Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 155/2021-T
Data da decisão: 2021-11-25  IRS  
Valor do pedido: € 62.210,72
Tema: IRS – Residente Não Habitual. Actividades de Elevado Valor Acrescentado.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. A contribuinte A, NIF … (doravante “a Requerente”), e o contribuinte B, NIF … (doravante “o Requerente”), conjuntamente designados, doravante, como “os Requerentes”, apresentaram, no dia 15 de Março de 2021, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), 5º, 3, a) e 10º, 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações efetuadas pela Lei nº 66- B/2012, de 31 de Dezembro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. Os Requerentes pedem a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da decisão de indeferimento expresso do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2019......, proferida pela Direcção de Finanças de ..., que, por consequência, mantém no ordenamento jurídico os actos de liquidação de IRS, n.os 2018 400... e 2018 400..., referentes aos anos de 2014 e 2015, no montante total de €62.210,72 (sessenta e dois mil, duzentos e dez Euros e setenta e dois cêntimos), requerendo a declaração da ilegalidade da referida decisão de indeferimento com as respectivas consequências, designadamente a anulação das liquidações de IRS, a aplicação da taxa especial de 20% de IRS aos rendimentos do trabalho dependente (Categoria A) auferidos pela Requerente e o reembolso do imposto pago em excesso, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 25 de Maio de 2021; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  6. Nos termos art.º 17.º do RJAT, foi a AT notificada, em 25 de Maio de 2021, para apresentar resposta.
  7. A AT apresentou a sua Resposta em 23 de Junho de 2021, juntando cópia do processo administrativo.
  8. O Despacho Arbitral de 9 de Setembro de 2021 dispensou a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, e estabeleceu prazo para alegações.
  9.  O Despacho Arbitral de 26 de Setembro de 2021 fixou o dia 20 de Novembro de 2021 como data previsível para prolação e notificação da decisão arbitral final.
  10. Os Requerentes apresentaram em 24 de Setembro de 2021 as suas alegações escritas.
  11. A Requerida não contra-alegou.
  12. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
  13. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  14. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Fundamentação: a matéria de facto

 

II.A. Factos que se consideram provados e com relevância para a decisão

 

  1. Os Requerentes têm domicílio na Dinamarca.
  2. A Requerente celebrou em 2012 um contrato de trabalho a termo certo com a X (Portugal) Fábrica de Sapatos, Lda. [Doc. 4 anexo ao PPA]
  3. No âmbito desse contrato, a Requerente exerceu funções de Directora de Serviços de Logística. [Docs. 5, 27, 28 e 29 anexos ao PPA]
  4. Em 5 de Março de 2014, a Requerente apresentou o pedido de inscrição no registo de contribuintes como residente não habitual, que foi deferido no mesmo ano, com efeitos reportados ao ano de 2013. [Docs. 6 e 7 anexos ao PPA]
  5. Nos anos de 2014 e 2015 a Requerente obteve rendimentos de trabalho dependente como residente não habitual, que foram sujeitos a retenção na fonte. [Docs. 25 e 26 anexos ao PPA]
  6. Os rendimentos de 2014 da Requerente foram apresentados na Declaração de Rendimentos de IRS, no Anexo L, Quadro 4A, sendo reportados ao código de actividade de elevado valor acrescentado «802», referente aos “quadros superiores de empresas”, nos termos previstos na Portaria nº 12/2010, de 7 de Janeiro, aplicável ex vi art. 72º, 6 do Código do IRS. [Doc. 8 anexo ao PPA]
  7. A Requerente respondeu à solicitação de comprovação documental das funções desempenhadas na sua entidade empregadora, para preenchimento do requisito de “elevado valor acrescentado”. [Processo Administrativo, págs. 152 a 165, 173 a 187]
  8. Relativamente ao ano de 2014, os Requerentes receberam um reembolso de IRS correspondente ao reconhecimento de que fora exercida uma actividade de elevado valor acrescentado [Docs. 9, 10, 11 e 12 anexos ao PPA]
  9. Os rendimentos de 2015 da Requerente foram apresentados na Declaração de Rendimentos de IRS, no Anexo L, Quadro 4A, sendo reportados ao código de actividade de elevado valor acrescentado «802», referente aos “quadros superiores de empresas”, nos termos previstos na Portaria nº 12/2010, de 7 de Janeiro, aplicável ex vi art. 72º, 6 do Código do IRS. [Doc. 13 anexo ao PPA]
  10. De novo foi solicitada a comprovação documental das funções desempenhadas na sua entidade empregadora, para preenchimento do requisito de “elevado valor acrescentado” relativamente ao ano de 2015. [Doc. 14 anexo ao PPA]
  11. De novo a Requerente respondeu a essa solicitação. [Processo Administrativo, págs. 152 a 165, 173 a 187]
  12. Relativamente ao ano de 2015, o IRS dos Requerentes foi liquidado de modo que corresponde ao reconhecimento de que fora exercida uma actividade de elevado valor acrescentado. [Doc. 15 anexo ao PPA]
  13. O imposto liquidado foi pago. [Doc. 16 anexo ao PPA]
  14. Por ofício de 17 de Setembro de 2018 (nº 2018 500...), os Requerentes foram instados a apresentar declarações de substituição para os anos de 2014 e 2015, por ter sido apurado que a Requerente se encontrava inscrita com o código de actividade nº 888, e não com o código nº 802, e notificados para exercerem o seu direito de audição prévia. [Doc. 17 anexo ao PPA]
  15. Os Requerentes exerceram o seu direito de audição prévia. [Doc. 18 anexo ao PPA]
  16. Não obstante, as correcções propostas pela AT foram mantidas, por entender esta que não se fizera comprovação da mudança do código de actividade da Requerente. [Doc. 19 anexo ao PPA]
  17. Os Requerentes receberam os actos de liquidação de IRS, n.os 2018 400... e 2018 400..., referentes aos anos de 2014 e 2015 [Docs. 2 e 3 anexos ao PPA]
  18. As novas liquidações foram pagas em Janeiro de 2019. [Doc. 20 anexo ao PPA]
  19. Em 3 de Maio de 2019, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa, que originou o procedimento nº ...2019....... [Doc. 21 anexo ao PPA]
  20. Aos Requerentes foi comunicado o projecto de indeferimento, tendo os Requerentes exercido o respectivo direito de audição. [Docs. 22 e 23 anexos ao PPA]
  21. Os Requerentes receberam a comunicação da decisão de indeferimento expresso desse procedimento de reclamação graciosa n.º ...2019......, proferida em 14 de Dezembro de 2020 pela Direcção de Finanças de ... [Doc. 1 anexo ao PPA]
  22. Em 15 de Março de 2021 os Requerentes apresentaram o seu Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

II.B. Factos que se consideram não provados

 

Com base nos elementos documentais disponibilizados nos autos e consensualmente aceites pelas partes, verifica-se que, com interesse para a decisão da causa, nada ficou por provar, não havendo controvérsia sobre a matéria de facto.

 

III – Fundamentação: a matéria de Direito

 

Como não se verificam nulidades processuais, passemos ao exame das excepções.

 

III.A. Excepções suscitadas na resposta da AT

 

Na sua Resposta de 23 de Junho de 2021, a AT suscitou matéria de excepção, sobre a qual os Requerentes se pronunciaram por requerimento de 9 de Julho de 2021, depois de convidados a fazê-lo por despacho de 25 de Junho de 2021.

 

III.A.1. Posição da Requerida.

 

  1. A Requerida sublinha que as liquidações não padecem de qualquer ilegalidade, visto que assentaram em declarações dos Requerentes e demais elementos conhecidos à data.
  2. E que, portanto, aquilo que está em causa não é uma ilegalidade das liquidações, mas um enquadramento prévio da actividade da Requerente.
  3. Não se trataria, assim, de apreciar a legalidade da liquidação, mas de contestar um acto administrativo prévio à liquidação, distinto dela, um “acto pressuposto”, e que deveria ter sido contestado autonomamente, com fundamentação própria, com o meio adequado – a acção administrativa e não a impugnação –, e dentro de prazos próprios.
  4. A Requerida invoca, em apoio do seu entendimento, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 718/2017 (processo nº 723/2016).
  5. Daqui retira a Requerida que ocorrem duas excepções dilatórias, acarretando, cada uma, a absolvição da instância (arts. 576º e 577º do CPC):
  1. A impropriedade do meio processual utilizado;
  2. A incompetência do Tribunal Arbitral.

 

III.A.2. Posição dos Requerentes.

 

  1. Pronunciando-se sobre a matéria de excepção, os Requerentes começam por notar que o “acto pressuposto” a que alude a resposta da Requerida nem sequer é identificado concretamente, e menos ainda é feita a demonstração de que tal acto “autonomamente sindicável” tenha sido levado ao conhecimento dos Requerentes.
  2. Mais ainda, sustentam que uma questão como a suscitada – nomeadamente a de se saber se uma impugnação (judicial ou arbitral) está dependente, para proceder, da prévia reacção contenciosa contra um acto antecedente – é uma questão de mérito e não de excepção, devendo ser apreciada no mérito da causa: invocando nesse sentido a decisão do Supremo Tribunal Administrativo em Acórdão de 22 de Março de 2018, proferido no processo n.º 01263/16.
  3. Ainda quanto ao “acto pressuposto”, os Requerentes assinalam que o deferimento do estatuto de residente não habitual nada especificava quanto ao código de actividade da Requerente, quanto ao aludido “enquadramento cadastral do contribuinte”, pelo que nem se vê como é que os Requerentes poderiam reagir autonomamente – sobretudo porque nesse deferimento não lhes foi comunicado qualquer código de actividade, pelo que não surgiu qualquer oportunidade ou interesse de agir contra aquele acto.
  4. Assim sendo, alegam os Requerentes, não foi conferida ao contribuinte uma possibilidade efectiva de reacção contenciosa contra um acto que a AT entende estar pressuposto à liquidação – pelo que não se chega a verificar situação similar à que foi objecto do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 718/2017, convocado pela AT em seu apoio – situação essa em que o contribuinte terá desperdiçado a possibilidade efectiva de reagir contra um “acto pressuposto” que lhe tinha sido prévia, e autonomamente, notificado.
  5. Os Requerentes fazem notar, ainda, que a AT não praticou qualquer acto fundamentado de deferimento ou indeferimento de uma qualquer pretensão dos Requerentes que se reportasse ao preenchimento do requisito adicional previsto no artigo 72.º, 6, do CIRS, para a aplicação da taxa especial de 20%.
  6. Mais ainda, alegam que, mesmo que esse “acto pressuposto” tivesse existido, tivesse sido regularmente constituído e devidamente notificado, ele não passaria de um mero “acto de enquadramento cadastral do contribuinte” que nunca poderia ser considerado como imediatamente lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos – como o foi o “acto pressuposto” que foi referenciado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 718/2017 –, e por isso não podia ser directamente impugnável.
  7. Ora, não sendo impugnável esse “acto pressuposto”, mesmo que tivesse existido e tivesse sido identificado e notificado, não é legítimo retirar-se qualquer conclusão a partir da constatação da não-impugnação – como o faz a Requerida, para excepcionar ao pedido.
  8. Mais grave, sustentam os Requerentes, dessa verificação da inexistência de uma impossibilidade jurídica não pode fazer-se derivar-se um obstáculo à impugnação da liquidação do imposto, atentando dessa forma à garantia constitucional de defesa do direito dos contribuintes.
  9. Além disso, a invocação de um “acto pressuposto” violaria, segundo os Requerentes, o princípio da prevalência da substância sobre a forma, que consistiria na desconsideração da prova, já abundantemente produzida, de qual o genuíno e legítimo “enquadramento cadastral do contribuinte” que se aplica à Requerente – o que aliás, sublinham, a Requerida nem sequer contesta.
  10. Por fim, lembram os Requerentes que o que está em causa é, na substância, se se aplica, ou não, no caso vertente, a taxa especial prevista no art. 72º, 6 do CIRS, ou pelo contrário a taxa geral – o que configura, indubitavelmente, uma questão de legalidade na liquidação.
  11. Essa questão, acrescentam os Requerentes, deve ser apreciada por meio de impugnação, e não de acção administrativa (art. 97º CPPT), cabendo na competência de um tribunal arbitral (arts. 2º, 1, a9 e 10º do RJAT, em articulação com a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
  12. Recordam por fim o precedente do Acórdão Arbitral do Processo n.º 103/2019-T, do CAAD, que apreciou a mesma matéria, referente ao ano de 2013.
  13. Concluindo os Requerentes que deve improceder a invocação das excepções.

 

III.A.3. Decisão sobre as excepções.

 

  1. Ponderados os argumentos, consultados os documentos, analisada a situação, não procedem as excepções formuladas pela Requerida.
  2. Para se aplicar ao caso a doutrina plasmada no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 718/2017, teria que descortinar-se um “acto pressuposto” que, tendo definido clara e fundamentadamente o “enquadramento cadastral do contribuinte” aplicável à Requerente, houvesse sido comunicado aos Requerentes pela forma legal, de modo a propiciar a estes um tempo e um modo de reacção jurídica.
  3. Esse “acto pressuposto” não existiu – ou pelo menos não existiu de forma comprovável e juridicamente válida.
  4. Pelo contrário, da documentação resulta que o código de actividade da Requerente foi fixado pela AT por associação a uma categoria residual, sem se indagar previamente se as funções desempenhadas pela Requerente permitiriam o enquadramento noutra categoria, e nomeadamente no Código 802.
  5. Os Requerentes não reagiram a esse “enquadramento cadastral do contribuinte” porque nenhum acto impugnável consubstanciou esse “enquadramento”.
  6. Os Requerentes limitaram-se a colaborar com a AT no fornecimento de dados que permitiriam rectificar – de novo oficiosamente, pela AT – esse “enquadramento”.
  7. Esse “enquadramento cadastral do contribuinte” constituiu, portanto, um acto interlocutório, não um acto destacável, ou um acto pressuposto e autónomo dotado de lesividade imediata; e como acto interlocutório conserva-se a susceptibilidade de integrar uma impugnação unitária da decisão final que aquele acto tenha contribuído para alicerçar (art. 54º do CPPT).
  8. E, confrontados com liquidações que espelhavam que essa rectificação não tinha sido alcançada, os Requerentes reclamaram graciosamente das próprias liquidações – directamente das liquidações.
  9. E é do indeferimento expresso dessa reclamação graciosa que nasce o Pedido de Pronúncia Arbitral, mantendo-se o objecto da ilegalidade das liquidações, acrescido somente, por óbvio, da impugnação do próprio indeferimento.
  10. Em suma:
  1. inexistindo um “acto pressuposto” contra o qual os Requerentes, devendo ter reagido, tivessem deixado de reagir, não há impropriedade do meio processual utilizado, improcedendo, portanto, a primeira das excepções suscitadas pela Requerida;
  2. pela mesma razão de inexistência de um “acto pressuposto” que devesse ser contestado autonomamente e com fundamentação própria, o objecto do presente processo é somente a apreciação da legalidade das liquidações de IRS apresentadas aos Requerentes e por eles pagas, e nessa matéria o presente Tribunal Arbitral dispõe, nos termos da lei, de plena competência – pelo que improcede, igualmente, a segunda das excepções suscitadas pela Requerida.

 

III. B. Do Mérito

 

Resolvida a matéria das excepções, estamos em condições de apreciar as questões de mérito que se apresentam.

 

III.B.1. Posição dos Requerentes.

 

  1. Os Requerentes começam por sustentar que ocorreu uma omissão de pronúncia e um vício de fundamentação com a recusa infundamentada, por parte da AT, da produção de prova testemunhal que permitiria o apuramento da verdade material quanto ao “enquadramento cadastral do contribuinte” – o que, no seu entender, feriria o princípio do inquisitório e violaria os arts. 56º e 77º da LGT.
  2. Sustentam ainda que fizeram, atempadamente e sempre que lhes foi requerido, a prova adequada das funções exercidas pela Requerente, oferecendo vários meios de prova, de acordo com o princípio geral de prova admitido em Direito Fiscal, que resulta inclusivamente do art. 75º da LGT.
  3. Não deixando os Requerentes de assinalar que em momento nenhum a AT se deu ao trabalho de contestar a verdade dos factos contida nesses diversos meios probatórios.
  4. Por outro lado, os Requerentes contestam a recusa da AT em atender às consequências da prova mesmo assim admitida e produzida, e que, no entender deles, apontava inequivocamente para o preenchimento de todos os requisitos de aplicação do regime especial de tributação de uma actividade de elevado valor acrescentado prestada por um não-residente, identificável pelo código de actividade “802”.
  5. Os Requerentes assinalam que a AT deveria ter utilizado todos os meios de prova que lhe foram apresentados, em cumprimento do estabelecido no art. 50º do CPPT e no art. 58º da LGT – mas não os utilizou, afastando-se da descoberta da verdade material e do princípio do inquisitório.
  6. Quanto à questão controvertida do conceito de “quadros superiores de empresas”, os Requerentes fazem notar que não há uma concretização do conceito em Direito Fiscal, pelo que o conceito há-de buscar-se noutros ramos de direito (de acordo com o art. 11º, 2 da LGT), e nomeadamente no direito do trabalho.
  7. Segundo os Requerentes, o conceito de “quadro superior” é relativo à própria dimensão e perfil de cada empresa, mas há-de aferir-se pela colocação hierárquica do trabalhador, pelas qualificações que lhe são exigidas, pelas responsabilidades que lhe são atribuídas, pela autonomia que lhe é reconhecida e pela remuneração que aufere.
  8. Ora, no entender deles esse conceito é preenchido no desempenho das funções de Directora de Logística, que couberam nos anos de referência à Requerente, implicando responsabilidade, autonomia, independência técnica e poderes de direcção – incluindo a participação nas reuniões do Conselho de Administração.
  9. E que, ao ter indicado esse mesmo Código de atividade “802” no anexo L da declaração de substituição de IRS, a Requerente espelhou fielmente a factualidade descrita, no respeito do quadro legal.
  10. Contra isto, surgiu o entendimento plasmado na Circular n.º 2/2010 de 6 de Maio, nos termos da qual “os quadros superiores de empresas (Código 802), são as pessoas com cargo de direcção e poderes de vinculação da pessoa colectiva”, um entendimento a que a AT se apegou para entender que os Requerentes não tinham, afinal, comprovado o “enquadramento cadastral do contribuinte” por eles pretendido.
  11. Mais tarde, a Circular n.º 4/2019, de 8 de Outubro, veio dispensar o reconhecimento prévio, pela AT, da prestação de actividade de elevado valor acrescentado por parte do contribuinte, conferindo carácter automático ao regime, que passa a vigorar a partir do momento da inscrição como residente não habitual.
  12. Todavia, esta Circular n.º 4/2019, de 8 de Outubro, continua a manter a anterior noção do que seja um “quadro superior” para efeitos de atribuição do Código “802”: são “as pessoas com cargo de direção e poderes de vinculação da pessoa coletiva”.
  13. E por isso a AT continua a exigir, como comprovativo da situação de “quadro superior da empresa”, uma procuração onde conste que o / a Requerente goza de poderes de vinculação da pessoa colectiva.
  14. Ora, no entender dos Requerentes, isto extravasa do quadro legal, não encontrando apoio nos requisitos e formalismos definidos por lei – que caracteriza a função de “quadro superior de empresas” sem associá-la à existência de poderes de direcção ou de vinculação da entidade empregadora.
  15. Além disso, os Requerentes lembram que, para lá da imprecisão conceptual em que a AT incorre, as Circulares (e mais ainda folhetos informativos também convocados para o tema) não são fontes de Direito Fiscal nem têm eficácia vinculativa externa, particularmente quando pretendam acrescentar ou inovar em relação ao quadro legal – como tem sido consistentemente afirmado, em defesa do princípio da legalidade tributária, a todos os níveis, incluindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional.
  16. Mais ainda, sustentam que um entendimento como o que é perfilhado pela AT, fazendo exigências desnecessárias para a verificação do “enquadramento cadastral do contribuinte”, viola o princípio da proporcionalidade, nas vertentes de adequação, necessidade e proporcionalidade “stricto sensu”.
  17. Em contrapartida, os Requerentes invocam, em seu apoio, a decisão no Tribunal Arbitral no Processo nº 103/2019-T, que correu no CAAD e já transitou em julgado, e que, incidindo sobre a liquidação de IRS de 2013 dos Requerentes, tem as mesmas características de facto e de direito que se discutem no presente processo.
  18. Nessa decisão reconheceu-se que é ilegal a exigência, imposta pela AT por via de Circular, da existência de poderes de vinculação da pessoa coletiva por parte dos quadros superiores de empresas – começando pela confusão conceptual entre quadro superior, por um lado, e gerente ou administrador, por outro.
  19. Os Requerentes sustentam ainda que se trata de um entendimento consolidado, pois ele constava já do acórdão proferido no processo n.º 505/2018-T do CAAD, no qual se afastava o entendimento veiculado nas Circulares, em favor do entendimento subscrito em Direito do Trabalho acerca daquilo que é um “quadro superior de uma empresa”.
  20. Por outro lado, os Requerentes contestam o procedimento pelo qual a Requerente se viu remetida, por iniciativa da AT, para o Código de Actividade “888” (outras actividades) no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes (SGRC), e que consideram igualmente ferido de ilegalidade, seja por assentar numa premissa errada (quanto à definição do que seja um “quadro superior de uma empresa”), seja por pressupor que recairia sobre a Requerente um qualquer ónus, nomeadamente o de pedir a inscrição numa actividade de elevado valor acrescentado, sendo que tal ónus pura e simplesmente não existia no momento em que a Requerente apresentou o seu pedido de inscrição como residente não habitual; sendo ainda por fazer corresponder a essa suposta omissão de uma formalidade uma consequência que não tem qualquer apoio legal, e contribui para o afastamento da verdade material.
  21. E contestam particularmente o resultado, que foi o de inclusão num código de actividade residual, “888”, quando estava feita a prova, e oferecida prova adicional, de que o código em que a Requerente deveria ter sido inscrita era, desde o início, e continuou a ser, o “802”.
  22. Concluem os Requerentes que foram violados princípios como os de:
    1. Legalidade, por desconsideração de prova documental facultada;
    2. Inquisitório e Verdade Material, por recusa de prova adicional conducente ao apuramento da verdade material;
    3. Confiança e Boa Fé, ao negar aos Requerentes uma faculdade por alegado incumprimento de uma formalidade não-exigível, e novamente ao desconsiderar a materialidade subjacente, em favor de questões de pura forma.
  23. Daí o pedido dos Requerentes, de que os actos que são objecto do pedido de pronúncia sejam anulados, o imposto pago em excesso seja reembolsado, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal em vigor.
  24. Em Alegações, os Requerentes retomaram fundamentalmente a mesma argumentação supra.

 

III.B.2. Posição da Requerida.

 

  1. Na sua Resposta, a Requerida limitou-se à matéria de excepção, pelo que está implícito que mantém os entendimentos que, quanto ao mérito, foi expendendo nos diversos contactos precedentes com os Requerentes, e em particular no procedimento de reclamação graciosa.
  2. Destacando-se, naturalmente, a ratio decidendi do indeferimento expresso dessa reclamação graciosa, e que é o entendimento, vertido nas Circulares n.º 2/2010, de 6 de Maio, e n.º 4/2019, de 8 de Outubro, de que, para a consideração de que a Requerente fosse considerada “quadro superior de empresa”, seria condição necessária a junção de documento comprovativo do exercício de poderes de direcção, ou de procuração onde constasse que possuía poderes de vinculação da pessoa coletiva nos anos de 2014 e 2015.

 

III.C. Fundamentação da decisão.

 

A questão essencial é a de determinar se, relativamente aos anos de 2014 e 2015, a Requerente fez, ou não, prova de preenchimento dos requisitos (residente não habitual, quadro superior da empresa desempenhando funções de elevado valor acrescentado, com o Código de Actividade “802”) de que depende o direito a ser tributada de acordo com o regime especial previsto no art. 72º, 6 (hoje 72º, 10) do CIRS e na Portaria nº 12/2010, de 7 de Janeiro.

Entendemos que sim, que essa prova foi feita e os requisitos legais preenchidos, e seguiremos aqui os argumentos básicos que conduziram à decisão no Processo nº 103/2019-T, do CAAD, a qual, como já indicado, decidiu sobre as mesmas questões de facto e de direito que são objecto do presente processo, com a única diferença de aquele processo, cuja decisão transitou já em julgado, ter por objecto a liquidação de IRS de 2013, ou seja, aquela que imediatamente precede as liquidações de que aqui nos ocupamos.

Já demos por provado que, no período de 2014 e 2015, a Requerente estava registada como residente não habitual, e que nessa condição obteve rendimentos de trabalho dependente tributáveis em IRS e sujeitos a retenção na fonte.

Demos igualmente por provado que esses rendimentos foram apresentados, em ambos os anos, reportados ao código de actividade de elevado valor acrescentado «802», referente aos “quadros superiores de empresas”, nos termos previstos na Portaria nº 12/2010, de 7 de Janeiro, aplicável ex vi art. 72º, 6 do Código do IRS.

Igualmente ficou provado que em ambos os anos a Requerente comprovou documentalmente o requisito de “elevado valor acrescentado”, caracterizando as funções desempenhadas junto da sua entidade empregadora.

E demos ainda por provado que a liquidação de IRS, em ambos os anos, reflecte a aplicação do regime especial, traduzindo o facto de a AT ter reconhecido o preenchimento, pela Requerente, dos necessários requisitos legais.

Este circunstancialismo, por si só, destrói qualquer sugestão de que a mudança de posição da AT, rejeitando o código de actividade “802” e impondo o código “888”, e determinando a necessidade de declarações de substituição – como foi comunicado aos Requerentes por ofício de 17 de Setembro de 2018 – se justifique por alguma hipotética intempestividade na indicação, pela Requerente, do seu “enquadramento cadastral do contribuinte” e do Código de Actividade correspondente, porque essa indicação já tinha sido feita, e já tinha sido aceite pela AT.

Mais ainda, acompanhamos o entendimento veiculado na decisão do Processo nº 103/2019-T, de que decorre da letra da lei que “o sujeito passivo considerado residente não habitual adquire, automaticamente, o direito a ser tributado como tal [§53]” – como aliás veio a ser reconhecido pela própria AT, na Circular nº 4/2019, que assinala esse automatismo, e afasta qualquer necessidade de reconhecimento prévio para a aplicação do regime especial.

Tudo se cinge, portanto, à definição do que seja “quadro superior de empresa”, e de qual o conceito prevalecente – dado existir uma divergência conceptual entre o sentido comum da expressão, e aquele que consta das Circulares nº 2/2010 e nº 4/2019.

Em primeiro lugar, não é aceitável o entendimento vertido nessas duas circulares, nas quais se verifica uma nítida confusão entre as funções de um “quadro superior”, por um lado, e as funções de um gerente ou administrador, por outro – no momento em que se exige que um “quadro superior” tenha um cargo de direcção e disponha de poderes de vinculação da pessoa colectiva, e se reclama, como comprovativo daquelas funções, um documento a atestar o exercício do cargo de direcção, ou uma procuração da qual conste que o Requerente dispõe de poderes de vinculação da pessoa colectiva.

Em segundo lugar, está perfeitamente estabelecido, a todos os níveis da jurisprudência constitucional, jurisdicional e arbitral, que as Circulares não vinculam os particulares, não têm eficácia vinculativa externa, e tão-pouco constituem fontes de Direito Fiscal – pelo que, fosse qual fosse o conceito de “quadro superior de empresa” que as Circulares perfilhassem, ele não seria oponível aos Requerentes, e menos ainda teria a possibilidade de se sobrepor ao conceito que resultasse do enquadramento legal.

Em terceiro lugar, o sentido comum de “quadro superior” (reportado ao exercício de funções de maior complexidade técnica, de elevada confiança e autonomia, de elevada responsabilidade ou especial qualificação), que é aquele que tem curso no Direito do Trabalho, é também aquele que deve vigorar no Direito Fiscal, por força do disposto no art. 11º, 2 da LGT, já que é notório que não há nenhum conceito de “quadro superior” que seja privativo do Direito Fiscal.

Demos por provado que, no período de 2014 e 2015, a Requerente exerceu funções de Directora de Serviços de Logística, e toda a documentação que comprova esse facto demonstra que as suas funções integram o sentido de “quadro superior” que deve ser adoptado no Direito Fiscal.

Assim, os rendimentos auferidos pela Requerente nos anos de 2014 e 2015 foram objecto de uma liquidação inicial que era a correcta.

E são ilegais, por vício de violação da lei, as correcções determinadas pela AT, inicialmente comunicadas aos Requerentes pelo ofício de 17 de Setembro de 2018 (nº 2018 500...), traduzidas nos actos de liquidação de IRS, n.os 2018 400... e 2018 400..., referentes aos anos de 2014 e 2015, e mantidas com o indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2019......, proferida em 14 de Dezembro de 2020.

Estas liquidações devem ser anuladas, e reembolsado o imposto pago em excesso.

Este entendimento do Tribunal prejudica o conhecimento de outras questões suscitadas pelos Requerentes, nomeadamente questões de legalidade e de constitucionalidade conexas com a alegada violação do princípio do inquisitório e do respeito pela verdade material, ou dos princípios da confiança e da boa fé.

 

III.C.1. Do direito a juros indemnizatórios

 

O direito a juros indemnizatórios depende da existência de erro imputável aos serviços, de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (art. 43º LGT).

É o caso: ocorreu uma ilegalidade por erro imputável aos serviços da Requerida, e os Requerentes pagaram imposto indevido.

Logo, têm os Requerentes direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados à taxa legal sobre a quantia paga em excesso, desde o momento desse pagamento até ao momento do efectivo reembolso (arts. 43º LGT e 61º CPPT).

 

IV. Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar improcedente a excepção de impropriedade do meio processual utilizado;
  2. Julgar improcedente a excepção de incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer do presente pedido;
  3. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, determinando-se a revogação da decisão de indeferimento expresso do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2019...... e declarando-se a ilegalidade das liquidações impugnadas, n.os 2018 400... e 2018 400..., com a consequente anulação e reembolso das importâncias indevidamente cobradas, acrescidas dos correspondentes juros indemnizatórios, contados nos termos legais.

 

V. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em €62.210,72 (sessenta e dois mil, duzentos e dez euros e setenta e dois cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. Custas

 

Custas no montante de €2.448,00 (dois mil, quatrocentos e quarenta e oito euros) a cargo da Requerida (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 25 de Novembro de 2021

 

Os Árbitros

 

 

Manuel Luís Macaísta Malheiros

 

Rui Duarte Morais

 

Fernando Araújo