Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 514/2021-T
Data da decisão: 2022-05-24  IVA  
Valor do pedido: € 93.820,62
Tema: IVA – isenção; direito à dedução – Serviços de triagem clínica; serviços de aconselhamento médico por videochamada.
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SUMÁRIO:

- Os serviços de triagem clínica de prioridades através de linha telefónica que se limitem ao aconselhamento sobre a necessidade e urgência de determinado tipo de «assistência médica» consubstanciam operações sujeitas a IVA por não preencherem o requisito de indispensabilidade, o qual, segundo a jurisprudência do TJUE, se reconduz ao teste de saber se, na ausência dessa atividade, era ou não possível ao utente/cliente obter os mesmos cuidados de saúde. Tais serviços não estão, portanto, abrangidos pela isenção prevista no artigo 9.º, n.º 1, do Código do IVA.

- O facto de consultas médicas serem prestadas por videochamada não as descaracteriza enquanto prestação de serviços médicos, pelo que estão abrangidas pela isenção prevista no artigo 9.º, n.º 1, do Código do IVA.

- por regra, só é dedutível o IVA suportado na aquisição de inputs de atividades não isentas.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I - Relatório

 

A..., S.A., com sede na ..., número ..., ..., em Lisboa, NIPC  ..., apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária («RJAT»), no seguimento de ato de indeferimento parcial do recurso hierárquico por si interposto (proc. n.º...2019...).

 

  1. O pedido

 

A Requerente pede a anulação parcial das liquidações adicionais de IVA relativas aos períodos de 2016-05 a 2016-08, de 2016-10 e 2016-11, e de 2017-03 a 2017-12, melhor identificadas no PA, no âmbito das quais se apurou o montante global a pagar de imposto de € 88.210,09 e € 5.610,53 de juros compensatórios, pois que, pela decisão de tal recurso hierárquico, foram administrativamente anuladas as liquidações adicionais de IVA, emitidas na sequência dos mesmos procedimentos inspetivos, relativas a períodos anteriores a 2016-05.

 

  1. Posição das partes

 

A Requerente entende, em suma, que tem direito a deduzir o IVA suportado na aquisição da totalidade dos seus inputs em virtude de não se poder considerar a sua atividade enquadrável nas operações isentas de IVA, que não conferem direito à dedução, previstas no artigo 9.º n.º 1 do Código do IVA, ou seja, que não está em causa o exercício das profissões de médico, enfermeiro ou outras profissões paramédicas.

Mais, sustenta que, tendo a AT entendido que idênticos serviços, prestados pela Requerente no âmbito do contrato com o Estado, não eram passíveis de ser considerados como serviços isentos ao abrigo do artigo 9.º n.º 1 do Código do IVA, não se percebe que agora a Requerida defenda diferente entendimento, pois que a natureza das operações praticadas não se altera em razão da contraparte contratual.

A Requerida apresentou resposta, em que suscitou exceções – designadamente, defendendo a suspensão do presente processo arbitral até que seja proferida sentença na ação administrativa que corre termos junto do tribunal tributário de Lisboa sob o n.º .84/19.8BELRS – e, em geral, pugnou pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. Tramitação processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 31/08/2021.

 A Requerente não procedeu à indicação de árbitro, tendo a designação dos membros deste coletivo arbitral competido ao Conselho Deontológico do CAAD, a qual não mereceu oposição.

Os árbitros designados aceitaram tempestivamente as nomeações.

O tribunal arbitral ficou constituído em 03-11-2021.

Notificada para tal, a Requerida apresentou resposta, na qual suscitou exceções, e juntou o PA.

Em 16/02/2022, foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, na qual, como consta da respetiva ata: i) foram prestados diversos esclarecimentos pelos mandatários das Partes, tendo a Requerente prescindido da prova pericial inicialmente requerida e da inquirição de uma das testemunhas arroladas; ii) após o que se tomou depoimento de Parte, na pessoa de um administrador da Requerente, e se inquiriu uma testemunha.

Notificada para o efeito na mencionada reunião, a Requerente veio juntar aos autos cópia da petição inicial que deu origem ao processo n.º 84/19.8BELRS, já referido, e, mais tarde, apresentar alegações finais escritas, nas quais respondeu à questão prévia deduzida pela AT.

Em 03/05/2022 foi prorrogado, por dois meses, o prazo para ser proferida decisão, nos termos do art. 21º, n.º 2, do RJAT.

 

 

II - SANEAMENTO

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Adiante se apreciará da questão prévia suscitada pela Requerida.

 

 

III -PROVA

III.1- Factos Provados

Iter procedimental

 

  1. A Requerente foi constituída em março de 2006 com o objeto social de conceção, projeto, instalação, financiamento, exploração e transferência para o Estado Português do Centro de Atendimento do serviço Nacional de Saúde, também designado por “Linha de Saúde 24”.
  2. A Requerente encontra-se registada, para efeitos de IVA, no regime normal de tributação de periodicidade mensal, praticando operações sujeitas e não isentas.
  3. Na declaração periódica referente ao período de 2017.04, a Requerente apresentou um pedido de reembolso de crédito de IVA, com o n.º ..., no montante de € 73.121,15.
  4. Na sequência da apresentação deste pedido de reembolso, a AT:
    1. abriu um procedimento inspetivo, de carácter externo e de âmbito parcial, através da Ordem de Serviço OI 2017..., que visava a validação da conformidade legal das Declarações Periódicas de IVA entregues por referência ao ano de 2013. Desse procedimento inspetivo resultou a decisão de indeferimento do pedido de reembolso e liquidações adicionais de IVA relativas ao exercício de 2013, no valor de € 431.090,04; e,

 

  1.  abriu um procedimento de inspeção interno – com base nas ordens de serviço n.º OI2017..., OI2017... e OI2018... – do qual resultaram liquidações adicionais de IVA no montante de € 401.519,30 e de juros compensatórios no valor de € 38.870,97, relativas aos exercícios de 2014 a 2017.
  2. A Requerente intentou uma ação administrativa contra o ato de indeferimento do pedido de reembolso, que corre ainda termos no tribunal tributário de Lisboa sob o n.º  84/19.8BELRS, com fundamento em violação dos princípios do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efetiva.
  3. A Requerente apresentou reclamação graciosa contra os atos de liquidação adicionais de IVA relativos aos diversos períodos de 2014 a 2017 – a qual foi objeto de indeferimento pela AT – e posterior recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.
  4. O recurso hierárquico foi parcialmente deferido, tendo a AT anulado os atos tributários com referência ao imposto deduzido ao abrigo do contrato celebrado com o Estado para exploração da Linha de Saúde 24 (referente aos períodos de 2015.07 a 2015.12 e 2016.01 a 2016.04).
  5. No que diz respeito a estes períodos a AT baseou o seu entendimento no seguinte: “Atendeu-se aos argumentos apresentados pela Recorrente no que se refere aos serviços prestados no âmbito do contrato celebrado com o Estado, considerando, nomeadamente, os depoimentos das autoridades de saúde e que a execução de tal contrato foi devidamente fiscalizada pelas entidades competentes (Tribunal de constas e Inspeção Geral das Finanças). Por outro lado, o objetivo dos serviços em causa não era a prestação de serviços de assistência médica, mas antes ampliar e melhorar a cessibilidade aos serviços de saúde e racionalizar a utilização dos recursos existentes (materiais e humanos), disciplinando a orientação prestada aos utentes no acesso aos serviços, bem como aumentar a eficiência do sector público da saúde através do encaminhamento dos utentes para as instituições integradas no SNS mais adequadas.”
  6. A AT manteve as liquidações adicionais referentes aos períodos de 2016.05 a 2016.08, de 2016.10 e 2016.11 e de 2017.03 a 2017.12.

      Dos contratos celebrados pela Requerente

  1. A 25 de maio de 2006, a Requerente celebrou com o Estado Português um contrato de prestação de serviços, em regime de parceria público privada, nos termos do qual foi transferida para a Requerente a conceção, projeto, instalação, financiamento e exploração da Linha de Saúde 24.
  2. No âmbito do referido contrato, a Requerente obrigou-se a prestar os seguintes serviços:
  • Serviço de triagem, aconselhamento e encaminhamento entendendo-se como tal o serviço através do qual são avaliados os riscos dos sintomas descritos pelos utentes, identificando-se o respetivo nível de urgência, compreendendo também a prestação de informações aos utentes sobre a natureza da sua situação clínica e medidas a adotar e, bem assim, a prestação de esclarecimentos quanto à estrutura da rede de prestação de cuidados de saúde mais adequada aos seus específicos contornos (urgência, marcação de consultas e cuidados continuados integrados);
  •  Serviço de assistência em saúde pública, que corresponde ao serviço de atendimento através do qual é feito o encaminhamento para a linha de Saúde Pública, aqui entendida como um serviço público da responsabilidade e sob a coordenação da Direção-Geral da Saúde que associa uma linha telefónica com um site de internet, e
  • Serviço de informação Geral de Saúde, que consiste no serviço de atendimento de contactos de teor não clínico que disponibiliza o acesso rápido e fácil a informação geral relacionada com a prestação de serviços de saúde ou com esta relacionada.
  • Como contrapartida pelos serviços prestados, a Requerente recebia do Estado uma remuneração mensal, calculada com base numa fórmula, que tinha (em termos gerais) em conta: (i) o preço unitário por contacto; (ii) volume máximo do escalão (os escalões tinham preços unitários distintos consoante o número de contactos efetuados) e (iii) o volume de atividade efetivamente ocorrido no mês, expresso em número de contactos efetuados. 
  • O contrato tinha uma duração inicial de 4 anos, tendo sido sujeito a duas prorrogações (inicialmente até 5 de Agosto de 2011 e, posteriormente, até à conclusão de um concurso público tendente a selecionar uma nova entidade exploradora, o que só veio a acontecer em dezembro de 2013).
  • Em dezembro de 2013 foi celebrado um novo contrato de prestação de serviços para exploração do Centro de Atendimento do SNS entre o Estado Português e um consórcio do qual a Requerente fez parte juntamente com a B... e a C... .
  • No âmbito deste segundo contrato, a Requerente passou a prestar apenas serviços de triagem, aconselhamento e encaminhamento (i.e., serviço de atendimento de contactos que disponibiliza o acesso a um enfermeiro que efetua a triagem).
  • Este contrato teve a duração de dois anos.
  • Nos termos do mesmo, o atendimento dos contactos de teor clínico era feito por enfermeiros com um mínimo de dois anos de experiência. Havia, ainda, um diretor clínico no quadro dos recursos humanos que era responsável pelos atos de cariz clínico e que assegurava o acompanhamento dos padrões de qualidade.
  • A 21 de setembro de 2017, a Requerente celebrou um contrato de prestação de serviços com a D..., o qual teve o seu início a 16 de maio de 2017.
  • Ao abrigo deste contrato, a Requerente obrigou-se a prestar os seguintes serviços:
  • Serviços de triagem clínica de prioridades: este serviço é realizado por enfermeiros que, suportados por uma ferramenta informática que aplica algoritmos clínicos orientam as pessoas para os cuidados de saúde mais adequados. Da intervenção dos enfermeiros poderão resultar chamadas de encaminhamento.
  • Tele-aconselhamento médico por videochamada, realizado por um médico assistente especialista em medicina geral, com expressa exclusão de aconselhamento pediátrico e aconselhamento que requeira intervenção presencial do médico junto do utente.
  1. Em todos os contratos celebrados pela Requerente – i.e., com o Estado e com a D... –, à remuneração acordada como contraprestação dos serviços, acrescia IVA à taxa legal.
  2. Os médicos contratados para executar o serviço de tele-aconselhamento médico não liquidaram IVA nas facturas/recibos relativas aos seus honorários.
  3. O valor dos serviços de tele-aconselhamento médico foi pouco significativo no contexto da faturação global da Requerente.

III.2 -Resumo da prova produzida

2.1 Depoimento de Parte – E...

É administrador da Requerente. A Requerente é uma empresa constituída com capitais públicos (...) e tinha como único objeto a gestão da linha de saúde 24. A obrigação da Requerente era a de criar e disponibilizar ao Estado Português um centro de gestão da Linha de Saúde 24. Quando deixou de prestar tais serviços, entregou todos os equipamentos ao Estado Português, tendo ficado sem atividade.

Em todos os concursos públicos celebrados com o Estado Português era sempre mencionada a exigência de IVA no âmbito do pagamento das prestações de serviços. Estes contratos foram auditados pela Inspeção Geral de Finanças, que confirmou a legalidade das suas cláusulas.

Entre a data em que terminou o contrato com o Estado e se iniciou o contrato com a D... (aproximadamente 1 ano/1 ano e meio), a Requerente não prestou nenhum serviço. Apenas houve transição dos processos e acerto de contas do contrato com o Estado.

 

No âmbito do contrato realizado com a D..., a natureza dos serviços prestados pela Requerente era exatamente a mesma, isto é, gerir o atendimento dos clientes desta empresa e, para tal, disponibilizar uma estrutura física (computadores, algoritmos) e escalar enfermeiros para fazer a triagem clínica de prioridades. No âmbito do contrato com o Estado chamava-se Linha de Saúde 24, no âmbito do contrato com a D... chamava-se teleenfermeiro, mas a natureza dos serviços era a mesma.

O que se passou a prever também, no contrato com a D... foi um serviço de teleconsultas, sendo esta a única parte inovadora, a qual representou uma parte diminuta das receitas da Requerente. A faturação do médico online era discriminada, sendo a respetiva faturação feita sem inclusão de IVA, até porque tal atividade era contratada a médicos que estão isentos de IVA na sua atividade. O valor destas prestações de serviços tinha pouca expressão no contexto da faturação total da Requerente

 

  1. Prova testemunhal – F...

Teve a incumbência, por parte do Estado de tutelar a Saúde 24, quando era Diretor-Geral da Saúde. Participou na criação dos primeiros modelos de atendimento telefónico.

Afirmou que, no essencial, a atividade da Requerente foi sempre a mesma: atendimento telefónico visando a triagem, feita por enfermeiros, com base num sistema de algoritmos que fazem perceber a urgência da situação para efeitos de atendimento médico.

Deixou claro que tal não se trata de uma teleconsulta de medicina. A triagem apenas permite concluir pela urgência, ou não, da consulta médica, não constituindo uma primeira etapa do tratamento.

  1. Prova Documental

Contratos com conteúdo relevante já resumido.

A Requerente juntou ao processo uma declaração da Diretora Geral da Saúde – Dr.ª...– segundo a qual os serviços prestados no Centro de Atendimento do SNS (triagem, aconselhamento sobre medicação, informação geral de saúde) não se podem inserir no conceito de prestação de serviço médico ou sanitário.

 

IV - Do Direito

  1. Questão prévia: da eventual suspensão da instância

 

A Requerida conclui pela suspensão da presente instância arbitral em razão da alegada prejudicialidade entre a matéria em discussão nos presentes autos e a que se encontra pendente de decisão na ação administrativa proposta no tribunal tributário de Lisboa, que aí corre termos sob o n.º 84/19.8BELRS.

Antecipe-se, desde já, que tendo-se oposto a Requerente a tal suspensão, não vê este tribunal arbitral qualquer razão para ordená-la, considerando até a parca justificação aduzida pela AT para lograr tal intento.

Vejamos:

 

Estabelece o artigo 269.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (aplicável ex vi da al. e) do artigo 2.º do CPPT), que a instância se suspende “[q]uando o tribunal ordenar a suspensão ou houver acordo das partes”. Inexistindo acordo, como sucede in casu, poderá o julgador suspender a instância se “a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”, conforme estabelece o artigo 272.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, conquanto, nos termos do n.º 2, não haja “fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens”.

Ou seja, justificar-se-ia suspender a presente instância arbitral caso se concluísse que a decisão a proferir é dependente da que vier a ser proferida na ação administrativa supra aludida.

O instituto da suspensão pretende evitar colocar o sistema jurídico na posição de decidir sobre determinada causa enquanto estiver pendente uma causa prejudicial, entendendo-se “por causa prejudicial aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada” – cfr. J. Lebre de Freitas; João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil, Anotado, Vol 1.º - Artigos 1 a 380-A, 2.ª Ed., Coimbra 2008, p. 544.

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 19 de fevereiro de 2014, tirado no recurso nº 01457/12 “[e]ntende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada, ou seja aquela em que se discute, em sede principal, uma questão que é essencial para a decisão de outra. Segundo o n.º 2 do art.º 284.º do CPC [correspondente ao atual artigo 276.º do mesmo diploma], uma causa é prejudicial de outra quando a decisão daquela pode fazer desaparecer o fundamento ou razão de ser desta. São também requisitos para poder ser ordenada a suspensão da instância que não haja fundadas razões para crer que a causa prejudicial foi intentada para obter a suspensão e que a causa dependente não esteja tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens (nº 2 do mesmo normativo)(…)”.

Também ALBERTO DOS REIS ensinava que “o nexo de prejudicialidade ou dependência justificativo da suspensão da instância define-se assim: estão pendentes duas acções e dá-se o caso de a decisão duma poder afectar o julgamento a proferir na outra” (cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª Ed, Coimbra 1949, reimpr., p. 384 – anotação ao artigo 284.º).

Ora, com o devido respeito, não se vislumbra como poderá uma ação que visa a anulação de um ato de indeferimento de reembolso de IVA respeitante ao exercício de 2013 com fundamento em vícios do próprio ato de indeferimento (maxime, violação dos princípios do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efetiva) servir de pressuposto a uma ação de típica anulação de atos de liquidação adicional (ainda que com um ato de indeferimento parcial de recurso hierárquico como objeto mediato) relativos aos períodos de IVA de 2016.05 a 2016.08, de 2016.10 e 2016.11 e de 2017.03 a 2017.12.

Não se exclui que os fundamentos para a emissão do mencionado ato de indeferimento de reembolso e das liquidações adicionais aqui em crise possam ser os mesmos – se-lo-ão, porventura, mas a AT não procurou sequer demonstrá-lo – mas, ainda que assim seja, a identidade de causas de pedir subjacentes aos atos impugnados não implica que a decisão da ação proposta em primeiro lugar seja pressuposto da decisão a proferir na segunda.

Aliás, como bem aponta a Requerente nas suas alegações, a existir relação de prejudicialidade, as causas prejudiciais seriam aquelas em que se discute a legalidade das liquidações adicionais (as relativas ao exercício de 2013 e as objeto do presente processo) face à ação em que se afere da legalidade do indeferimento do pedido de reembolso e não o inverso, uma vez que é nessa sede – de contencioso anulatório das liquidações – que se discute o mérito das conclusões da inspeção tributária que pugnou pela aplicação da isenção de IVA à atividade da Requerente negando, em consequência, o seu direito à dedução de IVA.

Improcede, assim, a exceção deduzida, devendo os presentes autos prosseguir para decisão, no sentido que de imediato se passa a expor.

  1. Do direito à dedução de IVA pela Requerente

Na base das liquidações adicionais de IVA está o entendimento da AT segundo o qual a Requerente não tem direito a deduzir o IVA dos seus inputs em virtude de apenas praticar operações isentas deste imposto, as quais não confeririam direito à dedução, ao abrigo do artigo 9.º n.º 1 do Código do IVA: “Estão isentas do imposto as prestações de serviços efetuadas no exercício das profissões de médico, odontologista, psicólogo, parteiro, enfermeiro e outras profissões paramédicas.”

O que está em discussão no âmbito deste processo são as liquidações adicionais de IVA referentes ao período de Maio de 2016 a final de 2017.

Dos documentos juntos ao processo (contratos) e da prova produzida resulta que até Março de 2017 a Requerente apenas prestou serviços referentes ao contrato celebrado com o Estado.  O contrato com a D... apenas começou a produzir efeitos a partir de Maio de 2017.

A única diferença entre os dois contratos que resultou provada foi a de, no âmbito do contrato com a D..., a Requerente ter passado a prestar (a par do serviço de triagem e aconselhamento) também um serviço de tele-aconselhamento médico por videochamada – o qual foi faturado à parte, pela Requerente e em relação ao qual os médicos contratado não liquidaram IVA pelos serviços prestados.

 

2.1 - Serviços de triagem clínica de prioridades através de linha telefónica

 

A prestação deste tipo de serviços, melhor descritos na respetiva cláusula do contrato celebrado com a D..., já transcrita, originou a maior parte da faturação da Requerente ora em causa.

No que concerne à aplicação da isenção estabelecida, no direito português, no artigo 9.º, n.º 1 (ou n.º 2), do Código do IVA à prestação de serviços de triagem e encaminhamento, tem entendido o TJUE dever interpretar-se estritamente o conceito de assistência médica e de prestação conexa com assistência médica – v., por todos, os acórdãos tirados nos processos C-334/14, (caso De Fruytier), C-395/04 (caso Athinon-Ygeia) e C-216/97, (caso Gregg), de 07/09/1999, n.º 18.

Tal interpretação estrita assenta na ideia de indispensabilidade da prestação de serviços em causa como condição para serem abrangidos pela isenção aplicável aos atos de assistência médica.

Na senda dessa jurisprudência, que obriga os tribunais nacionais, parece inequívoco que não é possível enquadrar os serviços de triagem e acompanhamento ora em causa nas isenções aplicáveis à prestação de serviços médicos ou operações estreitamente conexas. Com efeito, como resulta do teor dos contratos celebrados e do depoimento de F..., a triagem efetuada através da linha telefónica proporcionada pela Requerente apenas visa identificar os sintomas descritos pelos utentes e, sendo o caso, recomendar o tipo de assistência médica a ser procurado e sua urgência. Como por diversas vezes frisou a testemunha F... no seu depoimento, tal triagem não constitui, pois, uma primeira etapa de «assistência médica», tendo referido claramente que o “resultado da aplicação da árvore de decisão/algoritmo é uma conclusão pela urgência ou não de ir a um médico”, não se efetuando diagnóstico, sendo “o tempo médico a seguir” a essa triagem. Aliás, resulta da experiência comum que, caso o doente decida dirigir-se a um médico em função do aconselhamento telefónico obtido, este avaliará efetivamente os sintomas que o doente apresenta, aí sim com propósito de diagnóstico e determinação do tratamento. Em consequência, e como resulta igualmente da experiência comum, os mesmos atos médicos são prestados mesmo que o utente não tinha previamente recorrido aos serviços prestados telefonicamente pela Requerente.

Mais,

Da recente jurisprudência do TJUE, adotada no caso Termas Sulfurosas de Alcafache (processo C-513/20 (13.1.2022), que deriva de um pedido de reenvio prejudicial efetuado pelo Supremo Tribunal Administrativo português) resulta o seguinte, com relevo para o caso que aqui nos ocupa:

 

 “32      […] só as prestações de serviços que se inscrevem logicamente no quadro do fornecimento dos serviços de hospitalização e de tratamentos médicos que constituem uma etapa indispensável no processo de prestação desses serviços para alcançar as finalidades terapêuticas prosseguidas por estes são suscetíveis de constituir «operações […] estreitamente relacionadas», na aceção dessa disposição [artigo 132.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva IVA], […].

 

33      Para determinar se prestações como as que estão em causa no processo principal são indispensáveis à concretização dos tratamentos médicos, deve ter‑se em conta, nomeadamente, a finalidade com que as referidas prestações são efetuadas […].

[…]

35      No caso em apreço, a operação em causa no processo principal consiste, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, na elaboração da ficha individual, incluindo a ficha clínica que dá direito à compra de tratamentos médicos de «termalismo clássico».

[…]

37      Caso a referida operação consista na elaboração da ficha individual, incluindo a ficha clínica, que contém dados relativos ao estado de saúde do utente e aos tratamentos prescritos, que pode, por isso, ser considerada planeada, bem como às modalidades da sua administração, dados cuja consulta é indispensável para prestar esses tratamentos e alcançar as finalidades terapêuticas pretendidas, tal operação pode ser considerada «estreitamente relacionada» com essa assistência médica, na aceção do artigo 132.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva IVA. [destaques nossos]

 

38      Pelo contrário, […] se o conteúdo da ficha individual, incluindo a ficha clínica, não for indispensável para prestar esses tratamentos e para alcançar as finalidades terapêuticas visadas, tal operação não deve ser considerada «estreitamente relacionada» com a assistência médica na aceção do artigo 132.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva IVA, independentemente do facto de, sem o pagamento da inscrição termal, os tratamentos prescritos não serem disponibilizados.

 

39      Se o órgão jurisdicional de reenvio considerar que a operação em causa no processo principal constitui efetivamente uma etapa indispensável no processo de prestação dos tratamentos médicos para alcançar as finalidades terapêuticas pretendidas por estes, e que constitui, portanto, uma operação estreitamente relacionada com a assistência médica, caber‑lhe‑á então verificar se essa operação é assegurada por um estabelecimento referido no artigo 132.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva IVA, nas condições previstas neste artigo.

 

42      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à questão prejudicial que o artigo 132.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que a operação que consiste em elaborar uma ficha individual, incluindo uma ficha clínica que dá direito à compra tratamentos médicos de «termalismo clássico» num estabelecimento termal, pode ser abrangida pela isenção de IVA prevista nesta disposição enquanto operação estreitamente relacionada com a assistência médica, desde que essas fichas contenham dados relativos ao estado de saúde, aos tratamentos médicos prescritos e planeados, bem como às modalidades da sua administração, dados cuja consulta seja indispensável para a prestação desses tratamentos e para alcançar as finalidades terapêuticas pretendidas. Os referidos tratamentos médicos e as operações com eles estreitamente relacionadas devem, além disso, ser assegurados em condições sociais análogas às que vigoram para os organismos de direito público, por centros de assistência médica e de diagnóstico ou por outros estabelecimentos da mesma natureza devidamente reconhecidos na aceção deste artigo 132.°, n.° 1, alínea b).” [destaques nossos]

 

Em face do acabado de citar, afigura-se que o TJUE continua a adotar, nesta matéria, o já referido conceito estrito de indispensabilidade, que se reconduz ao teste de saber se, na ausência daquela atividade, era ou não possível ao utente/cliente obter os mesmos cuidados de saúde.

In casu, parecem não existir dúvidas de que, não sendo o recurso à linha de saúde obrigatório para aceder precisamente aos mesmos serviços de saúde (tanto no âmbito do contrato com o Estado como no do contrato com a D...) e, mais, tendo os utilizadores de passar por processo de avaliação dos seus sintomas in loco quando acedem a tais serviços, a atividade de triagem/aconselhamento através de linha telefónica tal como prestada pela Requerente não constitui assistência médica nem é atividade indispensável a tal assistência.

Como corolário, não deve considerar-se tal atividade como isenta de IVA ao abrigo do artigo 9.º, n.º 1 do Código do IVA e, em consequência, deve ser reconhecido à Requerente o direito à dedução do IVA suportado nos inputs adquiridos para tal atividade.

A tal não obsta o facto de tais serviços serem prestados por enfermeiros, pois o que releva, para efeitos de sujeição ou isenção de IVA, é a natureza (a indispensabilidade, em termos de cuidados de saúde) da atividade e não a qualidade profissional de quem a presta.

O mesmo é dizer que os serviços de triagem clínica de prioridades, embora prestados por enfermeiros, não consubstanciam a prática de atos de enfermagem ou o exercício da profissão de enfermagem, atenta a visão restritiva perfilhada pelo TJUE para efeitos de IVA.

 

2.2 - Tele-aconselhamento médico por videochamada

 

Ainda que represente um valor de pouca monta, quando comparado com o relativo ao dos serviços de triagem e acompanhamento, há também que saber se os serviços de tele-aconselhamento devem considerar-se “serviços efetuados no exercício das profissões de médico”, para efeitos da isenção de IVA.

No processo C-48/19 (caso Frenetikexito), e noutros, o TJUE entendeu que o facto de as consultas médicas serem prestadas por telefone não tem qualquer impacto para efeitos de isenção. Caso se verifiquem os requisitos da norma que prevê a isenção, as consultas médicas efetuadas por telefone poderão estar isentas de IVA.

Assim, o que é relevante é determinar se estamos perante consultas que prosseguem uma finalidade terapêutica, uma vez que estas estão, entre nós, isentas de IVA.

Segundo jurisprudência do TJUE, o conceito de «prestações de serviços de assistência» abrange as prestações que tenham por finalidade diagnosticar, tratar e, na medida do possível, curar doenças ou problemas de saúde.  Nas palavras do TJUE “No âmbito desta análise, a inexistência de uma prescrição médica anterior à consulta telefónica ou de um tratamento médico consecutivo a essa consulta não é suficiente, à luz da jurisprudência recordada no número anterior, para determinar se essa consulta está abrangida pelo conceito de «prestações de serviços de assistência», na aceção do artigo 132.º, n.º 1, alínea c), da Diretiva IVA.

No caso vertente, as consultas consistem em explicar diagnósticos e possíveis terapias ou em propor alterações de tratamentos. Na medida em que permitem à pessoa em causa compreender o seu quadro clínico e, se for esse o caso, agir em conformidade, nomeadamente tomando ou não determinado medicamento, são suscetíveis de prosseguir uma finalidade terapêutica e de integrar, a esse título, o conceito de «serviços de assistência», na aceção do artigo 132.º, n.º 1, alínea c), da referida diretiva e consequentemente, estão abrangidas pela isenção estipulada pelo artigo 9.º, n.º 1 do Código do IVA.

 

  1. Extensão do direito à dedução

 

Como é sabido, relativamente aos sujeitos passivos deste imposto, só é dedutível o IVA suportado na aquisição de inputs necessários a atividades não isentas (isenções incompletas).

Os sujeitos passivos, na medida em que realizem atividades isentas, são tratados como consumidores finais, suportam o encargo do imposto incluído no preço das suas aquisições.

Como atrás se concluiu, a Requerente efetua operações isentas e não isentas.

Relativamente às operações isentas (teleconsultas médicas) o principal input, adquirido exclusivamente para o exercício desta atividade, consiste na aquisição dos serviços a médicos. Não tendo tais médicos faturado IVA, como a lei prevê e foi dado por provado, a questão do exercício do direito à dedução não se coloca.

Considerando que, no mais, os bens e serviços utilizados, nomeadamente a plataforma informática e demais sistemas através dos quais se realizam as chamadas - relativas quer a serviços de triagem, quer a teleconsultas médicas - serão bens de utilização comum, afigura-se que o cálculo do IVA que a Requerente tem direito a deduzir deve ser feito através do método pro rata, previsto no art. 23º do CIVA, nomeadamente no seu nº 4.

 

 

V - DECISÃO ARBITRAL

 

Termos em que:

- improcede o pedido de suspensão da instância formulado pela Requerida;

- se anulam parcialmente as liquidações impugnadas, as quais devem, em execução de sentença, ser substituídas por outras em que seja efetivado o direito à dedução de IVA suportado pela Requerente, na proporção correspondente à faturação relativa a atividades não isentas (ou seja, na percentagem da faturação total que não corresponda a faturação de prestações de serviços que não de tele-aconselhamento médico).

 

 

VALOR: €  93.820,62

 

CUSTAS ARBITRAIS

Não existindo no processo dados que permitam quantificar o decaimento de cada uma mas partes e atendendo a que ficou provado que o valor da faturação relativa a prestações de serviços de tele-aconselhamento médico é pouco significativa relativamente à faturação total da Requerente, reparte-se a obrigação do pagamento das custas arbitrais, que são no valor total de 2.754,00 euros, como se segue: 10% a cargo da Requerente e o restante a cargo da Requerida.

 

24 de maio de 2022

 

Rui Duarte Morais

 

 

Paulo Ferreira Alves

 


João Taborda da Gama (relator)