Sumário:
Ao circunscrever o regime de tributação de dividendos constante nos n.ºs 1, 3 e 10 do artigo 22.º do EBF aos OICVM que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, isto é, ao sujeitar a retenção na fonte os dividendos pagos aos OICVM não residentes e ao reservar aos OICVM residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, o artigo 22.º do EBF procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OICVM não residentes incompatível com a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
Os árbitros Carla Castelo Trindade (árbitra-presidente), José de Campos Amorim e Ricardo Rodrigues Pereira (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., organismo de investimento colectivo em valores mobiliários (“OICVM”) constituído e a operar no Grão-Ducado do Luxemburgo, contribuinte fiscal luxemburguês n.º ... e português n.º..., com sede na ... Luxemburgo (doravante “Requerente”), notificado do indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2020..., em 15 de Janeiro de 2021, vem requerer a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente:
- À ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2020...;
- À ilegalidade das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) por retenção na fonte, ocorridas em Dezembro de 2017 e no período de 2018, aquando da colocação à disposição do Requerente de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português;
- Ao consequente pagamento de juros indemnizatórios, em conformidade com o disposto no artigo 43.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (“LGT”), a computar sobre o montante de imposto indevidamente retido na fonte no valor de € 270.347,64, desde a data da respectiva retenção até efectivo e integral pagamento;
- Subsidiariamente, em caso da improcedência do pedido anterior, ao pagamento dos referidos juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º, n.º 3, alínea d), da LGT;
- À condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) nas custas do processo arbitral.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, aqui Requerida, em 28 de Junho de 2021.
3. O Requerente, sendo um OICVM”, constituído no Grão-Ducado do Luxemburgo, sustenta, em síntese, que os dividendos de fonte portuguesa por si auferidos não devem ser tributados em sede de IRC, por força do disposto no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10 do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), sob pena de tal criar uma discriminação entre OICVM residentes e não residentes em Portugal, violando assim o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) e, consequentemente, do primado do Direito da União Europeia, consagrado no artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”). O Requerente não se conforma com a posição da AT e entende que a interpretação do artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10 do EBF consubstancia uma discriminação injustificada entre OICVM residentes e não residentes em Portugal.
Segundo o Requerente, do regime em vigor nos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.os 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, e 87.º, n.º 4 do código do IRC, resulta que os dividendos de fonte portuguesa pagos a OICVM estabelecidos noutros Estados-Membros são retidos na fonte em sede de IRC, à taxa liberatória de 25%, a qual pode ser, contudo, reduzida, ao abrigo de convenções para evitar a dupla tributação celebradas pelo Estado português. Do exposto resulta, no entender da Requerente, uma diferença de tratamento entre os OICVM residentes em Portugal e os OICVM não residentes em Portugal, constituídos ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, na medida em que os dividendos de fonte portuguesa pagos aos primeiros não são sujeitos a retenção na fonte nem tributados em sede de IRC, ao passo que os dividendos de fonte portuguesa pagos a OICVM não residentes são tributados em sede de IRC mediante retenção na fonte à taxa liberatória.
O Requerente peticiona ainda que seja reconhecido o erro imputável aos serviços na prolação das liquidações que estão na origem dos presentes autos e o reconhecimento do concomitante direito do Requerente ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.º 3 do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), a computar sobre o montante de € 270.347,64, a partir da data da retenção na fonte desse montante e até ao seu efectivo e integral pagamento. Caso assim não se entendesse, peticionou o Requerente que o direito aos juros indemnizatórios fosse reconhecido nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea d), da LGT que apesar de estar previsto para as situações de inconstitucionalidade ou de ilegalidade regulamentar é, na perspectiva do Requerente, igualmente aplicável a casos como o dos presentes autos em que se verifica uma violação do Direito Europeu, por força do princípio da equivalência e do primado deste último, sob de incompatibilidade de tal regime com o Direito da União Europeia e, bem assim, com o artigo 8.º, n.º 4, da CRP.
4. Nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 6.º e da alínea b), do n.º 1, do artigo 11.º, ambos do RJAT, o Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. Em 12 de Agosto de 2021, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 31 de Agosto de 2021.
6. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta na qual se defendeu por excepção e, bem assim, por impugnação, tendo defendido a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, a sua absolvição do pedido. Além disso, defendeu a suspensão do processo até decisão por parte do TJUE em sede de pedido de reenvio prejudicial, tramitado naquele tribunal sob o n.º C 545/19, quanto às questões prejudiciais formuladas no âmbito do processo arbitral que corria termos no CAAD sob o n.º 93/2019-T.
Por excepção, defendeu a AT que a Requerente, ao impugnar a reclamação graciosa ao invés de impugnar a decisão de recurso hierárquico, incorreu na excepção de caducidade do direito de acção, uma vez que já tinham decorrido, no seu entender, mais de 90 dias entre a notificação daquela decisão e a interposição da acção.
Por impugnação, alegou em síntese a Requerida que não lhe cabia efectuar a sindicância das normas no que concerne à sua adequação relativamente ao Direito da União Europeia por entender que não lhe competia avaliar a conformidade das normas internas com as dos tratados da União (nem com as orientações interpretativas do TJUE), e que não podia deixar de aplicar uma norma legal com o fundamento na sua desconformidade com os referidos tratados.
Além disso, considerou a Requerida que os OICVM residentes e os OICVM não residentes não estão em situações objectivamente comparáveis, devendo a tributação dos dividendos ser efectuada segundo modalidades diferentes. Entendeu a este respeito a AT que, para averiguar se as situações objectivas dos OICVM abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e dos Fundos de investimento estabelecidos noutros Estados-Membros são comparáveis, no tocante à tributação dos dividendos distribuídos por uma sociedade residente, é necessário comparar a carga fiscal que onera uns e outros em relação ao mesmo tipo de investimento. Só deste modo é possível concluir, no entender da Requerida, se a desvantagem criada pela retenção na fonte de IRC coloca os fundos de investimentos estabelecidos noutros Estados-Membros da UE numa situação desfavorável quando comparada com a situação tributária aplicável aos OICVM abrangidos pelo artigo 22.º do EBF.
A AT defendeu ainda que é necessário avaliar se da legislação nacional resulta um tratamento discriminatório para os fundos de investimento de outros Estados-Membros que seja contrário ao TFUE, nomeadamente ao princípio da liberdade de circulação de capitais, e se a carga fiscal a que estão sujeitos os OICVM abrangidos pelo artigo 22.º do EBF é diferente para uns e para outros. Só com esta visão global pode concluir-se, segundo a AT, se os fundos estrangeiros que investem em ações de sociedades residentes em Portugal são colocados numa situação mais desfavorável.
Na perspectiva da AT não se pode afirmar que, em substância, um OICVM constituído ao abrigo da lei portuguesa e os Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal estão em situações objectivamente comparáveis. Assim, concluiu a AT que, no presente caso, não existia um tratamento discriminatório em termos fiscais. Isto na medida em que, no seu entender, o regime fiscal aplicável aos OICVM constituídos ao abrigo da legislação nacional, embora consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos por outras formas, seja a título de tributação autónoma, seja em sede de Imposto do Selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos. Sendo que, segundo a AT, tal não sucede com o Requerente, que apesar de estar sujeito a retenção na fonte, a título definitivo, à taxa de 15% sobre os dividendos auferidos, por força da aplicação da CDT celebrada entre Portugal e o Grão Ducado do Luxemburgo, não é objecto daquelas outras formas de tributação sobre os rendimentos que integram o seu respectivo valor líquido.
7. Por despacho arbitral de 12 de Outubro de 2021, foi dispensada a realização da reunião arbitral a que alude o artigo 18.º do RJAT e facultada ao Requerente a possibilidade de, querendo, pronunciar-se no prazo de 10 (dez) dias sobre a excepção de caducidade do direito de acção suscitada pela AT.
8. Em 15 de Outubro de 2021, o Requerente veio, ao abrigo do princípio do contraditório e do princípio da cooperação, previstos no artigo 16.º, alíneas a) e f), do RJAT, pronunciar-se sobre a alegada caducidade do direito de acção invocada pela AT, requerendo ao Tribunal Arbitral a sua improcedência. Para o Requerente, é a decisão do pedido de reclamação graciosa – e não a decisão do recurso hierárquico, conforme alegou a AT – que constitui o objecto imediato do pedido de pronúncia arbitral, tendo sido aquele pedido indeferido em 23 de Dezembro de 2020 e notificado em 15 de Janeiro de 2021. Neste sentido, e tendo em consideração a aplicabilidade do artigo 6.º-B, n.º 1, da Lei n.º 4-B/2021, de 19 de Março, concluiu o Requerente pela improcedência da excepção dilatória invocada.
A final, peticionou ainda o Requerente que, ao invés de suspender os presentes autos até que fosse proferida a decisão arbitral no processo n.º 93/2019-T, o Tribunal determinasse a prossecução dos autos até à prolação de decisão de mérito sobre as pretensões por si formuladas, tudo com as demais consequências legais.
9. Em 27 de Outubro de 2021, o Tribunal Arbitral proferiu decisão interlocutória na qual concluiu que o objecto imediato do pedido de pronúncia arbitral é o despacho final de indeferimento do pedido de reclamação graciosa proferido em 15 de Dezembro de 2020 no âmbito do procedimento n.º ...2020... e notificado ao Requerente em 15 de Janeiro de 2021 através do ofício n.º... . Por conseguinte, é relativamente a este acto que terá de ser sindicada a tempestividade do pedido de pronúncia arbitral e, nessa medida, a procedência ou improcedência da excepção dilatória invocada pela Requerida. Nestes termos, poderia o Requerente apresentar o pedido de constituição de Tribunal Arbitral no prazo de 90 dias contados a partir da notificação do acto de indeferimento do pedido de reclamação graciosa.
Decidiu o Tribunal Arbitral naquela decisão que, da mera aplicação do artigo 10.º do RJAT (prazo de interposição do pedido de constituição de tribunal arbitral) e do artigo 102.º do CPPT (prazo de interposição da impugnação judicial), resultaria a intempestividade do pedido apresentado em 25 de Junho de 2021, em virtude de já terem decorrido mais de 90 dias, contados nos termos do artigo 279.º, do Código Civil (“CC”), desde a data da notificação do acto de indeferimento do pedido de reclamação graciosa, isto é, desde 15 de Janeiro de 2021. Contudo, referiu o Tribunal naquela sede que tal como salientou o Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral e na resposta à matéria de excepção ao invocar a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, era necessário ter em conta o período durante o qual estiverem suspensos os prazos processuais e procedimentais em virtude das medidas adoptadas no âmbito da pandemia da doença COVID 19.
Nos termos do artigo 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, a referida suspensão de prazos produziu efeitos a 22 de Janeiro de 2021. Assim sendo, e tendo em conta que o recurso à arbitragem tributária consubstancia um acto processual subsequente à reclamação graciosa para efeitos da alínea c), do n.º 2, do artigo 6.º-C da Lei n.º 1 A/2020, de 19 de Março, o prazo de 90 dias para o Requerente apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral suspendeu-se naquela data. Este regime de suspensão foi revogado pelo artigo 6.º, da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril que alterou a redacção da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março. Ora, uma vez que a Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril entrou em vigor em 6 de Abril por força do disposto no seu artigo 7.º, constatou-se que o prazo para o Requerente apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral apenas cessou a sua suspensão em 4 de Maio.
Em face do exposto, julgou-se improcedente na referida decisão arbitral interlocutória a alegada excepção de caducidade do direito de acção, já que em 25 de Junho de 2021 ainda não tinha decorrido o prazo alargado para apresentação do pedido de constituição de Tribunal Arbitral em virtude da aplicabilidade da legislação relativa às medidas adoptadas no âmbito da pandemia da doença COVID 19.
10. Em 27 de Outubro de 2021, o Tribunal Arbitral proferiu um despacho arbitral no qual apreciou o incidente de suspensão do processo suscitado pela Requerida, tendo para o efeito presente que o Requerente se opôs a tal suspensão por considerar que inexistiam quaisquer fundamentos ou relação de prejudicialidade entre as decisões em causa e que o Tribunal Arbitral tinha plenos poderes para interpretar e aplicar o Direito da União.
11. No âmbito daquele despacho o Tribunal Arbitral determinou a suspensão dos presentes autos até à pronúncia do TJUE no âmbito do processo n.º C 545/19 com base, ao que aqui importa, na seguinte fundamentação:
“6. Nos presentes autos, a questão de direito de que cumpre decidir respeita à aferição da compatibilidade do regime fiscal português com o Direito da União Europeia no que respeita à tributação de dividendos auferidos por OICVM não residentes. Em concreto, cumpre determinar se a tributação dos OICVM não residentes (que cumpram as exigências da Directiva 2009/65/CE) em sede de IRC ao abrigo do artigo 4.º, n.º 2, do artigo 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b), e n.º 5, e do artigo 87.º, n.º 4, todos do código do IRC, e que traduzem a imposição de tributação por retenção na fonte a título definitivo à taxa liberatória de 25% – que poderá ser reduzida para 15% em função da aplicabilidade da CDT celebrada entre Portugal e o Grão Ducado do Luxemburgo – é compatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º, do TFUE. Isto em virtude do facto de os OICVM residentes estarem isentos de retenção na fonte, sendo os dividendos que aufiram subtraídos da base tributável e de tributação em sede de IRC por força dos disposto no artigo 22.º, do EBF, ainda que possam estar sujeitos a tributação autónoma à taxa de 23% nos termos do artigo 88.º, n.º 11, do código do IRC, a tributação em sede de Imposto do Selo à taxa de 0,0025%, por cada trimestre, sobre o valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos e à taxa de 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, a base tributável pode incluir dividendos distribuídos.
7. Olhando agora ao processo n.º 93/2019-T relativamente ao qual é alegada a existência de uma relação de dependência e, nessa medida, requerida a suspensão dos presentes autos, constata-se que foi em 9 de Julho de 2019 proferida decisão na qual se solicitou ao Tribunal de Justiça da União Europeia a pronúncia quanto às seguintes questões prejudiciais:
“1. O artigo 56.º [CE] (atual artigo 63.º TFUE), relativo à livre circulação de capitais, ou o artigo 49.º [CE] (atual artigo 56.º TFUE), relativo à livre prestação de serviços, opõem-se a um regime fiscal como o que está em causa no litígio no processo principal, constante do artigo 22.º do EBF, que prevê a retenção na fonte de imposto com caráter liberatório sobre os dividendos recebidos de sociedades portuguesas a favor de OIC não residentes em Portugal e estabelecidos noutros países da UE, ao mesmo tempo que os OIC constituídos ao abrigo da legislação fiscal portuguesa e residentes fiscais em Portugal podem beneficiar de uma isenção de retenção na fonte sobre tais rendimentos?
2. Ao prever uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção de retenção na fonte, a regulamentação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes, uma vez que a estes últimos não lhes é dada qualquer possibilidade de aceder a semelhante isenção?
3. O enquadramento fiscal dos detentores de participações dos OIC será relevante para efeitos de apreciação do caráter discriminatório da legislação portuguesa, tendo presente que esta prevê um tratamento fiscal autónomo e distinto (i) para os OIC (residentes) e (ii) para os respetivos detentores de participações dos OIC? Ou, tendo presente que o regime fiscal dos OIC residentes não é, de todo, alterado ou afetado pela circunstância de os respetivos participantes serem residentes ou não residentes em Portugal, a apreciação da comparabilidade das situações para fins de determinar o caráter discriminatório da referida regulamentação deve ser realizada apenas por referência à fiscalidade aplicável ao nível do veículo de investimento?
4. Será admissível a diferença de tratamento entre OIC residentes e não residentes em Portugal, tendo em conta que as pessoas singulares ou coletivas residentes em Portugal, que sejam detentoras de participações de OIC (residentes ou não residentes) são, em ambos os casos, igualmente sujeitas (e, em regra, não isentas) a tributação sobre os rendimentos distribuídos pelos OIC, sujeitando os detentores de participações em OIC não residentes a uma fiscalidade mais elevada?
5. Tendo em consideração que a discriminação em análise no presente litígio diz respeito a uma diferença na tributação do rendimento relativamente a dividendos distribuídos pelos OIC residentes aos respetivos detentores de participações nos OIC, é legítimo, para efeitos da análise da comparabilidade da tributação sobre o rendimento considerar outros impostos, taxas ou tributos incorridos no âmbito dos investimentos efetuados pelos OIC? Em particular, é legítimo e admissível, para efeitos da análise de comparabilidade, considerar o impacto associado a impostos sobre o património sobre despesas ou outros, que não estritamente o imposto sobre o rendimento dos OIC, incluindo eventuais tributações autónomas?”
Conforme se pode verificar pela leitura das questões prejudiciais formuladas – bem como da própria decisão de reenvio –, a matéria de facto entre ambos os casos não é inteiramente condicente. Em todo o caso, a verdade é que a semelhança quanto à matéria de facto e de direito entre ambos os processos permite concluir que a pronúncia do TJUE, designadamente quanto às questões 1, 2 e 5, terá influência na decisão que este tribunal arbitral venha a proferir quanto às questões em litígio nos presentes autos. E esta influência não é despicienda, porquanto os órgãos jurisdicionais dos Estado-Membros estão vinculados a não aplicar uma legislação nacional contrária ao Direito da União Europeia, por força do primado deste último sobre o Direito interno, reconhecido constitucionalmente nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da CRP. E esta obrigatoriedade repercute-se igualmente quanto à jurisprudência proferida pelo TJUE quanto à interpretação do Direito da União, bem como quanto à validade dos actos adoptados pelas suas instituições ao abrigo do disposto no artigo 19.º, n.º 3, alínea b), do Tratado da União Europeia. Isto na medida em que a determinação pelo TJUE do sentido e do conteúdo impositivo que conforma as normas do Direito da União será vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, a quem cabe conferir plena eficácia àquela determinação, tal como bem se evidenciou no acórdão de 18 de Dezembro de 2013, proferido pelo STA no âmbito do processo n.º 0568/13.
Expressa que está a influência da decisão que vier a ser proferida pelo TJUE nos presentes autos, cumpre determinar em que termos poderá ser determinada a suspensão do processo. A este respeito, determina-se no artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (“CPC”) aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, que:
“Artigo 272.º
Suspensão por determinação do juiz ou por acordo das partes
1 - O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.”
Ora, tal como se referiu, a pronúncia que vier a ser feita pelo TJUE poderá influenciar significativamente a decisão a proferir por este tribunal arbitral. Acresce que existem já decisões arbitrais contraditórias nas quais a matéria de fundo é semelhante à dos presentes autos, conforme se pode verificar, por exemplo, pela consulta da decisão arbitral de 29 de Outubro de 2019, proferida no âmbito do processo n.º 96/2019-T e da decisão arbitral de 6 de Novembro de 2020, proferida no âmbito do processo n.º 11/2020-T. Por conseguinte, tendo em conta o primado do Direito da União, e tendo em conta que “[n]as decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, evitando a prolação de decisões contraditórias em concretização dos princípios da segurança jurídica e da igualdade, conclui se pela essencialidade da suspensão dos presentes autos até que seja proferida decisão pelo TJUE quanto às questões prejudiciais suscitadas no âmbito do processo n.º 93/2019-T que corre termos no CAAD.
Em face do exposto, ao abrigo do princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo previsto no artigo 16.º, alínea c), do RJAT, determina-se a suspensão dos presentes autos nos termos do artigo 272.º, n.º 1, do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT até que seja proferida decisão pelo TJUE no âmbito do processo n.º C 545/19, relativamente ao reenvio prejudicial efectuado no âmbito do processo n.º 93/2019-T.”.
12. Após a TJUE se ter pronunciado no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido no âmbito do processo n.º C 545/19, em 17 de Março de 2022, o Tribunal Arbitral retomou o curso dos presentes autos e facultou às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas, facultativas, por prazo simultâneo.
13. O Requerente apresentou alegações em 5 de Abril de 2022, onde voltou a referir que não se conforma com a decisão de indeferimento da reclamação graciosa nem com a consequente manutenção na ordem jurídica das liquidações de IRC objecto da mesma, considerando estes actos tributários ilegais e anuláveis, nos termos dos artigos 163.º do Código de Procedimento Administrativo e 100.º da LGT, por vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4 da CRP.
Afirmou o Requerente que não existiam quaisquer argumentos que justifiquem o tratamento discriminatório decorrente da retenção na fonte que incidiu sobre os dividendos de fonte portuguesa por si auferidos em Dezembro de 2017 e em 2018. Considerou igualmente que as liquidações de IRC por retenção na fonte eram ilegais, em consequência da violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4 da CRP, e que devia ser determinada a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2020..., bem como das liquidações por retenção na fonte, com a consequente restituição do imposto retido na fonte no montante de € 270.347,64, ao abrigo do artigo 100.º da LGT.
Prosseguiu o Requerente referindo que ao dispensar de retenção na fonte e excluir de tributação em sede de IRC apenas os dividendos auferidos por OICVM residentes em Portugal, de acordo com o artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10 do EBF, a AT tratou discriminatoriamente os OICVM não residentes noutros Estados-Membros da União Europeia, que operem ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, em condições equivalentes às previstas na legislação portuguesa. Para o Requerente, os OICVM não residentes, constituídos e a operar ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, acabam por serem colocados numa situação de desvantagem por não terem a sua residência em Portugal, não obstante estarem numa situação objectivamente comparável à dos OICVM residentes em Portugal. O Requerente é da opinião que este tratamento discriminatório decorrente da retenção na fonte sobre os dividendos de fonte portuguesa auferidos pelo Requerente em Dezembro de 2017 e em 2018 não pode ser justificado por razões imperiosas de interesse geral.
Também não releva para o Requerente o facto de os OICVM não residentes não serem tributados em sede de Imposto do Selo, nos termos da Verba 29 da Tabela Geral do Imposto do Selo, contrariamente ao que sucede com os OICVM residentes, e de os OICVM residentes alegadamente serem sujeitos à tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 11 do código do IRC.
Em conclusão, o Requerente considerou que o regime consagrado no artigo 22.º do EBF não é compatível com a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE. Por isso, peticionou (i) a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa na origem dos presentes autos (ii), a anulação das liquidações por retenção na fonte ora em crise, (iii) a restituição do imposto retido na fonte ao Requerente, ao abrigo do artigo 100.º da LGT, e (iv) o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.os 1, e 3, alínea d) da LGT e 61.º, n.º 5 do CPPT.
Terminou defendendo que os actos tributários que estão na origem dos presentes autos são ilegais, e, neste sentido, ao abrigo do artigo 43.º, n.os 1 e 3, alínea d), da LGT, tinha o Requerente direito ao ressarcimento do prejuízo resultante da indisponibilidade do montante pago, através do pagamento de juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços da AT, sob pena de violação do princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas previsto no artigo 22.º da CRP.
14. A Requerida apresentou alegações em 6 de Abril de 2022 tendo referido que, em face da pronúncia do TJUE sobre o pedido de reenvio prejudicial formulado no processo n.º 93/2019-T e em face das alegações do Requerente, remetia e dava por reproduzidos os factos e alegações de direito constantes da sua Resposta, considerando que devia ser proferida decisão no sentido da improcedência do pedido de pronúncia arbitral por não provado e, consequentemente, absolvida a Requerida do pedido.
II. SANEAMENTO
15. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, em face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades e não existem quaisquer obstáculos à apreciação do mérito da causa e que cumpra conhecer.
III. DIREITO
III.1. MATÉRIA DE FACTO
III.1.1. Factos provados
16. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
a) O Requerente é um OICVM, sob a forma de sociedade anónima, residente no Grão-Ducado do Luxemburgo, tendo sido constituído e operando ao abrigo da Loi du 17 décembre 2010 concernant les organismes de placement collectif, que transpõe para a ordem jurídica luxemburguesa a Directiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009 (cfr. documentos n.ºs 3, 4, 5 e 6 juntos pelo Requerente aos autos);
b) O Requerente é administrado pela sociedade B..., S.A.R.L., entidade que também é residente no Grão Ducado do Luxemburgo (cfr. documentos n.ºs 5, 6 e 7 juntos pelo Requerente aos autos);
c) Em Dezembro de 2017 e no período de tributação de 2018 o Requerente auferiu dividendos de fonte portuguesa no valor total de € 1.802.317,62, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória à taxa de 25%, nos seguintes termos (cfr. documentos n.ºs 5, 6 e 7 juntos pelo Requerente aos autos):
d) O montante global de € 450.579,39 foi retido na fonte e entregue ao Estado português pela sociedade C... na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários (cfr. documento n.º 2 junto pelo Requerente aos autos);
e) O Requerente solicitou o reembolso do montante correspondente à diferença entre a taxa de retenção na fonte de 25% efectuada em Portugal e a taxa reduzida de retenção na fonte de 15% prevista no artigo 10.º, n.º 2, da Convenção para Evitar a Dupla Tributação (“CDT”) celebrada entre Portugal e o Grão Ducado do Luxemburgo;
f) Neste sentido, o Requerente apenas impugnou nos presentes autos o montante de € 270.347,64 sujeito a retenção nos seguintes termos:
g) O Requerente está isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas no Grão Ducado do Luxemburgo, pelo que não pode beneficiar de crédito de imposto ou reembolso de quaisquer impostos retidos na fonte nacionais ou estrangeiros (cfr. documento n.º 3 junto pelo Requerente aos autos);
h) O Requerente não obteve crédito de imposto no Grão Ducado do Luxemburgo quanto aos montantes de IRC suportados por via das retenções na fonte objecto dos presentes autos, seja ao abrigo da CDT celebrada entre Portugal e o Grão Ducado do Luxemburgo seja ao abrigo da lei interna deste último (cfr. documento n.º 8 junto pelo Requerente aos autos);
i) Ao não se conformar com a tributação que lhe foi imposta, o Requerente apresentou reclamação graciosa em 20 de Dezembro de 2019 com vista à apreciação da legalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte que incidiram sobre os dividendos por si auferidos em Portugal nos períodos de tributação de 2017 e 2018, a qual foi tramitada sob o n.º ...2020... (cfr. PA junto pela Requerida aos autos);
j) Em 22 de Junho de 2020 foi proferido o Ofício n.º ... através do qual se ordenou a notificação do Requerente para exercer o seu direito de audição prévia no âmbito do referido procedimento de reclamação graciosa (cfr. PA junto pela Requerida aos autos);
k) A notificação efectiva para exercício do direito de audição prévia ocorreu em 3 de Julho de 2020, tendo o Requerente exercido aquele direito em 27 de Agosto de 2020 mediante requerimento ao qual foi atribuído a entrada n.º 2020... (cfr. documentos n.ºs 9 e 10 e PA juntos, respectivamente, pelo Requerente e pela Requerida aos autos);
l) Em 28 de Agosto de 2020 foi proferido despacho de rejeição do pedido de reclamação graciosa apresentado pelo Requerente quanto aos períodos de 2017 04, 2017-05 e 2017 09 e de indeferimento quanto aos demais períodos, tendo essa decisão sido notificada ao Requerente através do ofício n.º..., de 1 de Setembro de 2020 (cfr. PA junto pela Requerida aos autos);
m) O Requerente foi notificado dessa decisão em 9 de Setembro de 2020, na qual a AT afirmou que este não havia exercido o seu direito de audição prévia, não tendo assim considerado os argumentos apresentados pelo Requerente nessa sede (cfr. documento n.º 11 e PA juntos, respectivamente, pelo Requerente e pela Requerida aos autos);
n) O Requerente apresentou recurso hierárquico que foi tramitado sob o n.º ...2020..., no qual sustentou a tempestividade do requerimento de audição prévia apresentado no procedimento de reclamação graciosa e, bem assim, reiterou os argumentos apresentados nessa sede (cfr. documento n.º 12 e PA juntos, respectivamente, pelo Requerente e pela Requerida aos autos);
o) Em 23 de Outubro de 2020 a AT deferiu o pedido do Requerente quanto à tempestividade do exercício do direito de audição prévia por considerar que este tinha ilidido a presunção de notificação, ordenando em consequência a revogação do despacho de indeferimento do pedido de reclamação graciosa (cfr. PA junto pela Requerida aos autos);
p) A AT procedeu à análise dos argumentos do Requerente em sede de exercício de audição prévia tendo, em 15 de Dezembro de 2020, proferido a decisão final de indeferimento no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º ...2020... (cfr. PA junto pela Requerida aos autos);
q) Essa decisão foi notificada ao Requerente em 15 de Janeiro de 2021 através do ofício n.º ... (cfr. documento n.º 1 junto pelo Requerente aos autos);
r) Em 25 de Junho de 2021 o Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral no qual impugnou a decisão final de indeferimento referida na alínea anterior.
III.1.2. Factos não provados
17. Com relevo para a decisão da causa, não existem outros factos que devam ser considerados provados ou não provados.
III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
18. O Tribunal Arbitral não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria de facto alegada pelas partes, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa à decisão, admitindo a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo Requerente, e decidir se a considera provada ou não provada, conforme resulta do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT.
Face às posições assumidas pelas partes nas respectivas peças processuais, o princípio da livre apreciação da falta de contestação especificada dos factos expresso nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental e a cópia do processo administrativo junto aos autos, que foram objecto de exame e avaliação cuidada por este Tribunal, tendo em conta as regras da experiência de vida e de conhecimento das pessoas e da envolvência, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Não se consideraram provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
19. A questão central a dirimir no presente processo consiste na apreciação do vício de violação de lei imputado pelo Requerente, OICVM, constituído no Grão-Ducado do Luxemburgo, ao indeferimento do pedido de Reclamação Graciosa n.º ...2020... apresentado quanto às liquidações de IRC por retenção na fonte, ocorridas em Dezembro de 2017 e no período de 2018, aquando da colocação à disposição do Requerente de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português.
Tal como se referiu, o Requerente não se conforma com a posição da AT subjacente ao indeferimento daquela Reclamação Graciosa, uma vez que considera que a interpretação do artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF consubstancia uma discriminação injustificada entre OICVM residentes e não residentes em Portugal, violando assim o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, o primado do Direito da União Europeia.
Para aferir a existência de tal discriminação é, antes de mais, necessário, aferir o enquadramento jurídico vigente à data dos factos quanto aos OICVM residentes e não residentes.
Nos termos do artigo 22.º do EBF, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de Janeiro, estabelecia-se uma exclusão para efeitos de determinação do lucro tributável em sede de IRC dos dividendos de fonte portuguesa obtidos por OICVM que estivessem constituídos e operassem de acordo com a legislação nacional, isto é, que fossem residentes, determinando se ainda a sua isenção de derrama municipal e de derrama estadual. Em virtude destas isenções, a tributação dos OICVM residentes era “deslocada” para a sujeição às taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do código do IRC e, bem assim, para a esfera do Imposto do Selo, no âmbito do qual se determinava a aplicação de uma taxa de 0,0025%, por cada trimestre, sobre o valor líquido global dos OICVM aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos e uma taxa de 0,0125% sobre o valor líquido global dos restantes OICVM, sendo que, neste caso, a base tributável podia incluir dividendos distribuídos.
Pelo contrário, os OICVM estabelecidos noutros Estados-Membros, isto é, não residentes em Portugal, não estavam sujeitos a esta tributação em sede de Imposto do Selo, sendo antes tributados em sede de IRC quanto aos dividendos auferidos de fonte portuguesa. Em concreto, os OICVM não residentes eram tributados através de retenção na fonte à taxa liberatória de 25%, ao abrigo do artigo 4.º, n.º 2, do artigo 94.º, n.º 1, alínea c), n.º 3, alínea b), e n.º 5, e do artigo 87.º, n.º 4, todos do código do IRC, sendo certo que aquela taxa podia ser reduzida para 15% em função da aplicabilidade da CDT celebrada entre Portugal e o Grão Ducado do Luxemburgo. Acresce que, no caso do Requerente, ao estar isento de tributação no seu Estado de residência, não podia beneficiar do crédito de imposto previsto na CDT, o que significa que não podia neutralizar a tributação imposta através de retenção na fonte dos dividendos auferidos em Portugal.
Tendo presente este diferente método de tributação, a alegada discriminação que cumpre apreciar reside no facto de a legislação portuguesa à data dos factos prever uma diferença de tratamento entre os OICVM residentes e os OICVM não residentes em Portugal no que respeita à tributação dos dividendos auferidos de fonte portuguesa. Diferença de tratamento essa que resulta do facto de os dividendos pagos aos primeiros não serem sujeitos a retenção na fonte nem serem tributados em sede de IRC, enquanto que os dividendos pagos aos segundos são tributados em sede de IRC mediante retenção na fonte através da aplicação de uma taxa liberatória.
20. Esta questão da discriminação entre OICVM residentes e não residentes em Portugal e da alegada violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE foi analisada no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido pelo TJUE no âmbito do processo n.º C 545/19, em 17 de Março de 2022, e que determinou a suspensão da instância no presente processo arbitral por pendência de causa prejudicial nos termos acima descritos. No âmbito do referido acórdão entendeu-se, ao que aqui importa, o seguinte:
“36 Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.º, n.º 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.º 49 e jurisprudência referida).
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida)”.
Portanto, no entender do TJUE, o regime jurídico acima descrito consubstanciava uma discriminação de natureza a violar directamente o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE, já que estabelecia um regime de tributação menos favorável aos OICVM não residentes quando comparado com o regime aplicável aos OICVM residentes.
21. Não obstante, de acordo com a jurisprudência do TJUE, designadamente nos acórdãos Futura Participations (Processo n.º C-391/97), Marks & Spencer (Processo n.º C 446/03) e Denkavit II (Processo n.º C 170/05), a proibição da referida diferenciação pelo artigo 63.º do TFUE só se restringe aos casos em que ambas as situações sejam objectivamente comparáveis. Neste preciso sentido, registou-se no já citado acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido pelo TJUEno âmbito do processo n.º C 545/19, em 17 de Março de 2022, que:
“40 Não obstante, segundo o artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.º TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
41 Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 29 e jurisprudência referida].
42 O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.º, n.º 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 30 e jurisprudência referida]”.
Ora, tendo por base o enquadramento legislativo aplicável aos OICVM residentes e aos OICVM não resistentes que se evidenciou, cabe então determinar se a circunstância de os OICVM não residentes não estarem sujeitos a tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 11, do código do IRC e ao Imposto do Selo, mas apenas a tributação em sede de IRC que não se verificava quanto aos OICVM residentes, não os colocava numa situação objectivamente diferente em relação aos OICVM residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.
A este respeito referiu-se no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido pelo TJUE no âmbito do processo n.º C 545/19, em 17 de Março de 2022, que:
“49 Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.º 47 e jurisprudência referida).
(…) a legislação nacional em causa no processo principal não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes (v., por analogia, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.º 44 e jurisprudência referida).
(…) 53 A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.
54 Além disso, como salientou a advogada‑geral no n.º 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C‑252/14, EU:C:2016:402).
55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente.
56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.
57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa”.
Ainda a respeito da análise da comparabilidade objectiva das situações em questão, referiu o TJUE no referido acórdão que:
“60 Por outro lado, apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença de situação objetiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 49 e jurisprudência referida).
(…)na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.º 60 do presente acórdão, há que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.
72 Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.º 58 e jurisprudência referida).
73 Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.
74 Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.”.
Tendo por base as citadas considerações do TJUE, verifica-se que a situação na qual uma sociedade portuguesa paga dividendos a um OICVM residente em Portugal é comparável à situação que está na origem dos presentes autos, em que esses dividendos foram pagos ao Requerente, na sua qualidade de OICVM, residente no Grão-Ducado do Luxemburgo, accionista de sociedades residentes em Portugal, constituído e a operar ao abrigo da Directiva 2009/65/CE. Por conseguinte, os dividendos auferidos por um OICVM não residente como o é o Requerente devem ser tratados de modo equiparável aos dividendos auferidos por um OICVM residente em situação análoga, isto é, não pode existir discriminação entre OICVM accionistas residentes e não residentes no que respeita à tributação dos dividendos, sob pena de se verificar uma discriminação decorrente da “aplicação de regras diferentes a situações comparáveis”, tal como evidenciou o TJUE no acórdão ACT 4, proferido no âmbito do processo n.º C 374/04, em 12 de Dezembro de 2006.
22. Em todo o caso, a verdade é que decorre igualmente da jurisprudência daquele Tribunal que o princípio da livre circulação de capitais pode ser objecto de restrições, desde que motivadas por razões imperiosas de interesse geral, tais como a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional ou a necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os dois Estados‑Membros.
Quanto à necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional sublinhou o TJUE no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido no âmbito do processo n.º C 545/19, em 17 de Março de 2022, que para que tal justificação seja admissível “é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (considerando 78). Ora, no caso em concreto, “não há uma relação direta (…) entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo” (considerando 80). Por conseguinte, concluiu aquele Tribunal que a “necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional” (considerando 81).
Já no que respeita à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados salientou o TJUE no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido no âmbito do processo n.º C-545/19, em 17 de Março de 2022 que “a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros pode ser admitida quando o regime em causa visa prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território” (considerando 82). Isto ainda que “quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos” (considerando 83). Nesta medida, concluiu aquele Tribunal que “a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros também não pode ser acolhida” (considerando 83).
23. Em face de tudo o exposto, decidiu o TJUE no citado acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN que:
“O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.
Aqui chegados, é forçoso concluir-se que o artigo 63.º do TFUE não deve ser interpretado no sentido de admitir que os dividendos distribuídos por uma sociedade residente a um OICVM não residente sejam objecto de retenção na fonte e de aceitar que os dividendos distribuídos a um OICVM residente sejam isentos dessa retenção. O artigo 63.º do TFUE deve, pois, ser interpretado, no sentido facilitar a liberdade de circulação dos investimentos imobiliários e de não criar entraves ao movimento de capitais. Por conseguinte, o artigo 22.º, n.º 1 do EBF acaba por estabelecer um tratamento discriminatório prejudicial ao circunscrever o regime de isenção de tributação constante do n.º 3 aos fundos e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional e penalizar as entidades que operem no território nacional mas que são constituídas segundo o direito de um outro Estado-Membro.
Conforme se referiu, os Estados-Membros podem estabelecer distinções entre sujeitos passivos que se encontrem numa situação idêntica desde que isso não implique, segundo o disposto no artigo 65.º, n.º 3 do TFUE, uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais. De acordo com o acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido pelo TJUE no âmbito do processo n.º C 545/19, em 17 de Março de 2022, a diferença de tratamento fiscal apenas é compatível com as disposições do Tratado se respeitarem a situações objectivamente não comparáveis ou se se justificar por razões imperiosas de interesse geral (cfr. ainda considerando 58 do acórdão, de 10 de Fevereiro de 2011, proferido no âmbito dos processos n.º C-436/08 e n.º C-437/08). Ora, tal como resulta da jurisprudência do TJUE aplicável aos presentes autos, não se verifica que existam razões imperiosas de interesse geral que admitam o tratamento discriminatório prejudicial acima descrito ao OICVM não residentes em face dos OICVM residentes que se encontram em situações objectivamente comparáveis.
Acresce ainda que as disposições dos tratados que regem a União Europeia são directa e obrigatoriamente aplicáveis na ordem jurídica interna, por força do artigo 8.º, n.º 4 da CRP, prevalecendo sobre as normas do direito nacional, razão pela qual os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu (cfr., entre outros, o acórdão do STA proferido no âmbito do processo n.º 0188/15, em 1 de Julho de 2015.
Em face do exposto, perante a decisão do TJUE cujo entendimento é aplicável aos presentes autos, entende este Tribunal Arbitral que os actos tributários impugnados nos presentes autos são ilegais por assentarem numa disposição legal que viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º, n.º 1 do TFUE.
IV.2. Reembolso do imposto indevidamente pago e pagamento de juros indemnizatórios
24. Considerando a natureza essencialmente anulatória do contencioso arbitral tributário, ao Tribunal Arbitral compete declarar se os actos de liquidação de IRC impugnados nos presentes autos são total ou parcialmente anuláveis.
Tendo-se concluído pela ilegalidade do indeferimento do pedido de Reclamação Graciosa apresentado pelo Requerente e, consequentemente, pela ilegalidade dos actos de liquidação de IRC por retenção na fonte, ocorridas em Dezembro de 2017 e no período de 2018, aquando da colocação à disposição do Requerente de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português, cumpre ainda precisar a extensão do efeito da decisão anulatória.
Revela-se necessário precisar que “O processo arbitral tributário, à semelhança do que acontece com a impugnação judicial, é, essencialmente um contencioso de mera anulação. Não obstante, à semelhança do que sucede com o contencioso tributário impugnatório no âmbito dos tribunais tributários estaduais, existem alguns poderes condenatórios, estritamente ligados ao poder anulatório, relacionados com o direito a juros indemnizatórios, com o direito a indemnização por prestação indevida de garantia ou com o direito à restituição do imposto indevidamente pago.
Ressalvadas estas excepções, estaremos sempre perante um contencioso de mera anulação, o que significa que perante a impugnação de um acto tributário junto de um tribunal arbitral, a este tribunal caberá apenas considerar o acto legal ou ilegal e, em consequência, mantê-lo ou anulá-lo, cabendo à AT retirar as consequências da eventual decisão anulatória, no respeito pelo disposto no art.º 24.º do RJAT.”, conforme se referiu no acórdão arbitral de 1 de Junho de 2021, proferido no âmbito do processo n.º 694/2019 T.
25. Da ilegalidade do indeferimento do pedido de Reclamação Graciosa apresentado pelo Requerente e, consequentemente, da ilegalidade dos actos de liquidação de IRC por retenção na fonte, resulta para a AT a obrigação de restabelecer a situação que existiria se o acto tributário não tivesse sido praticado, isto é, proceder ao reembolso do imposto indevidamente pago.
De acordo com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
De acordo com o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, para além do reembolso do imposto indevidamente pago “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. Quanto à aplicação desta norma, é entendimento do STA, expresso no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0890/16, em 18 de Janeiro de 2017, que “[e]m caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) o erro passa a ser imputável à AT depois de eventual indeferimento da pretensão deduzida pelo contribuinte”.
Por conseguinte, por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios, calculados sobre a quantia que o Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais, nos termos do artigo 24.º, n.º 5 do RJAT, dos artigos 43.º, n.os 1 e 4 da LGT, 61.º, n.º 5 do CPPT e 100.º da LGT.
26. Relativamente ao cálculo dos juros indemnizatórios nos casos em que a tributação se efectiva pelo mecanismo de retenção na fonte, registou o STA no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0360/11.8BELRS, em 7 de Abril de 2021, que “afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.
Neste ponto, apenas, resta problematizar se, na situação versada (ou equiparáveis), o dies a quo deve corresponder ao da data da apresentação da impugnação administrativa (reclamação graciosa e/ou recurso hierárquico) ou ao do momento em que os competentes serviços da AT se pronunciam/comunicam o resultado da pronúncia ao contribuinte.
(…) julgamos, justo, adequado e seguro, assumir como marco, para identificar e fixar o disputado dies a quo, o prazo, fixado por lei, para a decisão do procedimento de reclamação graciosa (Em caso de recurso hierárquico, 60 dias - art. 66.º n.º 5 do CPPT.), isto é, o período, atualmente, de 4 meses”.
Aplicando este entendimento aos presentes autos, tendo a Reclamação Graciosa sido apresentada em 20 de Dezembro de 2019 e decidida em 28 de Agosto de 2020, isto é, para além do prazo legal de quatro meses fixado no n.º 1 do artigo 57.º da LGT, o termo inicial do direito a estes juros tem lugar desde o terminus do mesmo, ou seja, desde 21 de Abril de 2020, os quais deverão ser apurados em execução do presente acórdão, até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva, nos termos conjugados dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
V. DECISÃO
Nestes termos, acorda este Tribunal Arbitral em:
a) Anular a decisão de indeferimento do pedido de Reclamação Graciosa impugnado nos autos;
b) Anular parcialmente os actos de liquidação de IRC de 2017 e 2018 objecto daquele procedimento nos concretos termos acima expostos;
c) Condenar a Requerida a restituir ao Requerente o montante de imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios;
d) Condenar a Requerida nas custas do processo arbitral.
VI. VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 270.347,64.
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 4.896,00, a cargo da Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Lisboa, 26 de Abril de 2022.
Os Árbitros,
Carla Castelo Trindade
José de Campos Amorim (relator)
Ricardo Rodrigues Pereira