SUMÁRIO:
I. A violação do dever de fundamentação dos atos administrativos previsto no artigo 77.º da Lei Geral Tributária e n.º 3 do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa, tem como consequência a anulabilidade do ato, por vício de forma e ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea d), n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
1 - Relatório
1.1 – A..., contribuinte n.º..., residente na Rua ..., n.º..., no Porto, doravante designado por «Requerente», vem, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária), doravante apenas designado por «RJAT» e artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de tribunal arbitral singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida” ou “AT”).
1.2 - O pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 6 de setembro de 2021, tem por objeto a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2021..., relativa ao ano de 2019, efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, em 10 de abril de 2021, e a liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., conforme demonstração de acerto de contas a que se refere a compensação n.º 2021..., de 30 de abril de 2021, no montante global de 30 366,21 € (trinta mil, trezentos e sessenta e seis euros, e vinte e um cêntimos), com data limite de pagamento de 9 de junho de 2021.
1.3 – Com o pedido de pronúncia arbitral, o Requerente juntou 24 documentos, comprovativo do pagamento da taxa de arbitragem inicial e a respetiva procuração forense.
1.4 - O Requerente optou por não designar árbitro.
1.5 - O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à AT em 14 de setembro de 2021.
1.6 - O signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD como árbitro do tribunal arbitral singular, nos termos do disposto no artigo 6.º do RJAT, e comunicada a aceitação do encargo no prazo aplicável.
1.7 - Em 28 de outubro de 2021, as Partes foram notificadas dessa designação, não se tendo oposto à mesma, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
1.8 - Assim, em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o tribunal arbitral singular ficou constituído em 17 de novembro de 2021.
1.9 - A AT foi notificada, por despacho arbitral da mesma data, nos termos do artigo 17.º, n.º 1 do RJAT, para, no prazo de 30 dias, apresentar Resposta, querendo, e solicitar a produção de prova adicional.
1.10 - Mais foi notificada para, no mesmo prazo, apresentar o processo administrativo (PA) referido no artigo 111.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
1.11 – Em 4 de janeiro de 2022, a Requerida apresentou a sua Resposta, defendendo-se por impugnação, pugnando pela improcedência, por não provada, do pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação, com a consequente absolvição do pedido.
1.12 – Por despacho de 12 de janeiro de 2022, o Requerente foi notificado do eventual interesse na inquirição das testemunhas pelo mesmo arroladas, devendo no mesmo prazo indicar os artigos do Pedido de Pronúncia Arbitral em relação aos quais pretende que incida a inquirição das testemunhas arroladas.
1.13 - Considerando que as Partes não requereram a produção de qualquer prova, para além da testemunhal e da documental junta ao processo, o Tribunal Arbitral, face aos princípios da autonomia na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidades processuais, ínsitos nos artigos 16.º e 29.º, n.º 2, do RJAT, por despacho de 22 de fevereiro de 2022, dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do mesmo diploma e a inquirição das testemunhas arroladas pelo Requerente, determinando o prosseguimento do processo com alegações escritas, simultâneas, a apresentar pelas Partes, querendo, no prazo de dez dias.
1.14 - Pelo mesmo despacho foi determinado que a decisão arbitral seria proferida até ao termo do prazo a que alude o artigo 21.º/1 do RJAT, ou seja, até 17-05-2022, devendo até essa data o Requerente efetuar o pagamento da taxa de arbitragem subsequente, cfr. n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
1.15 - A Requerida alegou em 4 de março de 2022, concluindo pela legalidade das liquidações impugnadas, devendo o pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente, por não provado, e absolvida de todos os pedidos com as legais consequências.
1.16 – O Requerente alegou em 8 de março de 2022, concluindo pela ilegalidade das liquidações impugnadas e consequente anulação das mesmas, e condenação da Requerida no pagamento de indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia bancária.
Posição das Partes
Do Requerente -
Sustenta o seu pedido de pronúncia arbitral, sinteticamente, da seguinte forma:
Em 10 de março de 2004, o Requerente, juntamente com B... e C..., adquiriram à sociedade comercial “D..., Ld.ª”, com sede na Rua ..., n.º..., ..., no Porto, pelo preço de 60 000,00 €, na proporção de metade para o Requerente e um quarto para cada um dos restantes adquirentes, uma casa de um pavimento e logradouro, sita na ..., s/n.º, freguesia de ..., concelho do Porto, inscrita na respetiva matriz predial sob o artigo ..., com o valor patrimonial de 138,19 €.
Em 28 de outubro de 2015, o Requerente e restantes comproprietários celebraram com a sociedade comercial “E..., SA”, contribuinte n.º..., com sede na Avenida ..., n.º ..., Porto, um contrato de mediação imobiliária, em regime de exclusividade, nos termos do qual a sociedade mediadora obrigava-se a diligenciar no sentido de conseguir interessado na compra do referido prédio pelo preço de 750 000,00 €.
Com base nesse contrato, se a mediadora conseguisse interessado na compra ou se o negócio não se contretizasse por causa imputável aos clientes, seria devida uma comissão de 5% sobre o preço, cujo pagamento seria proporcional aos valores efetivamente recebidos, independentemente de ter sido celebrado contrato-promessa ou realizada a escritura pública de compra e venda.
Em 27 de junho de 2016, o Requerente e demais comproprietários, prometeram vender o prédio à sociedade comercial “F... Unipessoal, Ld.ª”, com sede na..., n.º ..., em Viana do Castelo, pelo preço de 600 000,00 €.
Na data do contrato-promessa seria pago, a título de sinal e princípio de pagamento, o montante de 180 000,00 €, na proporção de 90 000,00 € para o Requerente e 45 000,00 €, para cada um dos restantes comproprietários. O remanescente, no montante de 420 000,00 €, seria pago no ato da celebração do contrato definitivo de compra e venda.
Em novembro de 2017 deu entrada no Tribunal Judicial da Comarca do Porto (Juízo Central Cível do Porto) uma ação de reivindicação movida por G... e H... contra o Requerente e restantes comproprietários do prédio, sendo peticionada a condenação destes à restituição aos autores de uma porção do logradouro do referido prédio.
Em 29 de outubro de 2019, o Requerente e demais comproprietários do prédio supra identificado, venderam-no à sociedade comercial “I..., SA”, com sede na Rua ..., n.º..., ..., no Porto, pelo preço de 1 250 000,00 €.
Por carta de 30 de outubro de 2019, o Requerente e demais comproprietários do prédio informaram a sociedade “F...” da rescisão unilateral e definitiva do contrato-promessa de compra e venda, tendo instruído os seus bancos para procederem a três transferências bancárias no montante total de 360 000,00 €, correspondendo ao dobro do sinal globalmente recebido, para a conta da sociedade aberta na J..., o que foi efetivamente feito.
Assim, para obterem a mais-valia que registaram, o Requerente e demais comproprietários tiveram que assumir o pagamento do sinal em dobro, o que representou um custo total adicional para os promitentes vendedores de 180.000,00 €, correspondendo a um acréscimo de despesa para o Requerente de 90.000,00 €.
Também foi efetuado o pagamento da comissão à empresa imobiliária, no montante global de 43 050,00 €, correspondendo 21 525,00 € à parte do Requerente, conforme clausulado no respetivo contrato de mediação.
Em 30 de julho de 2020, o Requerente procedeu à entrega da declaração modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2019, com a identificação n.º..., bem como dos anexos “A”, relativo ao trabalho dependente/pensões; “G”, relativo às mais-valias e outros incrementos patrimoniais; “H”, relativo a benefícios fiscais e deduções; e “J”, relativo a rendimentos obtidos no estrangeiro.
No campo 4001 do Quadro 4 do referido anexo “G”, sob a rubrica «Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (art.º 10.º, n.º 1, al. a) do CIRS)», declarou, com base na quota-parte de metade, a aquisição do prédio em março de 2004, no montante de 30 000,00 €, a realização do mesmo em outubro de 2019, no montante de 625 000,00 €, bem como as despesas e encargos suportados, no montante de 145 413,02 €, correspondendo 90 000,00 € à indemnização paga à “F...” pela rescisão unilateral e definitiva do contrato-promessa de compra e venda; 21 525,00 € à comissão paga à imobiliária por negócio não concretizado; e 33 888,02 € respeitantes a outras despesas e encargos.
A referida declaração foi liquidada com o n.º 2020..., no montante de 113 977,85 €, com data limite de pagamento em 31-08-2020, sendo efetuado o pagamento em 25-08-2020, através da referência ... .
Posteriormente, o Requerente foi notificado do despacho de 26-03-2021, proferido pelo Chefe de Finanças de Porto ..., no uso de competência delegada, o qual determinou a correção oficiosa da declaração de rendimentos apresentada.
Assim, do total de despesas e encargos declarada e documentada, no valor de 145.413,02 €, a AT apenas aceitou o montante de 33.888,02€, conforme do mesmo documento melhor consta.
Isto é, a AT não aceitou a totalidade dos valores declarados no quadro 4 do anexo G, coluna de “despesas e encargos”. Mais concretamente, a AT não aceitou as despesas e encargos suportados pelo Requerente com a comissão paga à K..., bem como com a indemnização paga por negócio não concretizado, tudo no valor de 111.525,00 €.
Em 10 de abril de 2021 foi efetuada a liquidação n.º 2021... relativa a IRS e a liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., conforme demonstração de acerto de contas a que se refere a compensação n.º 2021..., de 30 de abril de 2021, no montante global de 30 366,21 €, com data limite de pagamento de 9 de junho de 2021, tendo o Requerente optado por não efetuar o pagamento e deduz pedido de pronúncia arbitral, suspendo o processo executivo através de garantia bancária, por entender que a liquidação estava ferida de vício de forma por falta de fundamentação e vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, na medida em que tais despesas e encargos não deviam ser desconsiderados.
Com efeito o despacho de 26-03-2021 do Chefe de Finanças de Porto ... não esclarece quais os requisitos alegadamente incumpridos pelo Requerente, o que consubstancia falta de fundamentação, pois não especificou os fundamentos de facto e de direito da decisão, impedindo assim o contribuinte de contrariar essa alegação.
Na verdade, apenas é referido que “os valores declarados no quadro 4 do anexo G, incluem valores que não se enquadram no art. 51º, n.º 1, alíneas a) e b) do CIRS”.
Ou seja, o despacho não é minimamente elucidativo das razões que levaram a AT a decidir como decidiu, pelo que se está perante nulidade por falta de fundamentação.
Nulidade que deve ser declarada pelo Tribunal Arbitral, com todas suas consequências legais, uma vez que ocorre violação do princípio plasmado no artigo 268º da CRP e acolhido nos artigos 125º do CPA e 77 º da LGT.
Subsidiariamente requer a anulação da referida liquidação, por vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, na parte relativa à desconsideração das despesas e encargos antes referidos.
Requer ainda a condenação da AT em indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia bancária, nos termos do artigo 53.º da LGT.
Da Requerida -
Defendendo-se por impugnação, invoca os seguintes argumentos:
O thema decidendum resume-se apenas a uma questão contratual entre terceiros, não invocável perante a AT, uma vez que o Requerente na sua exclusiva esfera de obrigações, não cumpriu o contratado havendo prometido, a esse mesmo terceiro, vender-lhe o bem, tendo inclusive recebido o sinal, contrariando o princípio geral subjacente ao direito das obrigações, i.e., aquilo que está estabelecido no contrato e assinado pelas partes deve ser cumprido pelo que terá, na sua esfera privada, de suportar os custos que advieram do seu não cumprimento.
Por outro lado não encontra qualquer respaldo legal, seja na letra da lei, seja na mens legis, seja, numa visão mais holística, naquilo que são os princípios estruturantes da tributação do rendimento.
Com efeito a lei refere-se a despesas necessárias e efetivamente praticadas relativas à alienação do bem, e a despesa em causa não foi praticada/incorrida na alienação do bem, uma vez que estamos perante outro ato de alienação e tal despesa não foi incorrida no âmbito dessa alienação, mas sim no âmbito de outra que não ocorreu por exclusiva responsabilidade sua.
Na situação concreta, não se encontra em questão a identificação do valor de aquisição e de realização do imóvel alienado em 2019, sendo a matéria controvertida relativa ao montante de despesas e encargos a considerar nos termos do art.º 51.º, al. a) CIRS, para efeitos da determinação do valor da mais-valia sujeita a imposto, na medida em que podem acrescer ao valor de aquisição.
Na determinação da mais valia sujeita atende-se ao valor de realização e de aquisição e, tendo presente o principio da tributação do rendimento liquido que subjaz à previsão deste art.º 51 CIRS, acresce ao valor de aquisição os custos, despesas e demais valores efetivamente suportados que, intrinsecamente ligados ao bem, sejam indispensáveis à realização da transação e obtenção do incremento patrimonial, igualmente devendo estes encargos mostrarem-se devidamente documentados.
Assim e porque a expressão “despesas necessárias” constante da alínea a) do artigo 51.º encerra alguma margem de indeterminação, o seu preenchimento, a recair sobre a Administração Tributária, atende a três considerações fundamentais que se prendem com o facto do rendimento a tributar como mais-valia dever ser, sempre que possível, um rendimento líquido por forma a evitar-se a dupla tributação económica, igualmente sendo de acautelar-se eventuais esquemas de fraude fiscal, sempre procurando o suporte em elementos objetivos por forma a afastar qualquer margem de discricionariedade em nome de princípios como o da igualdade e da justiça.
Deste modo, a consideração de despesas e encargos têm de mostrar-se absolutamente necessários para a concretização da transação do bem e assumirem ligação intrínseca com esse mesmo bem, no caso um imóvel, sendo que estas realidades devem poder ser apuradas o mais objetivamente possível.
O Requerente defende, contrariamente ao que os serviços tributários consideraram aquando do apuramento oficioso IRS ora controvertido, dever ser atendido ao abrigo do art.º 51.º, o montante suportado com a comissão paga à sociedade imobiliária, ainda que a mesma não tivesse tido qualquer “papel” no negócio de alienação da propriedade do imóvel de que decorre o rendimento de mais-valia e ainda o valor do sinal em dobro que ele e demais comproprietários tiveram de devolver em razão da rescisão unilateral do contrato inicialmente acordado, de modo voluntário.
Verifica-se, deste modo, que a sociedade mediadora apenas interveio na indicação de um suposto interessado no imóvel, cujo negócio não foi concretizado, quando o pagamento de uma comissão apenas pode ser ponderado se o serviço de mediação se mostrar indispensável e absolutamente conexo com a transação concreta geradora do incremento patrimonial, o que não foi o caso.
Do mesmo modo, a devolução do sinal igualmente se traduz numa atividade com entidade que não a adquirente do bem e interveniente na transação, tal como não assume a natureza intrínseca e indispensável ao negócio que veio a realizar-se a final.
Com efeito, o encargo suportado com a devolução do sinal em dobro revela-se não conexo com a transação de alienação do imóvel que veio a ser realizada, sendo que encontram-se em questão transações distintas, com entidades igualmente diferenciadas, porquanto uma configura um contrato de compra e venda de um bem imóvel, passível de gerar um rendimento enquadrado na categoria “G”, e outro, a devolução do sinal, prende-se com um comportamento voluntário assumido pelos proprietários do imóvel que, tendo optado pela rescisão unilateral de um contrato promessa, necessariamente se submeteram ao cumprimento das consequências inerentes a este comportamento.
O argumento de que a celebração da transação de alienação apenas foi possível com a devolução do sinal mostra-se sem sentido na medida em que esta configura uma consequência do incumprimento de um contrato voluntariamente celebrado, que não configura condição impeditiva da legal celebração da escritura de alienação.
Relativamente ao argumento da falta de fundamentação, os serviços concluíram que parte dos encargos não poderiam ser considerados no apuramento IRS com fundamento no facto dos “valores declarados no Q4 do anexo G não se enquadrarem no art.º 51º, al- a) e b) CIRS”, mostra-se igualmente sem substância, porquanto não apenas o Requerente conhece exatamente quais os encargos não considerados como o facto da sua não aceitação derivarem de não cumprirem os requisitos explícitos no normativo em questão, i.e., não são despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação do bem (texto da norma – art.º 51).
Termina pugnando pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral e absolvição da Requerida, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários impugnados (IRS e juros compensatórios), uma vez que a liquidação controvertida consubstancia uma correta interpretação e aplicação do direito aos factos, não padecendo de vício de forma e de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito.
2. Saneamento
2.1 - As Partes têm personalidade e capacidades judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
2.2 - O processo não enferma de nulidades.
2.3 - Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
2.4 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer e decidir o pedido, cfr. artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
3. Matéria de Facto
3.1 Factos provados
Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
a) Em 10 de março de 2004, por escritura de compra e venda celebrada no ... Cartório Notarial do Porto, o Requerente, casado com L..., sob o regime da separação; B..., contribuinte n.º ...; e C..., contribuinte n.º..., adquiriram à sociedade comercial “D...”, contribuinte n.º ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., no Porto, pelo preço de 60 000,00 €, na proporção de metade para o Requerente e um quarto para cada um dos restantes adquirentes, uma casa de um pavimento e logradouro, sita na Travessa ..., s/n.º, freguesia de ..., concelho do Porto, inscrita na respetiva matriz predial sob o artigo ..., com o valor patrimonial de 138,19 €, cfr., documento n.º 14 junto pelo Requerente ao pedido de pronúncia arbitral (ppa), cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
b) Em 28 de outubro de 2015, o Requerente e demais comproprietários celebraram com a sociedade comercial “E..., SA”, contribuinte n.º ..., com sede na ..., n.º..., Porto, o contrato de Mediação Imobiliária n.º..., nos termos da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, em regime de exclusividade, nos termos do qual a sociedade mediadora obrigava-se a diligenciar no sentido de conseguir interessado na compra do prédio supra identificado, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ... e anteriormente sob o artigo ..., pelo preço de 750 000,00 €, cfr. cláusula 2.ª do documento n.º 22 junto ao ppa;
c) Na cláusula 5.ª do contrato supra, com o título (Remuneração), é referido:
“1. A remuneração será devida se a Mediadora conseguir interessado que concretize o negócio visado pelo presente contrato e também, no caso em que o negócio não se concretize por causa imputável ao cliente.
2. Os Segundos Contratantes (os proprietários do prédio) obrigam-se a pagar à Mediadora a título de remuneração: 5% sobre o preço pelo qual o negócio é efetivamente concretizado acrescida de IVA à taxa legal em vigor.
3. O pagamento da remuneração será proporcional aos valores efetivamente recebidos pelos Segundos Contratantes, independentemente de ter sido celebrado contrato-promessa ou realizada a escritura pública de compra e venda”;
d) Em 27 de junho de 2016, o Requerente e demais comproprietários, prometeram vender o prédio identificado na alínea a) supra, à sociedade comercial “F..., Ld.ª”, contribuinte n.º..., com sede na ..., n.º..., em Viana do Castelo, pelo preço de 600 000,00 €, cfr. contrato-promessa de compra e venda que constitui o documento n.º 15 junto ao ppa;
Na cláusula quarta do referido contrato ficou acordado que o preço seria pago da seguinte forma: A quantia de 180 000,00 €, na data do contrato-promessa (27-06-2016), a título de sinal e princípio de pagamento, na proporção de 90 000,00 € para o primeiro outorgante (o Requerente nos presentes autos) e de 45 000,00 €, para cada um dos segundo e terceiro outorgantes. A quantia remanescente de 420 000,00 € seria paga no ato da celebração do contrato definitivo de compra e venda.
Na cláusula nona ficou convencionado a suscetibilidade de aplicação do regime da execução específica, nos termos do artigo 830.º do Código Civil.
e) Em 30 de junho de 2016, a sociedade mediadora emitiu em nome do Requerente a fatura n.º 1 1600/000196, no montante de 5 535,00 € já acrescido de IVA à taxa legal (1 035,00 €), com a seguinte descrição, cfr. documento n.º 23 junto ao ppa;
f) Em 12 de fevereiro de 2020, a sociedade mediadora emitiu em nome do Requerente a fatura n.º FAV 2020/75, no montante de 15 990,00 € já acrescido de IVA à taxa legal (2 990,00 €), com a seguinte descrição, cfr. documento n.º 24 junto ao ppa;
g) Em 3 de novembro de 2017 deu entrada no Tribunal Judicial da Comarca do Porto (Juízo Central Cível do Porto) uma ação de reivindicação com o n.º .../17...T0PRT em que são autores, G... e H... e réus, o Requerente A... e restantes comproprietários do prédio supra identificado, em que é peticionado a condenação dos réus à restituição aos autores de uma porção do logradouro do referido prédio, cfr. documento n.º 16 junto ao ppa;
h) Por título do contrato de compra e venda outorgado na Conservatória do Registo Predial do Porto, em 29 de outubro de 2019, o Requerente e demais comproprietários do prédio supra identificado, venderam-no à sociedade comercial “I..., SA”, contribuinte n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., sala ..., no Porto, pelo preço de 1 250 000,00 €, tendo as partes declarado ter havido intervenção no negócio do mediador imobiliário M..., detentor da licença AMI n.º ..., cfr. documento n.º 17 junto ao ppa;
i) Por carta de 30 de outubro de 2019, o Requerente e demais comproprietários do prédio supra identificado informaram a sociedade “F... Unipessoal, Ld.ª”, da rescisão unilateral e definitiva do contrato-promessa de compra e venda de 27 de junho de 2016, referido na alínea d) supra, no qual a sociedade era promitente compradora do prédio supra referido, tendo instruído os seus bancos para procederem a três transferências bancárias no montante total de 360 000,00 €, correspondendo ao dobro do sinal globalmente recebido, para a conta da sociedade aberta na J..., cfr. documento n.º 18 junto ao ppa;
j) Em 30 de outubro de 2019, o N... transferiu da conta do Requerente para a da sociedade J..., a importância de 180 000,00 €, cfr. documento n.º 19 junto ppa;
k) Do mesmo modo, em 31 de outubro de 2019, o N... transferiu da conta do comproprietário B... para a da sociedade F..., a importância de 90 000,00 €, cfr. documento n.º 20 junto ao ppa;
l) Assim como, na mesma data de 31 de outubro de 2019, o banco O... transferiu da conta do comproprietário C... para a da “F...”, a importância de 90 000,00 €, cfr. documento n.º 21 junto ao ppa;
m) Em 30 de julho de 2020, o Requerente procedeu à entrega da declaração modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2019, com a identificação n.º..., bem como dos anexos “A”, relativo ao trabalho dependente/pensões; “G”, relativo às mais-valias e outros incrementos patrimoniais; “H”, relativo a benefícios fiscais e deduções; e “J”, relativo a rendimentos obtidos no estrangeiro, cfr. documento n.º 1 junto ao ppa;
n) No campo 4001 do Quadro 4 do referido anexo “G”, sob a rubrica «Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (art.º 10.º, n.º 1, al. a) do CIRS)», declarou, com base na quota-parte de metade, os valores e datas de realização e aquisição do referido prédio, bem como as despesas e encargos suportados, identificando matricialmente o prédio e a percentagem da quota-parte respetiva, cfr. documento n.º 1 junto ao ppa;
Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (art.º 10.º, n.º 1, al. a), do CIRS
Realização Aquisição Despesas e encargos
Ano Mês Valor Ano Mês Valor
2019 10 625 000,00 2004 3 30 000,00 145 413,02
Identificação matricial dos bens
Freguesia (código) Tipo Artigo Quota-parte %
... U ... 50,00
o) A declaração modelo 3 de IRS supra referida foi liquidada com o n.º 2020 ..., no montante de 113 977,85 €, com data limite de pagamento em 31-08-2020, cfr. documento n.º 2 junto ao ppa;
p) O montante liquidado foi pago em 25-08-2020, através da referência..., cfr. documento n.º 3 junto ao ppa;
q) Por carta registada em 03-08-2020 (registo n.º RY...PT) o Requerente foi notificado pela AT que a declaração de rendimentos relativa ao ano de 2019, com a identificação .../54, foi selecionada para análise podendo, no prazo de 15 dias, prestar os devidos esclarecimentos relacionados com os valores das despesas apresentadas, valor da alienação e data de aquisição do imóvel alienado, cfr. documento n.º 4 junto ao ppa;
r) Em 11-08-2020, o Requerente, através do Portal das Finanças, enviou os documentos de suporte dos valores das despesas suportadas com a alienação do imóvel, informando que parte das despesas eram partilhadas com os restantes comproprietários e outras suportadas apenas por si, cfr. documento n.º 5 junto ao ppa;
s) Por carta registada em 29-12-2020 (registo n.º RH...PT) o Requerente foi notificado para, no prazo de 15 dias, exercer, querendo, o direito de audição prévia previsto no artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT), cfr. documento n.º 6 junto ao ppa e Processo Administrativo (PA);
t) Direito que exerceu em 13-01-2021, através do Portal das Finanças, cfr. documento n.º 5, anexando os documentos de suporte, cfr. documento n.º 7 junto ao ppa.
u) Por despacho do Chefe do Serviço de Finanças do Porto-..., de 26 de março de 2021, no uso de competência delegada, notificado à Requerente por ofício registado com aviso de receção (registo RH...PT), de 21-04-2021, foi determinada a correção oficiosa da declaração supra referida, nos termos do n.º 4 do artigo 65.º do CIRS, no sentido de eliminar os valores declarados no quadro 4 do anexo G, coluna das despesas e encargos, nomeadamente a comissão paga à “K...” e a indemnização por negócio não concretizado no valor de 111 525,00 €, constantes do ponto 3 da informação de 25-03-2021 que fundamenta o referido despacho, cfr. documento n.º 8 junto ao ppa.
v) Em 10 de abril de 2021, a Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu à liquidação adicional do IRS com o n.º 2021..., relativo ao ano de 2019, no montante 143 465,10 € e à liquidação de juros compensatórios n.º 2021 ..., no montante de 878,96 €, no valor global de 144 344,06 €, conforme demonstração de acerto de contas a que se refere a compensação n.º 2021 ..., de 30 de abril de 2021, no montante global de 30 366,21 €, com data limite de pagamento de 9 de junho de 2021, cfr. documentos n.ºs 9, 10 e 11 juntos ao ppa.
w) O Requerente não efetuou o pagamento do IRS liquidado pelo que foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ...2021..., o qual ficou suspenso nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 169.º do CPPT, face à garantia bancária n.º GAR/... prestada pelo Banco N..., SA, em 9 de julho de 2021, no montante de 38 738,78 €, cfr. documentos n.ºs 12 e 13 juntos ao ppa.
x) Em 6 de setembro de 2021 o Requerente apresentou um pedido de constituição do Tribunal Arbitral, ao abrigo da alínea a) do número 1 do artigo 2.º e do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, o qual deu origem ao presente processo, peticionando a nulidade do ato de liquidação, por falta de fundamentação;
y) Ou, se assim não fosse entendido, a anulação da liquidação adicional de IRS e dos respetivos juros compensatórios, bem como a indemnização que for devida pelos prejuízos resultantes da prestação da garantia bancária, nos termos do artigo 53.º da LGT.
z) Com o pedido juntou 24 documentos, procuração forense e comprovativo do pagamento da taxa de arbitragem inicial.
3.2 Factos não provados
Não há factos relevantes para a decisão da causa que se devam considerar como não provados.
3.3 Motivação
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor [(cfr. artigos 596º, nº 1 e 607º, nºs 2 a 4 do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT)] e consignar se a considera provada ou não provada (cfr. artigo 123º, nº 2 do CPPT).
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas (cfr. artigo 607.º, n.º 5 do CPC). Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
Assim, a convicção do Tribunal fundou-se no acervo documental junto aos autos bem como nas posições assumidas pelas partes.
4 - Matéria de Direito (fundamentação)
Objeto do litígio
A questão que constitui o thema decidenduum reconduz-se a saber se as correções efetuadas à declaração modelo 3 de IRS do ano de 2019, no que respeita às despesas e encargos com a valorização do imóvel alienado, foram precedidas de notificação pela AT dos respetivos fundamentos, omissão essa que poderá ter como consequência a anulabilidade do ato de liquidação, por vício de forma.
Seguidamente, caso o ato de liquidação se mostre devidamente fundamentado, importará saber se tais despesas e encargos se subsumem nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 51.º do CIRS.
Questões a decidir:
- Da fundamentação da liquidação impugnada;
- Da (i)legalidade da liquidação impugnada; e
- Do pedido de condenação da AT no pagamento de indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia bancária.
4.1 - Da fundamentação da liquidação impugnada –
Refere o n.º 1 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária (LGT), que «A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária».
Também o n.º 2 do mesmo preceito legal refere que «A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo».
Este dever de fundamentação dos atos administrativos é corolário do n.º 3 do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que prescreve: «Os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos».
Deste modo, fundamentar um ato administrativo, «consiste em indicar, concretamente, as razões de direito e de facto por que se tomou a decisão em determinado sentido» .
Porém, «as exigências de fundamentação do acto tributário não são rígidas, variando de acordo com o tipo de acto e as circunstâncias concretas em que este foi proferido como seja a participação do interessado no procedimento e a extensão dessa participação – não tendo de reportar, por princípio, todos os factos considerados, todas as reflexões feitas ou todas as vicissitudes ocorridas durante essa deliberação ».
Segundo Diogo Freitas do Amaral , «A fundamentação de um acto administrativo consiste na enunciação explícita das razões que levaram o seu autor a praticar esse acto ou a dotá-lo de certo conteúdo”.
Para José Carlos Vieira de Andrade « (…) o dever da fundamentação expressa obriga a que o órgão administrativo indique as razões de facto e de direito que o determinaram a praticar aquele acto, exteriorizando, nos seus traços decisivos, o procedimento interno de formação da vontade decisória».
Como referem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa «No que concerne à fundamentação, a CRP garante aos administrados o direito a fundamentação expressa e acessível de todos os actos administrativos (conceito em que se inserem os actos tributários, à face do preceituado no art. 120.º do CPA) que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos (art. 268.º, n.º 3) (…)».
Em matéria tributária, o dever de fundamentação dos actos decisórios de procedimentos tributários e dos actos tributários é concretizado no artigo 77.º da LGT.
Para ser atingido tal objectivo, a fundamentação deve proporcionar ao destinatário do acto a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela autoridade que o praticou, de forma a poder saber-se claramente as razões por que se decidiu da forma que decidiu e não de forma diferente.
No mesmo sentido podem ver-se, entre muitos outros, os seguintes acórdãos do STA:
Acórdão de 21-06-2017 (Processo n.º 068/17):
«A exigência legal e constitucional de fundamentação do acto tributário, decorrente dos art.s 268º da CRP, 77º da LGT e 125º do CPA, visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a Administração a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa.
A fundamentação, ainda que feita por remissão, não pode deixar de ser clara e congruente e de enunciar as razões de facto e de direito que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do acto».
Acórdão de 07-06-2017 (Processo n.º 0723/15):
« (…) No que concerne aos actos tributários de liquidação, o nº 2 do artº. 77º da LGT estabelece os parâmetros mínimos de fundamentação. Estes actos podem conter uma fundamentação sumária, que, no entanto, não pode deixar de conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo».
Acórdão de 09-09-2015 (Processo n.º 01173/14):
«A AT tem o dever legal de fundamentar os actos de liquidação (cfr. art. 268.º da CRP, bem como os art.s 21.º do CPT, 125.º do CPA e 77.º da LGT). A fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma sucinta, não pode deixar de ser clara, congruente e de contemplar os aspetos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do ato».
Comecemos por transcrever a alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º do CIRS, na redação em vigor à data dos factos (ano de 2019):
“Despesas e encargos
1 - Para a determinação das mais-valias sujeitas a imposto, ao valor de aquisição acrescem:
a) Os encargos com a valorização dos bens, comprovadamente realizados nos últimos 12 anos, e as despesas necessárias e efetivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação, bem como a indemnização comprovadamente paga pela renúncia onerosa a posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a esses bens, nas situações previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º”.
A alínea b) aplica-se nas situações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, ou seja, à alienação de partes sociais e de outros valores mobiliários e à alienação onerosa da propriedade intelectual ou industrial, pelo que é inaplicável no caso sub judice.
Nos artigos 13 a 16 e 22 a 25 do ppa, o Requerente refere:
“13. Posteriormente, o Requerente foi notificado do despacho de 26-03-2021, proferido pelo Chefe de Finanças de Porto ..., no uso de competência delegada, o qual determinou a correção oficiosa da declaração de rendimentos apresentada, referente a 2019 – Doc. 8.
14. Na verdade, do total de despesas e encargos declarada e documentada, no valor de € 145.413,02, a AT apenas aceitou o montante de € 33.888,02, conforme do mesmo documento melhor consta.
15. Isto é, a AT não aceitou a totalidade dos valores declarados no quadro 4 do anexo G, coluna de “despesas e encargos”.
16. Mais concretamente, a AT não aceitou as despesas e encargos suportados pelo Requerente com a comissão paga à K..., bem como com a indemnização paga por negócio não concretizado, tudo no valor de € 111.525,00 – cf. ponto 3 da informação que fundamenta o despacho de 26-03-2021.
22. Desde logo, o despacho de 26-03-2021 (cf. Doc. 8) não esclarece quais os requisitos alegadamente incumpridos pelo Requerente, o que consubstancia falta de fundamentação, pois não especificou os fundamentos de facto e de direito da decisão, impedindo assim o contribuinte de contrariar essa alegação.
23. Na verdade, apenas é referido que “os valores declarados no quadro 4 do anexo G, incluem valores que não se enquadram no art. 51º, n.º 1, alíneas a) e b) do CIRS” – cf. ponto 2 do Doc. 8.
24. Ou seja, o despacho não é minimamente elucidativo das razões que levaram a AT a decidir como decidiu, pelo que se está perante nulidade por falta de fundamentação.
25. Nulidade que deve ser declarada pelo Tribunal Arbitral, com todas suas consequências legais, uma vez que ocorre violação do princípio plasmado no art. 268º da CRP e acolhido nos arts. 125º do CPA e 77 º da LGT”.
Apreciando:
Compulsado o documento n.º 8 constata-se que na informação de 25 de março de 2021 (Processo n.º ...2021...) que fundamentou o despacho do Chefe do Serviço de Finanças do Porto ..., de 26 do mesmo mês de março, é referido no ponto 2: “Da análise da declaração de IRS apresentada e dos dados constantes da base de dados da AT verifica-se que: - Os valores declarados no quadro 4 do anexo G, incluem valores que não podem ser considerados, uma vez que não se enquadram no artigo 51.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CIRS”.
E no ponto 3 da mesma informação: “Assim, para resolução da divergência e nos termos do n.º 4 do art.º 65.º do CIRS proponho a correção oficiosa da declaração com a identificação ..., através de recolha de DCU, promovendo as seguintes correções:
- Eliminar os valores declarados no quadro 4 do anexo G, coluna das despesas nomeadamente, comissão paga à “K...” e indemnização por negócio não concretizado, no valor de 111.525,00€”.
Aderindo in totum à informação sob escrutínio, o referido despacho foi proferido nos seguintes termos: “Visto, concordo. Proceda como vem proposto. D.N. e conhecimento ao interessado”.
É indubitável que era do conhecimento do Requerente quais as despesas e encargos que a AT não considerou como enquadradas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 51.º do CIRS. Basta consultar o artigo 16 do seu ppa onde é referido que a AT não aceitou as despesas e encargos suportados pelo Requerente com a comissão paga à K... bem como a indemnização paga por negócio não concretizado, no valor global de € 111.525,00. E consultar, ainda, o ponto 3 da informação supra referida que fundamenta o despacho de 26-03-2021, oportunamente notificada ao Requerente, conforme alínea u) do probatório, onde é proposta a correção à declaração de IRS no sentido de eliminar do quadro 4 do anexo “G”, na coluna das despesas, as referidas despesas e encargos.
Porém não é referido na informação da AT o motivo de tais despesas não terem enquadramento nas referidas alíneas do n.º 1 do artigo 51.º do CIRS.
Ou seja, com a notificação da informação supra, o Requerente fica a saber quais as despesas e encargos a eliminar do anexo “G” da declaração, mas ignora a motivação, o porquê de tais despesas não terem enquadramento no referido preceito legal.
Com efeito, de acordo com a jurisprudência do STA, “um ato está devidamente fundamentado sempre que o administrado, colocado na sua posição de destinatário normal – o bonus pater familia de que fala o artigo 487º, n.º 2 do Código Civil – fica esclarecido acerca das razões que o motivaram.” (in Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 016217 de 28-10-1998).
Situação que não se verificou no caso presente, pelo que é de concluir que o Requerente ignorou em absoluto o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela AT para a prática de tal ato.
A violação do dever de fundamentação dos atos administrativos previsto no artigo 77.º da LGT e n.º 3 do artigo 268.º da CRP, tem como consequência a anulabilidade do ato, por vício de forma e ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea d), n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Assim, procede o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação das correções efetuadas no quadro 4, campo 4001, coluna “despesas e encargos”, do Anexo “G” da declaração modelo 3 de IRS, do ano de 2019, com a consequente anulação da liquidação adicional n.º 2021..., no montante de 30 366,21 €.
4.2 - Da (i)legalidade da liquidação impugnada -
A apreciação desta questão fica prejudicada pela solução dada à questão anterior, cfr. n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil, aplicado supletivamente pela alínea e), n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
4.3 - Do pedido de condenação da AT no pagamento de indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia bancária -
O Requerente peticiona ainda o reconhecimento do direito a indemnização pelos encargos suportados com a prestação da garantia bancária n.º GAR/... emitida pelo Banco N..., SA, em 9 de julho de 2021, no montante de 38 738,78 €, com vista a obter, nos termos do artigo 169.º do CPPT, a suspensão do processo de execução fiscal supra referenciado.
Nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
A imputabilidade aos serviços do erro cometido é determinante para aferir a responsabilidade extracontratual no pagamento de juros indemnizatórios.
Porém se a anulação for baseada unicamente em vício formal de falta de fundamentação tal não implica a existência de erro de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, pelo que inexiste, neste caso, direito a juros indemnizatórios, cfr., entre outros, o acórdão do STA tirada no Processo n.º 087/18.0BALSB, de 28-11-2018.
Do mesmo modo, o devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida, cfr. n.º 1 do artigo 53.º da LGT.
No entanto o prazo referido não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, cfr, n.º 2 do mesmo artigo.
De igual forma se a anulação tiver por fundamento vício de forma a indemnização só é devida se a garantia tiver sido mantida por mais de três anos .
Deste modo considerando que ainda não decorreram três anos desde a data em que a garantia foi prestada (09 de julho de 2021), não há lugar a indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação da mesma, pelo que, nesta parte, improcede o pedido.
***
5 - Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar totalmente procedente, por vício formal de falta de fundamentação, o pedido de anulação da liquidação adicional de IRS n.º 2021..., relativa ao ano de 2019, efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, em 10 de abril de 2021, e a liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., conforme demonstração de acerto de contas a que se refere a compensação n.º 2021..., de 30 de abril de 2021, no montante global de 30 366,21 €;
b) Julgar improcedente o pedido de pagamento de indemnização pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia bancária; e
c) Condenar a Requerida nas custas do processo.
Valor do Processo
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), fixa-se ao processo o valor de 30 366,21 € (trinta mil, trezentos e sessenta e seis euros e vinte e um cêntimos).
Custas
Nos termos do artigo 4.º, n.º 4 do citado RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, fixa-se o montante das custas em 1 836,00 € (mil, oitocentos e trinta e seis euros), nos termos da Tabela I, anexa àquele regulamento, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique.
Lisboa, CAAD, 19 de abril de 2022.
O Árbitro,
(Rui Ferreira Rodrigues)