Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 483/2021-T
Data da decisão: 2022-04-11  IRS  
Valor do pedido: € 46.897,54
Tema: IRS – Mais-valias imobiliárias — art. 13.º, 6, CIS — Valor de aquisição — Consolidação da propriedade com o usufruto.
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DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Ricardo Marques Candeias, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, decide nos termos que se seguem:

 

I – RELATÓRIO

 

A.

1.            No dia 10 de agosto de 2021, A..., contribuinte nº ..., com domicílio na ..., n.º ..., ..., ...-... Cascais, integrado no âmbito territorial do Serviço de Finanças de Cascais ... (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), pedindo a anulação dos atos de liquidação de IRS n.º 2018 ... e 2019 ..., relativos, respetivamente, aos exercícios de 2016 e 2018, por ilegalidade dos mesmos quanto ao imposto liquidado em excesso por referência ao rendimento da categoria G (“incrementos patrimoniais”), em concreto mais-valias imobiliárias, respetivamente, de € 9.287,41 e de € 37.610,13, bem como a restituição dos montantes pagos e ainda ao pagamento dos juros indemnizatórios respetivos.

2.            No dia 12 de agosto de 2021 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado aos Requerentes e à AT.

3.            O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, 1, e artigo 11.º, 1, b), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4.            Em 06 de outubro de 2021 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.

5.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 26 de outubro de 2021.

6.            No dia 22 de novembro de 2021, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta, defendendo-se por impugnação.

7.            A 25 de janeiro de 2022 o Requerente veio pedir a ampliação da instância, de modo a que seja anulado também o ato de liquidação adicional de IRS n.º 2022..., consequente e executório da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa respeitante ao IRS 2018.

8.            Notificada para o efeito, a AT não se opôs à requerida ampliação, tendo a mesma sido admitida por despacho de 3 de março de 2022.

9.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art. 16.º, e n.º 2 do art. 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, tendo as partes sido notificadas para, querendo, apresentarem, sucessivamente, alegações escritas.

10.          O Requerente apresentou as suas alegações por requerimento datado de 14 de março de 2022, e ainda dois documentos, tendo a Requerida solicitado a junção das suas alegações por requerimento datado de 22 de março de 2022.

11.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao dia 15 de abril de 2022, como data prevista para prolação da decisão arbitral.

 

B. Posição das partes

 

                Para fundamentar o seu pedido alega o Requerentes, em síntese, que, residindo em Portugal, vendeu i) 25% da fração autónoma designada pela letra “C”, de prédio sito em Lisboa, bem como a ii) fração autónoma designada pela letra “L”, também de prédio sito em Lisboa, tendo a AT liquidado, em resultado das referidas transações, mais valias em sede de IRS tendo  como pressuposto erróneos valores de aquisição dos imóveis.       

                Com efeito, entende o Requerente que a AT deveria ter tribuado as mais valias imobiliárias considerando a forma parcelada  de aquisição (gratuita) dos ditos bens até à consolidação integral do direito de propriedade ocorrido em virtude do óbito da usufrutuária, a 3 de outubro de 2014. Face ao disposto no art. 13.º, 6, CIS,  resulta que o valor de aquisição a aferir é considerando o valor da nua propriedade ao tempo da liquidação de Imposto do Selo à data em que tal liquidação foi realmente efetuada (em 1992) e não à data da consolidação do direito, propriamente dito (aquando da morte da usufrutuária). Isto é, o valor de aquisição é determinado pelo momento da consolidação da propriedade plena, que consiste na diferença entre o VPT àquela data (da consolidação) e o valor atribuído, na liquidação do imposto de selo, à aquisição da nua-propriedade.

                Por sua vez, a AT veio defender-se, concluindo que a liquidação em causa não padece dos vícios alegados na medida em que a consolidação da propriedade plena em resultado da reunião do usufruto com a nua-propriedade tem um efeito jurídico relevante que se reflete no plano fiscal, constituindo um incremento patrimonial que, ainda que obtido a título gratuito, integra o valor de aquisição, quando haja lugar ao apuramento de mais-valias por efeito da ulterior alienação do imóvel. Isto é, o valor de aquisição que decorre da consolidação da propriedade plena é apurado fazendo incidir sobre o VPT atual (à data da consolidação) a percentagem atribuída, nos termos legais, à nua-propriedade por via da constituição do usufruto.

                Além disso, alega intempestividade quanto ao pedido de revisão oficiosa que teve por objeto o IRS 2016 na medida em que deveria ter apresentada no prazo de 120 dias a partir do “termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte”.

                Conclui pedindo que seja julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

II. SANEAMENTO

 

                O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, 1, a), 5.º e 6.º, 1, do RJAT.

                As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

                O processo não enferma de nulidades.

                Nada obsta a que seja apreciado a exceção invocada e o mérito da causa.

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

                III.1. DE FACTO

FACTOS PROVADOS      

 Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

A) O requerente era casado com B... .

B) Por morte de sua mulher, o Requerente, a  04.05.1992, adquiriu o direito a 25% da nua propriedade do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número ... e inscrito na matriz da freguesia das ... sob o artigo ... .

C) A 14.03.2007, por escritura pública de constituição de propriedade horizontal e de partilha, constituiu-se a propriedade horizontal do prédio já melhor identificado bem como procedeu-se à partilha da nua propriedade das frações daí resultantes, tendo sido adjudicado ao Requerente (doc. 13, PPA):

                i) 25% da nua propriedade da fração autónoma designada pela letra “C” (1.º andar direito), destinada a habitação, do prédio referido;

                ii) a nua propriedade da fração autónoma designada pela letra “L” (5.º andar esquerdo), destinada a habitação, do prédio referido.

D) A 03.10.2014, faleceu com mais de 85 anos C..., usufrutuária dos imóveis identificados anteriormente.

E) Por escritura pública de 27 de dezembro de 2016 o Requerente vendeu 25% da fração identificada em B), i), pelo preço de € 47.250,00, com o VPT, à data, de € 50.670,00 (doc. 11, PPA).

F) Por escritura pública de 30 de outubro de 2018 o Requerente vendeu a fração identificada em C), ii), pelo preço de € 575.000,00, com o VPT, à data, de € 188.620,00  (doc. 12, PPA).

G) O Requerente incorreu em encargos com a valorização da fração C no montante de € 238,81 e com a valorização da fração L no montante de € 115.978,20.

Quanto ao IRS 2016

H) A 27 de abril de 2018, o Requerente apresentou a Declaração Modelo 3 de IRS n.º..., Anexo G, relativa ao ano de 2016, na qual declarou (doc. 17, PPA):

 

 

I) A declaração indicada no ponto anterior originou a liquidação de IRS n.º 2017..., da qual resultou um valor de imposto a pagar de € 20.279,43, efetuado a 4 de agosto de 2017 (docts. 18 e 19, PPA).

J) Em 23/05/2017, na sequência do processo de divergência n.º ..., o R. apresentou uma primeira Declaração de Substituição, n.º ...-2016-... com o seguinte teor (doc. 20, PPA):

 

K) A declaração referida no ponto anterior deu origem à Liquidação de IRS n.º 2017..., que apurou um valor de imposto a pagar de € 22.648,70, tendo sido efetuado o pagamento do excedente de imposto apurado no montante de € 2.369,27 (docts. 21 e 22, PPA).

L) Na sequência de novo procedimento de divergência, foi entregue pelo requerente a segunda declaração de substituição, identificada com o n.º 2016..., que se encontra no estado 'anulada' (doc. 16, PPA).

M) Na sequência da divergência n.º ..., o R. apresentou outra declaração de substituição (n.º ...3-2016-...), no âmbito do qual manteve os valores declarados no Quadro 4 do Anexo G (doc. 1, PPA):

 

N) A declaração referida no ponto anterior deu origem à Liquidação de IRS n.º 2018..., que apurou um valor de imposto a pagar de € 22.679,15 - Nota de Cobrança n.º 2018..., no valor de € 30,45, que foi paga voluntariamente (docts. 2 e 3, do PPA).

O) A 07.06.2018 o Requerente foi notificado da liquidação de IRS — 2016.

P) Em 05.05.2020, o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação nº 2018..., nos termos do disposto no art. 78.º, 1,  LGT.

Q) A 29.01.2021 e a 25.03.2021 o Requerente foi notificado da proposta de  indeferimento e para, querendo, exercer o direito de audição, com a seguinte fundamentação (docs. 7 e 8, PPA):

17 – Nos termos do n.º 6 do artigo 13.º do Código do Imposto de Selo (CIS) ex vi o n.º 1 do artigo 45.º do CIRS, “quando a propriedade for transmitida separadamente do usufruto, o imposto devido pelo adquirente, em consequência da consolidação da propriedade com o usufruto, incide sobre a diferença entre o valor patrimonial tributário do prédio constante da matriz e o valor da sua propriedade considerado na respectiva liquidação”.

18 – Da análise dos documentos apresentados, verifica-se que:

18.1 – Em 2007-03-14, foi constituído o regime de propriedade horizontal sobre o prédio, conforme Escritura Pública de Propriedade Horizontal e Partilha;

18.2 – No mesmo documento declaram “Que, como consta da referida escritura de habilitação de herdeiros, no dia quatro de Maio de mil novecentos e noventa e dois, em kensington, Inglaterra, faleceu a referida B..., (...), no estado de casada sob o regime de separação de bens. (...) Que, pela presente escritura em proceder a partilha dos bens deixados por óbitos da referida B..., que é a nua propriedade das frações autónomas que constituem o prédio atrás submetido ao regime da propriedade horizontal”, tendo sido atribuído 25% da nua propriedade da fação C ao Requerente.

19 – Em 2014-10-03, deu-se a consolidação da propriedade por falecimento da usufrutuária.

20 - Para aferir o valor de aquisição, corretamente, ter-se-ia que aferir em que data se constituiu o usufruto vitalício e qual a idade da usufrutuária à data da constituição do usufruto

21 - Ademais, o valor reclamado (LINHA 4003 – REALIZAÇÃO: € 10.134,00 [2016-12] – AQUISIÇÃO: € 10.134,00 [2014-10]) nunca foi alterado ou reclamado, mantendo o valor declarado desde a primeira declaração apresentada pelo Requerente, pelo que não existe qualquer erro imputável aos serviços, não sendo o pedido subsumível à 2.a parte do n. o1 do artigo 78.º da LGT.”.

 

R) Não tendo o Requerente exercido o direito de audição, por ofício de 12.05.2021 foi notificado do despacho de 11.05.2021 do Diretor de Finanças Adjunto da decisão final de indeferimento do seu pedido (doc. 7, PPA), do seguinte teor:

 

Atendendo ao referido e proposto nos pareceres que antecedem, ao teor, conteúdo e fundamentos da informação prestada infra e em especial ao informado e proposto em sede de audição prévia, considero que o pedido não merece provimento – uma vez que segundo o informado não se verificam os pressupostos legais previstos para a Revisão solicitada e se trata de matéria de cuja apreciação resulta o indeferimento do pedido – convolando-se em definitivo aquele projeto de decisão.

 

Quanto ao IRS 2018

S) Em 17/04/2019 o Requerente apresentou a  Declaração Modelo 3 de IRS n.º ...-2018-..., referente ao ano de 2018,  tendo declarado no Anexo G (doc. 24, PPA):

 

T) A declaração referida originou a liquidação de IRS n.º 2019..., que apurou um valor de imposto a pagar de € 90.733,47 — Nota de Cobrança n.º 2019 ... de 2019 05-02 —, no valor de € 90.733,47, paga a 18 de agosto de 2019 (docts. 25 e 26, PPA).

U) Em 27.05.2019, o Requerente. apresentou a Declaração de Substituição n.º ...-2018-..., mantendo integralmente os valores declarados no Anexo G da antecedente declaração.

V) A citada Declaração de Substituição deu origem à Liquidação de IRS n.º 2019..., que apurou um valor de imposto a pagar de € 92.224,01 — Nota de Cobrança n.º 2019..., de 2019-05-30 — no valor de € 1.490,54, regularizada em cobrança voluntária (docts. 28, 6 e 29, PPA).

W) O requerente entregou a declaração de substituição n.º 2018-..., finda sem correções, com o estado 'anulado' (doc. 16, PPA).

X) Em 27.06.2019 o Requerente apresentou nova Declaração de Substituição n.º...-2018-..., sem qualquer alteração ao Anexo G (doc. 30, PPA).

Y) A referida declaração deu origem à Liquidação de IRS n.º 2019..., que apurou um valor de imposto a pagar de € 91.702,56 – Nula n.º 2019 ... de 2019-07-19, que anulou o montante de € 521,45 da Nota de Cobrança n.º 2019..., de 2019-05-30 (docts. 6, 29 e 31, PPA).

Z) Em 01.04.2020, o Reclamante apresentou a Declaração de Substituição n.º...-2018-..., no âmbito da qual o Reclamante corrigiu, no Quadro 4 do ANEXO G, os rendimentos referentes a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis [artigo 10.º, n.º 1, al. a) do CIRS] para os seguintes valores:

 

 

AA) A referida declaração nunca deu origem a qualquer ato de liquidação por parte da AT.

BB) Em 12.11.2020 o Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação n.º 2019... suscitando erro no apuramento das mais-valias por alienação da fração “L”, antes melhor identificada, fundamentado no apuramento do valor de aquisição à data da consolidação da propriedade plena.

CC) Por ofício de 06.05.2021 o Requerente foi notificado para, querendo, exercer o direito de audição prévia sobre o projeto de decisão de indeferimento, não o tendo feito (doc. 10, PPT).

DD) Por ofício de 24.06.2021 o R. foi notificado da decisão de indeferimento da reclamação graciosa referida em cima (doc. 9, PPT).

EE) Da decisão de indeferimento resulta (doc. 10, PPA):

“32.4 Considerando que:

32.4.1. Em 2007-03-14, data da constituição do usufruto, segundo consta na matriz predial

do imóvel alienado, a Usufrutuária teria 90 anos de idade;

3.2.4.2 – Em 2014-10-03, o VPT do imóvel ascendia a € 188.620,00.

33- valor do usufruto, em 2014, ascenderia a € 18.862,00, calculado nos seguintes termos:

€ 188.620,00 x 10% = 18.862,00 (valor do usufruto)

€ 188.620,00 - € 18.862,00 = € 169.758,00 (valor da nua propriedade)

34- Nos termos do n.º 6 do artigo 13.º do CIS ex vi artigo 45.º do CIRS que “quando a propriedade for transmitida separadamente do usufruto, o imposto devido pelo adquirente, em consequência da consolidação da propriedade com o usufruto, incide sobre a diferença entre o valor patrimonial tributário do prédio constante da matriz e o valor da sua propriedade considerado na respetiva liquidação”.

35- Tendo o Reclamante adquirido, em 2007-03-14, 90 % da propriedade, adquire os restantes 10% em 2014-07-10, com a consolidação da propriedade, devendo o valor de aquisição corresponder a € 18.862,00 (€ 188.620,00 x 10%).

36- Ora, na Declaração de Substituição n.º ...-2018-..., a qual deu origem à liquidação ora reclamada, o Reclamante declarou, no Quadro 4 do ANEXO G, os rendimentos referentes a alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis [artigo 10.º, n.º 1, al a) do CIRS] da seguinte forma:

 

(...)

LINHA 4002

VALOR DE REALIZAÇÃO: 460.000,00 [2018-10]

VALOR DE AQUISIÇÃO: 37.724,00 [2014-10]

IDENTIFICAÇÃO MATRICIAL DOS BENS: ...-U-...-L-20% (Quota-parte)

37- Pelo exposto, o valor correto de aquisição de 10% concernentes ao usufruto ascenderia a € 18.862,00.”.

 

FF) Por ofício de 19 de outubro de 2021, o Requerente foi notificado da decisão da Diretora de Finanças Adjunta, da Direção de Finanças de Lisboa, comunicando da consequente correção do valor de aquisição do imóvel alienado em 2018, face ao entendimento expresso na decisão de indeferimento da reclamação graciosa contestada.

GG) Por ofício n.º ..., de 2 de dezembro de 2021, foi o Requerente notificado da nota de liquidação de IRS n.º 2022..., através da qual a AT executou a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2020... .

 

III.2 FACTOS NÃO PROVADOS

                Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

                III. 3. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NÃO           PROVADA

                Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

                Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

                Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, 7, do CPPT, e a prova documental aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

                Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

                IV. DO DIREITO

               

                O tema para o qual se pede a pronuncia do tribunal tem origem na venda, em dezembro de 2016, de 25% da fração autónoma designada pela letra “C”, e ainda na venda, em outubro de 2018, da fração autónoma designada pela letra “L”, ambas sitas no mesmo prédio, constituído em propriedade horizonta, localizado no concelho de Lisboa.

                Nenhuma das partes nega que os referidos atos de venda originaram mais valias tributáveis.

                A questão em causa, considerando o alegado e ainda a matéria de facto dada como provada, consiste em aferir, face ao quadro legislativo vigente, qual o valor de aquisição dos referidos imóveis para efeitos de cálculo das mencionadas mais valias, em sede de IRS, quando eles foram adquiridos gratuitamente, de forma parcelada, em 1992, 2007 e em 2014. Em particular, importa esclarecer, devido à particularidade pelos quais os direitos de propriedade de ambos foram adquiridos, qual o valor a atribuir quando ocorre a consolidação desse direito de propriedade (plena) decorrente da extinção do ónus que sobre eles incidia, de usufruto, por morte da usufrutuária, em 2014.

                Com efeito, o Requerente não se conforma com o entendimento da AT quanto ao valor a atribuir que decorre da extinção do usufruto e subsequente consolidação plena do direito de propriedade desses imóveis, que se dá em 2014. Para a AT, o valor de aquisição que decorre da consolidação da propriedade plena é apurado fazendo incidir sobre o VPT atual (à data da consolidação, isto é, à data de extinção do usufruto) a percentagem atribuída, nos termos legais, à nua-propriedade por via da constituição do usufruto ao momento da consolidação. Pelo contrário, para o Requerente, a consolidação e o momento em que ele se verifica não é qualificado como o facto tributário a considerar para os presentes efeitos de cálculo do valor de aquisição mas antes ao valor da nua propriedade que ocorreu em 1992.

                O tema não é novo. Importa apelar ao quadro normativo em vigor bem como ao entendimento da doutrina e da jurisprudência.

                Vejamos.

                Determina o art. 10.º, 1, a), CIRS, que "constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário.

                Para Paulo Rosado Pereira, Manual de IRS, 2.ª Edição, Almedina, 2019, pp. 204, ss., "uma mais valia corresponde a uma valorização ocorrida em bens ou direitos, um ganho de caráter ocasional ou fortuito que se gera na esfera do proprietário alienante, sem que se verifique no contexto de uma atividade empresarial.

                A mais valia, com efeito, corresponde a um ganho, isto é, a uma diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição do mesmo bem ou direito. É o que resulta do art. 10.º, 4, a), idem, quando estipula que o ganho sujeito a IRS é constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso.

                Uma particularidade ocorre quando a aquisição provém de um ato gratuito. Nesse caso, que é o que apela os presentes autos, importa recorrer ao disposto no art. 45.º, 1, CIRS: "Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS considera-se o valor de aquisição, no caso de bens ou direitos adquiridos a título gratuito: a) O valor que tenha sido considerado para efeitos de liquidação de imposto do selo; b) O valor que serviria de base à liquidação de imposto do selo, caso este fosse devido."

                É claro para o intérprete que, nesta altura, importa considerar o postulado no disposto no art. 13.º, CIS, nomeadamente, os seus ns. 1, 4 e 6, pois são estes que estabelecem os critérios para o cálculo do valor tributável para os imóveis adquiridos título gratuito. Rezam assim:

1 - O valor dos imóveis é o valor patrimonial tributário constante da matriz nos termos do CIMI à data da transmissão, ou o determinado por avaliação nos casos de prédios omissos ou inscritos sem valor patrimonial.

4 - Na determinação dos valores patrimoniais tributários de bens imóveis ou de figuras parcelares do direito de propriedade, observam-se as regras previstas no CIMT para as transmissões onerosas.

 6 - Quando a propriedade for transmitida separadamente do usufruto, o imposto devido pelo adquirente, em consequência da consolidação da propriedade com o usufruto, incide sobre a diferença entre o valor patrimonial tributário do prédio constante da matriz e o valor da sua propriedade considerado na respectiva liquidação.

                Posto isto, importa conciliar a interpretação do disposto nos ns. 4 e 6 do citado preceito.

                Sobre o tema já se pronunciaram as decisões arbitrais proferidas nos processos 167/2021-T (José Ramos Alexandre) e 499/2021-T (Ana Paula Rocha), que acompanhamos e reproduzimos.

                Quanto à primeira, consta o seguinte:

"Da leitura atenta desta norma (do art. 13.º, 6, CIS) conclui-se que, em face da sua parte final, é inequívoco que o legislador considera que já houve uma ou mais liquidações antes da consolidação e que esta respeita à aquisição da nua propriedade (total ou parcial).

Acompanhando a interpretação da Requerente, em 1992 e em 2007 verificaram-se liquidações de imposto, primeiramente por valor parcial e depois novamente quanto à restante parte da nua propriedade, que foi integralmente adquirida com a partilha em 2007. E estas liquidações foram efetivadas com recurso ao mencionado n.º 4 do art. 13º.

(...)

O valor tributário dos imóveis para efeitos de liquidação de imposto de selo, no que se refere à aquisição parcelar gratuita, tem duas regras: a primeira estabelece-se no momento da constituição do direito parcelar por via da existência de um usufruto, para a qual vale o n.º 4 do art. 13.º, e a outra diz respeito ao momento da consolidação quando a lei estabelece expressamente no n.º 6 quais o valores que se devem considerar para o cálculo do imposto devido nesse momento.

 

A não ser assim, esbatia-se a utilidade da inclusão do n.º 6 no art. 13.º porque teríamos sempre o n.º 4. Salvo melhor opinião, não há, pois, necessidade de determinar novo valor do usufruto conforme o n.º 4 do art. 13.º para comparar com o VPT constante da matriz à data da consolidação e apurar a diferença, porque a lei expressamente manda considerar nesse momento o valor do usufruto que foi utilizado nas liquidações respetivas. Ou dizendo de outro modo, no momento da consolidação o valor sobre o qual incide o imposto devido é calculo obedecendo ao no 6 daquele artigo e não ao no 4 porque a esse já recorremos nas liquidações parcelares anteriores, quando diz que o imposto “...incide sobre a diferença entre o valor patrimonial tributário constante da matriz (à data- acrescentamos nós) e o valor da sua propriedade considerado na respetiva liquidação” e, como tem sido entendido, no n.º 6 não há qualquer regra de incidência que necessita do recurso ao n.º 4.

 

Esta disposição é taxativa e a liquidação a que a lei se refere é a que já foi efetivada aquando da aquisição da nua propriedade, isto é, sobre valores já conhecidos, não havendo necessidade de os determinar com pretende a AT.

 

                Por sua vez, do âmbito do proc. 499/2021-T, resulta como segue:

Para o momento da aquisição da nua-propriedade, i.e., do direito de propriedade expurgado do usufruto, vale o disposto no n.º 4 do artigo 13.º do Código do Imposto do Selo. Nestes casos, a 7.ª regra do n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT determina que “o imposto é calculado sobre o valor da nua-propriedade, nos termos da alínea a) do artigo 13.º, ou sobre o valor constante do ato ou do contrato, se for superior”. E sendo de aplicar a regra prevista nesta alínea a) do artigo 13.º, haverá então que considerar como valor tributável o montante da propriedade plena deduzido das percentagens que o artigo estabelece em função da idade do usufrutuário (sendo que, nos casos em que o usufrutuário tenha mais de 85 anos, o valor a deduzir é de 10%).

Para o momento em que aquela propriedade “finalmente” se consolida com o usufruto, o legislador veio aditar expressamente ao Código do Imposto do Selo, em 2005, a norma prevista no n.o 6 do respetivo artigo 13.o, aí prevendo especificamente quais os valores a considerar nesse momento. E neste contexto, como interpretar a parte final da norma, quando aí se dispõe que o imposto deve incidir sobre a diferença entre o VPT do imóvel constante da respetiva matriz e “o valor da sua propriedade considerado na respectiva liquidação”?

Segundo entendemos, nos casos em que o usufruto se extingue por morte do usufrutuário e a propriedade se consolida na esfera do radiciário, a única liquidação de Imposto do Selo especificamente relativa à propriedade do imóvel é a liquidação que foi emitida aquando da aquisição de tal propriedade (isto é, a liquidação ocorrida em momento anterior).

Assim o é na medida em que, desde logo, essa é a solução que encontra apoio na interpretação literal e sistemática do texto da lei, na medida em que no n.º 6 do artigo 13.º do Código do Imposto do Selo o legislador não se refere à necessidade de calcular o valor do usufruto à data da respetiva consolidação com o direito de propriedade nem remete expressamente para o disposto no n.º 4 daquele artigo 13.º (como que obrigando à realização de uma liquidação ficcional, à data atual, onde fosse calculado o valor do usufruto de acordo com as regras previstas especificamente para as situações em que o mesmo é transmitido separadamente do direito de propriedade – como, em rigor, fez a AT no caso vertente). Ao invés, o legislador remete, de forma clara e especifica, para uma liquidação já existente, relativa ao momento de aquisição da propriedade do imóvel e em que o valor desta mesma propriedade foi (ou devia ter sido, nos casos de isenção) especificamente determinado/quantificado para efeitos do cálculo do Imposto do Selo.

De maneira que, numa interpretação literal e sistemática do preceito, cremos que o valor da propriedade do imóvel considerado na respetiva liquidação não pode ser senão o valor determinado e considerado na liquidação de Imposto do Selo que foi emitida (ou deveria ter sido) na sequência da aquisição total ou parcial da nua-propriedade do imóvel, pois que é essa liquidação que concretamente respeita e se refere a tal momento aquisitivo. Neste contexto, importa considerar que a consolidação da propriedade plena não é mais do que a união da nua-propriedade com o direito ao usufruto, tendo a aquisição (propriamente dita) do imóvel ocorrido na data em que, na esfera do proprietário, se constituiu tal direito, pelo que terá de ser essa data que, para efeitos de IRS, prevalecerá.

Por outro lado, esta é também a solução que, em termos de substância económica, permite agora considerar o valor do usufruto que, tendo sido anteriormente subtraído ao valor da propriedade do imóvel ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 13.º do Código do IMT, é agora “finalmente” consolidado com tal propriedade. Considerando que a aquisição da propriedade aconteceu no passado e que no momento da consolidação apenas falta pagar o imposto referente à parcela do direito de usufruto que onerava o imóvel até então (como que procedendo à “regularização” do valores que estavam em falta), a operação que cumpre realizar no momento presente é a que consiste em expurgar ao VPT atual do imóvel o valor da propriedade que lhe foi atribuído aquando da respetiva aquisição (se e na medida em que o valor do contrato não seja superior).

Por fim, esta solução encontra ainda apoio doutrinal e jurisprudencial entre nós.

Francisco Pinto Fernandes e Manuel Faustino, antigos Diretores de Serviços da DGCI, in “Transmissão separada da propriedade e do usufruto, a título gratuito, em sede de ISSD e de Selo e repercussões em sede de IRS (mais-valias)”, Revista de Ciência e Técnica Fiscal, n.o 434, Janeiro-Dezembro de 2015, pp. 105-142 referem que “no que concerne à transmissão gratuita da nua-propriedade, há lugar, de imediato, à incidência do imposto, servindo de base à liquidação o valor atual da nua-propriedade, conforme o n.o 4 do artigo 13.o do CIS e, por remissão, a regra 7a do n.o 4 do artigo 12.o do CIMT. Deixou, pois, de verificar-se o diferimento da liquidação do imposto para o momento em que se verificasse a consolidação [como acontecia no seio do Imposto sobre as Sucessões e as Doações]. Poderá, porém, nesse momento [da consolidação] ter-se ainda que pagar imposto. Mas já não se trata do imposto suscetível de imputar-se à originária transmissão da nua-propriedade” (pp. 117 e 118). Existem, pois, “duas liquidações de imposto. Uma na data da constituição da nua-propriedade. Outra, na “consolidação”, pela diferença entre o VPT inscrito à data na matriz e o valor por que foi feita a liquidação anterior. Deixou, pois, de ser necessário recorrer à analogia e a alguma criatividade para determinar, para quem assim o entenda, o valor atual do usufruto, mesmo nos casos em que este se extingue”. Em particular, entendem os Autores que tais raciocínios de analogia e criatividade não fazem sentido porque não existiam (durante a vigência do Imposto sobre as Sucessões e as Doações), “continuam a não existir, nem faz sentido que existam, regras que determinem o valor de um usufruto radicalmente extinto. E cujo (anterior) titular, já morto, deixa por natureza de ter um elemento essencial para o efeito, que é a idade” (pp. 140 e 141) – nosso sublinhado.

Por sua vez, António Santos Rocha e Eduardo Martins Brás, in “Tributação do Património, IMI- IMT e Imposto do Selo (Anotados e Comentados)”, Almedina, Fevereiro de 2018, págs. 701 e 702 referem que “no que diz respeito à aquisição da nua-propriedade de forma gratuita”, o imposto devido pelo adquirente em consequência da consolidação da propriedade com o usufruto “incide sobre a diferença entre o valor patrimonial tributário, que o prédio, então tiver, e o valor da nua-propriedade considerado na respetiva liquidação”.

                Com efeito, entendemos que o art. 13.º, 6, CIS não consagra uma nova regra de incidência objetiva. Antes pelo contrário, o que procura é considerar, na hipótese da norma, um facto que, ao momento em que o citado preceito deve ser aplicado, se verifica, que é o da consolidação do direito resultante da extinção do usufruto na esfera do titular, sujeito passivo.

                O direito de propriedade tem a caraterística de se expandir e de se consolidar. Se se encontra onerado ou limitado, o titular pode ver o seu direito alargar o seu âmbito sem que daí resulte uma qualquer aquisição propriamente dita, porque o direito já se encontra na esfera do sujeito passivo.

                Daí que, se o caso pede a aplicação do art. 13.º, 6, CIS, o intérprete deve considerar o critério que a lei prevê para o cálculo do valor tributário do imóvel que se encontra ínsito nesse preceito e não o critério que a lei prevê para situação fática distinta, que pede a aplicação de outro normativo (para a AT, o art. 13.º, 4, CIS, ao pretender determinar um novo valor do usufruto, para depois o subtrair com o VPT à data da consolidação e considerar a diferença que resulta dessa operação).

                Posto isto, para efeitos de IRS (mais-valias) e face ao previsto no art. 13.º, 6, CIS, o cálculo do valor de aquisição de imóvel adquirido gratuitamente consiste na subtração do valor da propriedade considerado nas respetivas liquidações ao VPT do imóvel, do qual, in casu, resulta: i) venda de 25% da fração 'C', então, VPT à data de 2014 (€ 202.680,00 * 25% = € 50.670,00) a subtrair ao valor da propriedade à data da liquidação (€ 1.839,59), o que perfaz € 48.830,41; ii) venda da fração 'L', então, VPT à data de 2014 (€ 188.620,00) a subtrair ao valor da propriedade à data da liquidação (€ 4.900,75), o que perfaz € 183.719,25.

                Sendo assim, o valor de aquisição a considerar para apuramento das mais-valias em sede de IRS, proveniente da consolidação verificada, em 2014, consiste em € 48.830,41, quanto à fração C, vendida em 2016, e em  € 183.719,25, quanto à fração 'L', vendida em 2018.

                Chegados aqui, concluímos que a interpretação da AT e subsequentes atos de liquidação bem como nas posteriores decisões assentes na bondade daquelas liquidações padece do vício de violação de lei.

                Do mesmo modo, a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que se pronunciou sobre a legalidade da liquidação relativa ao IRS 2018 deve ser, também ela, anulada. Também deve ser anulada a decisão que indeferiu o pedido de revisão oficiosa, relativa ao ano de 2016, embora esta mereça ainda reflexão complementar.

                A fundamentação para a decisão de indeferimento da referida revisão oficiosa consistiu, também, por ter ficado "demonstrado não ter havido erro por parte dos serviços, uma vez que a liquidação foi efetuada de acordo com os valores declarados pelo requerente."

                Como ficou consignado no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Pleno da seção do CT, processo n.º 0793/2014), de 3 de junho de 2015, “(…) o meio procedimental de revisão do ato tributário não pode ser considerado como um meio excecional para reagir contra as consequências de um ato de liquidação, mas sim como meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados) ou complementar deles (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos meios impugnatórios do ato de liquidação)…”  

Por outro lado, quanto ao prazo de recurso à via da revisão oficiosa, constitui, hoje, jurisprudência consolidada que, podendo a AT, por sua iniciativa, proceder à revisão oficiosa do ato tributário, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços (artigo 78.º, n.º 1, da LGT), também o contribuinte pode, naquele prazo da revisão oficiosa, pedir esta mesma revisão com aquele fundamento. O pedido de revisão oficiosa do ato tributário é um mecanismo de abertura da via contenciosa perfeitamente equiparável à reclamação graciosa necessária, porquanto serve o propósito de permitir que a AT se pronuncie sobre os atos de autoliquidação. Neste sentido, ver entre outras, as Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 577/2016-T, n.º 668/2016-T e 333/2018-T e, mais recentemente, n.º 45/2020-T.

Finalmente, quanto à inexistência de erro imputável aos serviços, recorde-se que constitui igualmente jurisprudência assente que “existindo um erro de direito numa liquidação efetuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, em resultado da obrigação genérica de a administração tributária atuar em plena conformidade com a lei” (neste sentido, cfr. Decisão Arbitral proferida no processo n.º 911/2019-T). Reafirmando-se que, ao analisar o pedido de revisão oficiosa, a Requerida não tem apenas a possibilidade, mas até o dever de corrigir a situação.

In casu, e mesmo que se admita que os dados inseridos das declarações foram da autoria do SP, tinha a AT condições para averiguar da correspondência desses dados com as informações que tinha e tem ao seu dispor. Ao não efetuar essa confrontação crítica, não deixou de laborar em erro imputável aos serviços.

Desta forma, além da fundamentação que já foi exposta supra que também para este efeito deve ser considerada, também se deve considerar que verificando-se um erro imputável aos serviços e tendo o pedido de revisão oficiosa dado entrada no prazo de quatro anos após a liquidação não se verifica a pretendida intempestividade desse pedido.

                Posto isto, não resta a este tribunal outra solução que a de aplicar o disposto no art. 13.º, 6, CIS, aos presentes autos e, consequentemente, dar razão ao Requerente, deferindo o pedido formulado.

                Deste modo, e sem mais considerandos, conclui-se pela ilegalidade parcial das liquidações por se suportar em erro sobre os pressupostos de direito.

                A terminar, o cálculo das mais-valias e os valores pagos em excesso são o que resulta dos pontos 49.º, ss., PPA, que não foram colocados em crise pela AT.

 

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Quanto aos juros indemnizatórios.

Determina o art. 24.º, 5, RJAT que "“é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, 1 e 2, e 100.º, LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

Determina o art. 24.º, 1, b), RJAT, que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.

Consequentemente, terá de se proceder ao reembolso parcial dos montantes pagos pelo SP, na sequência da anulação dos atos de liquidação já melhor identificados, de modo a que se reconstitua a situação que existiria se não se tivessem cometido as ilegalidades já identificadas.

Deste modo, considerando o disposto no art. 61.º, CPPT, como se verificam preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, o SP terá direito a esses juros, calculados à taxa legal sobre os montantes pagos por excesso contabilizados de acordo com o disposto no art. 61.º, 3, CPPT.

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V. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Julgar procedente os pedidos de anulação parcial das notas de liquidação de IRS ns. 2018... e 2019 ... bem como a n.º 2022..., referentes aos anos de 2016 e 2018 na parte correspondente aos acréscimos de tributação resultantes de errónea aplicação da lei, bem como declarar ilegais as decisões de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e da reclamação graciosa melhor identificadas;

b)           Condenar a AT a devolver ao Requerente o valor pago em excesso, de € 9.287,41 (2016, incluindo sobretaxa) e € 37.610,13 (2018), num montante total de € 46.897,54, e respetivos juros indemnizatórios;

c)            Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

VI. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 46.897,54 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VII. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, conforme o disposto no artigo 22.º, n.º 4, RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 11 de abril de 2022

 

O Árbitro Singular

(Ricardo Marques Candeias)