SUMÁRIO:
1.As normas dos artigos 94º nº 1 alínea c), 94º nº 3 alínea b), 94º nº 4 e 87º nº 4 do CIRC e artigo 22º do EBF, na medida em que determinam a tributação em sede de imposto sobre o rendimento, através de retenção liberatória, dos dividendos de origem nacional, quando são auferidos por OIC não residentes, ao mesmo tempo que preveem uma isenção de tributação, quando os dividendos de origem nacional são auferidos por OIC residentes em Portugal, estão em desconformidade com o artigo 63º do TFUE.
2. Do princípio do primado do Direito da União Europeia resulta que a Requerida tem o dever de recusar a aplicação de normas nacionais contrários ao Direito da União Europeia.
3. Em caso de ilegalidade praticada em atos de retenção na fonte, os respetivos juros indemnizatórios devem ser contados nos termos do artigo 61º, nº 5, do CPPT.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. No dia 5.08.2019, o Requerente, A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de identificação fiscal português ... com sede em ..., ..., Alemanha, (doravante designado de “Requerente”), representado por B... GMBH, na qualidade de sociedade gestora, com sede na mesma morada, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos ao ano de 2017.
A Requerente peticiona, ainda, a restituição dos montantes referentes às retenções na fonte em causa, acrescido de juros indemnizatórios.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 16.10.2019.
3. Os fundamentos apresentados pela Requerente, em apoio da sua pretensão, foram, em síntese, os seguintes:
O Requerente é uma pessoa coletiva de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”) constituído sob a forma contratual, comumente designada de fundo de investimento, sendo um sujeito passivo de IRC, não residente, para efeitos fiscais, em Portugal, e sem qualquer estabelecimento estável no país, tendo a sua residência fiscal na Alemanha e sendo gerido por uma entidade gestora de fundos de investimento, a B... GmbH, entidade igualmente com sede na Alemanha.
O Requerente é um fundo aberto autónomo que se baseia num contrato entre a entidade gestora “B... GmbH”, os seus investidores e o banco responsável pela custódia dos valores mobiliários.
O Requerente é uma entidade sujeito a imposto sobre as pessoas coletivas no seu país de residência, tendo-lhe sido, todavia, concedida uma isenção, o que o impossibilita de recuperar a título de crédito por dupla tributação internacional ou formular qualquer pedido de reembolso, dos impostos suportados ou pagos no estrangeiro.
No ano de 2017, o Requerente era detentor de lotes de participações sociais na sociedade residente em Portugal C... SA da qual recebeu dividendos, tendo suportado em Portugal imposto por retenção na fonte no montante de 21.560,82.
Na ótica do Requerente, Portugal ao sujeitar, à data dos factos tributários em análise, a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal aos Organismos de Investimento Coletivo estabelecidos em Estados Membros da União Europeia (in casu a Alemanha), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a Organismos de Investimento Coletivo estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, de forma frontal, o artigo 63.º do Tratado para o Funcionamento da União Europeia, conforme tem sido entendimento unânime do Tribunal de Justiça da União Europeia.
No que diz respeito ao regime interno de tributação dos dividendos, sempre que os mesmos são pagos por uma entidade residente a um sujeito passivo também ele residente em Portugal, tais rendimentos estão sujeitos a retenção na fonte por conta do imposto devido a final a uma taxa de 25% (ver artigos 94.º, n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3, alínea b) e 94.º, n.º 4 do CIRC).
Contudo, nos casos de OIC constituídos de acordo com a legislação nacional, os mesmos estavam, à data dos factos tributários, isentos de IRC sobre dividendos obtidos, nos termos do artigo 22.º do EBF, pois como estipula o n.º 3 do referido preceito legal, “Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS (…)”.
Ou seja, resulta das disposições legais a que se fez referência nos pontos imediatamente anteriores, que um OIC constituído ao abrigo do Regime Geral dos OIC, aquando da distribuição de dividendos provenientes de sociedades sediadas em Portugal, estava sujeito, no ano de 2017, a um regime fiscal mais favorável do que o aplicável a um OIC constituído de acordo com a legislação de um qualquer outro Estado Membro da União Europeia aquando da distribuição de dividendos de fonte portuguesa.
Em face do exposto, o Requerente considera que a norma do EBF aqui sindicada se mostra contrária ao Direito da União Europeia, uma vez que colide com as disposições do TFUE relativas ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como relativas à livre circulação de capitais previstas no seu artigo 63.º.
Nestas condições, há que concluir que o facto de a legislação interna portuguesa subordinar a concessão de uma vantagem fiscal em matéria de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas – em concreto a isenção de retenção na fonte incidente sobre os dividendos/lucros -, à condição de o OIC ser residente em território nacional, constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo artigo 1.° da Diretiva 88/361 e pelo artigo 63.º do TFUE.
Por outro lado, importa reter que, de acordo com Jurisprudência firmada pelo TJUE em diversos acórdãos, para efeitos do princípio da não discriminação, situações semelhantes não deverão ser tratadas de forma diferenciada a não ser nos casos em que tal tratamento diferenciado possa ser objetivamente justificado e seja proporcional ao objetivo prosseguido pela legislação nacional.
Pelo que se conclui que a norma controvertida do EBF se mostra contrária ao Direito da União Europeia, uma vez que colide com as disposições do Tratado relativas ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como, com as garantias associadas ao direito de estabelecimento e, ainda, com as disposições relativas à livre circulação de capitais previstas no seu artigo 63.º, tendo como efeito dissuadir os OIC estabelecidos noutros Estados Membros de investirem os respetivos capitais em sociedades com sede em Portugal.
4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por impugnação, em síntese, com os fundamentos seguintes:
Para aferir se da legislação nacional resulta um tratamento discriminatório dos fundos de investimento de outros Estados-Membros contrário ao TFUE, por constituir uma restrição à liberdade de circulação de capitais, a análise não pode cingir-se à consideração estrita das regras de retenção na fonte, havendo que atender à carga fiscal a que estão sujeitos os OICs abrangidos pelo artigo 22.º do EBF relativamente aos dividendos e às correspondentes ações, pois, só com esta visão global pode concluir-se com um mínimo de segurança que os fundos estrangeiros que investem em ações de sociedades residentes em Portugal são colocados numa situação mais desfavorável.
A análise da comparabilidade entre a carga fiscal a que se encontra sujeita a Requerente relativamente aos dividendos pagos por uma sociedade residente em território português e a carga fiscal que pode incidir sobre os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF exige que sejam tidas em consideração todas as formas de tributação que podem ser aplicadas aos dividendos e às correspondentes ações.
A Requerente ao analisar a desconformidade da legislação nacional com o artigo 63.º do TFUE, centra-se exclusivamente no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, que estabelece a isenção de retenção na fonte, o que revela uma visão parcial do regime de tributável aplicável aos OIC abrangidos por este dispositivo legal.
Pois, se a Requerente tivesse sido constituído ao abrigo da legislação nacional, não teria incidido qualquer retenção na fonte em sede de IRC sobre os dividendos auferidos no ano de 2017, mas poderia ter incidido a tributação autónoma, à taxa de 23%, e, eventualmente, o imposto do selo previsto na Verba 29 da TGIS.
Portanto, em lugar de se afirmar que existe uma “dicotomia discriminatória, centrada no Estado de residência fiscal do credor dos rendimentos”, será mais acertado falar em diferentes modalidades de tributação que até pode redundar, em certos casos, numa carga fiscal menor dos dividendos auferidos em Portugal por Fundos de Investimento constituídos ao abrigo da legislação de outros Estados-Membros da UE.
E, portanto, o que existe é uma aparência de discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, mas, a que não corresponde uma discriminação em substância
O regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, embora consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos por outras formas, seja por tributação autónoma, seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não pode afirmar-se que, em substância, as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimentos constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis.
Assim, não pode concluir-se que o regime fiscal dos OIC – que não se contém em exclusivo no n.º 3 do artigo 22.º do EBF – não esteja em conformidade com as obrigações que decorrem do artigo 63.º do TFUE.
5. Verificando-se ter sido efetuado reenvio prejudicial no processo arbitral 93/2019-T que deu origem no Tribunal de Justiça da União Europeia ao processo prejudicial (processo prejudicial n.º C-545/19) tendo por objeto as questões de Direito da União que importa resolver, por despacho arbitral de 13.01.2020, proferido na sequência de requerimento do Requerente, foi decidido suspender a instância até comunicação da decisão proferida naquele processo de reenvio prejudicial, ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.[1]
6. Tendo o tribunal arbitral tomado conhecimento de que em 17 de março de 2022 foi proferido acórdão pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no processo prejudicial supra referido, por despacho de 23 de Março de 2022 foi decretada a cessação da suspensão da instância.
7. Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.
Foi ainda dispensada a realização de alegações, nos termos do art. 18º, nº 2, do RJAT, “a contrario”.
8. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
9. Cumpre solucionar as seguintes questões:
1) Ilegalidade dos atos de retenção na fonte objeto do processo.
2) Direito do Requerente à restituição dos montantes objeto de retenção na fonte.
3) Direito do Requerente juros indemnizatórios.
II – A matéria de facto relevante
10. Consideram-se provados os seguintes factos:
10.1. O Requerente é uma pessoa coletiva de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”) constituído sob a forma contratual, comumente designada de fundo de investimento sendo um sujeito passivo de IRC, não residente, para efeitos fiscais, em Portugal, e sem qualquer estabelecimento estável no país, tendo a sua residência fiscal na Alemanha.
10.2.O Requerente é gerido por uma entidade gestora de fundos de investimento, a B... GmbH, entidade igualmente com sede na Alemanha.
10.3.O Requerente é sujeito a imposto sobre as pessoas coletivas no seu país de residência, tendo-lhe sido todavia concedida uma isenção.
10.4. No ano de 2017, o Requerente era detentor de dois lotes de ações nominativas na sociedade C... SA, residente em Portugal, no valor respetivo de 164.585,00 € e 289.327,00 €.
10.5.No ano de 2017, o Requerente recebeu dividendos e suportou em Portugal imposto por retenção na fonte no montante a seguir discriminado:
Ano da Retenção
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Valor Bruto do Dividendo
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Data de Pagamento
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Taxa de Retenção na Fonte
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Guia de Pagamento
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Valor da retenção
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2017
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31.271,15
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17.05.2017
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25
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...
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7.817,79
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2017
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54.972,13
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17.05.2017
|
25
|
...
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13.743,03
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TOTAL
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21.560,82
|
10.6.No dia 28.12.2018, o Requerente apresentou, reclamação graciosa dos atos de retenção na fonte de IRC relativos ao ano de 2017.
10.7.No dia 29.04.2019 foi proferida decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, de que o Requerente foi notificado em 06.05.2019.
Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados
11. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, que não foram objeto de impugnação por nenhuma das partes, sendo ainda de observar que dos articulados apresentados emerge concordância das partes relativamente à matéria de facto, cingindo-se o desacordo à matéria de direito.
-III- O Direito aplicável
12.Por acórdão de 17 de Março de 2022 foi proferido acórdão pelo Tribunal de Justiça no referido processo n.º C-545/19[2] tendo por objeto as questões de Direito da União que importa resolver no presente processo, nos seguintes termos:
“ Litígio no processo principal e questões prejudiciais
11 A D... é um organismo de investimento coletivo (OIC) de tipo aberto, constituído ao abrigo da legislação alemã e com sede na Alemanha. É gerido por uma entidade gestora cuja sede também se situa na Alemanha, não sendo essa entidade residente nem possuindo um estabelecimento estável em Portugal.
12 Uma vez que tem residência fiscal na Alemanha, a D... está isenta do imposto sobre o rendimento das sociedades nesse Estado‑Membro ao abrigo da regulamentação alemã. Este estatuto fiscal impede‑a de recuperar os impostos pagos no estrangeiro sob a forma de crédito fiscal por dupla tributação internacional, ou de formular um pedido de reembolso desses impostos.
13 Nos anos de 2015 e de 2016, a D... era detentora de participações sociais em diversas sociedades residentes em Portugal. Os dividendos recebidos a este título durante esses dois anos foram sujeitos, em conformidade com o artigo 87.°, n.° 4, alínea c), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25 %, pelo valor total de 39 371,29 euros.
14 Relativamente ao ano de 2015, a D... obteve o reembolso de 5 065,98 euros ao abrigo da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha, na qual se prevê a taxa máxima de 15 % para a tributação dos dividendos.
15 Em 29 de dezembro de 2017, a D... apresentou, na Autoridade Tributária e Aduaneira, uma reclamação graciosa dos atos através dos quais esta última procedeu à retenção na fonte do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas relativo aos anos de 2015 e 2016. Pedia a anulação desses atos por violação do direito da União, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal. Essa reclamação foi indeferida por Decisão de 13 de novembro de 2018.
16 Em 12 de fevereiro de 2019, a D... recorreu ao órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) (Portugal), pedindo a anulação dos atos de retenção na fonte pela quantia remanescente, de 34 305,31 euros.
17 Perante o órgão jurisdicional de reenvio, a D... alega que, nos anos de 2015 e 2016, os OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa estavam sujeitos a um regime fiscal mais favorável do que aquele a que foi sujeita em Portugal, na medida em que, relativamente aos dividendos pagos por sociedades estabelecidas em Portugal, esses organismos estavam isentos, ao abrigo do artigo 22.°, n.° 3, do EBF, do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas. A D... considera que, sendo tributada à taxa de 25 % sobre os dividendos que lhe são pagos por sociedades estabelecidas em Portugal, é objeto de um tratamento discriminatório proibido pelo artigo 18.° TFUE, bem como de uma restrição à liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.° TFUE.
18 A Autoridade Tributária e Aduaneira afirma, por sua vez, que o regime fiscal português aplicável aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação nacional e o regime aplicável aos OIC constituídos e estabelecidos na Alemanha não são, por natureza, comparáveis, uma vez que o primeiro destes regimes também não exclui a tributação dos dividendos a cargo dos organismos que abrange, seja através do imposto do selo ou do imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas. Tendo em conta que a tributação dos dividendos é feita segundo modalidades diferentes, nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa seja mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal por um organismo como a D... . A Autoridade Tributária e Aduaneira acrescenta que também não está demonstrado que a parte do imposto não recuperada pela D... não possa ser recuperada pelos investidores desta última.
19 O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se, ao isentar do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas os dividendos pagos por sociedades estabelecidas em Portugal a OIC com sede neste Estado‑Membro e que foram constituídos e operam de acordo com a legislação portuguesa, ao mesmo tempo que tributa à taxa de 25 % os dividendos pagos por essas sociedades a OIC com sede noutro Estado‑Membro da União, não sendo assim constituídos nem operando de acordo com a legislação nacional, o regime fiscal português é contrário ao artigo 56.° TFUE relativo à livre prestação de serviços ou ao artigo 63.° TFUE relativo à livre circulação de capitais.
(…)
Quanto à existência de uma restrição à livre circulação de capitais
36 Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.° 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.° 49 e jurisprudência referida).
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).
40 Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
41 Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 29 e jurisprudência referida].
42 O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 30 e jurisprudência referida].
Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis
(…)
72 Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.° 58 e jurisprudência referida).
73 Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.
74 Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.
Quanto à existência de uma razão imperiosa de interesse geral
75 Há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma restrição à livre circulação de capitais pode ser admitida se se justificar por razões imperiosas de interesse geral, for adequada a garantir a realização do objetivo que prossegue e não for além do que é necessário para alcançar esse objetivo [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 56 e jurisprudência referida].
(…)
78 A este respeito, há que recordar que, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado que a necessidade de preservar a coerência de um regime fiscal nacional pode justificar uma regulamentação nacional suscetível de restringir as liberdades fundamentais (v., neste sentido, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.° 50 e jurisprudência referida, e de 13 de março de 2014, Bouanich, C‑375/12, EU:C:2014:138, n.° 69 e jurisprudência referida), precisou, contudo, que, para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.° 49 e jurisprudência referida, e de 13 de novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, EU:C:2019:960, n.° 87).
79 Ora, no presente processo, como resulta do n.° 71 do presente acórdão, a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte (v., por analogia, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.° 52, e de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.° 93).
80 Consequentemente, não há uma relação direta, na aceção da jurisprudência referida no n.° 78 do presente acórdão, entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo.
81 A necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal.
82 No que diz respeito, em segundo lugar, à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha, há que recordar que, como o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente, a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros pode ser admitida quando o regime em causa visa prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território (v., neste sentido, Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.° 57 e jurisprudência referida, e de 20 de janeiro de 2021, Lexel, C‑484/19, EU:C:2021:34, n.° 59).
83 No entanto, como o Tribunal de Justiça também já declarou, quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 71 e jurisprudência referida).
84 Daqui resulta que a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros também não pode ser acolhida.
(…)
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:
O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”
Aplicando esta decisão, que atento o despacho arbitral de 13.01.2020 é vinculativa no presente processo, não pode deixar de se considerar que procede o vício de violação de lei alegado pelo Requerente, por incompatibilidade do n.º 3, do artigo 22º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, com a consequente anulação dos atos tributários objeto do processo.
13. Veio, ainda, o Requerente pedir a condenação da Requerida ao reembolso da quantia indevidamente arrecadada, bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.
No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de retenção na fonte objeto do processo, é procedente a pretensão do Requerente à restituição por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.
14. No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária.
Dispõe o nº 1 daquele artigo que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Considerou-se no acórdão do STA de 8 de Março de 2017, proferido no proc. 01019/14, em sintonia com jurisprudência constante do mesmo Tribunal, o seguinte:
“Sobre o denominado “erro imputável aos serviços” tem a jurisprudência desta secção uniforme e reiteradamente afirmado que o respectivo conceito compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e que essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afectada pelo erro (Vide, entre outros, os seguintes Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: de 12.02.2001, recurso nº 26.233, de 11.05.2005, recurso 0319/05, de 26.04.2007, recurso 39/07, de 14.03.2012, recurso 01007/11 e de 18.11.2015,
recurso 1509/13, todos in www.dgsi.pt.).”[3]
Por outro lado, consta do acórdão TJUE de 4 de dezembro de 2018,no processo C‑378/17, em linha com a jurisprudência do mesmo Tribunal aí referida, o seguinte:
“38 Como diversas vezes afirmou o Tribunal de Justiça, a referida obrigação de não aplicar uma legislação nacional contrária ao direito da União incumbe não só aos órgãos jurisdicionais nacionais mas também a todos os órgãos do Estado, incluindo as autoridades administrativas, encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31; de 9 de setembro de 2003, CIF, C‑198/01, EU:C:2003:430, n.o 49; de 12 de janeiro de 2010, Petersen, C‑341/08, EU:C:2010:4, n.o 80; e de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, EU:C:2017:687, n.o 54).
39 Daqui resulta que o princípio do primado do direito da União impõe não só aos órgãos jurisdicionais mas a todas as instâncias do Estado‑Membro que confiram plena eficácia às normas da União.”
Na decisão do processo The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, pode também ler-se que:
“há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tanto as autoridades administrativas como os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União têm a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, relativamente às autoridades administrativas, acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31, e de 29 de abril de 1999, Ciola, C‑224/97, EU:C:1999:212, n.os 26 e 30, e, relativamente aos órgãos jurisdicionais, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 24, e de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 34).”[4]
Na doutrina nacional, refere Fausto de Quadros:
“(…) temos a obrigação para a Administração Pública de recusar a aplicação de normas ou actos nacionais contrários ao Direito Comunitário, e de aplicar este mesmo contra Direito nacional de sentido contrário, conforme doutrina acolhida, de forma modelar no caso Factortame, já referido neste livro por diversas vezes. A Administração Pública vai ter, ainda mais do que o legislador, a necessidade de levar essa doutrina em conta no desempenho da sua missão de aplicar o Direito.”[5]
No mesmo sentido, vai Miguel Gorjão-Henriques, que sobre o princípio do primado do direito comunitário escreve:
”(…) indubitavelmente, a dimensão clássica do princípio é aquela que, com clareza, nos enuncia Rostane MEHDII, ao salientar que o juiz e a administração têm a obrigação de «excluir as regras internas adoptadas em violação da legalidade comunitária”[6]
Nesta conformidade, estando a Requerida obrigada a desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União, a não observância de tal dever consubstancia de erro de direito imputável aos serviços.”
Assim também tem concluído, pacificamente, a jurisprudência nacional, pois, como se pode ler no acórdão do STA proferido em 19.11.2014, no processo 0886/14:
“desde há muito entendido este Supremo Tribunal de forma pacífica que existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária actuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer um dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectado pelo erro, conforme se deixou explicado, entre outros, no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 12/12/2001, no recurso n.º 026233, pois «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro» já que «a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços. - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 14 de Março de 2012, rec. n.º 1007/11, e numerosa jurisprudência aí citada.”
Assim, no caso sub judice, à luz da jurisprudência e doutrina referidas, não estando a Requerida exonerada do dever de aplicação do primado do direito europeu, não poderá deixar de proceder o pedido de condenação quanto aos juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços[7], que se verificou, pelo menos, na data da decisão que indeferiu a reclamação graciosa.
Quanto à data a partir da qual a contagem dos juros deve ser efetuada em caso de ilegalidade praticado em atos de retenção na fonte, como é o caso dos presentes autos, a jurisprudência encontra-se dividida, havendo decisões arbitrais no sentido de que os juros são contados desde a data do pagamento indevido, nos termos do artigo 61º, nº 5, do CPPT (cfr. decisões proferidas nos processos 951/2019-T, 18 de Setembro de 2020, 926/2019-T, de 19 de Outubro de 2020, 903/2019-T de 27 de Novembro de 2020) e outras que sustentam que a contagem dos juros se deve iniciar a partir da data da decisão de indeferimento da reclamação graciosa ou a partir do dia seguinte à data em que a decisão deveria ter sido decidida de acordo com o disposto no artigo 57º da LGT (cfr. decisões proferidas nos processos 952/2019-T, de 10 de Julho de 2020 e 345/2021-T de 1 de fevereiro de 2022), havendo ainda decisão arbitral que entendeu que a contagem de indemnizatórios só começa a partir de ano após a data do pedido de reclamação graciosa, à luz da alínea c), do n.º 3, do art.º 43.º da LGT, que regula a contagem de juros indemnizatórios nos casos de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte (Decisão arbitral proferida no processo 252/2014-T de 2 de Fevereiro de 2015).
Adiantamos desde já que é nosso entendimento que os juros devem ser contados desde a data da retenção na fonte que é, economicamente, equivalente a pagamento, uma vez que o substituído fica, em função dela, privado da quantia em causa em moldes substancialmente idênticos ao que ocorre quando qualquer contribuinte realiza um pagamento de imposto.
É certo que é de ponderar que na data da retenção na fonte ainda não havia ocorrido qualquer ato expresso da administração quanto à situação tributária em causa, o que só veio a verificar-se com a decisão que incidiu sobre a reclamação graciosa. A esta luz, é sustentável que na retenção na fonte haverá erro da entidade que procede à retenção mas que tal erro não é imputável à Requerida.
Acontece que, para a situação em apreço, inexiste norma que expressamente preveja que a contagem dos juros se inicie em momento diverso do previsto no artigo 61º, nº 5, do CPPT.
Por outro lado, a própria lei admite a ocorrência de erro imputável aos serviços em situação em que os serviços não se pronunciaram expressamente, como acontece na situação prevista no nº 2 do artigo 43º da LGT, nos casos em que o contribuinte seguiu no preenchimento de declaração fiscal as orientações genéricas da administração tributárias devidamente publicadas. Esta situação não deixa de ter alguma similitude substantiva com a situação dos autos, em que o substituto tributário seguiu na sua declaração a própria lei, por este tribunal considerada inaplicável por violação do direito europeu.
Acresce, ainda, que inexiste norma que determine que a contagem dos juros se inicia a partir da data da decisão de indeferimento da reclamação graciosa ou a partir do dia seguinte à data em que a decisão deveria ter sido decidida de acordo com o disposto no artigo 57º da LGT. Esta solução, para além de não estar prevista legislativamente, deixaria nas mãos da AT, com a maior ou menor celeridade da decisão, o inicio da contagem do prazo, o que não se afigura razoável.
Por último, entendemos, ainda, que os artigos 99º e 103º do CIRC, interpretados à luz dos princípios da justiça, da igualdade e da legalidade que a administração tributária não pode deixar de observar na sua atuação, impõem que sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação em montante superior ao que seria devido face à lei aplicável, sendo certo que as entidades obrigadas a efetuar retenções na fonte estão obrigadas a entregar à Requerida uma declaração de modelo oficial, referente aos rendimentos pagos ou colocados à disposição e respetivas retenções na fonte, em cumprimento dos artigos 128º do CIRC e 119º do CIRC e da Portaria n.º 372/2013 de 27/12 (atualmente Portaria n.º 98/2021 de 5 de maio).A Requerida, ao receber tal declaração e omitir qualquer correção à mesma, adere tacitamente à retenção[8], tanto mais que a mesma é efetuada no cumprimento de dever de colaboração de entidades privadas em funções de gestão fiscal, cujo controlo cabe à Administração tributária.
Assim sendo, afigura-se que a Requerida não é alheia à ilegalidade cometida nas retenções na fonte efetuadas, cuja licitude implicitamente aceitou, ao contrário da Requerente que, essa sim, é totalmente alheia aos ato tributários em causa.
Face ao exposto e inexistindo norma para situação em apreço que determine que a contagem dos juros seja feita em termos mais desfavoráveis para o contribuinte do que aquele que consta do artigo 61º, nº 5, do CPPT, entendo que deve ser este regime o aplicável, sendo que a solução que do mesmo decorre, ao atribuir ao contribuinte o direito ao pagamento de juros indemnização a partir da data em que o mesmo fique privado das quantias retidas, é a que se afigura materialmente mais justa e adequada à natureza indemnizatória dos juros em questão.
-IV- Decisão
Termos em que se julga procedente o pedido de pronuncia arbitral, declarando-se a ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários de retenção na fonte objeto do processo, bem como da decisão da reclamação graciosa que incidiu sobre os mesmos, condenando-se a Requerida a restituir ao Requerente os respetivos valores, acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data da retenção até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).
Valor da ação: 21.560,82 € (vinte e um mil, quinhentos e sessenta euros e oitenta e dois cêntimos)
nos termos do disposto no artigo 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerida, no valor 1 224.00 € (mil duzentos e vinte e quatro euros) nos termos do nº 4 do artigo 22º do RJAT.
Notifique-se as partes.
Nos termos e para efeitos do art. 17º, nº 3 do RJAT, notifique-se, ainda, o Representante do Ministério Público junto do Tribunal competente para o julgamento da impugnação, para efeitos do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual.
Lisboa, CAAD, 26.05.2022
O Árbitro
Marcolino Pisão Pedreiro
[1]Em linha com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, no sentido de que se já foi efetuado um reenvio sobre questões atinentes à interpretação de direito da União a determinada situação fáctica não se justifica efetuar novo reenvio (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 17-02-1999, processo n.º 021128; de 28-04-1999, processo n.º 022363; de 30-06-1999, processo n.º 023254; de 16-02-2005, processo n.º 01168/04; de 15-11-2006, processo n.º 01216/05; de 14-12-2011, processo n.º 0366/11; de 2-10-2013, processo n.º 027/13).
[3] Os acórdãos do STA citados nesta decisão arbitral podem ser consultados em “www.dgsi.pt.”
[5] DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA, Almedina, 2004, p. 530.
[6] DIREITO DA UNIÃO, Almedina, 8ª edição, 2017, pag. 365.
[7] Neste sentido, entre outras, a decisão arbitral de 1 de Abril de 2021, proferida no proc. 457/2020-T, de 1 de Abril de 2021.
[8] Em termos que nos parecem aplicáveis à retenção na fonte efetuada a titulo definito, escreve o Professor Casalta Nabais a propósito da autoliquidação:
“(…) relativamente à (…) natureza da autoliquidação, (…) estamos em crer que se trata dum acto tributário (…) relativamente ao qual, por via de regra, se verifica uma homologação implícita pela administração tributária decorrente da aceitação do pagamento do imposto.”(DIREITO FISCAL, 3ª Ed., 2005, Almedina, pags. 326-327, itálico do autor).