SUMÁRIO:
O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção»
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Vasco António Branco Guimarães árbitro singular designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 07-12-2021, decide o seguinte:
1. Relatório
A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de identificação fiscal português..., com sede em ..., ..., Alemanha, (doravante designado de “Requerente”), representado por B... GMBH, na qualidade de sociedade gestora, com sede na mesma morada, apresentou, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”) pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a para apreciação da legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos ao ano de 2019, bem como da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa previamente apresentada identificadas como segue:
(i) Pela anulação dos atos tributários de retenção na fonte ora sindicados por vício de violação de lei, em concreto por violação do Direito Comunitário e da CRP, nos termos acima melhor expostos, e pelo consequente reconhecimento do direito do Requerente à restituição da quantia de EUR 41.278,90 , relativa a retenções na fonte de IRC suportadas em Portugal sobre dividendos distribuídos no ano de 2019, ao abrigo do disposto nos artigos 94.º do CIRC e 22.º do EBF, tudo com as demais consequências legais;
(ii) Pela eventual suspensão do processo até decisão por parte do TJUE em sede do pedido de reenvio prejudicial das questões prejudiciais formuladas no âmbito do processo n.º 93/2019-T, dado que, como acima referido, está em causa a mesma questão de Direito, com um substrato fáctico em tudo semelhante ao do Requerente no presente processo;
(iii) Subsidiariamente, requer-se o reenvio prejudicial para o TJUE do presente processo quanto à questão relativa à incompatibilidade do artigo 22.º do EBF com o Direito da UE, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado;
(iv) Com a procedência dos pedidos formulados supra, a condenação da Autoridade Tributária no pagamento das custas de arbitragem.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 28-09-2021.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 16-11-2021 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 07-12-2021.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que os pedidos devem ser julgados improcedentes.
Por despacho de 26-05-2022, foi decidido dispensar reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
Indefere-se o pedido de reenvio para o TJUE por já haver Acórdãos deste Tribunal sobre a matéria em apreciação.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1.º
O Requerente é, de acordo com o quadro regulatório e fiscal alemão, uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal na Alemanha, constituída sob a forma contratual e não societária, comumente designada de fundo de investimento, sendo um sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável no país (cfr. certificado de residência fiscal relativo ao ano de 2019 que ora se junta como documento n.º 1).
2.º
O Requerente é gerido por uma entidade gestora de fundos de investimento, a B... GmbH, entidade igualmente com sede na Alemanha (cfr. cópia do certificado de residência fiscal relativo ao ano de 2019 e cópia do registo comercial que se juntam como documento n.º 2).
3.º
O Requerente é um fundo aberto autónomo que se baseia num contrato entre a entidade gestora “B... GmbH”, os seus investidores e o banco responsável pela custódia dos valores mobiliários.
4.º
O objeto do fundo de investimento prende-se exclusivamente com a administração, gestão e com o investimento do seu património.
5.º
Por não se tratar de um OIC sob a forma societária (sociedade de investimento), mas antes meramente contratual (fundo de investimento), o Requerente não reveste juridicamente a forma de sociedade comercial, não estando, nos termos da legislação alemã aplicável, sujeito a qualquer obrigação de registo no Registo Comercial alemão e, como tal, não pode ser titular de direitos ou obrigações (cfr. memorando descritivo do regime legal a que está sujeito o Requerente, preparado pela C... mbH na qualidade de legal advisers do Requerente na Alemanha que se junta como documento n.º 3).
6.º
Os ativos do Fundo são dissociados dos demais ativos da entidade gestora, nos termos da lei regulatória aplicável, e, como tal, protegidos contra ações intentadas contra os investidores, a entidade gestora e o banco responsável pela custódia (cfr. cópia dos estatutos e normas de funcionamento do Requerente, que se junta como documento n.º 4).
7.º
Ainda ao abrigo da lei aplicável na Alemanha, regra geral, não existem restrições quanto ao número de unidades de participação que podem ser emitidas. Os investidores podem adquirir unidades de participação através da entidade gestora, do banco responsável pela custódia ou de terceiros (cfr. documento n.º 3 acima junto).
8.º
Ademais, nenhum direito de voto está associado às unidades de participação. Os investidores tornam se comproprietários dos ativos detidos pelo Requerente na proporção dos seus investimentos, não lhes sendo atribuído o direito de dispor dos ativos do Requerente. Somente a entidade gestora tem o direito de dispor dos ativos pertencentes ao Requerente.
9.º
É à entidade gestora que cabe decidir, distribuir ou reservar os proveitos do Requerente, sendo que os direitos dos investidores estão limitados ao direito de receber dividendos e de solicitar, a qualquer momento, o resgate das unidades de participação.
10.º
O Requerente e a entidade gestora são entidades sujeitas a supervisão do Bundesanstalt für Finanzdienstleistungsaufsicht (“BaFin”), entidade federal responsável pela supervisão do setor financeiro na Alemanha (cfr. cópia dos dois certificados que se junta como documento n.º 5).
11.º
Do ponto de vista tributário, o Requerente está sujeito a imposto sobre as pessoas coletivas no seu país de residência, tendo-lhe sido, todavia, concedida uma isenção (nos termos da Secção 11 parágrafo 1 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Sociedades Alemão – “German Corporate Income Tax Act” – e da secção 11 parágrafo 2 do Código Fiscal de Investimento Alemão – “German Investment Tax Act”), o que o impossibilita de recuperar a título de crédito por dupla tributação internacional, ouatravés de qualquer pedido de reembolso, os impostos suportados ou pagos no estrangeiro (cfr. documento n.º 3 acima junto).
12.º
O Requerente detém diversos investimentos financeiros em Portugal, consubstanciados na detenção de participações sociais em sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal.
13.º
No ano de 2019, o Requerente era detentor de lotes de participações sociais nas seguintes sociedades residentes em Portugal:
D... S.A. Acções Nom. 179.567
E... SGPS, S.A. Acções Nom. 14.446
F... SGPS, Acç Nomi. Catego. A 232.423
G...-SGPS, S.A. Acções Nominativas 1.537.381
14.º
A entidade responsável pela custódia dos títulos detidos em Portugal era o H... .
15.º
O Requerente, no ano de 2019, na qualidade de acionista de sociedades residentes em Portugal, recebeu dividendos sujeitos a tributação em IRC em Portugal, por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos mesmos.
16.º
Os dividendos recebidos no decorrer do ano de 2019 foram sujeitos a tributação em IRC por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25% prevista no artigo 87.º, número 4, do Código do IRC (“CIRC”).
17.º
Assim, no ano de 2019, o Requerente recebeu dividendos e suportou em Portugal IRC por retenção na fonte no montante a seguir discriminado:
Ano da Retenção Valor Bruto do Dividendo Data de Pagamento Taxa de Retenção na Fonte Guia de pagamento Valor da retenção (€)
2019 50.176,41 24.04.2019 25% 80528465279 12.544,10
2019 39.744,33 23.05.2019 25% 80530371251 9.936,08
2019 7.396,35 29.04.2019 25% 80528465279 1.849,09
2019 67.798, 50 30.05.2019 25% 80530371251 16.949,63
TOTAL: 41.278,90
18.º
O quadro referido no ponto acima permite discriminar, relativamente ao ano de 2019, (i) os lotes de ações detidos pelo Requerente, (ii) os montantes brutos dos dividendos recebidos, (iii) o imposto suportado por retenção na fonte e a data de pagamento dos referidos rendimentos e (iv) o número da guia de pagamento através do qual o imposto foi retido na fonte e entregue junto dos cofres da AT em Portugal.
19.º
Conforme resulta do quadro mencionado no ponto acima, o Requerente suportou, em Portugal, no ano de 2019 a quantia total de imposto de EUR 41.278,90, a qual constitui objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.
20.º
Para prova do alegado nos pontos imediatamente anteriores, o Requerente vem juntar os seguintes documentos:
i) Cópia da declaração emitida pelo agente pagador (H...), atestando a data de distribuição dos dividendos, montante bruto dos dividendos distribuídos ao Requerente e imposto retido na fonte em Portugal (conforme declarado na respetiva Modelo 30), bem como o número da Guia através da qual foi entregue o imposto retido (cfr. documento n.º 6); e
ii) Documento emitido pelo H..., entidade responsável pela custódia dos títulos, correspondente a tabela discriminativa do número de ações (identificando o respetivo ISIN), valor dos dividendos, datas de pagamento e valores de imposto suportado em Portugal, e que comprovam ainda que o Requerente é o beneficiário dos rendimentos (cfr.documento n.º 7).
21.º
Na ótica do Requerente, Portugal ao sujeitar, à data dos factos tributários em análise, a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal aos Organismos de Investimento Coletivo estabelecidos em Estados Membros da União Europeia (“UE”) (in casu a Alemanha), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, de forma frontal, o artigo 63.º do Tratado para o Funcionamento da União Europeia (doravante “TFUE”), conforme tem sido entendimento unânime do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”).
22.º
Neste sentido, no passado dia 23.02.2021, o Requerente apresentou, ao abrigo dos artigos 98.º e 137.º do CIRC, dos números 3 e 4 do artigo 132.º do CPPT e do 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), reclamação graciosa para apreciação da legalidade dos referidos atos de retenção na fonte de IRC relativos ao ano de 2019, na qual solicitou a anulação dos mesmos por vício de ilegalidade por violação direta do Direito da UE, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal – processo que correu termos na Direção de Finanças de Lisboa sob o n.º ...2021... (cfr. documento n.º 8).
23.º
No passado dia 28.06.2021 (através de envio de carta registada de 25.06), o Requerente foi notificado da decisão final de indeferimento da Reclamação Graciosa (cfr. documento n.º 9 que se junta), fundada no entendimento de que não competiria à AT “avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, nem tão pouco apreciar da sua constitucionalidade” (cfr. § 24 do projeto de decisão da reclamação graciosa de onde consta a fundamentação da decisão que se junta como documento n.º 10).
24.º
Mais refere a AT na sua decisão final que “não pode (…) aceitar de forma direta e automática as orientações interpretativas do TJUE quando estas não têm, na sua origem, a apreciação da compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu” (cfr. § 25 do projeto de decisão da reclamação graciosa acima junto como documento n.º 10).
25.º
Ora, o Requerente não pode conformar-se com a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa proferida pela AT, não só porque esta se destitui do seu papel decisório, mas também porque, por consequência dessa inércia e da confirmação da legalidade dos atos tributários reclamados, acabou por emitir uma decisão desfavorável ao contribuinte e que padece de um vício de violação de lei, o que motiva a apresentação do presente pedido arbitral.
26.º
Considerando que o Requerente foi notificado da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa no passado dia 28 de junho de 2021, não restam dúvidas sobre a tempestividade do presente pedido de pronúncia arbitral, terminando o prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º do RJAT no próximo dia 27 de setembro de 2021.
27.º
Os contribuintes residentes em Portugal não estão sujeitos a retenção na fonte em relação aos dividendos distribuídos.
2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.
Não se retiram outros factos relevantes dos articulados por serem citações de textos legais, acórdãos ou posições de parte sem conteúdo fáctico.
3. Matéria de direito
As questões de mérito que são objeto deste processo são:
1. Saber se as retenções na fonte efetuadas pela AT aos dividendos distribuídos ao OIC alemão acima identificado com a taxa de 25% estão de acordo com os princípios aplicáveis aos impostos diretos constantes nos artigos 63.º a 65.º do TFUE tendo presente que os residentes em Portugal que investem nestes instrumentos não estão sujeitos a esta retenção ou qualquer outra.
2. Saber se são devidos juros indemnizatórios ao Autor do PPA.
3.1. Posições das Partes
O Requerente defende o seguinte, em suma:
- Os princípios descritos nos artigos 63.º e 64.º do TFUE aplicam-se a esta situação e tornam a prática da AT ilegal por violação de lei.
A AT defende:
- Que o ora Autor do PPA não tem direito a um reconhecimento automático da aplicação destes princípios estando obrigada a aplicar a lei em vigor que prevê a retenção o que fez nos termos nela previstos pelo que o Pedido Arbitral não deve proceder.
3.2. Apreciação da questão.
Conforme já enunciado existe Jurisprudência europeia do TJUE sobre a matéria no processo C-545/19, de 17 de março de 2022 que se dá por reproduzido.
A situação aí analisada é, em tudo, semelhante à dos autos onde se conclui:
«O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção».
Resulta claro que a solução legal portuguesa que determinou a cobrança de 25% de imposto a título de retenção na fonte sobre a distribuição de dividendos é contrária à livre movimentação de capitais e não encontra justificativa nas hipóteses referidas no artigo 65.º do TFUE.
Sendo objetivamente um tratamento diferenciado mais gravoso para os não residentes que não se aplica aos residentes viola os princípios enunciados e constantes do Tratado referido não podendo ser aplicada ao caso em concreto por violação de lei.
São devidos juros indemnizatórios por o erro ser da Requerida.
4. Decisão.
Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, determinando a anulação da liquidação impugnada e identificada no ponto 17.º dos factos provados com o consequente reembolso da importância indevidamente cobrada acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios desde a data da apresentação da reclamação graciosa até efetivo pagamento.
Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em 41.278,90 (quarenta e um mil duzentos e setenta e oito Euro e noventa cêntimos), nos termos do artigo 97.º -A, n.º 1, alínea a do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º , n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Custas: Vai a AT condenada em custas por ser sua a responsabilidade da aplicação da norma apesar da ilegalidade existente, sendo o seu montante fixado em 2142,00 (dois mil cento e quarenta e dois Euro).
Lisboa, 02 de junho de 2022
O Árbitro
(Vasco Branco Guimarães)