos veículos usados já matriculados em território nacional". Tal "equivale a dizer que não decorre da legislação aplicável que as regras e princípios ambientais constantes do artigo 191.º do TFUE e artigo 66.º da CRP prevaleçam sobre a regra do artigo 110.º do TFUE que é imperativa para os EM".

É manifesta assim a ilegalidade da liquidação de ISV impugnada, tendo razão o Requerente nesta questão.

 

- DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ART. 11º DO CISV EM CONFORMIDADE COM O ARTIGO 110º DO TFUE.

12. Veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266º da CRP e do disposto nos artigos 20º, nº 1 e nº 4, 66º, e 266º, todos da CRP, i.e. violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

É manifesto que tal não sucede, sendo de salientar que, nos termos do art. 8º, nº4 da Constituição, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático". Não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que in casu não se verificam, recusar a aplicação de normas do Direito da União Europeia invocando disposições do Direito Interno Português.

Relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT, que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição.

 

- DA RESTITUIÇÃO DA QUANTIA PAGA EM EXCESSO.

13. Verifica-se assim que o Requerente tem direito à anulação parcial da liquidação de ISV e ao reembolso do montante total de € 1.551,81, uma vez que tal corresponde a imposto pago em excesso.

 

V – Decisão

 

Nestes termos, julga-se procedente o pedido de anulação parcial da liquidação de ISV resultantes da Declaração Aduaneira de Veículo DAV nºs 2020/020..., de 16.10.2020,  anulando-se parcialmente a referida liquidação quanto ao valor de € 1.551,81, determinando-se o reembolso do respectivo montante ao Requerente.

Fixa-se ao processo o valor de € 1.551,81 (mil, quinhentos e cinquenta e um euros e oitenta e um cêntimos) e o valor da correspondente taxa de arbitragem em € 306 (trezentos e seis euros), nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, condenando-se a Requerida nas custas do processo.

 

Notifique as partes e o Ministério Público, este último em virtude da pronúncia sobre a questão da constitucionalidade.

 

 

Lisboa, 21 de Julho de 2021

 

O Árbitro

 

 

 

 

 

 

(Luís Menezes Leitão)