Sumário:
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A impugnação da autoliquidação destina-se à correção, a seu favor, de erros que o sujeito passivo tenha cometido contra si, e em lado nenhum se estatui que estejam excluídos os erros praticados na contabilidade.
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Uma indemnização paga por uma SGPS a uma participada, beneficiária de um contrato da SGPS com uma entidade terceira, decorrente do incumprimento contratual dessa terceira perante a SGPS, tem relação com a actividade desta e é imputável ao exercício em que se concretiza o direito à indemnização a pagar à SGPS pela entidade terceira.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Prof. Doutor Victor Calvete (árbitro-presidente), Dr. Gaspar Vieira de Castro (árbitro relator) e Prof. Doutor Diogo Feio) (árbitro adjunto), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 2021-11-10, acordam no seguinte:
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RELATÓRIO
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A..., S. A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa, da área de jurisdição do Serviço de Finanças de Lisboa_... (doravante designada por Requerente, ou A...) apresentou em 2021-08-3, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), pedido de pronúncia arbitral visando a anulação parcial da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) número 2019..., efetuada em 10/04/2019 relativamente ao período de 2015 e que apura o valor a pagar de 2 834 002,18 euros, com fundamento em alegado erro na autoliquidação, por ilegalidade, afirmando ter ocorrido violação do disposto no art.º 23.º/ no 2/ alínea m) e no art.º 67.º/n.º1, ambos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC).
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, a seguir também identificada como AT.
Ainda que a liquidação posta em crise apure um valor a pagar (de imposto, derramas e juros) no montante de total de 2 834 002,18 euros, a Requerente apenas a questiona na medida em que decorre dos seguintes erros por si alegadamente cometidos no preenchimento da declaração de rendimentos modelo 22 a que se refere o art.º 120.º do CIRC e que influenciaram positivamente o lucro tributável, o imposto e os juros: (i) erro no acréscimo de 2 319 242,23 euros inscrito no campo 748 do quadro 07 da declaração modelo/22 de IRC a título de “Limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento líquidos” e (ii) erro no acréscimo de 4 315 855,71 euros, que diz incluído no valor de 4 692 444,45 euros inscrito no campo 752 do mesmo quadro 07 a título de “Outros acréscimos” e contabilizado na conta “6858 – Gastos e perdas em subsidiárias”.
Estando, assim, em causa a ambicionada eliminação de erros que diz cometidos na sua própria autoliquidação, a Requerente deduziu no prazo de dois anos reclamação graciosa prévia, necessária em face do disposto no n.º 1 do artigo 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e no artigo 137.º do CIRC.
A mencionada reclamação graciosa não foi objeto de decisão no prazo de 4 meses – condições em que, nos termos do art.º 57.º/n.ºs 1 e 2 da Lei Geral Tributária (LGT), a Requerente a deu como tacitamente indeferida para efeitos da admissibilidade do presente pedido de constituição do Tribunal Arbitral.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 2021-09-01 e de imediato notificado por email automático à Requerente e à Requerida, sendo que esta, por requerimento de 2021-10-13, veio comunicar que “o ato objeto do pedido de constituição do tribunal arbitral foi parcialmente revogado, nos termos do disposto do n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, por despacho da Subdiretora-Geral da Área de Gestão Tributária - Impostos sobre o Rendimento do IR, datado de 07-10-2021, a qual decidiu: (i) anular o ato tributário na parte respeitante ao acréscimo indevido ao resultado líquido para efeitos de apuramento do resultado tributável individual da sociedade dominante A..., no montante de € 2.319.242,23 - art.º 67º, nº 1, do CIRC; (ii) notificar a Requerente, nos termos do n.º 2 do art.º 13.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária; (iii) comunicar a decisão à Direção de Finanças de Lisboa para efeitos de execução”.
Notificada da comunicação da Requerida, a Requerente veio em 2021-10-15 informar nada ter a opor à anulação parcial do ato tributário em causa e que pretendia o prosseguimento do procedimento arbitral quanto à parte impugnada e não anulada, reiterando a reivindicação do reconhecimento da procedência do seu pedido.
Ocorre, assim, inutilidade superveniente da lide quanto à parte anulada, pelo que o litígio passou a limitar-se à medida em que a liquidação de IRC n.º 2019..., efetuada em 10/04/2019, está influenciada pelo alegado erro no acréscimo de 4 315 855,71 euros, que a Requerente diz incluído no valor de 4 692 444,45 euros inscrito no campo 752 do quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22 a título de “Outros acréscimos” e contabilizada na conta “6858 – Gastos e perdas em subsidiárias” – e que considera qualificável como gasto fiscal ao abrigo do disposto no art.º 23.º/n.º 1/alínea m) do CIRC por consistir em gasto com enquadramento na categoria de “indemnizações por eventos cujo risco não seja segurável”.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo, tendo estes aceite a designação; e as Partes, devidamente notificadas, não manifestaram vontade de recusar qualquer das designações, pelo que em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 10 de novembro de 2021.
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A Requerida, notificada para efeito, veio apresentar resposta validada em 2021-12-16.
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Em 9 de fevereiro de 2022 procedeu-se à inquirição de testemunhas.
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As Partes, notificadas para, querendo, alegarem, vieram a fazê-lo, reiterando as posições anteriormente defendidas nas suas peças processuais e acrescentando considerações sobre a prova testemunhal.
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Das posições das Partes
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A Requerente sustenta que o acréscimo de 4 663 542,08 euros expresso no campo 752 do quadro 07 da declaração modelo 22 integra duas verbas, ambas contabilisticamente reconhecidas na conta 6858 – Outros gastos e perdas, (i) uma de 347 686,38, que dá por bem acrescida para apuramento do lucro tributável, e (ii) outra de 4 315 855,71 euros que alega indevidamente acrescida, porque em ofensa do preceituado no art.º 23.º/n.º 2/alínea m) do CIRC, uma vez que se trata, segundo diz, de indemnização por evento cujo risco não era segurável.
Salienta que, tendo apresentado a declaração de rendimentos modelo 22 apenas na sequência do desenvolvimento de um procedimento de inspeção tributária, “procedeu – de acordo com as informações e indicações fornecidas pela inspetora tributária – à regularização das inexatidões e/ou omissões detetadas”.
Para sustentar a sua posição invoca uma série de contratos celebrados entre várias entidades [(i) a própria Requerente, (ii) a B... (doravante designada por B...), (iii) a C..., S. A. (doravante C...), e a (iv) D..., Ltda. (doravante designada por D...– contratos reportados à opção de compra de escória de alto forno a fornecer pela B... e cujos efeitos, vistos à luz de sobrevinda impossibilidade de cumprimento, culminaram, por um lado, com um acordo entre a Requerente e a B... no sentido de esta indemnizar aquela pelo montante de USD 20 000 000, equivalente ao contravalor de 17 700 603,80 euros, e, por outro lado, a um acordo entre a Requerente e a D... no sentido de a primeira indemnizar a segunda pelo montante de R$ 29 000 000, correspondentes ao contra valor de € 9 393 321,02 euros.
Esclarece que em 2015 apenas foi pago à D..., e levado a gasto do período, o valor de 4 315 855,71 pela circunstância de as entidades envolvidas terem acordado que ao montante de 9 393 321,02 euros da indemnização acordada seriam abatidas entregas entretanto efetuadas por si à D... .
Alega também a Requerente que a indemnização paga à D... foi criteriosamente calculada com base nos prejuízos sofridos por esta por lhe ser subtraída a possibilidade de cumprir com a disponibilização à C... de adquirir à B... 960 000 toneladas de escória de um total de 1 070 000 cujo fornecimento estava acordado, e que está relacionada, por ser consequente do mesmo incumprimento contratual, com aquela que foi acordada e recebida da B..., tendo o pagamento a efetuar à D... ficado sujeito à condição suspensiva consistente no efetivo recebimento B... .
Alega ainda que o risco do evento de que decorre a indemnização que pagou não era segurável – pelo que entende que, tudo visto, ao gasto em causa deve ser reconhecida a relevância fiscal.
E acrescenta que “Mais ficou acordado que, do referido valor de indemnização, seria deduzido o somatório das entregas feitas pela A... ainda no decurso do ano de 2014. A A... aceitou a proposta da D..., rescindindo o contrato com esta última em 02/07/2014” – pelo que em 2015 foi apenas reconhecido como gasto o valor de 4 315 855,71 euros.
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A Requerida opõe-se à pretendida consideração verba de 4 315 855,71 como gasto fiscal do período de 2015 essencialmente nos termos seguintes.
Refere que segundo a nota 23 do Anexo às Demonstrações Financeiras de 2015, o montante em causa diria respeito a “Perdas em inventários”, e, sem deixar de reconhecer que a Requerente diz que tal referência decorre de “mero lapso”, alega que “... não pode tal lapso ser oponível à AT”, considerando que “Com efeito não cumpre à AT, que se encontra adstrita ao cumprimento do princípio da legalidade, nem ao Tribunal Arbitral, que nos termos do artigo 2.º, n.º2, do RJAT decide «de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade» suprir os alegados erros contabilísticos”.
Reportando-se à sustentação normativa do seu pensamento, invoca os art.ºs 123.º/n.º1 e 17.º/n.º3 do CIRC e a NCRF-4 para concluir que ” ... não pode a Requerente pretender que seja a AT ou o Tribunal a colmatar as omissões e irregularidades da sua contabilidade, por forma a requalificar os factos fazendo-os coincidir com o seu discurso argumentativo”.
Acrescenta “dúvidas prementes” quanto a elegibilidade do gasto, à luz da disposição do art.º 23.º/n.º1 do CIRC, e alega que a indemnização está computada pela D... como se não tivesse havido qualquer fornecimento de escória entre junho de 2012 e junho de 2014.
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Questões a decidir
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Em face das posições das Partes e do pedido, o Tribunal Arbitral considera que existe uma única questão última a decidir, que pode ser assim enunciada: no montante de € 4 663 542,08, reconhecido contabilisticamente pela Requerente como gasto na conta “6858 – Gastos e perdas em subsidiárias” e por si acrescido no campo 752 do quadro 07 da declaração de rendimentos modelo 22 relativa ao período de 2015, está ou não incluído um valor de 4 315 855,71 euros que cumpre os pressupostos de facto e de direito para ser considerado gasto fiscal do mencionado período de 2015 por enquadramento na previsão legal de “Indemnizações resultantes de eventos cujo risco não seja segurável” ? – o que passa por (i) avaliar se estão cumpridas as condições do art.º 23.º/n.º 1 do CIRC, que a recorrida invoca no artigo 30.º da sua Resposta, (ii) avaliar, à luz do que dispõe o art.º 18.º do CIRC, sobre a localização temporal do gasto em 2015, quando a indemnização a pagar à D... foi acordada em 2014, questão que a Requerida levanta nos art.ºs 33.º a 49.º da sua douta Resposta, o que passa por (iii) avaliar sobre as correções e/ou incorreções do reconhecimento e relato contabilísticos e dos correspondentes efeitos em matéria de apuramento do lucro tributável; (iv) avaliar se o risco do evento que determinou a indemnização é ou não segurável para os efeitos previstos no arts.º 23.º/ n.º1/ alínea m) e 23.º-A / n.º1 / alínea g) do CIRC, questão que a Requerida levanta nos art.ºs 50.º a 55.º da Resposta, (iv) avaliar da quantificação da indemnização acordada entre a Requerente e a D... .
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Da matéria de facto
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Com interesse para a decisão, o Tribunal considerou provados os factos seguintes:
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A Requerente é uma sociedade de direito português cujo objeto social consiste na “Gestão de participações noutras sociedades e da carteira de títulos, como forma indirecta mo exercício de actividades comerciais ou industriais” (facto alegado, não controvertido e certidão permanente com o código ...).
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A D... é uma sociedade de direito brasileiro participada pela Requerente.
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Em 27/08/2010, a Requerente celebrou um contrato com a B... em cujo Memorando de Entendimentos ficou acordado que esta última conferia à Requerente o direito de exercer a opção de compra de escória de alto forno, com origem nos dois fornos da sua unidade fabril localizada em ... (i.e, do 1.º Forno já construído e em pleno funcionamento e do 2.º Forno, ainda em construção), para a produção de artefactos de cimento – sendo que numa primeira fase tal opção de compra poderia atingir a quantidade 360.000 toneladas/ano de escória, com a possibilidade de ser aumentada para 720.000 toneladas/ano após conclusão das obras, então em curso, para a expansão da referida unidade fabril (facto alegado, documentado e não controvertido).
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Foi acordado entre a Requerente e a B... que a primeira poderia ceder o direito à escória de cimento a empresas do seu grupo (facto alegado, documentado e não controvertido).
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Foi igualmente acordado entre a Requerente e a B... a possibilidade de aquela realizar negócios com terceiros, nos termos do qual a A... poderia ceder parte do seu direito de opção de compra de escória de alto forno, desde que o terceiro adquirisse o produto diretamente à B... (facto alegado, documentado e não controvertido).
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Em 06/01/2012, a Requerente e a C... celebraram um protocolo de intenções nos termos do qual a Requerente transferiu, parcialmente, para a C... o direito de opção de compra de escória de alto forno contratado com a B... por via do Memorando de Entendimentos referido no facto 1). (facto alegado, documentado e não controvertido).
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Em 07/06/2012, por questões de conveniência geográfica, a Requerente cedeu a posição contratual que detinha perante a C..., conforme facto 6 acima, à empresa sua relacionada D... . (facto alegado, documentado e não controvertido).
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O projeto de expansão da unidade fabril de ..., foi interrompido pela sociedade B... e tal facto implicou que esta apenas poderia garantir o fornecimento à Requerente de 360.000 toneladas/ano de escória e não de 720.000 toneladas/ano, conforme decorria do contrato celebrado entre as duas sociedades em 27/08/2010. (facto alegado e não controvertido).
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O facto referido no ponto anterior determinou que a B... se visse numa situação de impossibilidade de cumprimento do acordado com a Requerente, ficando esta constituída no direito a ser indemnizada por aquela. (facto alegado e não controvertido).
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O direito de a Requerente a ser indemnizada foi reconhecido pela B..., pelo que entre ambas veio em 13/04/2015 a ser celebrado um “Termo de Encerramento e Quitação” nos termos do qual a B... se obrigou a pagar à Requerente o valor de USD 20 000 000, equivalente a 17 700 603,80 euros, sendo o pagamento realizado em 4 iguais parcelas anuais e sucessivas, a primeira devida em 05.05.2015 e as seguintes em 05.05.2016, 05.05.2017 e 05.05.2018. (facto alegado, documentado e não controvertido).
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No “Termo de Encerramento e Quitação” referido ponto anterior ficou consignado, relativamente à autorização de cessão dada pela B... à Requerente, (i) que as “Partes acordam que a partir da assinatura deste Termo de Encerramento, a referida autorização, bem como qualquer outra eventualmente existente, restará revogada para todos os fins de direito não persistindo nenhuma obrigação de fornecimento dieto pelo grupo E... a terceiros a partir desta data” e (ii) que a Requerente obteve a anuência da cessionária para o término da obrigação da B... “fornecer escória..., não mais havendo qualquer obrigação do Grupo E... Brasil de fornecimento”. (facto alegado, documentado e não controvertido).
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A Requerente reconheceu o referido montante de USD 20 000 000 (17 700 603,80 euros) como rendimento contabilístico do período de 2015, e por essa via incluiu-o no lucro tributável do mesmo período. (facto alegado, documentado e não controvertido).
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A Requerente, mediante aceitação em 02/07/2014 de proposta apresentada pela D... em 05/06/2014, assumiu perante esta a obrigação de lhe pagar uma indemnização de R$ 29 000 000, equivalente a 9 393 321,02 euros, com vista a ressarci-la dos prejuízos em que iria incorrer por causa da sobrevinda impossibilidade de garantir à C... o cumprimento da opção de compra da escória à B... . (facto alegado, documentado e não controvertido)
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Entre a Requerente e a D... ficou acordado que a obrigação da indemnização referida no ponto anterior seria satisfeita de duas formas: (i) uma parte por via de compensação com valores que no decurso do ano de 2014 a primeira tinha feito à segunda e (ii) a parte não compensada por essa via através de pagamento a efetuar pela Requerente no prazo de 180 dias a contar da data em que viesse a ser recebida da B... a indemnização por rescisão do memorando de entendimentos supra referido no ponto 3). (facto alegado, documentado e não controvertido).
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A parte (ii) da indemnização referida no ponto anterior, que se cifrou no valor de 4 315 855,71, foi paga pela Requerente à D... no ano de 2015 e reconhecida como gasto contabilístico por registo na rubrica #6858 – Outros Gastos e Perdas, mas não foi assumida como gasto fiscal para apuramento do lucro tributável, uma vez que foi acrescida ao resultado líquido do período por inclusão na verba de 4 663 542,08 euros inscrita no campo 752 do Quadro 07 da declaração modelo 22 de IRC. (facto alegado, documentado e não controvertido).
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No anexo às demonstrações financeiras, o valor de 4 663 542,08 euros vem referido como respeitante a “Perdas em inventários”
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A Requerente apresentou comunicações de duas companhias de seguros a declararem que o risco relativo ao evento a que se reporta a indemnização paga à D... não era segurável.
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O cômputo em R$ 29 000 000 do montante da indemnização devida pela Requerente à D... foi processado com base numa quantidade de 960 000 toneladas corresponde à diferença entre um total de 1 070 000 toneladas cuja opção de compra tinha sido cedida pela D... à C... e a quantidade entretanto já adquirida por esta (facto alegado e provado por via testemunhal).
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Da análise dos factos primários elencados no anterior número 10. retiram-se as seguintes conclusões ainda em matéria factual:
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A indemnização acordada em 2014 entre Requerente e a sua participada D..., em favor desta, está intimamente ligada à indemnização que a Requerente viria a acordar em 2015 com a B..., a seu favor, e o papel da Requerente no processo de negociação e de desoneração da B... de quaisquer responsabilidades perante a D... (indicada como cessionária no Termo de Encerramento e Liquidação supra referido nos facto 10) e 11) é coerente com a seu papel de sociedade gestora de participações sociais
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A efetividade da indemnização pagar à D... ficou dependente da concretização do acordo indemnizatório com a B... .
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O Tribunal não considerou não provado qualquer facto que julgue com interesse para a apreciação do caso.
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O Tribunal assentou a sua convicção na análise dos documentos trazidos ao procedimento arbitral (não impugnados), na descrição (não controvertida) dos mesmos expressa na petição inicial da Requerente e na resposta da Requerida, no depoimento das testemunhas inquiridas e na ponderação das regras da experiência.
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Do enquadramento jurídico
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Relativamente à avaliação do cumprimento do requisito, imposto pelo art.º 23.º/n.º1 do CIRC, que limita a dedutibilidade aos “...gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, afigura-se seguro e imediato que o mencionado requisito está cumprido, no caso pela mera circunstância de do elenco do probatório resultar claro que a indemnização de 17 700 603,80 euros que a Requerente acordou, para si, com a B..., só se justificar, pelo menos na sua integral dimensão quantitativa, pelo facto de ter garantido perante a B... a sua desoneração relativamente aos direitos da D... .
Assim, não colhe a alegação de que tenha havido violação do art.º 23.º/n.º 1 do CIRC.
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Passemos à questão das regras de periodização do lucro tributável.
Começando, todavia, por afastar a tese de que o sujeito passivo teria inelutavelmente de se conformar com as consequências (se para si negativas) dos seus erros contabilísticos, a menos, porventura, que corrigisse a contabilidade – tese que parece ser a da Requerida quando, por exemplo, alega que “... não pode tal lapso ser oponível à AT”, considerando que “Com efeito não cumpre à AT, que se encontra adstrita ao cumprimento do princípio da legalidade, nem ao Tribunal Arbitral, que nos termos do artigo 2.º, n.º2, do RJAT decide «de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade» suprir os alegados erros contabilísticos”, e quando apela ao art.º17.º/n.º3 do CIRC e à NCRF_4 para lembrar que nesta se “exige que os erros contabilísticos que sejam materialmente relevantes devem ser corrigidos, por forma a repor a verdade das demonstrações financeiras”.
É certo que o art.º 17.º/n.º3 do CIRC dispõe que
“De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve:
a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;
b) Reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.
c) Estar organizada com recurso a meios informáticos.”
Certo é também que a NCRF_4, na sequência do disposto no ponto 2.1.5 do Anexo ao Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho, e na Estrutura Concetual do SNC, “exige que os erros contabilísticos que sejam materialmente relevantes devem ser corrigidos, por forma a repor a verdade das demonstrações financeiras”.
Só que isso não tem nada a ver com alguma suposta impossibilidade de na passagem do resultado líquido do período para o lucro tributável, um e outro apurados pelo sujeito passivo, serem corrigidos, em favor deste se for o caso, eventuais erros por si praticados na contabilidade e por si invocados no tempo, no local e pelos meios adequados.
Para assim concluir basta lembrar que a impugnação da autoliquidação está expressamente prevista no art.º 131.º do CPPT, ainda que “obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração” – requisito que a Requerente cumpriu.
A impugnação da autoliquidação destina-se obviamente à correção, a seu favor, de erros que o sujeito passivo tenha cometido contra si, e em lado nenhum se estatui que estejam excluídos os erros praticados na contabilidade.
Importa, ademais, salientar que, no caso, sem rejeitar que tenha havido erros de reconhecimento e de relato contabilísticos, a verdade é que tais erros nem sequer influenciaram o apuramento do resultado líquido do período, por isso que a Requerente não venha reivindicar a alteração deste, mas apenas de um acréscimo que processou no quadro 07 da declaração modelo 22.
Falece, portanto, a tese de que à AT e/ou ao Tribunal Arbitral está vedada a possibilidade de corrigir a favor da Requerente os eventuais erros que esta tenha praticado na contabilidade e que a tenham prejudicado em termos de apuramento do lucro tributável e do imposto, sejam eles os erros de relato (menção no Anexo de que tratava de “Perdas em inventários”) ou de erro de reconhecimento por troca de conta. E muito menos está vedada a correção daquilo que efetivamente a Requerente pretende, que é um eventual erro praticado na sua declaração de rendimentos modelo 22.
Em concreto quanto à relevância fiscal do gasto reconhecido em 2015 e já acordado em 2014, saliente-se que, segundo o art.º 17.º/n.º1 do CIRC, “O lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”, pelo que, de algum modo, o lucro tributável em IRC é igual ao resultado líquido do período, a menos que o CIRC (ou, valha a verdade, legislação fiscal extravagante) mandem que assim não seja.
Para o que aqui importa releva o que dispõe o art.º 18.º, particularmente os seus n.º 1, e n.º 3/alínea b).
O n.º 1 dispõe que “Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica”, pelo que a circunstância de a indemnização paga à D..., na parte que está em causa, ter sido paga em 2015 é de todo irrelevante para localizar o gasto em 2015.
E quanto à alínea b) do n.º 3 ?
Esta norma estabelece que “Os réditos relativos a prestações de serviços consideram-se em geral realizados, e os correspondentes gastos suportados, na data em que o serviço é concluído, excepto tratando-se de serviços que consistam na prestação de mais de um acto ou numa prestação continuada ou sucessiva, que são imputáveis proporcionalmente à sua execução.”
Ora, afigura-se que a indemnização acordada com a D... constitui um gasto imputável à prestação de serviços de que decorre o rendimento da indemnização acordada com a B..., no sentido de que esta – ou, pelo menos, a sua dimensão – vem justificada pela circunstância de a Requerente, na sua qualidade de sociedade gestora de participações sociais e efetiva participante no capital social da D..., desonerar a B... de eventuais obrigações de indemnização diretamente a essa D... . De resto, a própria efetividade do pagamento à D... ficou suspensa de haver recebimento da B... .
E a prestação de serviços da Requerente à B... só terminou com o fim da negociação entre as duas, ou seja, em 15/04/2015, pelo que só então, segundo o disposto na citada alínea b) do n.º 3 do art.º 18.º do CIRC, deveriam ser reconhecidos o rendimento e o gasto, como foram.
Importa ainda trazer à colação o que dispõem as normas de contabilidade, a que a Requerida também recorre. Para o caso, importa especialmente o “Princípio do Balanceamento” segundo o qual os réditos e os respetivos gastos se devem contrapor na demonstração de resultados do mesmo período e que vem assim regulado nos §§ 93. a 96 da Estrutura Concetual (EC) do Sistema de Normalização Contabilística (SNC):
“93 - Os gastos são reconhecidos na demonstração dos resultados com base numa associação direta entre os gastos incorridos e a obtenção de rendimentos específicos. Este processo, geralmente referido como o balanceamento de gastos com réditos, envolve o reconhecimento simultâneo ou combinado de réditos e de gastos que resultem direta e conjuntamente das mesmas transações ou de outros acontecimentos; por exemplo, os vários componentes de gastos constituindo o custo dos produtos vendidos são reconhecidos ao mesmo tempo que o rendimento derivado da venda dos produtos. Porém, a aplicação do conceito de balanceamento segundo esta Estrutura Conceptual não permite o reconhecimento de itens no balanço que não satisfaçam a definição de ativos ou passivos.
94 - Quando se espere que surjam benefícios económicos durante vários períodos contabilísticos e a associação com rendimentos só possa ser determinada de uma forma geral ou indiretamente, os gastos são reconhecidos na demonstração dos resultados na base de procedimentos de imputação sistemáticos e racionais. Isto é muitas vezes necessário ao se reconhecerem os gastos associados com o consumo de ativos tais como os ativos fixos tangíveis, o trespasse (goodwill), as patentes e as marcas; em tais casos, o gasto é referido como depreciação ou amortização. Estes procedimentos de imputação destinam-se a reconhecer gastos nos períodos contabilísticos em que os benefícios económicos associados com estes itens se consumam ou se extingam.
95 - Um gasto é imediatamente reconhecido na demonstração dos resultados quando o dispêndio não produza benefícios económicos futuros ou quando, e somente se, os benefícios económicos futuros não se qualifiquem, ou cessem de qualificar-se, para reconhecimento no balanço como um ativo.
96 - Um gasto é também reconhecido na demonstração dos resultados nos casos em que seja incorrido um passivo sem o reconhecimento de um ativo, o que sucede quando surge um passivo por garantia de um produto.”
Também por aqui se vê que, no quadro da referida relação entre o gasto da indemnização paga à D... e o rendimento da indemnização recebida da B..., os dois devem ser reconhecidos na mesma demonstração de resultados.
Por outro lado, segundo o § 81/alínea b) da mesma Estrutura Concetual, um item só pode ser reconhecido como ativo se, entre outros requisitos,”o item tiver um custo ou um valor que possa ser mensurado com fiabilidade”. Ora, nada consta do presente procedimento de arbitragem que permita concluir que a indemnização a receber pela Requerente da B... pudesse ser mensurada com fiabilidade no final de 2014 ou até à data de encerramento das respetivas contas, pelo que o reconhecimento do respetivo rédito em 2015 se afigura correto.
Tudo visto, não procede o argumento de que das regras de periodização do lucro tributável, mormente do art.º 18.º do CIRC, decorra a irregularidade da imputação do gasto a 2015.
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Relativamente ao tema da cobertura do risco da eventual obrigação de indemnizar por contrato de seguro, para além das declarações das companhias de seguros que a Requerente juntou ao procedimento arbitral e invocou, importa lembrar, tendo em conta o contexto da realidade factual assente, seja o direito de a Requerente ser indemnizada pela B... ou a sua obrigação de indemnizar a D... tanto poderiam decorrer da decisão de a B... suspender a decisão de construção do segundo alto-forno como de uma variedade de outros atos da B..., inclusive a simples decisão de romper o acordo.
Está assim em causa uma obrigação de indemnizar que pode decorrer de uma decisão isolada de uma entidade terceira, de índole eminentemente subjetiva, que não está necessariamente associada a causas objetivas de efeitos estatisticamente controláveis, pelo que se afigura que se trata de evento cujo risco não é segurável em termos dos propósitos correntes das entidades seguradoras – e tem-se por certo que a restrição do legislador à aceitação fiscal dos gastos relativos a indemnizações se refere à possibilidade de segurar segundo a normalidade corrente da prática seguradora.
De resto, é convicção dos árbitros que correntemente são aceites como gastos fiscais indemnizações decorrentes de incumprimento contratual.
Assim, também por aqui não se pode concluir pela recusa da dedutibilidade fiscal da indemnização em causa.
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Quanto a eventuais dúvidas sobre o processo de quantificação da indemnização paga à D..., entendem os árbitros que, por um lado, a Requerente apresentou um processo de cálculo baseado em dada quantidade de escória que ficou indisponível para a D... satisfazer os seus compromissos e, por outro lado, a Requerida, levantando embora dúvidas sobre o cômputo efetuado, não sugeriu qualquer quantificação alternativa, sendo certo que nunca sustentou que não seria devida qualquer indemnização.
Acresce que, tudo visto, a Requerente aparece a beneficiar significativamente com o seu envolvimento nos negócios entre as partes envolvidas; ganhou 8 307 282,78 euros (a diferença entre 17 700 603,80 e 9 393 321,02).
Assim, entendem os árbitros deste Tribunal Arbitral não haver razões que determinem a rejeição da quantificação efetuada pela Requerente.
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A concluir, entendem os árbitros designados para o presente procedimento arbitral que procedem os fundamentos em que a Requerente sustenta o seu pedido de consideração como gasto fiscal do período de 2015 da indemnização de 4 315 855,71 euros paga à D... .
Decisão
Nos termos supra expostos, o Tribunal Arbitral decide:
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conceder provimento ao pedido de pronúncia arbitral; e
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determinar a anulação (parcial) da autoliquidação de IRC n.º 2019..., apenas no que se refere às implicações do montante de 4.315.855,71 euros acrescido para efeitos de apuramento do lucro tributável no campo 752 do Quadro 07 da declaração Modelo 22 do exercício de 2015 respeitantes ao remanescente da indemnização paga pela Requerente à Sociedade D... Ltda. no exercício de 2015.
Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 2.834.002,18 (dois milhões, oitocentos e trinta e quatro mil e dois euros e dezoito cêntimos), valor atribuído pela Requerente e não impugnado pela AT, correspondente ao valor da liquidação impugnada do IRC do exercício de 2015.
Custas
Custas a cargo da Requerida, no montante de € 36.414,00 (trinta e seis mil quatrocentos e catorze euros), nos termos da Tabela I do Regime de Custas nos Processos Arbitrais Tributários, dado que o presente pedido foi julgado procedente, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.
Lisboa, 9 de Maio de 2022
O árbitro-presidente
Victor Calvete
O árbitro-relator
Gaspar Vieira de Castro
O árbitro adjunto
Diogo Feio