Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 707/2020-T
Data da decisão: 2021-07-26  ISV  
Valor do pedido: € 1.604,45
Tema: Artigo 11º do CISV – Conformidade com o artigo 110º do TFUE – Veículos usados provenientes de outros Estados-Membros.
Versão em PDF

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I. Relatório

1. No dia 30-11-2020, o sujeito passivo A..., LDA, pessoa colectiva nº..., apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação parcial da liquidação de ISV resultante da Declaração Aduaneira de Veículo DAV nº 2020/... de 21/10/2020 (Delegação Aduaneira da Figueira da Foz) no valor de € 10.756,92, referente ao veículo ... matrícula ... .

2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro ora signatário, disso notificando as partes.

3. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são em súmula, os seguintes:

4.1. Em 16.10.2020 foi apresentada na Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, a Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) n.º 2020..., para introdução no consumo do veículo ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., modelo..., movido a gasolina, n.º de motor ..., cilindrada ..., com a matrícula definitiva ... .

4.2. Da referida DAV consta, ainda, que ao veículo em causa, usado, proveniente da Alemanha, com 68.944 km’s percorridos, foi atribuída a primeira matrícula em 14.12.2017.

4.3. No que concerne às características do veículo, consta da referida DAV o valor de 0.0016 g/km, relativo à emissão de partículas, e o valor de 192 g/km, relativo à emissão de gases.

4.4. No cumprimento das suas obrigações legais, designadamente tributárias, o Requerente procedeu à liquidação do ISV pelo valor de 10.756,92 €, imposto que foi integralmente pago.

4.5. Do valor de ISV liquidado, € 6.891.60 correspondem à componente cilindrada, e € 5.730,17 à componente ambiental, sendo que, relativamente à componente cilindrada, aquele valor foi deduzido pela quantia correspondente a 28% do seu montante, ou seja, € 1.954,85, por força da redução resultante do número de anos de uso do veículo.

4.6. Sucede que, tal liquidação de ISV está ferida de um vício de ilegalidade no que se refere ao cálculo da componente ambiental, uma vez que a norma jurídica que esteve na base daquela liquidação – artigo 11º CISV – viola o artigo 110.º do TFUE, conforme acórdão transitado em julgado do Tribunal de Justiça da União Europeia (processo C-200/15).

4.7. O ISV tem por incidência, entre outros factos tributários, a admissão de veículos tributáveis em território nacional provenientes de outro Estado-Membro da União Europeia, aplicável a veículos usados como é o caso.

4.8. O cálculo de tal imposto incide sobre a cilindrara do veículo e a componente ambiental, sendo que, nos termos do disposto no artigo 11º do CISV, no caso de admissão de veículos usados, aplicava-se no cálculo de imposto uma percentagem de redução conforme o número de anos do veículo, equiparável à desvalorização comercial média dos veículos usados comercializados no mercado nacional.

4.9. De facto, na redação inicial deste preceito, esta redução apenas se aplicava à componente cilindrada dos veículos e não à componente ambiental, provocando, também por este motivo, um critério desigual no cálculo do ISV relativamente a veículos usados matriculados em Portugal e aos veículos admitidos em Portugal, matriculados noutros Estados-membros, já que, relativamente aos veículos originariamente matriculados em Portugal, a desvalorização incidia sobre as duas componentes.

4.10. Sucede que, a Comissão Europeia instaurou o processo por infração 2009/2296 contra a República Portuguesa, com base no facto de não ser tida em conta a depreciação dos veículos para efeitos do cálculo da componente ambiental do ISV, processo que foi encerrado após uma pertinente alteração ao Código do ISV, introduzida pela Lei nº 55-A/2010, de 31-12, que aprovou o Orçamento do Estado para 2011.

4.11. Com essa alteração legislativa ficou resolvida uma parte da ilegalidade, não ficando no entanto sanada a ilegalidade que dizia respeito à desvalorização dos veículos até ao final do 1º ano de uso e após os 5 anos de uso, pelo que, face à manutenção desta divergência entre os cálculos de ISV entre os veículos usados matriculados em Portugal e os veículos usados provenientes de outros estados-membros, a Comissão Europeia instaurou um novo processo que revestiu a natureza de ação por incumprimento contra a República Portuguesa, que correu termos com o nº C-200/15.

4.12. No âmbito do referido processo, foi proferido o respetivo Acórdão em 16.06.2016, nos termos do qual foi decidido que a República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 110º do TFUE.

4.13. Acresce o referido Acórdão que este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam a uma imposição superior do produto importado, sendo que um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional.

4.14. Ora, na sequência deste acórdão, o legislador nacional introduziu uma nova alteração ao CISV, através da Lei 42/2006 de 27 de dezembro, alteração concretizada através de uma nova redação do art. 11º do CISV e da tabela D que integra esse mesmo artigo, no sentido de alargar as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-as até aos 10 e mais anos de uso.

4.15. Contudo, a par desta alteração, foi introduzida uma outra, bem mais gravosa para o cálculo do ISV porquanto o legislador, com a nova redação dada ao art. 11º, voltou a limitar a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental.

4.16. Ou seja, com esta alteração, o legislador retrocedeu ao ano de 2010 e voltou a pôr em vigor uma norma jurídica, que tinha sido já objeto de um processo instaurado pela Comissão Europeia e que esteve na base da alteração legislativa operada com a Lei 55-A/2010 de 31 de dezembro, violando-se novamente o artigo 110.º do TFUE.

4.17. Assim, entende o Requerente que a norma atualmente em vigor, e que esteve na base da liquidação do imposto pago, viola frontalmente o art. 110º do TFUE porquanto permite que a Administração Fiscal cobre um imposto sobre os veículos importados, com base num valor superior ao valor real do veículo, onerando-os com uma tributação fiscal superior à que é aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional.

4.18. Face ao exposto, a liquidação de ISV supra referida, ao não aplicar a redução de anos de uso à componente ambiental, está ferida de flagrante ilegalidade, cuja declaração se requer.

4.19 Tendo sido este o entendimento unânime da jurisprudência, designadamente decisões do Centro de Arbitragem Administrativa (Proc. nº 572/2018-T e 346/2019-T).

4.20. Pelo que, estando a liquidação do Requerente ferida de ilegalidade, deve a mesma ser anulada parcialmente, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da desconsideração da redução do imposto correspondente à componente ambiental do ISV, reduzindo-se este para o valor de € 4.125,72 e, consequentemente ser restituído ao Requerente o montante indevidamente cobrado, e que se computa em € 1.604,45, acrescido de juros indemnizatórios devidos desde 21.10.2020.

5. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual se defendeu, em súmula, nos seguintes termos:

5.1. Conforme resulta dos elementos constantes do Processo Administrativo (PA), constituído pelo procedimento atinente à introdução no consumo efetuada através da Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2020/..., de 21.10.2020 (com data de aceitação de 16.10.2020), da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, relativo a Imposto Sobre Veículos (ISV), com referência ao veículo automóvel com as características descritas na declaração, foi a DAV apresentada naquela estância aduaneira, por transmissão eletrónica de dados, para introdução no consumo do veículo, ligeiro de passageiros, usado, proveniente da Alemanha.

5.2. Com referência à mencionada DAV, foi apresentado o veículo da marca ..., ao qual foi atribuída a matrícula nacional ... cujas características constam das inscrições do Quadro E, para o qual se remete.

5.3. Quanto ao veículo em questão constata-se que, para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, se insere no escalão da tabela correspondente à redução de 28%, conforme resulta da referida tabela.

5.4. O cálculo do imposto sobre veículos, que consta do Quadro R da DAV, foi efetuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, e calculado o ISV atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, conforme o disposto na tabela D constante do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo.

5.5. A liquidação do imposto, relativa à introdução no consumo do veículo, foi concretizada conforme indicado no Quadro T da declaração, constando desta, igualmente, a identificação do ato de liquidação e data (n.º 2020/...), de 16.10.2020, montante, termo final do prazo de pagamento, data de cobrança (que ocorreu, respetivamente, em 30.10.2020 e 16.10.2020), e a identificação do autor do acto.

5.6. Em 30.11.2020, a Requerente apresentou, junto da Instância Arbitral, o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação parcial da liquidação de ISV e o reembolso do montante de € 1604,45.

5.7 Estando em causa, nos presentes autos, a admissão de veículo usado, oriundo de outro Estado-membro, no caso, a Alemanha, deve atender-se, especificamente, ao artigo 11.º do CISV na redacção em vigor à data dos factos.

5.8. Não obstante o artigo 11.º do CISV tenha sido objeto de várias alterações desde a sua entrada em vigor, para o caso em apreço releva, particularmente, a redação atual introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28.12.2016 (Lei do OE para 2017), a qual procedeu ao alargamento das percentagens de redução da tabela D, tendo sido criado o escalão “até um ano”, a que corresponde uma percentagem de redução de 10%, sendo ainda criados novos escalões a partir dos cinco anos de uso, com percentagens de redução que atingem os 80% para veículos com mais de 10 anos, permitindo estabelecer uma maior correspondência entre a desvalorização comercial média sofrida pelos veículos usados no mercado nacional e o seu nível de tributação, em sede de ISV, que na redação anterior se cifrava no máximo de 52 % para veículos com mais de 5 anos de uso.

5.9. Relevando, também, no contexto da tributação automóvel, o disposto no artigo 1.º do CISV que consagra o Princípio da Equivalência, de acordo com o qual o imposto sobre veículos obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.

5.10. Não obstante o disposto no artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), há ainda que considerar a previsão do artigo 191.º do TFUE, que consagra, expressamente, que a política da União no domínio do ambiente contribuirá para a prossecução dos objectivos da preservação, a proteção e a melhoria da qualidade do ambiente, da protecção da saúde das pessoas e a promoção, no plano internacional de medidas destinadas a enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente e designadamente, a combater as alterações climáticas, acrescentando o nº2 que a política da União se baseará nos princípios da precaução e da acção preventiva, da correcção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador.

5.11. Resultando ainda do art. 66º, nº2, da Constituição que incumbe ao Estado: a) prevenir e controlar a poluição; f)  Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial; h)  Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida.

5.12. No caso concreto o imposto foi calculado de acordo com o previsto no artigo 7.º. do CISV, tendo sido aplicada uma redução para a componente ambiental nos termos deste artigo, não tendo sido aplicada outra/nova redução à componente ambiental porque tal redução não se encontra prevista no artigo 11.º do CISV, ao contrário do estabelecido para a componente cilindrada, que prevê uma redução em função dos “anos de uso” de acordo com a tabela D.

5.13. Em última análise, procurou-se aplicar o princípio da equivalência consagrado no artigo 1.º do CISV, bem como o princípio do poluidor pagador, já que, se o regime nacional atribuísse um desconto comercial à componente ambiental do ISV para veículos usados adquiridos noutro Estado-Membro da União Europeia, estaria a subverter aquele princípio e a atribuir um alívio fiscal à admissão e importação de veículos usados mais poluentes.

5.14. Por outro lado, a aplicação da mesma percentagem de redução às duas componentes, por não se encontrar prevista na lei, dá origem a um desagravamento que, por via da alteração à taxa do imposto, incentivava os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes, interpretação que não pode deixar de se considerar inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa.

5.15. E, estando em causa matéria de elevada relevância social, e bem assim, a existência de disposições legais e objetivos de defesa ambiental definidos ao nível da União Europeia, internacional e nacional, entende-se que, no caso concreto, não deve ser aplicada à componente ambiental a mesma redução que é aplicada à componente cilindrada no âmbito da tributação automóvel, concretamente no que se refere ao cálculo do imposto, que deve ser efetuado nos termos dos artigos 7.º e 11.º do CISV, na redação que lhe foi aplicada.

5.16. Acrescendo que, em rigor, os artigos 7.º e 11.º do CISV não violam a norma prevista no artigo 110.º do TFUE, por gerarem uma descriminação negativa dos veículos usados admitidos no território nacional, uma vez que estes artigos não são de aplicação exclusiva aos veículos usados admitidos no território nacional.

5.17. Pelo que, reitera-se, não se poderá concluir que, ao fazer incidir sobre os veículos usados, nacionais e comunitários, uma componente ambiental que não é objeto de redução, o Estado Português teve por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas sim como corolário orientar a escolha dos consumidores através da aplicação criteriosa das medidas de política ambiental europeia, tanto a veículos nacionais como aos provenientes de outro Estado- Membro.

5.18. Até porque não se pode olvidar, igualmente, o estabelecido no artigo 66.º, relativo ao Ambiente e Qualidade de Vida, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito de todos a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender (n.º 1), e, especificamente, o disposto na alínea h), do n.º 2 do mesmo artigo, quando se refere a um direito fiscal do ambiente que utilize os impostos, taxas, benefícios fiscais como instrumentos formais que propiciem a proteção do ambiente.

5.19. Configurando a aplicação da interpretação, pugnada pela Requerente, uma desaplicação do direito da União e do direito internacional - artigo 191.º do TFUE, Protocolo de Quioto e Acordo de Paris - que vinculam o Estado Português, por força do artigo 8.º da CRP, bem como uma violação do disposto no n.º 1, e alíneas a), f) e h), do n.º 2, do artigo 66.º e do n.º 2 do artigo 103.º da CRP.

5.20. Concluindo-se, assim, que a liquidação de ISV, ao aplicar o artigo 11.º do CISV, foi efetuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da Constituição, não existindo, conforme o exposto, a invocada discriminação da tributação dos veículos usados nacionais relativamente aos admitidos de outros Estados-membros, não se verificando, consequentemente, a alegada violação do artigo 110.º do TFUE.

5.21. Destarte, tendo o ato impugnado sido efetuado de acordo com o direito nacional e comunitário, não enferma de qualquer vício, devendo, consequentemente, o mesmo ato de liquidação, na parte que vem impugnada, quanto ao cálculo do imposto efetuado nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, e à não aplicação de redução à componente ambiental nos termos deste artigo, considerar-se conforme ao direito constituído então em vigor.

5.22. A interpretação do artigo 11.º do CISV defendida pela Requerente resulta, desde logo, uma violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual, além de estabelecer, no n.º 1, que a administração pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, impõe aos órgãos e agentes administrativos a subordinação à Constituição e à lei, devendo atuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (n.º 2).

5.23. Ora, no caso concreto a administração tributária agiu nos termos da lei, de acordo com as normas de incidência, taxas e liquidação do imposto em causa, não podendo ter atuado de modo diferente, face ao direito constituído sob pena de violar os referidos princípios da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da segurança jurídica.

5.24. Assim, relativamente às liquidações ora impugnadas, as mesmas foram efetuadas de acordo com as normas aplicáveis em vigor, o artigo 7.º e o artigo 11.º do CISV

5.25. Mas, sustentando a Requerente a anulação parcial dos actos de liquidação, face à actual redação do artigo 11.º, introduzida pela Lei do OE para 2017, lei de valor reforçado, não é possível extrair da norma a aplicação de uma nova redução, além da prevista no artigo 7.º do CISV, atinente à componente ambiental.

5.26. De facto, não se retira da letra da lei, no caso, do artigo 11.º do CISV, ou de outra norma do mesmo código, a aplicação da redução prevista na admissão de veículos usados, para a componente cilindrada, à componente ambiental, além da que já é aplicada por força do artigo 7.º.

5.27. Nesta medida, a interpretação da Requerente ofende claramente o princípio da equivalência previsto no artigo 1.º do CISV, sobre o qual assenta o atual modelo de tributação automóvel, e o artigo 9.º, alínea e) e artigo 66.º, n.º 1 e n.º 2, ambos da CRP, ocorrendo uma violação do princípio constitucional do Estado de direito ambiental.

5.28. Na elaboração do CISV foram considerados os referidos princípios constitucionais, estando subjacentes, designadamente, nos artigos 1.º e 11.º do CISV, não podendo afastar-se a aplicação deste artigo, impondo-se que se afira a sua conformidade com os princípios constitucionais consagrados no artigo 9.º e 66.º da CRP, até porque está em causa matéria de reserva de lei (âmbito de reserva legislativa da Assembleia da República).

5.29. Acrescendo que, a interpretação defendida pela Requerente, posto que defende a aplicação de uma fórmula de cálculo, com atribuição de uma redução não prevista na tabela D do artigo 11.º, acrescenta uma redução à componente ambiental que não está consagrada na letra da lei, que não foi querida pelo legislador, consubstancia assim, também nesta parte, uma violação dos princípios constitucionais aludidos, da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica.

5.30. Por outro lado, a aplicação de tal redução, não prevista na lei, não pode deixar de se considerar como um benefício fiscal que não se encontra previsto na lei e que é inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da CRP, que estabelece que os impostos são criados por lei, determinando esta igualmente a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, que coloca igualmente a Requerente em situação de vantagem face aos demais sujeitos passivos, criando também, nesta parte, uma situação de desigualdade fiscal.

5.31. Ademais, a pretensão da Requerente também olvida que estamos perante um imposto sobre o consumo não harmonizado, e que a tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo, conforme o consagrado no n.º 4 do artigo 104.º da CRP.

5.32. E, sendo um dos princípios gerais da interpretação das normas jurídicas e “critério de interpretação” o da interpretação conforme à Constituição, de acordo com este critério, no caso de o intérprete, mediante a aplicação dos elementos interpretativos, chegar a mais do que um sentido possível a atribuir a um preceito normativo, deve preferir aquele que mais se adeque à Constituição.

5.33. Não podendo, assim, deixar de se considerar o artigo 204.º da CRP, que impõe que os tribunais não apliquem normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

5.34. Por outro lado, ao defender a ilegalidade das liquidações por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, a Requerente, além de violar, por via de tal interpretação, os já referidos princípios, consagrados na nossa Lei Fundamental, viola ainda, por via da desaplicação do artigo 11.º do CISV na redação actualmente em vigor, uma violação do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efectiva.

5.35. De facto, tendo a Requerente recorrido à arbitragem tributária para impugnar as liquidações, a administração encontra-se coartada no seu direito de reacção face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.

5.36. É que o RJAT prevê tão somente três tipos de reações recursórias, sendo eles o recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso para uniformização de jurisprudência e a impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28.º, n.º 1 do RJAT.

5.37. Ora, defendendo a Requerente a violação de um princípio do TFUE no caso concreto, e prevendo o RJAT que o recurso para o Tribunal Constitucional só pode ter como fundamento as alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do TC, não há dúvida que, a vingar tal interpretação, estamos perante uma violação do princípio do livre acesso aos tribunais.

5.38. Verifica-se, pois, face ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4 e 266.º, todos da CRP, a violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.

5.39. Em face do exposto, a interpretação do Requerente do artigo 11.º do CISV viola os princípios, acima mencionados, da legalidade e da legalidade fiscal, da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, do Estado de direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a apreciação da constitucionalidade de tal entendimento, o qual, desde já, reputamos de inconstitucional, não podendo por isso, ser aplicado no caso concreto.

5.40. Devendo a questão da desconformidade do direito nacional, em concreto das normas dos artigos 7.º e 11.º do CISV, aplicáveis à liquidação ora impugnada, ser suscitada junto do TJUE, conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional, designadamente, nos autos de recurso n.º 173/20 e n.º 649/20, ou suspender a instância de acordo com o decidido noutros processos pelo mesmo tribunal e, também, pelo tribunal arbitral.

5.41. Quanto ao direito a juros indemnizatórios, consagrado no artigo 43.º da Lei Geral Tributária, o mesmo pressupõe que se apure a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.

5.42. E, no caso concreto, não se verifica a existência de qualquer erro que possa ser imputável à administração tributária.

5.43. É que, efetivamente, as liquidações em causa nos presentes autos decorreram exclusivamente da aplicação da lei em vigor, tendo aquela sido efetuadas nos termos das normas aplicáveis, previstas no CISV, que determinam a exigibilidade e consequente liquidação do imposto, o que nem sequer é posto em causa pela Requerente.

5.44. E, estando a AT e os seus órgãos, vinculados, na sua atuação, ao princípio da legalidade, a Requerida AT agiu, sempre, em obediência àquele e em conformidade com o direito em vigor, não podendo ter agido de modo diverso, não devendo, consequentemente, ser-lhe atribuído qualquer erro que lhe seja imputável, nos termos do artigo 43.º da LGT, posição que já foi sufragada em sede arbitral, conforme resulta das decisões proferidas nos Processos 348/2019-T, 34/2020-T e 52/2020-T.

5.45. Pelo que, face ao invocado, tendo a AT agido no cumprimento estrito da lei, não se verifica qualquer erro de que possa resultar o pagamento indevido do imposto, sob pena de se verificar com tal interpretação, uma violação, também aqui, do invocado princípio constitucional da legalidade e legalidade fiscal, não devendo assistir, por conseguinte, à Requerente, o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

6. Em 2/10/2020 foi proferido despacho arbitral, dispensando a reunião prevista no art. 18º do RJAT por não estarem preenchidas as circunstâncias que justificam a sua realização, podendo as partes requerer que a mesma tivesse lugar, o que estas não fizeram.

 

II – Factos provados

7. Com base na prova documental constante do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

7.1. O Requerente apresentou em 16.10.2020 na Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, a Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) n.º 2020/..., para introdução no consumo do veículo ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., modelo ..., movido a gasolina, n.º de motor ..., cilindrada ..., com a matrícula definitiva ... .

7.2. Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, o referido veículo insere-se no escalão correspondente à percentagem de redução de 28%.

7.3. No Quadro E das DAV (características do veículo), consta, na casa 50, quanto à Emissão de Gases CO2 o valor de 192 g/Km.

7.4. Foi efectuada a liquidação do imposto, relativa ao veículo identificado na DAV, conforme indicado no Quadros R das declarações, constando desta, igualmente, a identificação do acto de liquidação e data da liquidação (n.º 2020/..., de 21.10.2020 e pagamento em dez dias úteis.

7.5. Foi emitida pela Requerida uma notificação para pagamento 2020/... em 16/10/2020, com prazo de pagamento até 30/10/2020, no valor de € 10.756,92

7.6. O Requerente, em 30.11.2020 apresentou, junto da Instância Arbitral, o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação parcial da liquidação de ISV e o reembolso do montante de 1.604.45 € acrescido de juros indemnizatórios.

 

III - Factos não provados

8. Não se provou que o Requerente tivesse procedido ao pagamento do imposto em causa, uma vez que não juntou aos autos qualquer comprovativo de pagamento, nem o mesmo consta do processo administrativo junto pela Requerida.

 

IV - Do Direito

9. São as seguintes as questões a examinar no presente processo.

- A necessidade de desencadear o reenvio prejudicial junto do TJUE.

- Da ilegalidade das liquidações de ISV.

- Da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV em conformidade com o artigo 110.º do TFUE.

- Da restituição da quantia paga em excesso e do direito a juros indemnizatórios.

Examinar-se-ão assim essas questões:

 

— A DESNECESSIDADE DE REENVIO PREJUDICIAL PARA O TJUE

10. Solicitou a Requerida que fosse desencadeado o reenvio prejudicial junto do Tribunal de Justiça da União Europeia, uma vez que estaria em causa uma questão de Direito da União Europeia.

Acolhendo a doutrina defendida por este Centro de Arbitragem no processo 572/2018-T, “para se recorrer ao processo de reenvio de uma ou mais questões a título prejudicial, para interpretação de uma ou mais normas jurídicas de direito comunitário, originário ou derivado, é necessário que subsistam dúvidas sobre a interpretação do texto em causa, porquanto se o texto a interpretar é perfeitamente claro, não se trata já de interpretar, mas sim de o aplicar, o que é competência do Tribunal incumbido da competência de julgar o caso concreto (aplicando a lei, nacional e/ou comunitária, se for esse o caso)”.

Esta posição foi seguida no processo 202/2020-T, onde se salientou o seguinte:

"Retira-se desta doutrina [do acórdão CILFIT] que o Tribunal de Justiça, no âmbito de um reenvio prejudicial, se pronuncia sobre a “interpretação dos Tratados”, mas não sobre se uma medida nacional é ou não compatível com a norma dos Tratados.

Sendo assim, “uma questão desta natureza”, para efeitos do art. 267º do TFUE será apenas estritamente uma questão de interpretação de uma disposição dos Tratados, e não uma questão de compatibilidade de uma medida nacional com essa mesma disposição.  Com efeito, cremos que é este o entendimento que melhor se coaduna com a formulação adotada pelo Tribunal no acórdão CILFIT, já citado (nº 21) em que se diz que não existe obrigação de reenvio quando a “disposição comunitária” de que se trata já foi objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça. 

Ora, no caso dos autos, está em causa a aplicação de uma disposição do TFUE – o art. 110.º - que já foi interpretado pelo Tribunal de Justiça por diversas vezes, como já foi referido acima. E em todas as vezes que foi chamado a interpretar essa disposição o Tribunal afirmou que “um sistema de tributação de um Estado‑Membro só pode ser considerado compatível com o artigo 110.º TFUE se se verificar que está organizado de modo a excluir sempre a possibilidade de os produtos importados serem tributados mais fortemente que os produtos nacionais e, portanto, que não comporta, em caso algum, efeitos discriminatórios”. 

Perante isto, há que concluir que a disposição cuja aplicação está em causa – o art. 110.º do TFUE – já foi interpretado diversas e bastantes vezes pelo Tribunal de Justiça, de modo que não subsiste qualquer dúvida acerca do seu alcance e significado. 

O que cabe ao Tribunal Arbitral fazer é apenas averiguar a compatibilidade da medida nacional com essa disposição, com o sentido que o TJUE já por inúmeras vezes lhe fixou, pelo que se conclui que o Tribunal não está obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça".

Seguindo esta interpretação, que nos parece a mais adequada, não considera o Tribunal Arbitral necessário desencadear o processo de reenvio prejudicial junto do TJUE.

 

DA ILEGALIDADE DAS LIQUIDAÇÕES DE ISV.

11. Sustenta a Requerente existir ilegalidade das liquidações de ISV, uma vez que a disposição do art. 11º do CISV contraria o art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.

Ora vejamos:

O art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia dispõe expressamente o seguinte:

"Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções".

Dispõe o artigo 11.º, nº1, do CISV o seguinte:

O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:

TABELA D
http://www.pgdlisboa.pt/leis/imagens/1486394471_2016_lei42_artigo217d.gif

Esta redacção do art. 11º, nº1, do CISV foi introduzida pela Lei 42/2016, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), surgida após o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção) de 16 de junho de 2016, emitido no processo C-200/15 relativo à acção incumprimento interposta pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa no qual se declarou a desconformidade da anterior redacção desta disposição com o art. 110º TFUE, nos seguintes termos:

"A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro estado-membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 11º do TFUE (…)Este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU: C:2001:109, nº 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiames e Siilin, C-101/00, EU: C:2002:505, nº  53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, nº 25)” (nº 24 dos fundamentos do acórdão). Assim, a cobrança, por um Estado-Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-membro é contrária ao artigo 110º. do TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C-345/93, EU:C:1995:66, n.º 20, e de 22 de fevereiro de 2001, GomesValente, C-393/98, EU:C:2001:109, n.º 23)” (nº 25 dos fundamentos do acórdão).“ (…) Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 (…) ".

Sucede, porém, que a actual redacção do art. 11º do CISV mantém uma diferenciação com os valores do ISV aplicáveis aos veículos nacionais, e que constam do art. 7º CISV e tabelas anexas, dado que o legislador, em conformidade com o acima referido acórdão do TJUE, alargou as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso, mas introduziu uma outra alteração diferenciadora em relação aos veículos com origem noutros Estados-Membros, com impacto no cálculo do ISV, uma vez que a actual redacção do art. 11º CISV limita a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2), ao contrário do que sucede com os veículos usados já matriculados no território nacional.

Por esse motivo, a jurisprudência deste CAAD tem decidido uniformemente que a actual redacção do art. 11º CISV viola o disposto no art. 110º TFUE (cfr. as decisões dos processos 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350-2019-T, 459/2019-T e 660/2019-T).

É claramente essa a solução desta questão, uma vez que as normas do Direito da União Europeia, no caso o art. 110º TFUE, têm efeito directo e primado sobre o Direito Nacional, não podendo assim o art. 11º CISV contrariar aquela disposição. Ora, existe uma clara violação do artigo 110.° TFUE sempre que o montante de imposto que incide sobre um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro exceda o montante residual do referido imposto incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, o que é o caso.

Quanto à justificação apresentada pela Requerida que a diferenciação na tributação resulta de razões ambientais, a mesma não pode proceder. Como se escreveu na Decisão no processo 660/2019-T "decorre da jurisprudência do TJUE e da própria sistemática do TFUE que, ao contrário do que indica a AT, a norma do artigo 110.º do TFUE é imperativa e sobrepõe-se às normas de cariz ambiental do artigo 191.º do TFUE. Assim, ainda que um EM utilize componente ambientais na determinação do cálculo do regime de tributação de veículos, nunca poderá, com base nessa componente, agravar a tributação de veículos usados provenientes de outros EM face aos veículos usados já matriculados em território nacional". Tal "equivale a dizer que não decorre da legislação aplicável que as regras e princípios ambientais constantes do artigo 191.º do TFUE e artigo 66.º da CRP prevaleçam sobre a regra do artigo 110.º do TFUE que é imperativa para os EM".

É manifesta assim a ilegalidade das liquidações de ISV impugnadas, tendo razão a Requerente nesta questão.

 

- DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ART. 11º DO CISV EM CONFORMIDADE COM O ARTIGO 110º DO TFUE.

12. Veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11.º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da CRP e do disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4, 66º, e 266.º, todos da CRP, i.e. violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

É manifesto que tal não sucede, sendo de salientar que, nos termos do art. 8º, nº4 da Constituição, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático". Não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que in casu não se verificam, recusar a aplicação de normas do Direito da União Europeia invocando disposições do Direito Interno Português.

Relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição.

 

- DA RESTITUIÇÃO DA QUANTIA PAGA EM EXCESSO E DO DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS.

13. A Requerente pede a restituição do imposto pago e ainda juros indemnizatórios, alegando ter feito o pagamento das quantias liquidadas (artigo 4º do pedido de pronúncia arbitral).

Mas, como foi referido ao apreciar a matéria de facto, não se encontra no processo administrativo qualquer documento comprovativo do pagamento, nem o Requerente procedeu à sua junção.

O reembolso e os juros indemnizatórios dependem do pagamento indevido e da data em que ele é efectuado, pelo que não há fundamento factual para se decidir neste processo se o Requerente tem ou não direito a reembolso e a juros indemnizatórios.

A ter ocorrido o pagamento, o Requerente, como consequência da anulação das liquidações,  terá direito a reembolso das quantias pagas e também direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º, nº 1, da LGT, já que a anulação da liquidações se baseia em erro imputável aos serviços. 

Assim, não tendo sido feita prova do pagamento, aqueles pedidos têm de ser julgados improcedentes, sem prejuízo dos eventuais direitos a reembolso e juros indemnizatórios poderem ser reconhecidos ao Requerente em execução de julgado, que é o meio processual adequado para os definir, quando não há elementos para esse efeito no processo declarativo (artigo 609.º, n.º 2, do CPC e 61.º, n.º 2, do CPPT).

 

 

V – Decisão

 

Nestes termos, julga-se procedente o pedido de anulação parcial da liquidação de ISV resultante da Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) n.º 2020/..., anulando-se parcialmente a referida liquidação quanto ao valor de € 1.604,45.

Julgam-se improcedentes os pedidos de reembolso da quantia paga e juros indemnizatórios, sem prejuízo dos respectivos direitos poderem ser reconhecidos em execução da presente decisão.

Fixa-se ao processo o valor de € 1.604,45 (mil, seiscentos e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos) e o valor da correspondente taxa de arbitragem em € 306 (trezentos e seis euros), nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, condenando-se a Requerida nas custas do processo.

 

Notifique as partes e o Ministério Público, este último em virtude da pronúncia sobre a questão da constitucionalidade.

 

Lisboa, 26 de Junho de 2021

 

O Árbitro

 

 

 

(Luís Menezes Leitão)