Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 653/2021-T
Data da decisão: 2022-06-06  IRC  
Valor do pedido: € 374.608,57
Tema: Tributação autónoma. O artigo 88.º, n.ºs 3 e 9, do Código do IRC contém normas de incidência tributária que não consagram uma presunção passível de prova em contrário.
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SUMÁRIO

  1. Por Acórdão de uniformização de jurisprudência de 24.3.2021, proferido no processo n.º 1/2021, o Supremo Tribunal Administrativo clarificou que “as disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.”
  2. Não constando das referidas disposições presunção alguma, não releva, para efeitos de tributação autónoma, se os veículos da frota das sociedades em apreço são utilizados parcial ou exclusivamente para a prossecução da respetiva atividade.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Doutora Rita Guerra Alves e Doutor Tito Barros Caldeira, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 24.12.2021, acordam no seguinte:

  1. RELATÓRIO
  1. A..., S.A., com o NIPC..., sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa (doravante “Requerente”), na sequência do indeferimento da reclamação graciosa que deu origem ao processo n.º ...2021..., veio, em 13.10.2021, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) contra o referido ato de indeferimento e contra os atos a ele subjacentes, a declaração de substituição de IRC Modelo 22 n.º ..., de 13.2.2020, e a declaração de substituição subsequente (n.º..., de 30.10.2020), referentes ao exercício de 2018, na parte relativa ao montante de imposto pago a título de tributações autónomas correspondente a 374.608,57€, pretendendo a anulação deste valor e a respetiva restituição, acrescido de juros indemnizatórios.
  2. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  3. A Requerente fundamenta o PPA, em síntese, nos seguintes termos:
  1. A jurisprudência, designadamente a arbitral, tem de forma quase unânime entendido que a tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC tem implícita uma presunção suscetível de ser ilidida através de prova de que o uso dos veículos referidos nessas disposições é “exclusivamente empresarial”;
  2. Da jurisprudência arbitral resulta que, para ilidir esta presunção, não é necessário apurar a utilização efetiva das viaturas, sendo suficiente ao sujeito passivo provar que (i) o risco do uso das viaturas fora da atividade empresarial é baixo, (ii) as características das viaturas dificultam o uso não empresarial, e/ou (iii) tem critérios genuínos para aferir do uso não empresarial das viaturas e um sistema de monotorização adequado;
  3. A frota do Grupo B... inclui motociclos utilizados pelos carteiros dos A... e “viaturas de serviço geral” (i.e., viaturas ligeiras de passageiros que estão à disposição dos funcionários e colaboradores das sociedades do Grupo B... para deslocações ao serviço das respetivas sociedades);
  4. Sendo estes veículos utilizados exclusivamente para prossecução da atividade das sociedades do Grupo B..., encontra-se ilidida a presunção implícita no artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC;
  5. Os carteiros que utilizam motociclos próprios para distribuição de correio são compensados pelas sociedades do Grupo B... através de “abonos quilométricos”, que, por não encerrarem qualquer remuneração encapotada, não se encontram sujeitos a tributação autónoma nos termos do n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC relativamente à parte correspondente ao limite previsto na Portaria n.º 1553-D/2008, de 31 de dezembro, com as adaptações decorrentes do Decreto-Lei n.º 137/2010, de 28 de dezembro e na Circular n.º 19/93, ou seja, 0,144€ por quilómetro (ficando, no remanescente, os carteiros sujeitos a tributação em sede de IRS);
  6. O indeferimento da reclamação graciosa que deu origem ao processo n.º ...2021... é ilegal na medida em que desatende o reconhecimento da ilegalidade (por indevida autoliquidação) da tributação autónoma sobre (i) encargos com motociclos e viaturas ligeiras de passageiros da frota do Grupo B... exclusivamente afetos à atividade das sociedades do mesmo Grupo, e (ii) a compensação pela deslocação em motociclo próprio dos trabalhadores / carteiros (“abonos quilométricos”), assim como é ilegal esta parte da autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2018, no montante de 374.608,57€;
  7. É inconstitucional a interpretação da norma do n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC, no sentido de que a presunção implícita de empresarialidade parcial das despesas e encargos com veículos não seria elidível (presunção-ficção), e da norma do n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC, no sentido de que não seria igualmente elidível a presunção implícita de que os abonos quilométricos atribuídos estariam acima do custo incorrido pelo trabalhador ao serviço da empresa, por violação dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da tributação fundamentalmente do rendimento real, e da proporcionalidade, decorrentes dos artigos 2.º (Estado de Direito), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 (repartição justa) e 104.º, n.º 2, da CRP;
  8. É inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil, interpretada como dela se extraindo o critério normativo de que a intensidade da prova exigida para efeitos de elisão da presunção implícita nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, qual seja a elisão de presunção de empresarialidade parcial dos gastos ou, na outra face da mesma moeda, de utilização pessoal dos gastos, seria o de que (i) não ocorra em caso algum utilização pessoal e/ou (ii) se verifique que a utilização das viaturas seja, em termos permanentes e de modo exclusivo, para finalidades próprias da atividade empresarial do requerente, por violação dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da tributação fundamentalmente do rendimento real e da proporcionalidade, em especial na vertente da proibição de excesso e da justa medida, decorrentes dos artigos 2.º (Estado de Direito), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 (repartição justa) e 104.º, n.º 2, da CRP;
  9. É inconstitucional a interpretação das normas constantes dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, no sentido de que não integram presunção (i) de uso pessoal ou privado, maxime pelos trabalhadores e colaboradores da empresa, dos veículos a que se referem os encargos tributados, e de abonos quilométricos acima do custo incorrido pelo trabalhador ao serviço da empresa, cuja prova em contrário deva ser admitida, ou, dito de outro modo, (ii) interpretadas no sentido de estar o sujeito passivo do imposto impedido de afastar a tributação aí prevista quando se comprove que as despesas e encargos aí em causa não são efetivamente desviados para consumos/utilizações alheias à atividade da empresa, por violação dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da tributação fundamentalmente do rendimento real, e da proporcionalidade, decorrentes dos artigos 2.º (Estado de Direito), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 (repartição justa) e 104.º, n.º 2, da CRP;
  10. É inconstitucional a interpretação das normas constantes dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, no sentido de que “operam objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa [apenas dependendo unicamente, pois, da realização das despesas ou no incorrer dos encargos aí previstos]”, por violação dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da tributação fundamentalmente do rendimento real, e da proporcionalidade, decorrentes dos artigos 2.º (Estado de Direito), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 (repartição justa) e 104.º, n.º 2, da CRP;
  11. É inconstitucional a interpretação das normas constantes dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, no sentido de que se aplicam também a encargos com veículos ligeiros de passageiros e motociclos e a abonos quilométricos, comprovadamente utilizados, para além da dúvida razoável, veículos, motociclos e quilómetros percorridos em viatura própria, exclusivamente ao serviço da empresa e da sua atividade empresarial, por violação dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da tributação fundamentalmente do rendimento real, e da proporcionalidade, decorrente dos artigos 2.º (Estado de Direito), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 (repartição justa) e 104.º, n.º 2, da CRP;
  12. O desvalor de inconstitucionalidade e razão de ser da mesma, implicados nas leituras de ângulos diferentes da norma em concreto em confronto (i) contém presunção implícita, mas não é elidível, (ii) não contém presunção implícita alguma, e (iii) aplica-se objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa, são nas circunstâncias do caso os mesmos;
  13. A Requerente suportou com respeito ao exercício de 2018 imposto em montante superior ao legalmente devido, pelo que, declarada a ilegalidade da (auto)liquidação na parte peticionada no PPA, a Requerente tem direito não só ao respetivo reembolso, mas também, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, a juros indemnizatórios, contados desde 15.7.2022 (data do despacho de indeferimento da reclamação graciosa em apreço).
  1. A Requerente juntou 23 documentos ao PPA e arrolou 5 testemunhas.
  2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral e o PPA foram aceites pelo Exmo. Presidente do CAAD em 14.10.2021 e notificados à Requerida em 19.10.2021.
  3. Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os ora signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  4. As partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
  5. O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 24.12.2021.
  6. Em 3.2.2022, a Requerida juntou processo administrativo e apresentou a sua resposta, pugnando pela improcedência do PPA com os seguintes fundamentos:
  1. A tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.ºs 3 e 9, do Código do IRC não tem subjacente qualquer presunção, visto que o legislador não estabeleceu a necessidade de verificação de quaisquer requisitos (e.g., falta de carácter empresarial da despesa) para que operasse a tributação autónoma de encargos com viaturas ligeiras de passageiros e motociclos prevista nessas disposições;
  2. Estas normas são indubitavelmente normas de incidência tributária, não consagrando nenhuma presunção cuja prova em contrário possa ser admitida (e.g., por os veículos estarem integralmente afetos à atividade desenvolvida);
  3. Do texto da lei resulta que só não haverá a tributação prevista no artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC nos casos previstos no n.º 6 do mesmo artigo, não podendo aquela norma de incidência ser objeto de integração analógica;
  4. Quanto aos encargos dedutíveis relativos a despesas com ajudas de custo e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador (“abonos quilométricos”), nos termos do artigo 88.º, n.º 9, do Código do IRC, a tributação autónoma só recai sobre os encargos que tenham um fim estritamente empresarial, que estejam ligados à obtenção de proveitos e que sejam fiscalmente dedutíveis nos termos do artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC;
  5. A persistente ênfase que a Requerente faz à especial natureza da sua atividade comercial e ao contexto da utilização dos seus veículos não são argumentos aptos a afastar aquilo que a lei fiscal expressa e claramente consagra: a sujeição a tributação autónoma dos encargos referidos nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC;
  6. Dado que a pretensão da Requerente não tem suporte nem na letra da lei, nem na ratio dos preceitos em causa, não poderia a Requerida proceder a uma interpretação corretiva da lei que lhe cumpre aplicar uma vez verificados os pressupostos legalmente definidos;
  7. A interpretação veiculada pela Requerente mostra-se contrária à nossa Constituição, na medida em que viola o princípio constitucional da legalidade, patente no n.º 2 do artigo 103.º da CRP, nos seus corolários da reserva de lei parlamentar e da tipicidade, e o princípio da segurança jurídica e proteção da confiança;
  8. Deve, por isso, ser julgado inconstitucional o artigo 88.º, n.ºs 3 e 5, do Código do IRC, por violação dos princípios da legalidade (tipicidade e reserva de lei parlamentar) e da proteção jurídica e da confiança (artigo 103.º, n.ºs 2 e 3, da CRP), quando interpretado no sentido de albergar em si uma presunção ilidível, nos termos e para os efeitos do artigo 73.º da LGT, capaz de afastar a tributação sobre encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do art.º 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, sempre que seja possível provar a sua indispensabilidade para o funcionamento eficiente das empresas;
  9. Acresce que a interpretação normativa de que o artigo 88.º, n.ºs 3 e 6, do Código do IRC, como norma de incidência, alberga em si uma presunção ilidível de empresarialidade parcial através da aplicação do artigo 73.º da LGT, viola dois princípios subjacentes à redação do artigo 103.º, n.º 1, da CRP, o da eficácia e eficiência fiscais, e que se concretizam na ideia concreta e real de que o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, o que deverá ser alcançado da forma mais eficiente possível;
  10. Deve também ser julgada inconstitucional a interpretação normativa do artigo 88.º, n.ºs 3 e 6, do Código do IRC quando seja no sentido de, enquanto norma de incidência anti-abuso, se considerar que alberga em si uma presunção ilidível de empresarialidade parcial das despesas através da aplicação do artigo 73.º da LGT, dado que viola dois princípios subjacentes à redação do artigo 103.º, n.º 1 da CRP, o da eficácia e eficiência fiscais, e que se concretizam na ideia concreta e real de que as tributações autónomas que incidem sobre os encargos das viaturas automóveis ligeiras de passageiros e mistas visam, primacialmente, a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas, uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, bem como prosseguem finalidades extrafiscais, o que deverá ser alcançado da forma mais eficiente possível.
  1. No dia 12.5.2022 teve lugar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT para inquirição de quatro testemunhas arroladas pela Requerente, tendo o Tribunal na mesma reunião notificado as partes para apresentarem alegações escritas simultâneas no prazo de 5 dias, informado as partes de que a data prevista para a decisão arbitral seria 5.6.2022, e advertido a Requerente de que deveria proceder ao pagamento da taxa de justiça subsequente até essa data.
  2. No dia 13.5.2022, a Requerente juntou aos autos comprovativo desse pagamento.
  3. A Requerida e a Requerente apresentaram alegações em 17.5.2022, reiterando a posição constante dos respetivos articulados.

 

 

 

  1. SANEADOR
  1. O PPA apresentado em 13.10.2021 é tempestivo porque apresentado no prazo de 90 dias a contar da notificação do indeferimento da reclamação graciosa (19.7.2021), nos termos dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 102.º, n.º 1, alínea e), do CPPT.
  2. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer da ilegalidade do ato de autoliquidação em apreço (cfr. artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), tendo a Requerente recorrido à via administrativa conforme exigido pelos artigos do 131.º do CPPT e 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
  3. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e estão devidamente representadas.
  4. O processo não enferma de nulidades e as partes não suscitaram exceções dilatórias ou questões prévias.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

§1. Factos provados

  1. Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
  1. A Requerente é a sociedade dominante e responsável pela autoliquidação de IRC do Grupo B... (no âmbito do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades previsto nos artigos 69.º e ss. do Código do IRC), não beneficiando de isenção subjetiva para efeitos de IRC (facto não controvertido, à luz do PPA e da resposta da Requerida);
  2. Para efeitos da prossecução da sua atividade de distribuição postal, as sociedades do Grupo B... são proprietárias de motociclos e de viaturas ligeiras de passageiros (cfr. alegado no PPA e declarações das quatro testemunhas arroladas pela Requerente, não sendo esta matéria contestada pela Requerida);
  3. No exercício de 2018, a Requerente suportou encargos relativamente a motociclos para distribuição de correio e viaturas ligeiras de passageiros que qualifica como “viaturas de serviço geral”, e pagou “abonos quilométricos” aos carteiros que usaram motociclos próprios na distribuição postal (facto não controvertido, à luz do PPA, da resposta da Requerida, e da prova testemunhal produzida);
  4. A Requerente dispõe de uma política de utilização dos motociclos para distribuição de correio e das “viaturas de serviço geral” e procedimentos de controlo que visam garantir que os mesmos são utilizados em exclusivo para a prossecução da atividade empresarial do Grupo B... (cfr. alegado no PPA e resulta da prova testemunhal produzida);
  5. Em 18.6.2019, a Requerente apresentou a declaração de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2018, tendo sido apurado um valor de tributação autónoma de 540.195,17€ (cfr. documento 2 junto ao PPA);
  6. Nas declarações de substituição IRC Modelo 22 n.º..., de 13.2.2020, e n.º..., de 30.10.2020, apresentadas pela Requerente também com referência ao exercício de 2018, constava o montante de 517.276,79€ a título de tributações autónomas (cfr. documentos 3 e 4 juntos ao PPA);
  7. Nestas declarações de substituição, a tributação autónoma liquidada com respeito a encargos com motociclos e com “viaturas de serviço geral” que integram a frota A..., e a “abonos quilométricos” pelo uso de motociclo própria do trabalhador / carteiro foi de 374.608,57€ (cfr. alegado pela Requerente no PPA e não contestado pela Requerida);
  8. Em 26.5.2021, a Requerente apresentou reclamação graciosa do ato tributário de autoliquidação de IRC respeitante ao período de tributação de 2018, na parte relativa a (i) encargos com motociclos utilizados na atividade de distribuição postal, no montante de 150.374,83€, (ii) encargos com certas viaturas ligeiras de passageiros (que a Requerente qualifica como “viaturas de serviço geral”), no montante de 124.355,94€, e (iii) encargos dedutíveis relativos a despesas com ajudas de custo e compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador / carteiro (“abonos quilométricos”), no montante de 99.877,80€, por entender que estes encargos não são passíveis de ser tributados nos termos do artigo 88.º, n.ºs 3 e 9, do Código do IRC, por os ditos veículos ligeiros de passeiros e motociclos terem sido utilizados de forma permanente e exclusiva para finalidades próprias da atividade empresarial da Requerente e, assim sendo, por se encontrar ilidida a presunção de extra empresarialidade que as referidas normas encerram (cfr. documento 5 junto ao PPA e cópia de reclamação graciosa junta ao processo administrativo);
  9. No âmbito do processo de reclamação graciosa n.º ...2021..., a Requerente foi notificada para exercer o direito de audição nos termos do artigo 60.º da LGT, tendo optado por não o fazer (cfr. documento 5 junto ao PPA);
  10. Em 19.7.2021, a Requerente foi notificada do indeferimento da referida reclamação graciosa constante do ofício n.º..., de 16.7.2021 (cfr. registo dos A... em anexo ao documento 5 junto ao PPA);
  11. Na sequência deste indeferimento, a Requerente apresentou o PPA em 13.10.2021.

§2. Factos não provados e fundamentação da matéria de facto

  1. Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
  2. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
  3. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
  4. Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo, e nas declarações de quatro testemunhas arroladas pela Requerente e inquiridas na reunião de dia 12.5.2022.
  5. As testemunhas inquiridas nesta reunião são funcionários e colaboradores da Requerente, responsáveis pela organização da distribuição postal, pela contabilidade e fiscalidade, pela gestão do imobiliário, e pela gestão de frota.
  6. As ditas testemunhas atestaram que os motociclos e as “viaturas de serviço geral” que integram a frota A... não são afetos a nenhum colaborador em particular e que os mesmos se encontram afetos exclusivamente ao serviço das empresas do Grupo B... .
  7. As referidas testemunhas descreveram também a política de utilização dos motociclos e das “viaturas de serviço geral” que integram a frota A... e os procedimentos de controlo que visam garantir que estes veículos são utilizados em exclusivo para efeitos de prossecução da atividade das empresas do Grupo B..., sendo os referidos procedimentos de controlo, na opinião das testemunhas inquiridas, muito apertados.
  8. Todavia, na convicção do Tribunal, a prova testemunhal produzida não permite concluir que todos os motociclos e “viaturas de serviço geral” que integram a frota A... foram na realidade utilizados exclusivamente para prossecução da atividade do Grupo B..., sendo a dificuldade de tal prova precisamente a razão de ser da tributação autónoma contida no artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC.
  9. Na verdade, apenas se provou que a Requerente criou regras internas de utilização dos veículos em causa e meios de controlo com o objetivo de obstar ou dificultar a utilização dos mesmos para fins privados, não tendo a Requerente logrado produzir prova convincente sobre a eficácia da implementação destas regras e meios de controlo.
  10. Apenas uma das testemunhas inquiridas atestou ter conhecimento de um colaborador que foi alvo de procedimento disciplinar por uso irregular de veículo da frota dos A... .
  11. Ora, sendo a frota dos A... composta por centenas de motociclos e centenas de “viaturas de serviço geral”, na convicção do Tribunal, é estatisticamente pouco provável que, ao longo dos últimos anos, apenas um dos colaboradores das várias sociedades que integram o Grupo B... tenha incumprido a política de utilização dos mesmos veículos, o que parece indiciar que os procedimentos de controlo da utilização dos veículos da frota A... não serão tão eficazes como as testemunhas inquiridas parecem acreditar.
  12. Acresce que, nada do alegado pela Requerente nos articulados que apresentou e do declarado pelas testemunhas por si arroladas altera o facto de os veículos em apreço serem especialmente propensos ao uso fora da atividade empresarial da empresa, não sendo esta utilização afastada pela baixa cilindrada dos veículos em apreço, ou pela respetiva cor e identificação com o logótipo A..., ou por não se encontrarem afetas a um colaborador em específico.
  13. Para além das características dos motociclos e das “viaturas de serviço geral” que integram a frota A... não impedirem o uso não empresarial dos mesmos pelos colaboradores das empresas do Grupo B..., não logrou a Requerente provar que o risco de uso dos veículos fora da atividade empresarial é baixo.
  14. Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

§1. Questões a decidir         

  1. Tendo em consideração a posição das partes, as questões decidendas são as seguintes:
  1. Se a tributação autónoma sobre os encargos enunciados no artigo 88.º, n.ºs 3 e 9, do Código do IRC tem implícita uma presunção de empresarialidade desses encargos, suscetível de ser ilidida nos termos do artigo 73.º da LGT?
  2. É inconstitucional o artigo 88.º, n.ºs 3 e 9, do Código do IRC com um ou vários dos fundamentos alegados pelas partes?

§2. Da alegada presunção de empresarialidade dos encargos enunciadas no artigo 88.º, n.ºs 3 e 9, do Código do IRC

  1. A Requerente e a Requerida contendem sobre a questão de saber se as disposições contidas nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC contêm uma presunção implícita suscetível de ser ilidida, ou se constituem meras normas de incidência tributária que operam verificados os respetivos pressupostos.
  2. A respeito desta questão, interessa atentar ao disposto no artigo 88.º do Código do IRC, na parte relevante, na redação em vigor em 2018:

“3 - São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas:


a) 10 % no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a (euro) 25 000

 

b) 27,5 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 25 000 e inferior a (euro) 35 000

 

c) 35 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a (euro) 35 000.


5 - Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.


6 - Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com:


a) Viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo; e


b) Viaturas automóveis relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS. (...)

 

9 - São ainda tributados autonomamente, à taxa de 5 %, os encargos efetuados ou suportados relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário.”

  1. O Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de uniformização de jurisprudência de 24.3.2021, proferido no processo n.º 1/2021, clarificou que “as disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.”
  2. No mesmo Acórdão, que o presente Tribunal acompanha integralmente, pode-se ler:

“No caso vertente, o mecanismo da tributação autónoma resulta da associação do sujeito passivo à realização de certas despesas. A sujeição a imposto é a consequência jurídica da verificação de um certo facto tributário — a realização da despesa legalmente prevista —, não se descortinando aí uma qualquer condição de aplicação da norma que se prenda com a demonstração, por inferência, de outro facto. A própria realização da despesa determina a aplicação da norma.

A inexistência de uma qualquer presunção legal relacionada com o carácter empresarial das despesas surge também evidenciada pelo contexto verbal das disposições em causa. Excluem-se da tributação autónoma certo tipo de veículos de acordo com critérios de política fiscal e estabelecem-se taxas diferenciadas com base em características atinentes ao custo de aquisição dos bens (artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC) e à tipologia dos veículos (artigo 88.º, n.os 17 e 18, cf. Lei n.º 82 -D/2014). Também no que concerne aos encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, a que se reporta o n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC, a incidência da tributação autónoma determina-se em função de certos aspectos relacionados com a específica situação tributária que está em causa.

Acresce ainda o facto de as taxas de tributação autónoma serem elevadas em 10 pontos percentuais relativamente aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem os factos tributários competentes relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC (artigo 88.º, n.º 14, do Código do IRC).

Em suma, as normas de incidência em apreço não assentam na demonstração, por inferência de certos factos presumidos, que possam ser afastados na base de prova em contrário, mas operam objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa.

E basta notar que a razão de ser das tributações autónomas é complexa e múltipla, podendo ter em vista prevenir, por razões de cobrança de receita fiscal, que seja afetada a receita respeitante à tributação do lucro tributável, desincentivar, por razões de política extrafiscal, certas despesas que são reputadas socialmente como inconvenientes e desincentivar despesas normalmente associadas a comportamentos evasivos ou mesmo fraudulentos (v., entre o mais, o n.º 14 do artigo 88.º).

6 — Não pode ignorar-se que diversa jurisprudência arbitral tem acolhido o entendimento de que as tributações autónomas têm subjacente uma presunção de empresarialidade parcial das despesas sobre que incidem, partindo da ideia de que essas despesas revestirão, em regra, uma dupla natureza, correspondendo a gastos que em parte se enquadram na actividade produtiva da empresa e noutra parte se reportam a despesas de consumo de carácter particular.

Quanto a esta jurisprudência, começa por se perceber mal o que se entende por presunção parcial. Parece querer dizer-se que as normas que preveem a tributação autónoma estabelecem uma presunção quanto ao carácter não empresarial das despesas, mas que (conforme configuradas pelo legislador essas normas) o contribuinte não poderá ilidir na sua globalidade na medida em que há sempre despesas que se presume que são do foro privado e, como tal, são inilidíveis.

Esta abordagem coloca, desde logo, uma dificuldade. É que a jurisprudência constitucional tem afastado a instituição de presunções inilidíveis em matéria tributária por se considerar que impossibilitam o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva que a lei tem como presumida com base num certo pressuposto económico (acórdãos n.os 348/97, 452/2003 e 211/2003). E, por isso mesmo, existindo uma presunção de que as despesas não se justificam por razões empresariais, o interessado deveria ser chamado a fazer a prova de que não ocorre o facto que constitui a base da presunção (que é, afinal, note -se, a realização da despesa), o que lhe permitiria excluir da tributação não apenas uma parte das despesas mas a sua totalidade.

A pretendida presunção implícita de não empresarialidade das despesas está, por sua vez, associada ao próprio objectivo fiscal que se pretende com a tributação autónoma.

Como explica Saldanha Sanches, a introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa «zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial» e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (Manual de Direito Fiscal, 3.ª ed., Coimbra, p. 407).

E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal. O legislador tem em vista desincentivar a realização de certas despesas, admitindo a dedutibilidade do custo, mas reduzindo a vantagem fiscal por via da tributação autónoma, assim se compreendendo que a tributação incida não sobre a percepção de um rendimento mas sobre a realização de despesas.

Assim sendo, a presunção que se pretende ilidir por prova em contrário não é a natureza não empresarial das despesas mas a própria razão de política fiscal que levou o legislador a tributar essas despesas, levando a discussão para o plano da conformação legislativa que se encontra vedado ao julgador.

Certo é que o autor há pouco citado refere, a propósito da tributação autónoma, que se cria aqui «uma espécie de presunção de que estes custos não têm uma causa empresarial» (ob. e loc. cit.). Mas como se depreende de todas as considerações que antecedem esse excerto, o autor não está a referir-se a uma presunção em sentido técnico jurídico, mas a fazer notar justamente o objectivo fiscal que se teve em vista ao tributar esses custos.

Nestes termos, em face da apontada jurisprudência, não há motivo para alterar o entendimento anteriormente exposto, havendo de concluir-se que as disposições legais que estabelecem tributações autónomas objeto dos n.os 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário.

Não obstante todo o esforço argumentativo da Recorrente para demonstrar o contrário, a interpretação que fez a decisão recorrida dos preceitos em causa é a que, por um lado, desde logo, tem assento na letra da lei, a qual não contém de forma expressa ou de algum modo sugestionada, uma qualquer presunção de empresarialidade das despesas (artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil), e, por outro, a que respeita o espírito e a finalidade da criação da tributação autónoma, tal como o acórdão recorrido explanou, sob pena de, na adoção da tese contrária, e usando as palavras da Recorrida, se esvaziar a teleologia das tributações autónomas, retirando -lhe qualquer conteúdo prático-tributário, pois ela conduz a um efeito nulo do regime, seja nas práticas que visa evitar e desincentivar, seja na arrecadação de receita fiscal. Em conclusão, tal como a decisão recorrida entendeu, as disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objeto dos n.os 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário, pelo que o recurso não merece provimento.”

  1. Seguindo o entendimento do nosso Supremo Tribunal Administrativo contido neste Acórdão, temos que os n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência que operam objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo a sua aplicação da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa.
  2. Não constando das referidas disposições presunção alguma, não releva, para efeitos de tributação autónoma, se os veículos da frota A... em apreço são utilizados parcial ou exclusivamente para a prossecução da respetiva atividade.
  3. Tal como alegado pela Requerida, da letra da lei resulta que o legislador apenas pretendeu excluir da sujeição a tributação autónoma encargos relacionados com motociclos e viaturas ligeiras de passageiros nas condições referidas no n.º 6 do artigo 88.º do Código do IRC.
  4. Também como alegado pela Requerida, o facto de os motociclos e os “veículos de serviço geral” da frota A... serem indispensáveis à atividade do Grupo B... releva para aferir da dedutibilidade dos respetivos encargos nos termos do artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC, mas já não para efeitos de tributação autónoma nos termos do n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC (que aliás opera independentemente da referida dedutibilidade).
  5. Cumpre referir que, ainda que se aceitasse a posição da Requerente de que o n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC tem nele implícita uma presunção suscetível de ser ilidida por prova de que o uso dos veículos referidos nessa disposição é “exclusivamente empresarial”, temos não ser convincente a argumentação da Requerente de que, para ilidir esta presunção, não seria necessário demonstrar a utilização efetiva das viaturas, e que seria suficiente demonstrar que o risco do uso das viaturas fora da atividade empresarial é baixo, que as características das viaturas dificultam o uso não empresarial, ou que a Requerente tem critérios genuínos para aferir do uso não empresarial das viaturas e um sistema de monotorização adequado.
  6. O legislador introduziu a tributação autónoma do artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC com o objetivo de dissuadir as sociedades de incorrerem em encargos com os veículos nele enunciados, por estes veículos serem especialmente suscetíveis de uso pessoal, por ser difícil apurar o uso efetivo dos referidos veículos ou controlar possíveis usos abusivos dos mesmos para fins pessoais (tanto pela entidade empregadora como pela administração fiscal), e por desta suscetibilidade e dificuldade resultar um risco elevado de uso abusivo dos veículos em causa para fins pessoais.
  7. Aceitar-se que as sociedades poderiam afastar a tributação autónoma do artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC sem demonstrar que, na realidade, não ocorre um uso abusivo para fins pessoais dos veículos nele incluídos, seria subverter a ratio do preceito e torná-lo ineficaz face aos objetivos pretendidos pelo legislador.
  8. No caso sub judice, não se pode confundir a mera descrição de regulamentos internos e de meios de controle com a efetiva demonstração de que tais regras são cumpridas e de que os motociclos e “viaturas de serviço geral” que integram a frota A... são efetivamente utilizados exclusivamente para prossecução da atividade das empresas do Grupo B..., cuja dificuldade de averiguação e demonstração efetiva suportam a opção legislativa contida no artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC.
  9. Por último, cabe referir que, ainda que se aceitasse a posição da Requerente quanto à prova necessária para ilidir a presunção que defende encontrar-se implícita no artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC, sempre o Tribunal entende que, no caso sub judice, tal prova não foi produzida: a Requerente não logrou provar que, não obstante ter adotado regras internas de utilização e meios de controle com o objetivo de dificultar a utilização dos motociclos e dos “veículos de serviço geral” da frota dos A... para fins privados, tais mecanismos operam de forma eficaz, ou que o risco de uso dos referidos veículos fora da atividade empresarial é baixo, ou que as características dos referidos veículos impedem o uso não empresarial dos mesmos.
  10. Quanto ao argumento da Requerente de que o n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC contém uma presunção de que os “abonos quilométricos” constituem uma remuneração encapotada dos trabalhadores a quem são pagos, temos que o mesmo não tem cabimento.
  11. Do disposto no n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC resulta que os “abonos quilométricos” encontram-se sujeitos a tributação autónoma até certo limite (0.144€ por quilómetro), ficando o remanescente do valor pago aos trabalhadores sujeitos a tributação em sede de IRS.
  12. Assim, apenas o valor pago aos carteiros dos A... acima de 0.144€ por quilómetro será de considerar, para efeitos fiscais, como remuneração dos mesmos.
  13. O legislador introduziu a tributação autónoma contida no artigo 88.º, n.º 3 e 9, do Código do IRC com o objetivo de dissuadir as empresas de incorrer nos encargos cobertos por estas disposições, e apesar da Requerente não concordar com a política fiscal que subjaz às mesmas, não cabe ao presente Tribunal Arbitral corrigir a política fiscal nelas refletida, ou torná-las ineficazes face aos objetivos pretendidos pelo legislador.
  14. Não obstante estas considerações relativas à posição e argumentação da Requerente, tal como referido supra, o presente Tribunal acompanha o entendimento adotado no Acórdão do Douto Supremo Tribunal Administrativo de 24.3.2021, proferido no processo n.º 1/2021.
  15. Conclui-se, assim, que a Requerente está impedida de afastar a tributação autónoma dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC mesmo que se comprove que os encargos aí em causa não são efetivamente desviados para utilizações alheias à atividade da empresa (o que em todo o caso a Requerente não logrou fazer, independentemente da posição que se adote relativamente à prova necessária para o efeito).
  16. Assim sendo, interessa apreciar se a interpretação das disposições contidas nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC subscrita por este Tribunal e pelo Doutro Supremo Tribunal Administrativo é inconstitucional, como alega de antemão a Requerente no PPA.

§3. Da inconstitucionalidade do artigo 88.º, n.ºs 3 e 9, do Código do IRC

  1. Tanto a Requerente como a Requerida invocam a inconstitucionalidade das disposições contidas nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC à luz de várias interpretações possíveis das mesmas e de vários princípios constitucionais.
  2. A este propósito, cumpre notar que os tribunais ordinários e arbitrais apenas têm de se pronunciar sobre as questões de constitucionalidade relevantes para a decisão da causa,[1] não tendo de se pronunciar sobre questões de constitucionalidade cuja eventual procedência não tem qualquer impacto para a decisão sobre o mérito da causa.
  3. No caso sub judice, dado o entendimento subscrito pelo presente Tribunal de que as normas contidas nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC constituem normas de incidência tributária que não contêm uma presunção passível de prova em contrário, entende o presente Tribunal que a questão relevante e decisiva para a decisão sobre o mérito da presente causa é a questão suscitada pela Requerente de saber se as normas contidas nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC são inconstitucionais, por violação dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da tributação fundamentalmente do rendimento real e da proporcionalidade, decorrentes dos artigos 2.º (Estado de Direito), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 103.º, n.º 1 (repartição justa) e 104.º, n.º 2, da CRP, quanto interpretadas no sentido de que “operam objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa [apenas dependendo unicamente, pois, da realização das despesas ou no incorrer dos encargos aí previstos]”.
  4. Assim, dada a interpretação dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC subscrita pelo presente Tribunal, temos que não são relevantes para a decisão sobre o mérito da presente causa as restantes questões de inconstitucionalidade suscitadas pelas partes (cuja eventual procedência não teria qualquer impacto na decisão sobre o mérito da presente causa).
  5. Quanto à questão de inconstitucionalidade que temos por relevante e decisiva no caso sub judice, interessa salientar que o nosso Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre o vício de inconstitucionalidade da tributação autónoma ao abrigo do artigo 88.º do Código do IRC à luz dos princípios constitucionais a que a Requerente alude.
  6. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, de 13.4.2016, que entendemos ser parcialmente transponível para a questão de inconstitucionalidade em análise, pode ler-se:

“A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada, por outro lado, por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa “zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial” e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 407).

Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.

Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas. (...)

3. Como resulta do já anteriormente exposto, torna-se claro que a tributação autónoma não põe em causa o princípio da tributação das empresas segundo o rendimento real e o princípio da capacidade contributiva.

Com efeito, como se fez notar, o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC – segundo a própria jurisprudência constitucional -, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012).

Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa (acórdão do STA de 12 de abril de 2012, Processo n.º 77/12).

Em todo este contexto, como é bem de ver, as normas dos n.ºs 13 e 14 do artigo 88.º do CIRC não violam o princípio da tributação das empresas segundo o rendimento real, consagrado no artigo 104.º, n.º 2, da Constituição. Este princípio reflete o direito do contribuinte de ser tributado sobre os lucros efetivamente verificados, e que são variáveis de ano para ano, e não sobre os lucros normais, isto é, sobre os lucros que a empresa poderia obter operando em condições normais e que poderiam exceder ou ficar aquém dos efetivamente obtidos. E pressupõe que a determinação do lucro tributável seja efetuada de acordo com a contabilidade da empresa, com base na documentação e comprovação das receitas e dos custos do sujeito passivo.

Mas, como se viu, a tributação autónoma não interfere no método destinado a determinar os resultados empresariais, nem implica que a matéria coletável que servirá base à tributação em IRC passe a incluir lucros ou rendimentos que a empresa não tenha efetivamente auferido.

Por identidade de razão, as disposições impugnadas não põem em causa o princípio da capacidade contributiva. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado, o princípio da capacidade contributiva, apesar de se não encontrar expressamente consagrado na Constituição, mais não será do que «a expressão (qualificada) do princípio da igualdade, entendido em sentido material, no domínio dos impostos, ou seja, a igualdade no imposto». E, nesse sentido, constitui o corolário tributário dos princípios da igualdade e da justiça fiscal e do qual decorre um comando para o legislador ordinário no sentido de arquitetar o sistema fiscal tendo em vista as capacidades contributivas de cada um (cfr. o acórdão n.º 187/2013 e a jurisprudência aí citada).

Cabe recordar que a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico. E o objetivo do legislador - como se referiu – é o de desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa. (...)

A despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização despesa.  

4. A específica configuração da tributação autónoma conduz também, necessariamente, à improcedência da invocada violação do princípio da proporcionalidade e do direito de propriedade.

Alega a este propósito a recorrente que a tributação globalmente considerada resultante da aplicação da taxa incidente sobre os rendimentos sujeitos a IRC e da taxa incidente sobre as despesas tem natureza confiscatória, pondo em causa o direito de propriedade e a exigência constitucional da proporcionalidade das medidas fiscais. 

De facto, a questão das taxas confiscatórias tem sido analisada, no domínio tributário, no âmbito do princípio da proporcionalidade ou proibição de excesso: o tributo não pode assumir uma tal dimensão quantitativa que absorva «a totalidade ou a maior parte da matéria coletável», nem pode ter um efeito de estrangulamento, impedindo «o livre exercício das atividades humanas» ou pondo em causa que «a cada um seja assegurado um mínimo de meios ou recursos materiais indispensáveis (cfr. o acórdão n.º 187/2013 e as referências doutrinais aí indicadas).

Ora, a variável quantitativa que poderá conferir caráter confiscatório a um imposto não se coloca, evidentemente, quando estão em causa dois tributos com distinta base de incidência. A taxa aplicável às despesas abrangidas pelo disposto no artigo 88.º, n.º 13, não se adiciona à taxa prevista para a tributação em IRC, pela linear razão, já antes explicitada, de que estamos aí perante factos tributários distintos e que são objeto de um tratamento fiscal diferenciado. A tributação autónoma não tem um qualquer efeito cumulativo em relação ao IRC e só incide sobre as despesas concretamente efetuadas e não sobre os rendimentos empresariais sujeitos a imposto, e, por conseguinte, ela não tem a consequência que a recorrente lhe atribui de ampliar a taxa sobre a tributação global relativa aos rendimentos da empresa. Com efeito, a tributação autónoma não pode ser entendida como um adicional ao imposto que o contribuinte deva pagar a título de IRC.

E, por outro lado, o índice percentual mais elevado que é aplicável à realização de despesas (e que é suscetível de ser agravado no caso de empresas com prejuízo fiscal) é justificado justamente por se tratar de uma medida fiscal penalizadora do contribuinte e destinada a evitar a realização de despesas excessivas e desnecessárias do ponto de vista do interesse empresarial. E como se trata de uma taxa que recai, não sobre os rendimentos empresariais, mas sobre uma despesa que o contribuinte pôde realizar e que se contém na sua disponibilidade financeira, não pode naturalmente atribuir-se-lhe um efeito confiscatório.

5. A recorrente também invoca a violação do princípio da igualdade tributária por considerar que a tributação autónoma é discriminatória na medida em que atinge as remunerações ou indemnizações pagas apenas a uma classe de contribuintes e porque atende apenas a remunerações variáveis sem pôr em causa os excessos que possam ser praticados pelas empresas no que se refere às remunerações fixas.

Uma tal argumentação não tem qualquer cabimento.

O legislador identificou um conjunto de despesas que são passíveis de tributação autónoma e o regime é aplicável a todos os contribuintes que se encontrem na situação legalmente descrita. Por outro lado, as indemnizações e remunerações variáveis são tributados em IRS em relação aos respetivos beneficiários, assim como o será qualquer outro tipo de remunerações que venham a ser auferidas por gestores, administradores ou gerentes e pelos trabalhadores em geral, sem que haja qualquer discriminação em relação ao universo dos sujeitos passivos do imposto.

Não existe, por conseguinte, uma qualquer discriminação em relação a classes profissionais. O que unicamente sucede é que o legislador, através da inclusão no regime da tributação autónoma de certas indemnizações pagas pelas empresas, enquadrou fiscalmente uma situação específica que traz consequências negativas para o apuramento do lucro tributável sujeito a IRC, sendo inteiramente indiferente, do ponto de vista da finalidade que se pretende atingir com a lei, a qualidade ou o estatuto profissional das pessoas que são beneficiárias das indemnizações.

E sendo assim, é também claro que a medida não é arbitrária e encontra fundamento material bastante na finalidade de desincentivar as empresas a realizar despesas relativas a indemnizações ou a remunerações variáveis que, sendo excessivas e não justificadas do ponto de vista empresarial, têm efeitos desfavoráveis para a obtenção da receita fiscal.

6. A recorrente coloca ainda a questão da proporcionalidade da norma do n.º 13 do artigo 88.º do CIRC, na vertente da adequação, por considerar que a medida adequada seria aquela que permitisse a recuperação a favor do erário público das indemnizações ou remunerações variáveis que tivessem sido pagas aos administradores e também porque a tributação abrange apenas, no caso das remunerações variáveis, aquelas que ultrapassem em 25% a remuneração anual, constituindo um incentivo ao aumento, por parte das empresas, da componente fixa da remuneração.

Em relação à norma da alínea b) desse n.º 13, invoca ainda a violação do princípio da proporcionalidade na vertente da necessidade e da justa medida, no ponto em que essa disposição faz incidir a tributação sobre o montante global dos bónus ou remunerações variáveis que tenham sido pagas, quando excedam 25% da remuneração anual e possuam valor superior a € 27.500, e não apenas na parte que ultrapasse esses limiares.

No que respeita à adequação do meio usado para a prossecução dos fins que são visados pela lei, cabe recordar que o princípio da idoneidade ou da aptidão significa que as medidas legislativas devem ser aptas a realizar o fim prosseguido ou contribuir para o alcançar.

No entanto, o controlo da idoneidade ou adequação da medida, enquanto vertente do princípio da proporcionalidade, refere-se exclusivamente à aptidão objetiva e formal de um meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é útil para a consecução de um fim, quando permite a aproximação do resultado pretendido, quaisquer que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos correspondentes. E, assim, a medida só será suscetível de ser invalidada por inidoneidade ou inaptidão quando os seus efeitos sejam ou venham a revelar-se indiferentes, inócuos ou até negativos tomando como referência a aproximação do fim visado (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 188/2009, que seguiu, nesse ponto, o entendimento sufragado por REIS NOVAIS, Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, págs. 167-168).

Ora, objetivamente, a norma em causa atinge o objetivo a que o legislador se propôs, sendo inteiramente irrelevante que a mesma finalidade pudesse ser alcançada por uma outra via, tendo em conta que a escolha dos meios destinados a obter um certo efeito de política fiscal se enquadra na margem de livre conformação legislativa.

A recorrente questiona, do ponto de vista do princípio da proporcionalidade, a opção legislativa de tributar a totalidade da despesa, quando ultrapasse aqueles limiares, e não apenas a parte que, ultrapassando esses limiares, a tornam objeto de incidência fiscal.

Ora, como se afirmou já repetidamente, a norma visa penalizar certo tipo de despesas que, sendo excessivas, não se encontram justificadas por razões empresariais, tendo ainda em linha de conta que se trata de despesas que afetam o lucro tributável das empresas. Sendo esse o objetivo, a norma, ao fixar um limite relativo de 25% da remuneração anual do beneficiário e um limite absoluto de € 27.500, tem o alcance de uma norma de isenção fiscal, excluindo da tributação as despesas que se mantêm dentro de certos patamares de razoabilidade.

Não pode, por isso, dizer-se que a norma é desnecessária com base no argumento de que seria possível atingir a mesma finalidade através de um outro meio tão idóneo ou eficaz e com uma consequência mais favorável para o contribuinte. No contexto legislativo em que a norma se insere, não é possível sequer estabelecer um termo de comparação entre meios igualmente idóneos em relação ao fim que se pretende atingir. De facto, a lei pretende dissuadir os contribuintes a efetuar certo tipo de despesas a partir de certo montante e esse efeito dissuasor não poderia ser obtido se se limitasse a tributar o volume de despesa que situa acima do valor que se entendeu ser o razoável.

Por identidade de razão, não pode dizer-se que a medida é excessiva ou desproporcionada. Na ponderação feita pelo legislador, havia que fixar um limite para a realização de certas despesas em vista a evitar um prejuízo para a arrecadação do imposto. O sacrifício que é imposto ao contribuinte destina-se a realizar o benefício que se pretende obter para o sistema fiscal, na medida em que se trata de compensar o resultado prejudicial que, por via da redução do lucro tributável, a despesa acarreta para o erário público.”

  1. Quanto à violação do princípio da tributação pelo rendimento real contido no artigo 104.º, n.º 2, da CRP, cumpre sublinhar a observação do Tribunal Constitucional neste Acórdão de que a tributação autónoma prevista no artigo 88.º do Código do IRC consubstancia um tributo diretamente incidente sobre despesas e encargos, uma tributação materialmente distinta da tributação em sede de IRC (na medida em que não incide diretamente sobre o lucro tributável das sociedades), uma exceção ao princípio da tributação pelo rendimento real expressamente prevista pelo legislador.
  2. Constituindo as disposições dos n.ºs 3 e 9 do referido artigo exceções ao princípio da tributação pelo rendimento real contido no artigo 104.º, n.º 2, da CRP expressamente previstas pelo legislador (dentro do espaço de discricionariedade legislativa), conclui-se que as mesmas não constituem uma violação deste princípio.
  3. Quanto ao princípio da capacidade contributiva, interessa salientar que, para efeitos dos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC, o facto revelador da capacidade tributária que se pretende alcançar é a simples realização de uma despesa (que o legislador pretendeu desincentivar).
  4. Operando a tributação autónoma em causa quando os sujeitos passivos realizam determinadas despesas (factos reveladores da respetiva capacidade tributária), temos que a tributação autónoma também não viola o princípio da capacidade contributiva.
  5. Relativamente ao princípio da igualdade ínsito no artigo 13.º da CRP, a Requerente questiona a diferença de tratamento fiscal de motociclos usados para distribuição postal (sujeitos a tributação autónoma) e de camiões de transporte de mercadorias (não sujeitos a tributação autónoma) que resulta do artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC, que julga arbitrária, por ambos serem imprescindíveis ao transporte de objetos e por ambos não serem adequados ao uso privado.
  6. A propósito deste princípio, pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 409/99 de 29.6.1999:

“O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio.”

  1. Temos que não assiste razão à Requerente também quanto a este princípio: os motociclos usados para transporte de objetos têm a eles associado um risco muito superior de uso pessoal do que camiões de transporte de mercadorias e, por isso, não se encontram em situação materialmente idêntica para efeitos do artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC, uma norma que visa desincentivar encargos com viaturas cujo risco de uso não empresarial é real e elevando e cujo uso efetivo é difícil de controlar tanto pela entidade empregadora como pela administração fiscal.
  2. Conclui-se, assim, que a diferença de tratamento entre motociclos usados para transporte de objetos e camiões de transporte de mercadorias que resulta do artigo 88.º, n.º 3, do Código do IRC é materialmente fundada, não sendo arbitrária tal diferença de tratamento e, consequentemente, não consubstanciando a mesma uma violação do princípio da igualdade contido no artigo 13.º da CRP.
  3. As sociedades do Grupo B... elegeram motociclos para efeitos de distribuição postal e veículos ligeiros de passageiros para efeitos de deslocação dos seus colaboradores, em vez de viaturas cujos encargos não estão sujeitos a tributação autónoma (como será o caso de algumas viaturas ligeiras de mercadorias), pelo que os encargos com os ditos motociclos e viaturas ligeiras de passageiros suportados pelas sociedades do grupo b... ficam sujeitos a tributação autónoma nos termos do n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC.
  4. O mesmo sucede com os sujeitos passivos que operam noutros sectores que suportem encargos com motociclos e viaturas ligeiras de passageiros, não havendo qualquer discriminação arbitrária em relação a empresas que operam no sector de distribuição de objetos postais.
  5. No que concerne ao princípio da proporcionalidade, a Requerente não explicitou com clareza em que entende consistir a sua violação.
  6. Improcede, assim, o vício de inconstitucionalidade em análise relativamente ao n.º 3 do artigo 88.º do Código do IRC.
  7. No que respeita ao disposto no n.º 9 do artigo 88.º do Código do IRC, também não explicitou a Requerente em que consiste a alegada violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
  8. Pelo exposto, entende o presente Tribunal que as normas contidas nos n.ºs 3 e 9 do artigo 88.º do Código do IRC não são inconstitucionais, por violação dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva, da tributação fundamentalmente do rendimento real, e da proporcionalidade, quanto interpretadas no sentido de que “operam objetivamente em face dos elementos da facti species tidos como pressupostos tributários, apenas dependendo da subsunção jurídica dos factos à previsão normativa [apenas dependendo unicamente, pois, da realização das despesas ou no incorrer dos encargos aí previstos]”.
  9. Assim, julga-se improcedente o pedido da Requerente de declaração de ilegalidade e anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa que deu origem ao processo n.º ...2021... (objeto imediato do PPA) e da declaração de substituição de IRC Modelo 22 n.º..., de 30.10.2020, referente ao exercício de 2018 (objeto mediato do PPA), na parte relativa ao montante de imposto pago a título de tributações autónomas correspondente a 374.608,57€, bem como o pedido de restituição deste montante, acrescido de juros indemnizatórios.

 

  1. DECISÃO

Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e manter na ordem jurídica o ato de indeferimento da reclamação graciosa que deu origem ao processo n.º ...2021... (objeto imediato do PPA) e a declaração de substituição de IRC Modelo 22 n.º ..., de 30.10.2020, referente ao exercício de 2018 (objeto mediato do PPA), absolvendo-se a Requerida de todos os pedidos.

 

  1. VALOR DA CAUSA

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) e no artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 374.608,57€.

 

  1. CUSTAS

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em 6.120,00€, que fica a cargo da Requerente em razão do decaimento.

Notifique-se.

 

Lisboa, 6 de junho de 2022

 

Os árbitros

 

Rita Correia da Cunha

 

Rita Guerra Alves

 

Tito Barros Caldeira

 

 

 



[1] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição (4ª ed., Almedina 2000) pp. 960-961.