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SUMÁRIO
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O artigo 45.º do CIMI é a norma específica que deve aplicar-se para a determinação do VPT dos terrenos para construção, afastando-se a aplicação dos coeficientes previstos no artigo 38.º do CIMI.
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Conforme decorre dos n.ºs 1 e 7 do artigo 134.º do CPPT, a impugnação de atos de fixação de valores patrimoniais pode ser feita no prazo de três meses e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação, afastando-se assim a possibilidade dessa impugnação se fazer, por via indireta, na sequência dos atos de liquidação que venham a ter lugar e que tenham tal valor patrimonial como pressuposto.
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Desta forma, é de concluir que os atos de fixação do VPT configuram atos destacáveis, diretamente impugnáveis, e não podem os vícios de que padeçam vir a ser invocados posteriormente, aquando da impugnação da liquidação.
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Apesar da impossibilidade de impugnação dos referidos atos de fixação dos VPT naqueles termos, sempre será de apreciar a possibilidade de revisão desses atos ao abrigo no artigo 78.º da LGT.
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No que se refere à possibilidade de tal revisão ocorrer ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, deve concluir-se que não existiu erro imputável à AT, na medida em que as liquidações de AIMI em questão foram efetuadas com base nos valores patrimoniais dos prédios que constavam das matrizes na data de referência.
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Diversamente, verifica-se o cumprimento de todos os requisitos de que depende o pedido de revisão oficiosa ao abrigo dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT quanto às liquidações de AIMI respeitantes a 2018, 2019 e 2020, pelo que se entende que, quanto a estas, deveria ter sido proferido despacho de deferimento parcial do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente e, consequentemente, deveriam as mesmas ser anuladas parcialmente. Com efeito, para além de o pedido ser tempestivo, não pode ser imputado ao Requerente qualquer erro na aplicação da fórmula de avaliação dos prédios, sendo assim de descartar qualquer comportamento negligente da sua parte. Além do mais, é possível constatar que o erro que serviu de base às liquidações em discussão conduziu a atos de liquidação desproporcionalmente superiores aos legalmente exigíveis, o que se traduz em injustiça grave ou notória.
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No que concerne à liquidação de AIMI de 2017, entende-se que o pedido de revisão oficiosa não mereceria provimento, por se afigurar intempestivo.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Doutor José Ramos Alexandre e Doutor Sérgio Santos Pereira (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 10.9.2021, acordam no seguinte:
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RELATÓRIO
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A..., S.A., com o número de identificação fiscal ... e sede na ..., n.º ..., ...‐... Lisboa (doravante “Requerente”), requereu a constituição de tribunal arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) no dia 2.7.2021, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante abreviadamente designado “RJAT”), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112‐A/2011, de 22 de Março, na sequência do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que apresentou a 23.2.2021.
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É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida”, ou “AT”).
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O Requerente pretende a apreciação da legalidade do indeferimento tácito supra referido e dos atos tributários a ele subjacente, i.e., das liquidações de Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (“AIMI”) nºs 2017..., 2018..., 2019... e 2020..., emitidas com referência, respetivamente, aos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, e, consequentemente, que:
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sejam parcialmente anuladas as liquidações de AIMI supra identificadas, no montante global de € 88.645,24;
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seja a AT condenada a reembolsar o Requerente do montante € 88.645,24, correspondente ao valor do AIMI pago pelo Requerente em excesso;
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seja a AT condenada no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, sobre o montante de € 88.645,24, até ao reembolso integral do mesmo.
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Invocou o Requerente, em síntese, que as referidas liquidações de AIMI são ilegais por o valor patrimonial tributário (“VPT”) dos terrenos para construção abrangidos pelas mesmas ter sido erroneamente determinado pela AT, e por deste erro imputável (exclusivamente) aos serviços terem resultado coletas de AIMI de montante superior ao AIMI legalmente devido pelo Requerente nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020.
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A título subsidiário, veio o Requerente requer a anulação das liquidações de AIMI em crise com fundamento na inconstitucionalidade do artigo 45.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (“CIMI”), quando interpretado no sentido dos coeficientes de avaliação consagrados no artigo 38.º do mesmo Código terem aplicação na determinação do VPT de terrenos para construção, na medida em que tal interpretação atenta contra o princípio da legalidade tributária, no sentido de reserva de lei formal, ínsito na al. i) do n.º 1 do artigo 165.º e no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa.
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O Requerente juntou 8 (oito) documentos, não tendo requerido a produção de prova adicional.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado ao Requerida em 7.7.2021.
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O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, n.º 2, al. a), e 11.º, n.º 1, al. a), do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
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Em 23.8.2021, as partes foram notificadas dessa designação, em cumprimento do disposto no artigo 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros.
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Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 8, do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 10.9.2021.
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Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta no dia 18.10.2021, defendendo-se por exceção e por impugnação, e pugnando pela improcedência do PPA.
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A Requerida não juntou aos autos o processo administrativo, nem requereu a produção de quaisquer outras provas.
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O Tribunal Arbitral proferiu despacho arbitral no dia 8.11.2021 notificando a Requerida para remeter cópia do processo administrativo ao Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 17.º, n.º 2, do RJAT, e dando ao Requerente a oportunidade para se pronunciar sobre as exceções suscitadas pela Requerida na sua resposta, ao abrigo do princípio do contraditório.
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No dia 23.11.2021, a Requerida informou o Tribunal Arbitral de que não foi instaurado processo administrativo na sequência do pedido de revisão oficiosa realizado pelo Requerente, e que aceita como válidos os documentos juntos pelo Requerente.
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Considerando que as partes não requereram a produção de qualquer prova adicional, o Tribunal Arbitral, à luz dos princípios da autonomia na condução do processo, da celeridade e informalidade processuais (ínsitos no artigo 16.º do RJAT), proferiu despacho arbitral no dia 9.12.2021, dispensando a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e notificando as partes para apresentarem alegações escritas em prazo sucessivo.
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No dia 15.12.2021, o Requerente apresentou alegações escritas, reiterando o PPA.
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Por despacho de dia 7.3.2022, o Tribunal prorrogou o prazo para prolação de Decisão Arbitral por dois meses, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, com fundamento na complexidade da matéria de direito relevante para a decisão.
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No dia 2.5.2022, foi proferido despacho arbitral indicando o dia 6.5.2022 como data previsível para a prolação da decisão arbitral, e informando o Requerente de que deverá efetuar o pagamento da taxa de arbitragem subsequente até essa data.
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SANEAMENTO
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O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente para apreciar a legalidade do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente a 23.2.2021 (objeto imediato do PPA) e das liquidações de AIMI a ele subjacentes (objeto mediato do PPA), ao abrigo do artigo 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT.
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As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
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O PPA apresentado pelo Requerente a 2.7.2021 é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias a contar da data em que se presumiu o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente, ou seja, a contar de dia 23.6.2021 (nos termos do artigo 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT e artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT).
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O processo não enferma de nulidades.
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MATÉRIA DE FACTO
A – Factos dados como provados
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Tendo em conta a documentação junta pelo Requerente, consideram-se provados os seguintes factos:
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O Requerente é proprietário de 167 terrenos para construção (devidamente identificados nas cadernetas prediais juntas ao PPA como documento 4), relativamente aos quais lhe foi liquidado o AIMI respeitante aos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 (cfr. documento 2 junto ao PPA):
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A liquidação do ano de 2017, no montante global de € 2.271.059,82, foi efetuada em 30.6.2017, com o n.º 2017..., sobre o valor tributável de € 680.264.956,21;
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A liquidação do ano de 2018, no montante global de € 2.337.936,74, foi efetuada em 30.6.2018, com o n.º 2018..., sobre o valor tributável de € 584.484.184,12;
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A liquidação do ano de 2019, no montante global de € 1.768.222,63, foi efetuada em 30.6.2019, com o n.º 2019..., sobre o valor tributável de € 442.055.656,55;
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A liquidação do ano de 2020, no montante global de € 1.187.981,27, foi efetuada em 30.6.2019, com o n.º 2020..., sobre o valor tributável de € 442.055.656,55.
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Estas liquidações foram efetuadas com base no VPT de prédios para construção anterior às reavaliações efetuadas em 2020 e 2021, constante das cadernetas prediais respetivas (cfr. documento 4 junto ao PPA).
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Das reavaliações dos terrenos para construção efetuadas em 2020 e 2021 resultou uma redução no respetivo VPT (cfr. documentos 5 e 6 juntos ao PPA).
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Quanto às liquidações identificadas supra, o Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa em 23.2.2021 (cfr. documentos 1 e 3 junto ao PPA), no montante de € 88.645,24, referentes ao AIMI dos identificados anos, com fundamento em erro de direito praticado pela AT uma vez que, no seu entendimento, os valores patrimoniais de alguns dos terrenos para construção detidos pelo Requerente nos anos em causa foram incorretamente apurados.
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A diferença de AIMI calculado com base nos VPTs anteriores às reavaliações referidas e posteriores às mesmas é de € 88.645,24, conforme demonstrado na tabela constante do documento 7 junto ao PPA, que aqui se dá por inteiramente reproduzida, e da qual resultam os seguintes valores:
Ano
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Coleta devida antes da avaliação
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Coleta devida depois da avaliação
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Diferença
(€)
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2017
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96.496,91
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74.748,72
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20.748,19
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2018
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95.932,42
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74.861,84
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21.070,58
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2019
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106.243,62
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79.429,48
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26.814,14
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2020
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92.847,93
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72.835,60
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20.012,33
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88.645,24
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Este montante de coleta de AIMI constitui o valor económico do PPA apresentado a 2.7.2021.
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O Requerente procedeu ao pagamento integral do imposto liquidado, conforme documento 8 junto ao PPA.
B – Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
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Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pelo Requerente, que a Requerida não impugnou.
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O Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, no que tange à matéria de facto, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. a) e e), do RJAT).
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Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).
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Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, consideraram-se provados, com relevo para a decisão à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, com base na prova documental junta aos autos, os factos acima elencados.
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Não se consideram não provados quaisquer factos relevantes para o conhecimento da causa.
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Não se deram como provadas nem como não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
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MATÉRIA DE DIREITO
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O pedido de pronúncia arbitral a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral consiste em apreciar a legalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de AIMI, previamente melhor identificados e atinentes aos períodos de 2017, 2018, 2019 e 2020.
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Assim, a pretensão do Requerente traduz-se, em síntese, (i) na anulação parcial das referidas liquidações de AIMI, no montante global de € 88.645,24, (ii) na condenação da AT a reembolsar o Requerente naquele montante, correspondente ao AIMI pago em excesso e bem assim (iii) na condenação da AT ao pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios. Para tanto, o Requerente defende que as liquidações em apreço são ilegais pelo facto de o VPT dos terrenos para construção abrangidos pelas mesmas ter sido erroneamente determinado pela AT, e por deste erro imputável (exclusivamente) aos serviços terem resultado coletas de AIMI de montante superior ao AIMI que seria legalmente devido pelo Requerente nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020.
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A título subsidiário, o Requerente requer ainda a anulação das liquidações de AIMI com fundamento na inconstitucionalidade do artigo 45.º do CIMI, quando interpretado no sentido dos coeficientes de avaliação consagrados no artigo 38.º do CIMI terem aplicação na determinação do VPT dos terrenos para construção.
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Por seu turno, a AT, ora Requerida, entende que os atos de fixação do VPT não são atos de liquidação, são atos autónomos e individualizados, com eficácia jurídica própria e diretamente sindicáveis. Desta forma, conclui que não é legal nem admissível a apreciação da correção do VPT em impugnação do ato de liquidação, que nesta sede deve ter-se já como pressuposto o valor fixado na avaliação. Além disso, argumenta ainda que o prazo para uma eventual anulação administrativa daqueles atos de avaliação, com fundamento em invalidade, já se encontra ultrapassado. Conclui, assim, que está consolidada a fixação do VPT, não podendo os atos de liquidação ser anulados com fundamento em alegados erros nas avaliações dos prédios, pelo que deve a pretensão do Requerente ser indeferida.
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Perante o exposto, e entrando na fundamentação de direito da presente decisão arbitral, importará salientar, preliminarmente, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) tem sido categórica a esclarecer que o artigo 45.º do CIMI é a norma específica que deve aplicar-se para a determinação do VPT dos terrenos para construção, afastando a aplicação dos coeficientes previstos no artigo 38.º do CIMI.
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A título de exemplo, atente-se desde logo no acórdão do STA de 20-04-2016, atinente ao Processo n.º 0824/15, referindo-se no seu sumário: “I – O artigo 45 do CIMI é a norma específica que regula a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção. II – Os coeficientes de afetação e conforto, fatores multiplicadores do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços não podem ser aplicados analogicamente por serem suscetíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência de imposto”.
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Desta forma, e em particular, refere-se na mesma decisão que decorre do aludido artigo 38.º do CIMI que a fórmula contida naquele preceito “(…) apenas tem aplicação aos prédios urbanos aí discriminados, ou seja, àqueles que já edificados são para habitação, comércio, indústria e serviços. Todavia o legislador não incluiu aí os terrenos para construção que também classifica de prédios urbanos no artigo 6.º do CIMI”.
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Na mesma senda, acrescenta-se: “Para a determinação do valor patrimonial tributário dos mesmos há a norma do artigo 45 já referida onde apenas é relevada a área de implantação do edifício a construir e o terreno adjacente e as características do n.º 3 do artigo 42. Os restantes coeficientes não estão aí incluídos porquanto apenas podem respeitar aos edifícios, como tal. O coeficiente de afetação só pode relevar face à comprovada utilização do prédio edificado e bem assim o de conforto e qualidade. Tais coeficientes multiplicadores do valor patrimonial tributário apenas respeitam ao edificado mas não têm base real de sustentação na potencialidade que o terreno para construção oferece”.
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Acaba por concluir-se neste acórdão que “a aplicação destes fatores valorizadores na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos de construção só poderia ser levada a cabo por analogia com o disposto no artigo 38.º do CIMI. Mas porque a aplicação desses fatores tem influência na base tributável tal analogia está proibida por força do disposto no n.º 4 do artigo 11.º da LGT por se refletir na norma de incidência na medida em que é suscetível de alterar o valor patrimonial tributário. A aplicação desses coeficientes na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção seria violadora do princípio da legalidade e da reserva de lei consagrado no artigo 103.º n.º 2 da CRP”.
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Nestes termos, assente que fica que o artigo 45.º do CIMI se assume como a norma específica que deve aplicar-se para a determinação do VPT dos terrenos para construção, afastando-se a aplicação dos coeficientes previstos no artigo 38.º do CIMI, vejamos, de seguida, as possibilidades previstas para a impugnação das referidas liquidações de AIMI, indagando-se, sobretudo, sobre a sua admissibilidade no caso concreto.
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Assim, e em primeiro lugar, importará aferir se os vícios de atos de avaliação de valores patrimoniais podem ser invocados em impugnação de atos de liquidação de AIMI que os têm como pressupostos.
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Quanto a este aspecto, e conforme previamente aludido, defende a Requerida, em síntese, que os atos de fixação do VPT não são atos de liquidação, são atos autónomos e individualizados, com eficácia jurídica própria e diretamente sindicáveis, pelo que não é legal nem admissível a apreciação da correção do VPT em impugnação do ato de liquidação, que nesta sede deve ter-se já como pressuposto o valor fixado na avaliação.
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Assim, julgamos que o entendimento da Requerida se afigura correto, porquanto, de acordo com o artigo 15.º do CIMI, a avaliação dos prédios urbanos é direta e, por isso, suscetível de impugnação contenciosa direta ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 86.º da LGT. Além do mais, e atendendo ao disposto no n.º 2 do mesmo preceito, deve ter-se em conta que “A impugnação da avaliação direta depende do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão”.
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A este respeito, importa notar que, conforme decorre dos n.ºs 1 e 7 do artigo 134.º do CPPT, a impugnação de atos de fixação de valores patrimoniais pode ser feita no prazo de três meses e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação. Ora, daqui decorre, então, que está afastada a possibilidade de essa impugnação se fazer, por via indireta, na sequência dos atos de liquidação que venham a ter lugar e que tenham tal valor patrimonial como pressuposto, sem observância do preceituado nos aludidos n.ºs 1 e 7 do artigo 134.º do CPPT.
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Assim, e seguindo o referido na decisão arbitral referente ao Processo n.º 487/2020-T: “isto significa que os atos de avaliação de valores patrimoniais previstos no CIMI são atos destacáveis, para efeitos de impugnação contenciosa, sendo objeto de impugnação autónoma, não podendo na impugnação dos atos de liquidação que com base neles sejam efetuadas discutir-se a legalidade daqueles atos. Assim, o sujeito passivo de IMI pode impugnar as liquidações, mas não são relevantes como fundamentos de anulação eventuais vícios dos antecedentes atos de fixação de valores patrimoniais, que se firmaram na ordem jurídica, por falta de tempestivo esgotamento dos meios graciosos previstos nos procedimentos de avaliações e de subsequente impugnação autónoma a deduzir no prazo de três meses, nos termos dos n.ºs 1 e 7 do artigo 134.º do CPPT. Na verdade, não sendo impugnado tempestivamente o ato de fixação de valores patrimoniais, forma-se caso decidido ou resolvido sobre a avaliação (…) A natureza de atos destacáveis que é atribuída aos atos de avaliação de valores patrimoniais é, há muito, reconhecida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (…)”.
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Desta forma, é de concluir que os atos de fixação do VPT configuram atos destacáveis, diretamente impugnáveis, e não podem os vícios de que padeçam vir a ser invocados posteriormente, aquando da impugnação da liquidação. Assim, os alegados vícios dos atos de avaliação invocados pelo Requerente, não tendo sido objeto de impugnação tempestiva autónoma, não podem ser fundamento de anulação das liquidações de AIMI ora em causa. Aludindo novamente à decisão arbitral previamente mencionada, “(…) este regime de impugnação autónoma justifica-se por razões de coerência do sistema jurídico tributário inerentes ao facto de cada ato de avaliação poder servir de suporte a uma pluralidade de atos de liquidação de impostos (…) e ser relevante para vários efeitos a nível de IRS, IRC e Imposto do Selo, o que não se compagina com a possibilidade de plúrima avaliação incidental que se reconduzisse à fixação de diferentes valores patrimoniais tributários para o mesmo prédio, no mesmo momento”.
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De todo o modo, apesar da impossibilidade de impugnação dos referidos atos de fixação dos valores patrimoniais nos termos expostos, haverá agora que apreciar a possibilidade de revisão desses atos ao abrigo do disposto no artigo 78.º da LGT, expediente que o Requerente, aliás, usou e cuja pretensão viu tacitamente indeferida.
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A título prévio, refira-se, todavia, que a possibilidade de revisão oficiosa de atos de avaliação de valores patrimoniais não está prevista no CIMI. De tal forma, apenas face ao regime geral da revisão oficiosa constante do artigo 78.º da LGT se pode aventar tal possibilidade.
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Assim, comece-se por apreciar-se a possibilidade de tal revisão ocorrer ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
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De acordo com tal preceito, a revisão dos atos tributários “(…) pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade” e, fora desses casos, apenas será admissível “no prazo de quatro anos ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”.
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Ora, no caso em apreço, não pode entender-se que tenha havido erro imputável aos serviços, porquanto, e conforme dispõe o n.º 1 do artigo 135.º-G do CIMI, o AIMI “(…) é liquidado anualmente, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, com base nos valores patrimoniais tributários dos prédios e em relação aos sujeitos passivos que constem das matrizes em 1 de janeiro do ano a que o mesmo respeita”.
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Desta forma, tendo as liquidações sido efetuadas com base nos valores patrimoniais dos prédios que constavam nas matrizes naquela data de referência, não poderá dizer-se que tenha existido erro da AT ao efetuar as liquidações e, portanto, o indeferimento tácito do pedido não enfermará de ilegalidade.
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Considerando-se frustrada a possibilidade de revisão oficiosa nos termos previamente expostos, será, assim, de aferir da possibilidade de tal revisão ocorrer ao abrigo do disposto nos n.ºs 4 e 5 do referido artigo 78.º da LGT. Com efeito, ressalve-se desde já que as situações previstas nestes preceitos remetem para atos de fixação da matéria coletável, categoria em que se integram os atos de fixação de valores patrimoniais. Conforme melhor se demonstrará de seguida, nestes casos, a revisão não depende de um erro imputável aos serviços, mas apenas que se esteja perante uma situação de injustiça grave ou notória e que o erro não possa ser imputável a um comportamento negligente do contribuinte.
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Com efeito, dispõe o n.º 4 do artigo 78.º da LGT: “O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excecionalmente, nos três anos posteriores ao do ato tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte” (sublinhado nosso).
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Por sua vez, o n.º 5 do mesmo preceito esclarece que “(…) apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional”.
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Ora, daqui decorre que a admissibilidade da revisão oficiosa ao abrigo daquelas disposições depende da verificação de certos requisitos, como sejam: i) a sua realização nos três anos posteriores ao ato tributário, ii) o erro não ser imputável ao contribuinte, e iii) o seu fundamento radique na injustiça grave ou notória, em termos de resultar numa injustiça ostensiva e inequívoca e numa tributação manifestamente exagerada e desproporcionada.
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Vejamos, então, se se verifica o preenchimento dos aludidos requisitos, de modo a concluir, ou não, pela admissibilidade da revisão oficiosa ao abrigo do preceituado nos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT.
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Tempestividade
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No que concerne à tempestividade, nomeadamente saber se o pedido de revisão oficiosa ainda se encontra dentro do prazo de três anos em que é admitido, importa notar que tal prazo se esgota no dia 31 de dezembro do terceiro ano posterior àquele em que foi praticado o ato tributário.
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Nestes termos, no que respeita à liquidação de AIMI relativa ao período de 2017, emitida a 30 de junho de 2017, constata-se que a revisão não poderia ser admitida no decurso de 2021, na medida em que os três anos posteriores ao do ato tributário findaram a 31 de dezembro de 2020. Assim, tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado pelo Requerente a 23 de fevereiro de 2021, conclui-se que a mesma se afigura intempestiva quanto à liquidação referente ao período de 2017.
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No que concerne às demais liquidações, respeitantes aos períodos de 2018, 2019 e 2020, conclui-se, diversamente, que a revisão oficiosa não sucumbiria por intempestividade, pelo que há que apreciar o preenchimento dos restantes requisitos para a admissibilidade da revisão oficiosa.
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O erro não ser imputável a comportamento negligente do contribuinte
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A este respeito, importa notar que a fixação da matéria tributável – i.e., a fixação do VPT – foi efetuada pela AT, com base numa fórmula prevista na lei, sem que se tenha demonstrado que o Requerente tenha fornecido qualquer informação errada quanto à natureza dos prédios.
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Desta forma, um eventual erro na aplicação da fórmula de avaliação invocado pelo Requerente não lhe pode ser imputado, sendo assim de descartar qualquer comportamento negligente da sua parte. Ademais, na medida em que a AT utilizou na fixação do VPT dos terrenos para construção em causa normas que não são aplicáveis a este tipo de prédios urbanos, será de concluir que o erro deve, diversamente, ser completamente imputável à AT.
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A este propósito, e alcançando conclusão idêntica, atente-se de novo no referido no Processo n.º 487/2020-T, assim como, na mesma senda e mais recentemente, no Processo n.º 253/2021-T, no Processo n.º 501/2020-T, Processo n.º 410/2021-T, no Processo n.º 254/2021-T ou no Processo n.º 676/2021-T.
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Injustiça grave ou notória
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Tendo em conta o previamente exposto, é possível constatar que o erro na fixação do VPT que serviu de base às liquidações ora em discussão conduziu a atos de liquidação desproporcionalmente superiores aos legalmente exigíveis, o que se traduz em injustiça grave ou notória.
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Nestes termos, verifica-se o cumprimento de todos os requisitos de que depende o pedido de revisão oficiosa ao abrigo dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT, pelo que se entende que deveria ter sido proferido despacho de deferimento parcial do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente e, consequentemente, anuladas parcialmente as liquidações de AIMI respeitantes aos anos de 2018, 2019 e 2020. No que concerne à liquidação de AIMI de 2017, e pelos motivos previamente expostos, entende-se que o mesmo não mereceria provimento, por se afigurar intempestivo.
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Adicionalmente, através do pedido de pronúncia arbitral, pretende ainda o Requerente a anulação das liquidações de AIMI em questão com fundamento na inconstitucionalidade do artigo 45.º do CIMI, quando interpretado no sentido dos coeficientes de avaliação consagrados no artigo 38.º do mesmo Código terem aplicação na determinação do VPT de terrenos para construção, na medida em que tal interpretação atenta contra o princípio da legalidade tributária, no sentido de reserva de lei formal, ínsito na al. i) do n.º 1 do artigo 165.º e no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa.
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Ora, procedendo, ainda que parcialmente, o pedido de pronúncia arbitral relativamente às liquidações de AIMI de 2018, 2019 e 2020, o que assegura a eficaz tutela dos interesses do Requerente, fica prejudicado, por se afigurar inútil, o conhecimento do pedido subsidiário apresentado, de harmonia com os artigos 130.º e 608.º, n.º 2 do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
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Por outro lado, no que se refere à liquidação de AIMI de 2017, e concluindo-se, como se concluiu, pela intempestividade do pedido, entende-se, por esse motivo, que não haverá que apreciar o pedido subsidiário formulado pelo Requerente.
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JUROS INDEMNIZATÓRIOS
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O direito a juros indemnizatórios é regido pelo artigo 43.º da LGT. No caso ora em apreço, importa aludir ao preceituado na al. c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, que determina que existe direito a juros indemnizatórios “Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
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Ora, conforme resulta da matéria de facto, o Requerente apresentou o pedido de revisão oficiosa a 23.2.2021, o que leva a concluir que serão devidos juros indemnizatórios, com base na aludida al. c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, a partir de 23.2.2022 até ao reembolso do AIMI indevidamente pago, calculados à taxa legal supletiva nos termos previstos no n.º 4 do artigo 43.º e n.º 4 do artigo 35.º da LGT, no artigo 61.º do CPPT, no artigo 559.º do Código Civil e na Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.
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DECISÃO
Face ao exposto, o Tribunal Coletivo acorda o seguinte:
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Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
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Declarar parcialmente ilegal o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente a 23.2.2021, e anular parcialmente as liquidações de AIMI dos anos de 2018, 2019 e 2020, quanto ao valor de € 21.070,58, € 26.814,14 e € 20.012,33, respetivamente;
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Julgar parcialmente procedente o pedido de reembolso quanto ao montante global de € 67.897,05;
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Julgar parcialmente procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a AT ao seu pagamento, tendo por base o valor de € 67.897,05, desde 23.2.2022 até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva;
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Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral na parte restante.
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VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 305.º do CPC, al. a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, e n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 88.645,24.
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CUSTAS
Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante de custas arbitrais em € 2.754,00, nos termos da Tabela I anexo ao Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, ficando a cargo do Requerente o montante de € 644,60 e a cargo da Requerida o montante de € 2.109,40, valores correspondentes aos respetivos decaimentos.
Notifique-se.
Lisboa, 6 de maio de 2022
Os árbitros,
Rita Correia da Cunha
(com voto de vencido)
José Ramos Alexandre
Sérgio Santos Pereira
VOTO DE VENCIDO
Acompanhamos a Decisão Arbitral quando sustenta que o VPT dos terrenos para construção anterior às reavaliações de 2020 e 2021 foi ilegalmente fixado pela AT, nos termos e com os fundamentos contidos nos parágrafos 34 a 38 da mesma. A aplicação analógica dos coeficientes previstos no artigo 38.º do CIMI na avaliação de terrenos para construção constitui erro na aplicação do Direito, da qual resultou, no caso sub judice, liquidações de AIMI em montante superior ao legalmente devido. Quanto à questão de saber se, a este respeito, existiu erro imputável à AT, temos que a incorreta fixação do VPT dos terrenos para construção em apreço só poderá ser imputada à AT, que não alegou nem logrou provar que o Requerente declarou algum elemento de informação errado em relação aos terrenos para construção em causa. Esta incorreta fixação do VPT pela AT contaminou as liquidações de AIMI ora contestadas.
Relativamente à questão de saber se o sujeito passivo pode arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão dos atos de liquidação de AIMI emitidos com base no mesmo, ao abrigo do artigo 115.º, n.º 1, al. al. c), do CIMI e do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, embora reconheçamos a existência de argumentos ponderosos na versada Decisão Arbitral e na jurisprudência em que se alicerça, acompanhamos o Requerente quando defende a aplicação dos referidos artigos no caso sub judice, por esta ser a interpretação das regras processuais que melhor se coaduna com o princípio da legalidade em matéria tributária (ínsito no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, que exige que a AT arrecade as quantias de imposto exigíveis nos termos da lei), o princípio da justiça e o princípio da tutela jurisdicional efetiva (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP). Neste sentido, avançamos as seguintes considerações.
Em primeiro lugar, cumpre sublinhar que, no caso sub judice, não está em causa a declaração de ilegalidade e anulação de atos de fixação de VPT, mas a declaração de ilegalidade e anulação de ato de indeferimento tácito de pedido de revisão (objeto imediato do PPA) e dos atos de liquidação de AIMI a ele subjacentes (objeto mediato do PPA). Por outras palavras: o que está aqui em causa é a admissibilidade de impugnabilidade indireta, através de um pedido de revisão oficiosa, de liquidações de AIMI com fundamento em erro no cálculo do VPT. Questão diferente, e fora do âmbito to presente processo arbitral, é a relativa à impugnabilidade direta de atos de liquidação de AIMI com fundamento em erro no cálculo do VPT, a que se refere o Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão de 27.4.2010, no processo n.º 03586/09, e no Acórdão de 12.2.2008, no processo n.º 02125/07. Esta distinção é reconhecida na Decisão Arbitral recentemente proferida no processo n.º 676/2021, de 15.2.2022, na qual se pode ler:
“São meios processuais diferentes, com efeitos distintos, a impugnabilidade directa de actos de liquidação, com os efeitos retroactivos próprios da declaração de anulabilidade e direito a juros indemnizatórios, e a possibilidade de revisão oficiosa, com os fundamentos previstos no artigo 78.º da LGT, com efeitos mais limitados, não retroactivos, designadamente a nível de direito a juros indemnizatórios, como resulta do disposto no artigo 43.º, n.ºs 1 e 3 da LGT.”
No caso em apreço, a questão a decidir é a da admissibilidade da revisão de atos de liquidação de AIMI com fundamento na errónea fixação do VPT em que se baseiam (ao abrigo do artigo 115.º, n.º 1, al. al. c), do CIMI e do artigo 78.º, n.º 1, da LGT), ou dito de outra forma: se o sujeito passivo pode arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação emitidos com base no mesmo.
Em segundo lugar, e antes de passarmos a uma análise mais detalhada da questão decidenda acima enunciada, temos ser de referir que, ainda que por vias e mecanismos diversos, os tribunais têm vindo a anular atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa, juntamente com os correspondentes atos de liquidação de imposto, com fundamento na errónea fixação do VPT (a título de exemplo: Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 31.10.2019, no processo n.º 2765/12.BELRS; Decisão Arbitral de 10.5.2021, no processo n.º 487/2020-T; Decisão Arbitral de 10.5.2021, no processo n.º 254/2021-T; Decisão do Tribunal Arbitral de 24.6.2021, no processo n.º 500/2020-T; Decisão Arbitral de 27.7.2021, no processo n.º 41/2021-T; Decisão Arbitral de 10.12.2021, no processo n.º 253/2021-T; Decisão Arbitral de 15.2.2022, no processo n.º 676/2021; Decisão de 14.3.2022, no processo n.º 541/2021-T).
Em terceiro lugar, e para efeitos da análise da dita questão decidenda, importa distinguir entre (i) a questão de saber se o sujeito passivo pode arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de AIMI emitidos com base no mesmo, e (ii) a questão de saber em que condições e limite temporal será de admitir tal pedido de revisão oficiosa.
Em quarto lugar, e relativamente à primeira destas questões, entendemos que a exceção ao princípio da impugnação unitária (contido no artigo 54.º do CPPT) aplicável a “atos destacáveis” (ou seja, a atos que, embora inseridos no procedimento tributário, e anteriores à decisão final, são direta e autonomamente impugnáveis pelo contribuinte por tal resultar expressamente da lei)[1] foi criada com o objetivo de concretizar e ampliar o princípio da tutela jurisdicional efetiva (ínsito no artigo 268.º, n.º 4, da CRP), e não de limitar ou restringir o mesmo.
A consideração dos atos de fixação do VPT como “atos destacáveis” tem uma razão de ser: evitar a necessidade de o sujeito passivo ter de impugnar, sucessivamente, ao longo dos anos, cada uma das liquidações neles baseadas (cfr. Decisão Arbitral de 14.3.2022, no processo n.º 541/2021-T). Todavia, como se pode ler no texto do artigo 54.º do CPPT, do mesmo não resulta qualquer limitação para a impugnabilidade da decisão final (no caso em apreço, atos de liquidação de AIMI) com fundamento em ilegalidade de ato interlocutório (no caso em apreço, atos de fixação de VPT):
“Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”
Deste artigo resulta apenas e tão só que (a) em regra, os atos interlocutórios não são impugnáveis autonomamente e que os vícios dos mesmos poderem ser invocados na impugnação da decisão final, e (b) a título excecional, os atos interlocutórios podem ser impugnados autonomamente. Os atos de fixação de VPT caem nesta exceção por força do artigo 134.º, n.º 1, do CPPT (em sintonia com o artigo 86.º, n.º 1, da LGT).
Assim, não é controvertida a questão de saber se os atos de fixação de VPT constituem “atos destacáveis”, ou se são suscetíveis de impugnação contenciosa autónoma. Os artigos 134.º, n.º 1, do CPPT e 86.º, n.º 1, da LGT são claros a este respeito. A questão relevante para o caso sub judice é a de saber se estas disposições, ao estabelecer que os atos de fixação de VPT são suscetíveis de impugnação contenciosa autónoma, têm o efeito de (1) precludir a possibilidade de o sujeito passivo arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de AIMI emitidos com base no mesmo (caso em que a impugnação autónoma dos atos de fixação de VPT se torna num verdadeiro ónus), ou (2) conferir ao sujeito passivo a possibilidade de impugnar os atos de fixação de VPT de forma autónoma, a que acresce a possibilidade de posteriormente contestar a validade das liquidações baseadas no VPT erradamente fixado através de pedido de revisão oficiosa.
Quanto a esta questão, temos que os artigos 134.º, n.º 1, do CPPT e 86.º, n.º 1, da LGT (as normas que permitem a impugnação autónoma dos atos de fixação do VPT) devem ser entendidos, não como uma restrição às garantias dos contribuintes, ou como um ónus sobre o sujeito passivo, o que seria a consequência da posição manifestada pela Requerida, mas antes como uma ampliação dessas garantias, uma ampliação materializada no reconhecimento aos contribuintes de uma defesa adicional contra um ato ilegal (no mesmo sentido: Decisão Arbitral de 2.7.2021, no processo 760/2020-T). Senão vejamos.
Por um lado, interessa salientar que a interpretação contrária (subscrita pela Requerida) não resulta expressamente na lei processual e seria ela mesma contrária ao disposto no artigo 7.º do CPTA (aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT), no qual se pode ler que “Para efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”.
Por outro lado, parece-nos que a interpretação da lei processual subscrita pela Requerida ofende o princípio da justiça e o princípio da tutela jurisdicional efetiva (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP). A este respeito, importa recordar que, no Acórdão n.º 410/2015, de 29.9.2015, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do CPPT que, qualificando a impugnação autónoma e imediata de atos interlocutórios imediatamente lesivos ou de “atos destacáveis” como um ónus e não como uma faculdade do sujeito passivo, impede a impugnação das liquidações de imposto com fundamento em vícios dos mesmos atos, por a mesma desproteger gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo o princípio da justiça e o princípio da tutela judicial efetiva (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP). Segundo o Tribunal Constitucional, de tal interpretação resultaria “uma consequência muito onerosa para o contribuinte, permitindo a consolidação na ordem jurídica de atos que o prejudicam gravemente”.
Em quinto lugar, uma nota relativamente à relevância do princípio da segurança jurídica e da figura do caso decidido dos atos administrativos que nele se alicerça. É inquestionável que este princípio é não só essencial como constitutivo do Estado de Direito. Todavia, importa lembrar que o princípio da segurança jurídica, nas suas diversas vertentes (incluindo o caso decidido dos atos administrativos), tem em vista primordialmente a proteção dos cidadãos contra a arbitrariedade e abusos de poder por parte do poder legislativo, executivo e judicial. A este propósito, escreveu o Professor Gomes Canotilho:
“O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito”.[2]
“Relativamente aos actos da administração, o princípio geral da segurança jurídica aponta para a idea de força de caso decidido dos actos administrativos. Embora não haja uma paralelismo entre sentença judicial e força de caso julgado e acto administrativo e força de caso decidido (...) entende-se que o acto administrativo goza de uma tendencial imutabilidade que se traduz: (1) na autovinculação da administração (...) na qualidade de autora do acto e como consequência da obrigatoriedade do acto; (2) na tendencial irrevogabilidade do acto administrativo a fim de salvaguardar os interesses dos particulares destinatários do acto (protecção da confiança e da segurança)”.[3]
“Tendo em conta as exigências resultantes dos princípios de protecção da confiança e da segurança jurídica (direitos dos particulares directamente interessados, direitos de terceiros) não se vê como é que a anulação de actos inválidos possa ser uma faculdade discricionária. Os princípios da constitucionalidade e da legalidade não se compaginam com uma “arrogância” da administração sobre os próprios vícios. Ela deverá anular ou sanar os vícios nos termos da lei”. [4]
Resulta assim claro que a tendencial imutabilidade dos atos administrativos associada à força de caso decidido dos mesmos deverá ser entendida como um mecanismo tendente à salvaguarda dos interesses dos particulares, e não como um argumento usado para a AT se recusar a sanar os vícios dos atos que pratica. A mesma vertente de proteção dos cidadãos do princípio da segurança jurídica foi referida no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13.11.2017, no processo n.º 0164ª/64, no qual se pode ler:
“Os citados princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado.”
Temos que o princípio da segurança jurídica, orientado para a proteção dos cidadãos, não deverá ser interpretado ou utilizado como fundamento para negar aos cidadãos um direito ou uma garantia processual prevista na lei, ou, relativamente à questão em apreço, como fundamento para negar ao sujeito passivo a possibilidade de arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação emitidos com base no mesmo (ao abrigo do artigo 78.º da LGT). Tal interpretação, para além de carecer de base legal, seria ofensiva do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do princípio da justiça (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP).
Num Estado de Direito assente no princípio da legalidade em matéria tributária (ínsito no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, que, repita-se, exige que a AT arrecade as quantias de imposto exigíveis nos termos da lei), no princípio da justiça e no princípio da tutela jurisdicional efetiva (ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP), a coerência entre os atos de liquidação de IMI, AIMI, IMT, e Imposto do Selo emitidos relativamente a um mesmo imóvel (que pressupõe que os mesmos se baseiem no mesmo VPT) deverá ser assegurada através do cumprimento, por parte da AT, do seu dever de sanar oficiosamente os eventuais vícios no cálculo do VPT (como aliás impõe o adequado funcionamento da AT), e não através de uma restrição ao princípio da tutela jurisdicional efetiva e ao princípio da justiça consubstanciada na obliteração da possibilidade do sujeito passivo de se socorrer a um meio processual previsto na lei (o pedido de revisão oficiosa) para reagir contra atos de liquidação de imposto contaminados por uma determinação da matéria coletável incorreta e ilegal, por erro exclusivamente imputável à AT. A estabilidade na ordem jurídica assegurada por uma tal restrição ao princípio da tutela jurisdicional efetiva e ao princípio da justiça é a de permitir à AT que continue a arrecadar quantias de imposto que não são exigíveis ao sujeito passivo nos termos da lei (em violação do princípio da legalidade em matéria tributária ínsito no artigo 103.º, n.º 2, da CRP).
À luz de todas estas considerações, temos que o princípio da legalidade, o princípio da tutela jurisdicional efetiva e o princípio da justiça ínsitos na nossa Constituição impõem afastar a interpretação do artigo 54.º do CPPT, segundo a qual a possibilidade de impugnação autónoma e imediata dos atos de fixação de VPT (enquanto “atos destacáveis”) constituiria um ónus cujo incumprimento inviabilizaria o pedido de revisão oficiosa das liquidações de AIMI emitidas posteriormente, com fundamento em erro no cálculo do VPT que serviu de base às mesmas liquidações.
Conclui-se, assim, que ao sujeito passivo deve ser reconhecida a possibilidade de arguir a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de AIMI emitidos com base no mesmo, e que o indeferimento (expresso ou tácito) do pedido de revisão oficiosa faz nascer na esfera jurídica do sujeito passivo o direito a impugnar este indeferimento.
Em sexto lugar, interessa atentar em que condições e limite temporal será de admitir um pedido de revisão oficiosa de atos de liquidação de AIMI com fundamento na errónea fixação do VPT. Tal como resulta do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul e das Decisões Arbitrais referidas supra, a jurisprudência mais recente tem vindo a confirmar a admissibilidade da sindicância da ilegalidade de atos de liquidação de IMI e AIMI com fundamento na errónea fixação do VPT, por via de pedido de revisão oficiosa. A jurisprudência não é uniforme, no entanto, relativamente às condições e limite temporal em que tal pedido de revisão oficiosa será de admitir.
A este respeito, temos que, no âmbito da ponderação dos pressupostos processuais dos mecanismos invocados pelas partes, os princípios antiformalista, “pro actione” e “in dubio pro favoritate instanciae” impõem uma interpretação que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva. Assim, suscitando-se quaisquer dúvidas interpretativas nesta área, temos que se deverá optar por aquela que favoreça a ação e assim se apresente como a mais capaz de garantir a real tutela jurisdicional dos direitos invocados pelo sujeito passivo.
Com este fundamento, entendemos ser de reconhecer ao Requerente o direito de apresentar um pedido de revisão oficiosa das liquidações de AIMI contestadas com fundamento na incorreta fixação dos VPTs dos terrenos em construção referidos supra, ao abrigo dos artigos 115.º, n.º 1, al. c), do CIMI, e 78.º, n.º 1, da LGT, por erro imputável à AT no âmbito do procedimento de fixação dos VPTs em causa.
Esta posição foi, aliás, acolhida pelo Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão proferido no processo n.º 2765/12.BELRS, em 31.10.2019, que se transcreve parcialmente abaixo:
“É verdade que uma vez firmada a fixação do VPT, por não ter sido utilizado qualquer dos meios de defesa ao dispor do contribuinte, nos termos do artigo 20.º do Decreto-Lei 267/2003, esse VPT servirá de base às liquidações de IMI subsequentes, até eventual alteração do seu valor.
De facto, deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o VPT, nem assim fica impossibilitado de arguir a ilegalidade do VPT fixado, embora com efeitos restritos às liquidações posteriores à reclamação. Defender o contrário é o mesmo que defender a perpetuidade da conduta ilegal da Administração, o que repugna ao bom senso e ao Direito admitir.
Assim, no plano do Direito o artigo 115.º do CIMI constitui uma válvula de escape para tais situações, devendo o respectivo mecanismo ser desencadeado pela Administração, por sua iniciativa ou a impulso do interessado.
Ora, uma das hipóteses contempladas neste normativo é a eliminação de erros de que resulte uma colecta de montante superior ao devido [al. c) do n.º 1].
Por conseguinte, não se pode falar em verdadeira impropriedade do meio, sendo certo que ainda que se admita essa hipótese, como a administração apreciou o direito da recorrida, tal apreciação fez nascer na esfera jurídica desta o direito à impugnabilidade da decisão, nos termos do artigo 268.º, n.º 4, da CRP.
Restringir ou eliminar essa impugnabilidade constituiria, outrossim, uma agressão manifesta ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, plasmado nessa norma constitucional. (...)
A fixação do VPT constitui, como se disse, um acto administrativo em matéria tributária, destacável e, por isso, passível de impugnação autónoma. A impugnação autónoma dos actos destacáveis tem como propósito oferecer uma maior garantia aos administrados, permitindo-lhes reagir atempadamente de molde a evitar a produção de efeitos lesivos, que se projectam no acto final do procedimento ou em actos externos a este.
A impugnabilidade autónoma constitui um desvio ao princípio da impugnação unitária (cfr. artigo 54.º do CPPT), que postula que em princípio só é possível impugnar o acto final do procedimento tributário, por só este apresentar efeitos lesivos na esfera jurídica do contribuinte. Este artigo prevê a possibilidade de impugnabilidade autónoma dos actos imediatamente lesivos e a possibilidade de, na impugnação do acto final de liquidação, serem invocados todos os vícios de que padeçam os actos prévios a essa liquidação (actos instrumentais, preparatórios ou prodrómicos dessa decisão final).
Como assim, sendo a fixação do VPT um acto destacável, ele goza de possibilidade de impugnação autónoma, independentemente da existência ou não de liquidação, impugnação essa que no caso era permitida pelo artigo 20.º do Dec.-Lei 287/2003.
Portanto, não tendo sido impugnada a fixação do VPT, facto que a recorrida aceita, parece que a consequência seria a de aceitar que as liquidações feitas a coberto desse VPT, enquanto não fosse alterado, não podiam também ser alteradas com tal fundamento.
Mas o problema pode ser olhado de outro prisma.
Em regra, os actos da Administração, com excepção dos actos viciados de nulidade, consolidam-se juridicamente se não forem impugnados nos prazos estabelecidos na lei.
Todavia, mesmo fora das situações de nulidade o legislador tributário, ciente da natureza agressiva das leis fiscais, que afectam coercivamente o património dos contribuintes, criou válvulas de escape para as situações de ilegalidade, permitindo que a própria Administração reveja as suas decisões, a fim de corrigir as ilegalidades que porventura tenha cometido.
É o que sucede com o artigo 78.º da LGT, que prevê a possibilidade de revisão dos actos tributários com fundamento em ilegalidade ou erro, mecanismo que se encontra presente na legislação tributária de outros países, como sucede em Espanha com o artigo 219.º da Ley General Tributária.
O artigo 78.º da LGT consagra um verdadeiro direito do contribuinte, permitindo-lhe exigir da administração tributária que expurgue da ordem jurídica, total ou parcialmente, um acto ilegal, bem como a restituição do que tenha sido ilegalmente cobrado, com base no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que não permite a cobrança de tributos, nem os respectivos montantes, que não estejam previstos na lei.
Todavia, como já se disse, o artigo 78.º é inaplicável aos actos de fixação do VPT (actos administrativos em matéria fiscal), na medida em que visa apenas os actos tributários stricto sensu, incluindo o acto de determinação da matéria tributável, quando não dê lugar à liquidação e qualquer tributo. O que não quer dizer que seja de todo imprestável para o caso sub judice, visto que a coberto de um VPT ilegal foram produzidas liquidações de tributo (IMI) que foram exigidas à recorrida.
Ora, ultrapassada que está actualmente a questão de saber se a iniciativa de revisão pela administração pode ser desencadeada a impulso do interessado, da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo 78.º da LGT com o disposto no artigo 115.º, n.º 1, alínea c), do CIMI, resulta que a revisão oficiosa das liquidações deve ser realizada pela administração tributária, ainda que sob impulso inicial do contribuinte, quando tenha ocorrido erro imputável aos serviços.
O que se verifica, precisamente, no caso em apreço, erro esse que se traduziu até numa injustiça grave e notória concretizada na fixação de um VPT em valor claramente superior ao que resultaria das disposições legais que deveriam ter sido aplicadas.
Erro esse que, independente da inércia impugnatória da recorrida após a notificação do VPT, não pode ser imputável a qualquer comportamento negligente desta, visto que o erro no cálculo e fixação do VPT ocorre num procedimento desencadeado e concretizado pela administração e que sempre justificaria a revisão ao abrigo do n.º 4 do normativo em questão, se o n.º 1 não fosse inteiramente aplicável.
O que reforça o entendimento de que o direito que a recorrida reclamou, de ver as últimas quatro liquidações anteriores à reclamação serem anuladas, ter pleno apoio legal.”
A mesma posição foi também acolhida pelo Tribunal Arbitral no âmbito do processo n.º 297/2021-T, por Decisão de 22.2.2022, na qual se pode ler:
“O ato de fixação do VPT é regulado no artigo 134.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), que estabelece a possibilidade de impugnação contenciosa “depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação” (n.º 7).
Importa, contudo, saber se o condicionamento da impugnação ao esgotamento dos meios graciosos tem como consequência a consolidação das liquidações efetuadas ao abrigo desse VPT, isto é, a impossibilidade (jurídica) de estas serem alteradas com fundamento no VPT (só o podendo ser as geradas depois da alteração do VPT, com efeitos apenas para o futuro). Antecipamos já uma resposta negativa a esta questão, com os fundamentos que se aduzem de seguida.
Em primeiro lugar, recordam-se as palavras do TCA Sul, no acórdão de 31 de outubro de 2019, processo n.º 2765/12.8BELRS: “o legislador tributário, ciente da natureza agressiva das leis fiscais, que afectam coercivamente o património dos contribuintes, criou válvulas de escape para as situações de ilegalidade, permitindo que a própria Administração reveja as suas decisões, a fim de corrigir as ilegalidades que porventura tenha cometido.”
É a esta luz que tem de apreciar-se o mecanismo de revisão dos atos tributários, conformado, em geral, pelo artigo 78.º da LGT, e, em matéria de IMI, pelo preceituado no artigo 115.º do CIMI. A inclusão de normas deste tipo nos compêndios tributários é justificada pelo reforço das garantias de defesa dos contribuintes e elevação dos meios de tutela das respetivas posições substantivas, sem que tal colida com o princípio fundamental da segurança jurídica, inerente ao Estado de Direito, pois é circunscrita a um quadro temporal pré-definido, de 4 ou 3 anos, consoante esteja em causa a aplicação do n.º 1 ou do n.º 4 do artigo 78.º da LGT. (...)
Estamos perante “um verdadeiro direito do contribuinte, permitindo-lhe exigir da administração tributária que expurgue da ordem jurídica, total ou parcialmente, um ato ilegal, bem como a restituição do que tenha sido ilegalmente cobrado, com base no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, que não permite a cobrança de tributos, nem os respetivos montantes, que não estejam previstos na lei.” – v. acórdão do TCA Sul, processo n.º 2765/12.8BELRS.
Quer em relação ao artigo 78.º, n.º 1 da LGT, quer ao artigo 115.º, n.º 1, alínea c) do Código do IMT, a revisão oficiosa reporta-se, no seu sentido literal, a ilegalidades dos atos tributários stricto sensu - atos de liquidação de IMI2 - e não à avaliação (ou a atos de avaliação) de valores patrimoniais, que consubstanciam atos administrativos em matéria fiscal. Já no que se refere ao n.º 4 do artigo 78.º da LGT, este faz referência à “revisão da matéria coletável” e não a “atos tributários”, pelo que abrange, sem dúvida, atos de fixação de valores patrimoniais. Aqui, não constitui requisito constitutivo do direito à revisão a ocorrência de “erro imputável aos serviços”, porém, requer-se o fundamento de “injustiça grave ou notória”, sendo o prazo encurtado para três anos (posteriores ao do ato tributário). Relativamente a este ponto – do enquadramento da situação em análise no n.º 1 ou no n.º 4 do artigo 78.º da LGT – a jurisprudência diverge. O acórdão do TCA Sul, que se acompanha, preconiza uma interpretação extensiva, segundo a qual o artigo 78.º, n.º 1 da LGT é invocável também no domínio dos atos de fixação de valores patrimoniais, não obstante estar em causa matéria de avaliação de VPT, “visto que a coberto de um VPT ilegal foram produzidas liquidações de tributo (IMI) que foram exigidas à recorrida.” Assim, na medida em que esses atos de avaliação se repercutem em liquidações de imposto de valor superior ao que resultaria da correta aferição da base de incidência, não existe razão para que não mereçam um nível de tutela similar. (...)
Efetivamente a fixação do VPT foi efetuada pela Requerida, não sendo alegado nem demonstrado que o Requerente tivesse declarado algum elemento de informação errado em relação aos terrenos para construção avaliados, pelo que o eventual erro da fórmula aplicada não pode ser imputado a um comportamento negligente daquele. Esta é também a interpretação que, segundo entendemos, melhor se coordena com o nível de proteção acrescido dos contribuintes que está subjacente à instituição do regime de revisão oficiosa e ao princípio da legalidade e da tutela efetiva das posições substantivas que lhes assistem. Conclui-se, desta forma, pela admissibilidade e tempestividade da revisão oficiosa das liquidações de IMI impugnadas na presente ação arbitral pois mesmo relativamente aos atos praticados em 2016 (referentes ao ano de 2015), o prazo de 4 anos foi respeitado pois o pedido de revisão oficiosa foi apresentado ainda no ano de 2020 (…)”
Também no sentido da aplicação do n.º 1 do artigo 78.º da LGT foram as Decisões Arbitrais de 24.6.2021, proferida no processo n.º 500/2020-T, de 9.3.2022, proferida no processo n.º 540/2021-T, de 4.5.2022, proferida no processo n.º 497/2021-T.
Regressando ao caso sub judice: Conclui-se que é admissível, nos termos dos artigos 115.º, n.º 1, al. c), do CIMI, e 78.º, n.º 1, da LGT, o pedido de revisão oficiosa das liquidações de AIMI apresentado pelo Requerente com fundamento em vícios na fixação do VPT, bem como o PPA do indeferimento tácito que se formou sobre o mesmo. Nestes termos, temos que deveria ser julgada improcedente a exceção invocada pela Requerida relativa à inimpugnabilidade dos atos de liquidação de AIMI com base em vícios na fixação do VPT. Conclui-se também que, prevendo o artigo 78.º, n.º 1, da LGT um prazo de 4 anos, o pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente é tempestivo em relação a todas as liquidações de AIMI objeto do PPA.
Do exposto supra, afigura-se-nos que o PPA deveria ser julgado totalmente procedente e, consequentemente, declarada a ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente (objeto imediato do PPA) e das liquidações de AIMI a ele subjacentes (objeto mediato do PPA), com a devidas e legais consequências relativamente ao montante de imposto a restituir ao Requerente, ao valor dos juros indemnizatórios devidos pela Requerida, e à responsabilidade pelas custas arbitrais.
Rita Correia da Cunha
[1] Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado – vol I (5ª edição, Áreas Editora 2006), página 424 (anotação ao artigo 54º do CPPT).
[2] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição (4ª ed., Almedina 2000), página 256.
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