Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 607/2021-T
Data da decisão: 2022-05-04  ISV  
Valor do pedido: € 5.002,69
Tema: Artigo 11.º do Código do ISV – conformidade com o artigo 110.º do TFUE – veículo usado proveniente de outro EM.
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SUMÁRIO:

 

  1. O artigo 110.º do TFUE estabelece a impossibilidade de fazer incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente sobre produtos nacionais similares.
  2. Sob a orientação da linha da jurisprudência constante do TJUE, a redação introduzida pelo artigo 391.º, da Lei 75-B, de 31 de dezembro, ao artigo 11.º, n.º 1, do CISV, por discriminar no âmbito do cálculo do imposto, a taxa de redução que é aplicável à componente ambiental, por confronto à aplicada à componente cilindrada, viola o artigo 110.º do TFUE.
  3. O artigo 11.º, n.º 1, do CISV,  na redação introduzida pelo artigo 391.º, da Lei 75-B, de 31 de Dezembro, não está em conformidade com o direito da União Europeia, designadamente com o disposto no artigo 110.º do TFUE (aplicável por força do artigo 8.º, n.º 4 da CRP), porquanto o mesmo padece de ilegalidade na parte em que não considerou aplicável a mesma taxa redução aplicada à componente cilindrada (75%), na taxa redução de ISV relativa à componente ambiental, onde aplicou apenas a taxa de 52%, em violação do disposto no artigo 110.º do TFUE.

 

DECISÃO ARBITRAL

A árbitra do Tribunal Singular Dra. Catarina Belim, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 30.11.2021, decide o seguinte:

 

 

  1. RELATÓRIO

 

A..., doravante designada por “Requerente”, número de identificação fiscal...,  residente em Rua..., nº ..., ... ...-... Aveiro, tendo sido notificado da Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º DAV 2021/...,  de  08.09.2021, contendo ato de liquidação de Imposto Sobre Veículos (“ISV”) n.º 2021/..., de 08.09.2021, apresentou, em 23.09.2021, pedido de constituição de Tribunal Arbitral com árbitro singular, ao abrigo do disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea b) 10.º e 2.º n.º 1 alínea a) “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos”, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).

 

  1. O Requerente pretende a anulação parcial da liquidação de ISV impugnada, por forma a aplicar-se a redução prevista no art. 11º do CISV para a componente cilindrada à componente ambiental, e reembolso da quantia de € 5.002,69, acrescida dos respetivos juros indemnizatórios desde a data do pagamento do imposto até à efetiva restituição.

 

  1. Invoca, em sede material, que a liquidação encontra-se parcialmente ferida de vício de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental, visto a AT, no cálculo do ISV devido pela admissão de veículos (i.e. entrada em território nacional de veículos originários ou em livre prática noutro Estado-Membro da União Europeia) não ter contemplado a mesma dedução (dada à componente cilindrada) correspondente ao número de anos de uso dos veículos à componente ambiental, o que está em desconformidade com o artigo 110º.º do TFUE que dispõe que nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos de outros EM, imposições internas, qualquer que seja a sua natureza,  superiores às que incidam direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.

 

  1. De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alíneas a) e b) e 6.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou como árbitra singular do Tribunal Arbitral a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 30.11.2021 conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

 

  1. Notificada para o efeito, em 03.01.2022 a Requerida apresentou Resposta e juntou o respetivo processo administrativo (“PA”) tendo-se defendido por impugnação.

 

  1. Por despacho de 28.01.2022 foi notificado o Requerente para informar aos autos, no prazo de 5 dias, se, face às posições das partes assumidas nos articulados, mantinha interesse na inquirição das testemunhas por si arroladas, ou se prescinde das mesmas. O Requerente não se pronunciou quanto a esta notificação.

 

  1. Ao abrigo do disposto na al. c) do artigo 16.º, e n.º 2 do artigo 29.º, ambos do RJAT, o Tribunal dispensou, por despacho de 09.03.2022, a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, sem oposição das Partes. O Tribunal decidiu ainda não proceder à audição das testemunhas arroladas pelo Requerente, uma vez que, analisadas as peças processuais de ambas as partes, inexiste controvérsia relativamente aos factos essenciais para a boa decisão da causa, sendo suficiente a prova documental não impugnada em conjugação com a posição de cada uma das partes assumida nos respetivos articulados.

 

  1. Pelo mesmo despacho foi ainda dispensada, sem oposição das partes, a apresentação de alegações finais, tendo em conta que a questão central no presente processo é de direito e não se suscita questão adicional de prova.

 

  1. Foi paga a taxa de arbitragem remanescente em 21.03.2022.

 

 

***

 

  1. Em face do exposto, importa delimitar as questões a decidir:
  • Saber se as liquidações de ISV em causa estão feridas de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental do ISV, quando este não contempla a mesma dedução correspondente ao número de anos de uso dos veículos dada à componente cilindrada, em violação do artigo 110º.º do TFUE; e,
  • Direito do Requerente aos juros indemnizatórios.

 

 

 

 

  1. SANEAMENTO

***

 

  1. O Tribunal é competente, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, para avaliar a ilegalidade dos atos tributários que violem as disposições dos tratados que regem a União Europeia tal como o TFUE, disposições estas que vinculam Portugal e são aplicáveis na ordem interna nacional, conforme dispõe o artigo 8.º n.s. º 2 e 4 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”)[i].

 

  1. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir dos factos previstos no artigo 102.º n.º 1, alínea a) do CPPT (data-limite de pagamento voluntário do ISV 22.09.2021 e data do pedido de constituição do tribunal arbitral a 23.09.2021).

 

  1. O processo não enferma de vícios que o invalidem na totalidade.

 

  1. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

A.       Factos provados

 

 

  1. Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que o Tribunal julga provados:
  1. O Requerente é uma pessoa singular que titula como adquirente/proprietário da Declaração Aduaneira de Veículo “DAV” para introdução no consumo em Portugal 2021/..., de 08.09.2021.
  2. O teor da DAV n.º 2021/..., é referente a 1 veículo automóvel de passageiros, tipo de combustível gasolina, cilindrada 3798 cc, emissão de CO2 combinado, ciclo NEDC, 279 g/km, com cobrança de ISV no total de € 13.859,66, pela liquidação de ISV n.º 2021/..., com data de 08.09.2021 cfr. documento junto ao PPA (cópia da DAV) bem como documentos juntos ao PA.
  3. No Quadro F desta DAV relativo a “Apresentação do Veículo”, campo 55, consta a indicação “Veículo: Usado” (campo 55).
  4.  
 
 


No mesmo Quadro F consta a indicação “País de procedência: DE-Alemanha”.

 

  1. No Quadro R desta DAV relativo a “Cálculo do ISV” consta com relevância para a causa a “Tabela ISV aplicável” com o seguinte teor:
  2. Foi pago pelo Requerente o ISV no valor de € 13.859,66, conforme quadro T da DAV junta ao PPA e PA, data de cobrança 08.09.2021.
  3. O cálculo do ISV em causa considerou, na componente” Redução de Anos de Uso”, para a componente cilindrada, 75%, e, para a componente ambiental, 52%, cfr. campo 04.a e campo 04.b do Quadro R da DAV, em conjugação com os respetivos campos 01 e 02.
  4. O Requerente apresentou o PPA no dia 23.09.2021.

 

B.      Factos não provados

 

  1. Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.

 

C.      Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

  1. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

  1. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

  1. Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, com base nos elementos documentais aí indicados.

 

  1. DO DIREITO E DO MÉRITO

 

  1. As normas em Causa (em vigor à data da liquidação aqui em causa, i.e., setembro de 2021):

 

Direito Nacional

Código do ISV

Artigo 5.º

Facto Gerador

1 - Constitui facto gerador do imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal.

(…)

3 - Para efeitos do presente código entende-se por:

(Redação inicial da L 22-A/2007, de 29 de junho)

 

a) «Admissão», a entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado-membro da União Europeia em território nacional;

(Redação inicial da L 22-A/2007, de 29 de junho) (…)

 

Artigo 6.º

Exigibilidade

 

1 - Nos casos mencionados no n.º 1 do artigo anterior, o imposto torna-se exigível no momento da introdução no consumo, considerando-se esta verificada:

(Redação inicial da L 22-A/2007, de 29 de junho)

 

a) No momento da apresentação do pedido de introdução no consumo pelos operadores registados e reconhecidos;

(Redação inicial da L 22-A/2007, de 29 de junho)

 

b) No momento da apresentação da declaração aduaneira de veículos pelos particulares.

(Redação dada pelo DL 53/2017, de 31 de maio)

 

Artigo 7.º

Taxas normais – automóveis

 

1 - A tabela A, a seguir indicada, estabelece as taxas de imposto, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, e é aplicável aos seguintes veículos:

(Redação dada pela L 64-B/2011, de 30 de dezembro)

 

a) Aos automóveis de passageiros;

(Redação dada pela L 64-B/2011, de 30 de dezembro)

 

b) Aos automóveis ligeiros de utilização mista e aos automóveis ligeiros de mercadorias, que não sejam tributados pelas taxas reduzidas nem pela taxa intermédia.

(Redação dada pela L 64-B/2011, de 30 de dezembro)

 


TABELA A

Componente cilindrada

 

Escalão de Cilindrada

(em centímetros cúbicos)

Taxas por centímetros cúbicos

(em euros)

Parcela a Abater

(em euros)

Até 1000

0,99

769,80

Entre 1001 e 1250

1,07

771,31

Mais de 1250

5,08

5 616,80

 

(Redação dada pela L 2/2020, de 31 de março)

 

Componente ambiental

Aplicável a veículos com emissões de CO2 resultantes dos testes realizados ao abrigo do Novo Ciclo de Condução Europeu Normalizado (New European Driving Cycle – NEDC)


 

Veículos a Gasolina

 

Escalão de CO2

(em gramas por quilómetro)

Taxas

(em euros)

Parcela a abater

(em euros)

Até 99

4,19

387,16

De 100 a 115

7,33

680,91

De 116 a 145

47,65

5 353,01

De 146 a 175

55,52

6 473,88

De 176 a 195

141,42

21 422,47

Mais de 195

186,47

30 274,29

 

(Redação dada pela L 2/2020, de 31 de março)

 

Veículos a Gasóleo

 

Escalão de CO2

(em gramas por quilómetro)

Taxas

(em euros)

Parcela a abater

(em euros)

Até 79

5,24

398,07

De 80 a 95

21,26

1 676,08

De 96 a 120

71,83

6 524,16

De 121 a 140

159,33

17 158,92

De 141 a 160

177,19

19 694,01

Mais de 160

243,38

30 326,67

 

(Redação dada pela L 2/2020, de 31 de março)

 

Componente ambiental

Aplicável a veículos com emissões de CO2 resultantes dos testes realizados ao abrigo do Procedimento Global de Testes Harmonizados de Veículos Ligeiros (Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure - WLTP)
 

 

Veículos a Gasolina


 

 

Escalão de CO2
(em gramas por quilómetro)

Taxas
(em euros)

Parcela a abater
(em euros)

Até 110

0,40

39,00

De 111 a 115

1,00

105,00

De 116 a 120

1,25

134,00

De 121 a 130

4,78

561,40

De 131 a 145

5,79

691,55

De 146 a 175

37,66

5 276,50

De 176 a 195

46,58

6 571,10

De 196 a 235

175,00

31 000,00

Mais de 235

212,00

38 000,00

 

(Redação dada pela L 2/2020, de 31 de março)

 

Veículos a Gasóleo

 

Escalão de CO2
(em gramas por quilómetro)

Taxas
(em euros)

Parcela a abater
(em euros)

Até 110

1,56

10,43

De 111 a 120

17,20

1 728,32

De 121 a 140

58,97

6 673,96

De 141 a 150

115,50

14 580,00

De 151 a 160

145,80

19 200,00

De 161 a 170

201,00

26 500,00

De 171 a 190

248,50

33 536,42

Mais de 190

256,00

34 700,00

 

(Redação dada pela L 2/2020, de 31 de março)

 

 

 

Artigo 11.º

Taxas - veículos usados

 

Artigo 11.º

Taxas - veículos usados

1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-Membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, incluindo-se o agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7.º, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida útil média remanescente dos veículos, respetivamente:

 

 

 

(Redação dada pela L 75-B/2020, de 31 de dezembro)
Uma imagem com mesa

Descrição gerada automaticamente

 

2 - Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respectivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.

(Redação inicial da L 22-A/2007, de 29 de Junho)

 

 

 

 


Direito Comunitário

Tratado de Funcionamento da União Europeia

DISPOSIÇÕES FISCAIS

Artigo 110.º (ex-artigo 90.o TCE)

 

Nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados- -Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.

 

Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções.

 

O AMBIENTE Artigo 191.º

(ex-artigo 174.o TCE)

1. A política da União no domínio do ambiente contribuirá para a prossecução dos seguintes objectivos: — a preservação, a protecção e a melhoria da qualidade do ambiente, — a protecção da saúde das pessoas, — a utilização prudente e racional dos recursos naturais, — a promoção, no plano internacional, de medidas destinadas a enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente, e designadamente a combater as alterações climáticas.

 

2. A política da União no domínio do ambiente terá por objectivo atingir um nível de protecção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da União. Basear-se-á nos princípios da precaução e da acção preventiva, da correcção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador.

Neste contexto, as medidas de harmonização destinadas a satisfazer exigências em matéria de protecção do ambiente incluirão, nos casos adequados, uma cláusula de salvaguarda autorizando os Estados-Membros a tomar, por razões ambientais não económicas, medidas provisórias sujeitas a um processo de controlo da União.

 

3. Na elaboração da sua política no domínio do ambiente, a União terá em conta: — os dados científicos e técnicos disponíveis, — as condições do ambiente nas diversas regiões da União, — as vantagens e os encargos que podem resultar da actuação ou da ausência de actuação, — o desenvolvimento económico e social da União no seu conjunto e o desenvolvimento equilibrado das suas regiões.

(…)

 

 

 

 

 

  1. Os fundamentos do Requerente quanto à ilegalidade parcial do ato de liquidação de ISV

 

  1. O Requerente alega que:
  1. na sequência de nova ação de incumprimento por parte da Comissão Europeia contra a República Portuguesa, que deu lugar ao processo n.º C- 169/20, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) decidiu pelo incumprimento do Estado Português em matéria de ISV na admissão de veículos de outros EM: "Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado-Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º, TFUE";
  2. na pendência deste processo, mas antes de ser proferido aquele acórdão, o legislador português, através da Lei do Orçamento do Estado para 2021 - Lei 75-B/2020 de 31 de dezembro - aprovou uma nova alteração ao art. 11° do CISV, mediante a qual foi introduzida uma tabela de desvalorização da componente ambiental em função do número de anos do uso do veículo, com indicação das respetivas percentagens (tabela D, n.º 1 do artigo 11.º do CISV);
  3. todavia, as percentagens aplicadas à componente ambiental são inferiores às que são aplicadas à componente cilindrada, mantendo assim um tratamento desigual entre estas duas componentes do imposto;
  4. a legislação portuguesa continua a praticar a mesma ilegalidade, embora por um valor inferior ao que vinha a ser praticado;
  5. a norma em vigor viola o artigo 110.º do TFUE, pois permite que a AT cobre um imposto sobre os veículos importados, com base num valor superior ao valor real do veículo, onerando-os com uma tributação fiscal superior à que é aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, já que nestes veículos, a desvalorização do seu valor de mercado contempla a redução do valor por força do número de anos de uso dos mesmos relativamente à totalidade do ISV liquidado e pago aquando da sua importação para Portugal, ou seja, nas duas componentes do imposto.

 

  1. Conclui o Requerente que o montante do imposto, calculado sem tomar em consideração a depreciação real do veículo, excede o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados em território nacional.

 

  1. Invoca que relativamente à componente cilindrada, o ISV foi liquidado pelo valor de
    € 13.677,04- € 10.257,78 (redução de 75% pelo número de anos de uso).

 

  1. Enquanto, na componente ambiental, foi liquidado por € 21.750,84 - € 11.310.44 (redução de apenas 52% pelo número de anos de uso).

 

  1. Quando deveria ter sido também aplicada a esta componente a redução de 75%, no valor de € 16.313,13, baixando dessa forma o respetivo ISV para o valor de € 8.856,97.

 

  1. Pelo que deve ser restituído o montante de € 5.002,69 pago a mais, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

 

  1. Por fim, invoca o Requerente que caso subsistam dúvidas sobre a interpretação e aplicação do disposto no art. 110° do TFUE, deve este Tribunal Arbitral proceder ao reenvio prejudicial desta questão ao Tribunal de Justiça para a interpretação da mesma à luz do Tratado.

 

  1. Os fundamentos da Requerida quanto à legalidade dos atos de liquidação de ISV

 

  1. A Requerida alega que:
  1. não pode ser imputado ao ato de liquidação em crise qualquer vício de violação do direito da União Europeia, mormente do artigo 110.º do TFUE, por não ter sido aplicada a redução de anos de uso à componente ambiental na medida em que a nova redação do n.º 1 do artigo 11.º já prevê na Tabela D percentagens de redução para a componente ambiental;
  2. o aludido ato de liquidação foi praticado tendo em consideração as normas estabelecidas no CISV, aprovado pela Lei nº 22-A/2007, de 29 de junho, e a AT não pode deixar de aplicar normas com base num “julgamento” de alegada desconformidade com o direito comunitário;
  3. o princípio constitucional da legalidade que entre nós vigora, exige que os impostos e os seus elementos essenciais (incidência, taxa, benefícios fiscais e garantia dos contribuintes) têm obrigatoriamente de ser criados por lei [nº 2 do art.º 103º da Constituição da República Portuguesa (CRP)];
  4. por outro lado, por força do disposto no nº 2 do at.º 266º da CRP, a atuação da AT encontra-se sujeita ao princípio da legalidade tributária, prevista no art.º 8º da LGT, o que determina a sua vinculação à lei, isto é, a AT não pode contrariar ou desobedecer às normas legais pré-existentes, pelo que, este princípio deve ser entendido em sentido proibitivo ou negativo, pois são proscritas atuações administrativas que contrariem a lei;
  5. sendo o CISV a lei que determina incidência do ISV, e considerando que o ato tributário de liquidação visado, foi praticado ao abrigo do art.º 11º desse Código, a AT não podia contrariar ou desobedecer às disposições legais nele ínsitas;
  6. não tendo sido proferida qualquer decisão que declare com força obrigatória geral, o vício de violação de lei comunitária, relativamente à nova redação do mencionado art.º 11º, a AT uma vez vinculada ao princípio da legalidade, terá de proceder à tributação dos veículos usados de acordo com a legislação atualmente em vigor e que se encontra vertida no CISV;
  7. o legislador nacional optou por aplicar percentagens de redução de ISV diferenciadas à componente cilindrada e à componente ambiental, na admissão de veículos usados provenientes de outros Estados Membros da União;
  8. como se afirma na Proposta de Lei do OE para 2021, «(…) que se procurou salvaguardar os ambiciosos objetivos ambientais do País e a incorporar o essencial das preocupações levantadas pela Comissão Europeia em matéria de compatibilidade com o direito europeu, prevê-se, à semelhança do que já sucede com a componente cilindrada do ISV, que os veículos usados provenientes de Estados–membros da União Europeia passem a beneficiar de um desconto sobre a componente ambiental do ISV, o qual, ao contrário do que sucede com a componente cilindrada, não estará associado à desvalorização comercial dos veículos, mas antes à sua vida útil média remanescente (medida pela idade média dos veículos enviados para abate), por se entender que a mesma é uma boa métrica do horizonte temporal de poluição do veículo, assegurando-se, deste modo, que os carros poluentes serão justamente tributados à entrada em Portugal»;
  9. na sua decisão, o TJUE não entendeu que a percentagem de redução de imposto a aplicar às componentes cilindrada e ambiental teria de ser a mesma, mas sim que a componente ambiental deveria ser desvalorizada, o que sucedeu mediante a alteração ao nº 1 do art.º 11º do CISV, na nova redação dada pelo art.º 391º da Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro;
  10. a nova redação do n.º 1 do artigo 11.º, do CISV, dada pelo art.º 391º da Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro, já incorpora o essencial das preocupações levantadas pela Comissão Europeia em matéria de compatibilidade com o direito europeu e já reflete a doutrina que resulta do acórdão do TJUE de 2 de setembro de 2021, no Processo C-169/20, porquanto já prevê na Tabela D, à semelhança do que já sucedia com a componente cilindrada do ISV, que os veículos usados provenientes de Estados–membros da União Europeia beneficiam de um desconto sobre a componente ambiental do ISV.

 

  1. Concluindo, assim, que a liquidação de ISV, ao aplicar o artigo 11.º do CISV, foi efetuada em conformidade com a lei nacional em vigor e com o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da Constituição, não existindo, conforme o exposto, a invocada discriminação da tributação dos veículos usados nacionais relativamente aos admitidos de outros Estados-membros, não se verificando, consequentemente, a alegada violação do artigo 110.º do TFUE.

 

  1. Por fim, invoca a Requerida que caso subsistam dúvidas da conformidade do artigo 11º do CISV, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 391º da Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro, com o artigo 110º do TFUE, poderá esse Tribunal, se assim o entender, submeter tal questão, a título prejudicial, ao TJUE.

 

 

  1. Apreciação

 

  1. O presente pedido de pronúncia arbitral tem por questão essencial saber se os atos de liquidação de ISV aqui em causa estão feridos de ilegalidade por terem na sua base um cálculo de ISV que viola o disposto no artigo 110.º do TFUE.

 

  1. O artigo 110.º do TFUE dispõe que nenhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos de outros EM, imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.

 

  1. A resposta à questão da ilegalidade dos atos em apreço depende, para este Tribunal, da análise de dois pontos essenciais:

 

  1. Qual a ratio de tributação da introdução no consumo em Portugal de veículos usados provenientes de outro Estado-Membro da UE?
  2. Qual a forma de tributação da introdução no consumo em Portugal de um veículo novo?

Ratio de tributação de veículos usados provenientes de outro EM

 

  1. Relativamente à ratio de tributação de veículos usados provenientes de outros EM, o TJUE foi já chamado a pronunciar-se por diversas vezes sobre esta questão, sendo jurisprudência constante (e que deve ser respeitada obrigatoriamente segundo o princípio do primado do direito da EU) que:
  1. um imposto cobrado por um EM no momento da matrícula de veículos automóveis no seu território com vista à sua colocação em circulação constitui uma imposição interna e deve, portanto, ser analisado à luz do artigo 110. ° TFUE (v., neste sentido, acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C-402/09, n.º 32);
  2. os veículos automóveis que se encontram no mercado de um EM são «produtos nacionais» do mesmo, na aceção do artigo 110. ° TFUE (v. acórdão Tatu, já referido, n.°55);
  3. o primeiro parágrafo do artigo 110.º do TFUE proíbe os EM de fazerem incidir sobre os produtos de outros Estados-Membros imposições internas, superiores às que incidam sobre produtos nacionais similares (v. acórdão de 19 de dezembro de 2013, X, C-437/12, n.º 21);
  4. a partir do momento em que se paga um imposto de registo de veículo automóvel num EM, o montante desse imposto é incorporado no valor do veículo. Deste modo, quando um veículo registado no EM em causa é, em seguida, vendido como veículo usado nesse mesmo EM, o seu valor de mercado, que inclui o montante residual do imposto de registo, será igual a uma percentagem, determinada pela desvalorização desse veículo, do seu valor inicial (v. acórdão de 5 de outubro de 2006, Nádasdi e Németh, C-290/05 e C-333/05, n.º 54);
  5. um Estado-Membro pode fixar o valor dos veículos usados através de tabelas de percentagens fixas determinadas por uma disposição legislativa, regulamentar ou administrativa e calculadas com base em diversos critérios como a idade, a quilometragem, o estado geral, o modo de propulsão, a marca ou o modelo do veículo (v, acórdãos de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, n.º 24, e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, n.º 29);
  6. para efeitos da aplicação do artigo 110. ° TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados comprados no mercado nacional, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar-se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um EM não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional v. (acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão Europeia contra República Portuguesa, C-200/15, n.º 37, na sequência do qual Portugal teve que alterar o artigo 11.º do CISV, tendo em conta que na tributação de veículos usados, não aplicava fator de desvalorização a veículos com menos de um ano e limitava a desvalorização de veículos com mais de cinco anos a 52%);
  7. o artigo 110.º do TFUE é violado sempre que a imposição que incide sobre o produto importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculadas de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdãos de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C‑393/98, EU:C:2001:109, n.° 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiamies e Siilin, C‑101/00, EU:C:2002:505, n.° 53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C‑74/06, EU:C:2007:534, n.° 25);
  8. a cobrança, por um Estado‑Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro é contrária ao artigo 110.° TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C‑345/93, EU:C:1995:66, n.° 20, e de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C‑393/98, EU:C:2001:109, n.° 23);
  9. o objetivo de proteção do ambiente pode ser realizado de forma mais completa e coerente fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado‑Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados‑Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor‑pagador (v., neste sentido, acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 60);
  10. um imposto calculado em função do potencial de poluição de um veículo usado, que, à semelhança do imposto em causa, só é integralmente cobrado no momento da importação e da entrada em circulação de um veículo usado proveniente de outro Estado‑Membro, ao passo que o adquirente de um desses veículos já presente no mercado do Estado‑Membro em causa só tem de suportar o montante do imposto residual incorporado no valor comercial do veículo que adquire, é contrário ao artigo 110.º do TFUE (v. neste sentido acórdão de 2 de setembro de 2021 no processo n.º 169/20, n.º 46).

 

  1. Em conclusão, e dito por outras palavras, a ratio legis da tributação de veículos usados provenientes de outros EM determina que o imposto que um EM faça incidir no momento da matrícula de veículos automóveis no seu território com vista à colocação de tais veículos em circulação deve (i) refletir o tempo de uso dos veículos e (ii) garantir que a tributação de veículos usados em nenhum caso seja superior ao montante da taxa residual incorporada no valor dos veículos usados já matriculados em território nacional (o que, no caso português, equivale a dizer que na tributação de veículos usados provenientes de outros EM devem ser usadas as mesmas componentes de base de tributação dos veículos novos, ajustadas pela componente que reflete o tempo de uso ou a depreciação dos veículos).

 

  1. Nesta sede, importa referir que decorre da jurisprudência do TJUE e da própria sistemática do TFUE que a norma do artigo 110.º do TFUE é imperativa e sobrepõe-se às normas de cariz ambiental do artigo 191.º do TFUE. Assim, ainda que um EM utilize componente ambientais na determinação do cálculo do regime de tributação de veículos, nunca poderá, com base nessa componente, agravar a tributação de veículos usados provenientes de outros EM face aos veículos usados já matriculados em território nacional.

 

Forma de tributação da introdução no consumo em Portugal de um veículo novo

 

  1. Tendo já percebido a ratio da tributação dos veículos “importados” de outros EM, importa agora perceber qual a forma de tributação da introdução no consumo em Portugal de um veículo novo e se o modelo de tributação de veículos importados de outros EM é agravado face a estes, considerando o tempo de uso de todos os veículos.

 

  1. As taxas a aplicar para efeito de cálculo do ISV, conforme artigo 7.º a 11.º do CISV, não incidem sobre o valor do automóvel, mas têm por base os centímetros cúbicos por cilindrada (cm3) (componente cilindrada) e os gramas de CO2 por quilómetro, segundo o tipo de teste de emissão (componente ambiental).

 

  1. A primeira componente prevê uma taxa a aplicar consoante a cilindrada e o tipo de veículo e a segunda componente estabelece uma discriminação positiva entre os veículos a gasolina e os veículos a gasóleo, prevendo uma tributação progressiva em função do nível de CO2 g/km (e tipo de teste de emissão).

 

  1. O cálculo do ISV devido por veículos usados provenientes de outros EM incide também sobre as componentes de cilindrada e ambiental.

 

  1. Nesta sede, a última alteração legislativa que aqui está em causa (artigo 391.º, da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro) concede, para o mesmo número de anos do veículo, uma percentagem de redução maior à componente cilindrada do que à componente ambiental, espelhando, de forma geral, percentagens maiores de redução para menor tempo de uso na componente cilindrada do que na componente ambiental (cfr. tabela D do artigo 11.º n.º 1 do CISV).

 

  1. Esta alteração legislativa, conforme indicado pela própria Requerida, é sustentada nos termos da proposta de Lei 61/XIV da seguinte forma:

“(...) se procurou salvaguardar os ambiciosos objetivos ambientais do País e a incorporar o essencial das preocupações levantadas pela Comissão Europeia em matéria de compatibilidade com o direito europeu, prevê-se, à semelhança do que já sucede com a componente cilindrada do ISV, que os veículos usados provenientes de Estados –membros da União Europeia passem a beneficiar de um desconto sobre a componente ambiental do ISV, o qual, ao contrário do que sucede com a componente cilindrada, não estará associado à desvalorização comercial dos veículos, mas antes à sua vida útil média remanescente (medida pela idade média dos veículos enviados para abate), por se entender que a mesma é uma boa métrica do horizonte temporal de poluição do veículo, assegurando-se, deste modo, que os carros poluentes serão justamente tributados à entrada em Portugal.”

 

  1. É o próprio legislador nacional que indica que, na componente ambiental, a tributação de veículos “importados” de outros EM não tem em conta o tempo de uso dos veículos, mas sim a sua vida útil média remanescente, como métrica do horizonte temporal de poluição do veículo.

 

  1. O que equivale a dizer que a forma de cálculo da tributação é contrária à ratio legis do artigo 110.º do TFUE, que por toda a jurisprudência citada – não tendo assim este Tribunal dúvidas que justifiquem o reenvio prejudicial – determina  que é apenas admitida a tributação de veículos usados provenientes de outros EM quando o imposto que um EM faça incidir no momento da matrícula de veículos automóveis no seu território com vista à colocação de tais veículos em circulação reflita o tempo de uso dos veículos (no sentido da sua depreciação real e não média de vida até ao abate).
  2. Ao não atender à depreciação real do veículo “importado”, não se permite garantir que o montante de imposto não excede o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar, já matriculado no território nacional. Tanto mais que os veículos fabricados ou montados em Portugal e registados como novos neste Estado‑Membro estão sujeitos uma única vez ao imposto em causa, que tem duas componentes, a componente cilindrada e a componente ambiental. Na venda subsequente do veículo em causa, como veículo usado, o seu valor comercial é igual a uma percentagem residual do seu valor inicial, em função da sua desvalorização (depreciação real e não média de vida até ao abate), e inclui o montante residual do imposto pago.

 

  1. Este entendimento é reforçado pelo TJUE no já referido processo C-169/20: “o artigo 110.º TFUE tem por objetivo assegurar a livre circulação de mercadorias entre os Estados‑Membros, em condições normais de concorrência, através da eliminação de qualquer forma de proteção que possa resultar da aplicação de imposições internas que sejam discriminatórias para os produtos originários de outros Estados‑Membros.” (negrito e sublinhado nosso).

 

  1.  Nesta medida, este Tribunal concorda e adere à decisão arbitral do processo nº 372/2021, cujos fundamentos adota e passa a transcrever:

é, pois, entendimento deste tribunal arbitral que a atual redação não tem em consideração a depreciação real do veículo, quando aplica distintas taxas de redução, conforme se está na componente de cilindrada ou na competente ambiental. Sendo a viatura a mesma, não se justifica a existência de diferentes depreciações, por efeito da imposição de objetivos ambientais, porque dessa forma se gera, uma vez mais, um fator discriminativo, ainda que de menor dimensão, por continuar a exceder o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.”

 

  1. E sempre se diga que o objetivo de proteção do ambiente pode ser realizado de forma mais completa e coerente fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado‑Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados‑Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor‑pagador (v., neste sentido, acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 60).

Conclusão

 

  1. Em consequência, entende-se que o artigo 11.º, n.º 1, do CISV não está em conformidade com o direito da União Europeia, designadamente com o disposto no artigo 110.º do TFUE (aplicável por força do artigo 8.º, n.º 4 da CRP), pelo que determina este Tribunal Arbitral que será de anular parcialmente o ato tributário de ISV objeto do pedido, no valor de € 5.002,69,  porquanto o mesmo padece de ilegalidade na parte em que não considerou aplicável a mesma taxa redução aplicada à componente cilindrada, 75%, na taxa redução de ISV relativa à componente ambiental, onde aplicou a taxa de 52% (diferencial de 23%), em violação do disposto no artigo 110.º do TFUE.

 

  1. Por fim, importa referir, quanto à invocação de que a AT se limitou a aplicar as normas legais vigentes na sua atuação, sob o espectro do princípio da legalidade (cfr. n.º 2 do artigo 266.º do CRP e art.º 55 LGT), que os argumentos da AT não colhem. Com efeito, conforme decorre da decisão do processo The Trustees of the BT Pension Scheme, C 628/15, ao abrigo do primado do direito comunitário sobre o direito nacional: “há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tanto as autoridades administrativas como os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União têm a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação  prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, relativamente às autoridades administrativas, acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31, e de 29 de abril de 1999, Ciola, C 224/97, EU:C:1999:212, n.os 26 e 30, e, relativamente aos órgãos jurisdicionais, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 24, e de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C 614/14, EU:C:2016:514, n.o 34).”

 

 

 

  1. Do pagamento de juros indemnizatórios

 

  1. Ficou provado que o ISV aqui em causa foi pago pela Requerente, com data de cobrança 08.09.2021.

 

  1. Nos termos do artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, em linha com o artigo 100.º da LGT, a decisão arbitral a favor do sujeito passivo tem por efeito restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado.

 

  1. O artigo 24.º, n.º 5 do RJAT ao dispor que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, permite o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT, aplicáveis ex vi artigo 29.º do RJAT.

 

  1. A obrigação de pagamento de juros indemnizatórios tem o seu fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual do Estado, constituindo a contra face dos juros compensatórios a favor da administração fiscal. Assim, a natureza dos juros indemnizatórios é substancialmente idêntica à dos juros compensatórios, sendo, como estes, uma indemnização atribuída com base em responsabilidade civil extracontratual. Os juros indemnizatórios vencem-se a favor do contribuinte, destinando-se a
    compensá-lo do prejuízo provocado por um pagamento indevido de uma prestação tributária.

 

  1. Os requisitos do direito a juros indemnizatórios previsto no artigo 43º, n.º 1, da LGT, são os seguintes:

 

a) Que haja um erro num ato de liquidação de um tributo;

b) Que o erro seja imputável aos serviços;

c) Que a existência desse erro seja determinada em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial;

d) Que desse erro tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

  1. Nesta sede, este tribunal, em linha com o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, processo 1770/12.9BELRS, de 22.05.2019 entende que, no âmbito do direito tributário, a interpretação de distinguir "erro" de "vício", como defende a doutrina e jurisprudência dominantes, e só relevar aquele, para efeitos de exame do direito a juros indemnizatórios, não é a que melhor garante a aplicação da teoria da reconstituição da situação atual hipotética, em virtude da anulação, total ou parcial, de um ato tributário (cfr. artigo 24.º n.º 1, alínea b) do RJAT e artigo 100º, da LGT). É que tal distinção pode conduzir a um tratamento diferenciado dos contribuintes, de forma injustificada.

 

  1. Assim, tal como sufragado no acórdão acima indicado: “cremos que a interpretação da expressão "erro imputável aos serviços" que melhor se estriba na letra da lei, considerando que a LGT e o CPPT não distinguem os conceitos de "erro" e de "vício", deve reconduzir-se a qualquer "ilegalidade" fundante da anulação, total ou parcial, do ato tributário”. Nesse sentido vai, de resto, o estipulado no artigo 24.º n.º 1, alínea b) do RJAT e artigo 100.º, da LGT, normas que devem ser concatenadas com a do artigo 43.º, n.º 1 da LGT, a qual consagra, na lei ordinária, a teoria da reconstituição da situação atual hipotética, em virtude da anulação, total ou parcial, de um ato tributário, na mesma utilizando o legislador a expressão "ilegalidade" como fundamento da dita reconstituição.

 

  1. Ora, a expressão "ilegalidade" aqui utilizada comporta, também, a violação de normas de direito comunitário primário.

 

  1. Reconhece-se, assim, ao Requerente o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre os montantes indevidamente cobrados, desde a data do respetivo pagamento até ao momento do efetivo reembolso (cfr. LGT, artigo 43.º, n.º 1 e CPPT, artigo 61.º).

 

  1. DECISÃO

 

De harmonia com o exposto este Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente o pedido de anulação parcial da liquidação de ISV;
  2. Anular parcialmente a liquidação impugnada, quanto ao valor de
    € 5.002,69 e condenar a AT ao reembolso desta quantia ao Requerente;
  3. Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e condenar a AT a pagar ao Requerente juros indemnizatórios desde a data do pagamento do imposto até que ocorra o seu reembolso.

 

  1.  VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária
fixa-se ao processo o valor de € 5.002,69.

 

  1.  CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da AT.

 

Notifique.

 

Notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional e 185.º-A, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável.

 

Lisboa, 4 de maio de 2022

 

(Catarina Belim)

 

 

 



[i] Sendo pacífico o primado do direito comunitário, conforme acórdão do STA
0678/16 de 02.08.2017, acórdão do STA 0164/13 de 29.03.2017 e acórdão do STA 0568/13 de 18.12.2013.