Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 688/2021-T
Data da decisão: 2022-04-21  IRC  
Valor do pedido: € 182.519,66
Tema: IRC – Benefícios Fiscais ao Investimento, CFI, RFAI
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SUMÁRIO:

I – Enquadrando-se a indústria transformadora no n.º 2 do artigo 2.º do CFI, a atividade de transformação e comercialização e produtos agrícolas (à base de carne) não é uma das atividades excluídas do âmbito de aplicação das OAR e do RGIC, para efeitos do artigo 22.º n.º 2 do CFI.

II - Nos termos da alínea c) do nº1 do artigo 3º do RGIC apenas não é permitida concessão de auxílios estatais à atividade de transformação e de comercialização de produtos agrícolas se se verificar qualquer das situações indicadas nas suas subalíneas i) ou ii), isto é, “sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa» ou «sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários”.

III - Não se verificando nenhuma das mencionadas situações deve-se concluir que o RFAI não é afastado pelo RGIC, e não pode a Portaria n.º 282/2014 restringir um benefício fiscal uma vez que a legislação comunitária se sobrepõe a esta.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Dr. José Poças Falcão (arbitro-presidente), o Dr. Fernando Miranda Ferreira e a Dra. Cristina Coisinha (árbitros-vogais), designados pelo Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 03-01-2022, acordam o seguinte:

 

I – Relatório

 

A..., LDA., doravante designada por “A...” ou “Requerente pessoa coletiva com o número..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número, com sede na Herdade ..., ...,  ..., NIPC..., com o capital social de Euro: 1.250.000,00, LDA., veio, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, n.º 2, do artigo 5.º, n.º 1 do artigo 6.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem (RJAT), em conjugação com a alínea a) do artigo 99.º e das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 102.º, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), requerer a constituição do Tribunal Arbitral Coletivo pedindo que seja declarada a anulabilidade da liquidação de IRC (e juros compensatórios) relativa a 2017, com fundamento em vício de violação de lei e erro na fundamentação.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 25-10-2021.

 

A Requerente não procedeu à nomeação dos árbitros, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 14-12-2021, as partes foram notificadas dessa designação. Não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 3 de janeiro de 2022.

 

Notificada para apresentar resposta ao abrigo do artigo 17.º do RJAT, a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada de Requerida ou AT, apresentou a sua resposta em 11-02-2022, onde por impugnação pugnou pela improcedência do pedido arbitral e pela sua absolvição do mesmo, defendendo ainda o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e a manifesta desnecessidade da produção da prova testemunhal requerida, por se tratar de um ato inútil, bem como a inutilidade da realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.

 

Por despacho de 02-03-2022 o Tribunal dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e decidiu pela desnecessidade de quaisquer diligências complementares de prova, designadamente a inquirição das testemunhas arroladas considerando a suficiência das provas documentais e a ausência de controvérsia das partes em matéria de facto, notificou ainda as Partes para apresentarem alegações, querendo, o que as partes fizeram mantendo as suas posições.

 

As Partes apresentaram alegações mantendo, no essencial, a posição anteriormente assumida.

II – Descrição sumária dos factos

 

  1. A Requerente é uma sociedade comercial que tem como atividade principal a criação intensiva de aves e posterior abate para comercialização das mesmas, procede ainda ao tratamento de penas, transformação de subprodutos de origem animal e possui uma unidade técnica de produção de fertilizantes orgânicos e corretivos orgânicos do solo.
  2. A Requerente tem por objeto e atividade a produção agrícola, a indústria de transformação de produtos agrícolas e a comercialização, por grosso, de uns e de outros, tendo por base a sua própria produção e a de terceiros, pois também adquire produção (animais) a terceiros para posteriormente proceder à sua transformação.
  3. Para melhoria da sua atividade e reforço da sua capacidade industrial, a Requerente começou em 2015 um projeto de aumento de capacidade instalada do centro de abate, nomeadamente com o aumento de uma terceira nave no centro de abate e a renovação das linhas de abate, embalagem e de frio, incluindo paletização e tratamento de cera, bem como requalificação da cozinha industrial.
  4. Estes investimentos são ilegíveis para o Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI).
  5.  A equipa 22 dos Serviços de Inspeção Tributária de ... procedeu à análise interna dos exercícios de 2016, 2017 e 2018, e dessa análise decorreram correções ao benefício fiscal do RFAI, e consequentemente uma alteração para mais do IRC no período de 2017 no montante de € 168.839,84.
  6. Para a AT é determinante o enquadramento do produto final da lista do Anexo I do TFUE, e a sua qualificação como produto agrícola, excluindo este ramo da indústria transformadora das concessões do benefício fiscal RFAI por força da obrigação de respeitar o âmbito de aplicação sectorial das OAR e do RGIC, sendo irrelevante que a transformação opere em nave industrial e segundo processos próprios da indústria.
  7. À liquidação controvertida correspondeu o n.º 2020..., que deu lugar ao acerto de contas de 09.12.2020 e, em consequência desta, foi emitida a Demonstração de Acerto de Contas e a Nota de Cobrança que fazem parte do acerto de contas de 2017.

 

II. 1 – Posição da Requerente

 

 

O RFAI visa apoiar o investimento produtivo das empresas, para reforço do tecido produtivo português sendo útil clarificar as fontes de direito que fixam o seu âmbito de aplicação e que implicam, em síntese, a interpretação conjugada dos artigos 2.º (geral) e 22.º (específico, para efeitos de RFAI) do Código Fiscal do Investimento (CFI).

 

O artigo 2º do CFI estabelece o âmbito da aplicação deste Código, enquanto o nº 1 do artigo 22º do CFI, em linha com aquele, estabelece quais as atividades passíveis de relevarem para efeitos do RFAI - ao que procede em linha com o âmbito do CFI mas parecendo excecionar do RFAI certas atividades mencionadas no dito nº 1 do artigo 22º, in fine.

 

 

Com efeito, aquele nº 1 (in fine), afastaria a aplicabilidade do RFAI a atividades excluídas do âmbito setorial das OAR (Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014/2020 publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209 de 23/7/2013, nomeadamente, o ponto 10.º e legislação para a qual este remete) e do RGIC (Regulamento Geral de Isenção por Categorias - Regulamento 651/2014, da Comissão de 16/6/2014, nomeadamente, nos art. 1.º nº 3, art. 2.º n.ºs 9, 10 e 11 e alínea b) do art. 13.º - sendo de salientar que esta alínea dispõe precisamente o inverso da interpretação aqui censurada, pois que não excluí os produtos decorrentes da transformação de um produto agrícola, sobretudo se adquirido a terceiro).

Ou seja, essa suposta limitação adicional do âmbito do incentivo constaria do artigo 1 º da Portaria n.º 282/2014 de 30/12 (para efeitos do quadro geral do CFI, um ante face ao quadro do RFAI), em virtude da referência que efetua às OAR e ao RGIC, ainda que de modo impreciso: produção agrícola primária e transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

Sucede que, a Portaria, ex vi   citado nº 3, não pode inovar, nem se pode confundir com a exclusão operada in fine pelo nº 1 do artigo 22.º do CFI, sob pena de desnecessária redundância, interpretação que violaria os princípios da hierarquia das normas e da hermenêutica jurídico-tributária (CC e LGT) e seria inconstitucional por violação do princípio da reserva de lei: ou seja, a exclusão operada in fine pelo artigo 22.º não se pode confundir com a delimitação de âmbito a que se proceda no artigo 2.º n.2, ambos do CFI.

 

Em Suma, a Requerente aponta os seguintes vícios ao ato de liquidação de IRC:

 

  1. As normas que regulam o incentivo não o vieram restringir de modo a não abranger a atividade da Requerente, por isso, o ato tributário enferma de vício de violação de lei por erro de facto e direito,
  2. mais defende que caso as normas em análise assim o fizessem, violariam de forma expressa o princípio da reserva de lei pelo que padeceriam de inconstitucionalidade;
  3. sustenta ainda que, a entender-se ser esse o alcance a dar ao ato tributário, seria a interpretação e aplicação concreta das normas em causa contrária à Constituição, com iguais consequências.

 

Sustentou ainda existir vício da fundamentação, do ato tributário de liquidação. legalmente exigida por erro, omissão, obscuridade e contradição.

 

 

II.2 Posição da AT

 

Para a AT o investimento realizado pela Requerente o período de tributação de 2017 não é elegível para efeitos de RFAI por ter como objeto uma atividade económica enquadrada no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e que se encontra, por isso, coberta pela previsão dos pontos 10) e 12) do Regulamento (EU) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014 [Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC)] e pelo artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, o que resulta do excerto do Relatório de Inspeção que abaixo se transcreve:

 

 

A elegibilidade dos investimentos depende de o respetivo objeto estar relacionado com uma atividade inserida num dos setores listados no n.º 2 do artigo 2º do RFAI que tenham correspondência com os Códigos CAE especificados no artigo 2.º da Portaria n.º 282/2014, aprovada por força do comando que emana do n.º 3 do artigo 2.º do CFI, e por se tratar de um auxílio estatal com finalidade regional, a necessária compatibilidade com os artigos 107.º e 108.º do TFUE impõe a observância das regras e princípios OARC e do RGIC, em particular aos setores de atividade.

 

E, para a AT, por força da delimitação negativa feita artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, tendo por base o enquadramento das OAR e do RGIC, estão excluídas da elegibilidade para a concessão de benefícios fiscais (contratuais e RFAI) dos projetos de investimento que tenham por objeto as atividades de produção agrícola primária de transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE.

 

Em resumo: o produto final que resulta do abate de aves continua a ser um produto agrícola enumerado no Anexo I do Tratado, sendo este o fator determinante e irrelevante que a transformação opere em nave industrial.

Sendo certo que, o parágrafo 10 das OAR afasta do seu campo de aplicação, entre outros, os auxílios ao setor da agricultura.

Estamos, pois, no âmbito/domínio dos benefícios fiscais concedidos a investimentos de transformação e comercialização e produtos agrícolas e perante a liberdade de conformação do legislador no domínio da definição dos pressupostos de benefícios fiscais, o que o legislador fez através da Portaria n.º 282/2014.

 

 

III - SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir Decisão

 

IV. – Matéria de facto

 

IV.1. Factos provados

 

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente tem como objeto social "todas as atividades pecuárias, agrícolas e cinegéticas, bem como todas as atividades conexas" (Cfr. artigo 41.º PPA e página 6 do relatório de inspeção)"
  2. A Requerente é uma sociedade comercial que tem como atividade principal a criação intensiva de aves e posterior abate para comercialização das mesmas, procede ainda ao tratamento de penas, transformação de subprodutos de origem animal e possui uma unidade técnica de produção de fertilizantes orgânicos e corretivos orgânicos do solo(…) (cfr. artigo 49.º do PPA e pag. 7 do relatório de inspeção)
  3. No âmbito da sua atividade, o CAE (código de atividades económicas) principal da Requerente corresponde ao 01470 (avicultura)
  4. Incluem-se ainda na atividade da Requerente, como CAE secundários, os seguintes: 001210 (viticultura), 00142 (criação de outros bovinos e búfalos, com exclusão da produção de leite), 001460 (suinicultura), 001702 (atividades e serviços relacionados com caça e repovoamento cinegético), 002100 (silvicultura e outras atividades florestais).(Cfr. Artigo 43.º do PPA)
  5. A Requerente tem ainda como CAES secundários o abate e produção de carne (010120) assim como o comércio por grosso de carne e produtos à base de carne (046320), bem assim como os processados à base de carne e outras indústrias transformadoras diversas não especificadas (03996), incluindo penas. (Cfr. Artigos 44.º, 45.º e 47.º do PPA)
  6. A Requerente produz (para venda) quer bens (produtos) agrícolas, quer industriais (decorrentes da transformação daqueles bens como dos que adquiriu a terceiros), os quais são por si comercializados, quer no mercado nacional, quer nos mercados da União Europeia, quer ainda nos mercados de Estados terceiros (cfr. Artigo 48.º do PPA e pág. 9 do relatório de inspeção).
  7. A Requerente efetuou um investimento que vinculou ao RFAI dando origem a um crédito fiscal em IRC que foi deduzido para cálculo da matéria coletável e da coleta.
  8. Para melhoria da sua atividade, a Requerente "começou em 2015 um de aumento da capacidade instalada do centro de abate, nomeadamente com o aumento de uma terceira nave no centro de abate renovação das linhas de abate, embalagem e de frio" (cfr. artigo 50.º do projeto PPA e págs. 10 e 11 da fundamentação do relatório de inspeção), incluindo paletização e tratamento de cera, bem como requalificação da cozinha industrial existente e instalação de uma nova cozinha industrial tudo a realizar na unidade industrial ampliada e renovada).
  9. Estes investimentos estão relacionados com a atividade secundária a que corresponde o CAE 010120, na qual se inclui o abate de aves e a produção de carnes: carne, produtos à base de carne e processados à base de carne.
  10. A Requerente comercializa por grosso os bens – carne, produtos à base de carne e processados à base de carne - depois de transformados por um processo industrial.
  11. A carne utilizada no processo de transformação é parte produção própria e cerca de ¼ dos animais (patos) são adquiridos a terceiros.
  12. Na sequência das ordens de serviço OI2020.../.../..., todas datadas de 27.01.2020, a equipa 22 dos Serviços de Inspeção Tributária de ... procedeu à análise interna dos exercícios de 2016, 2017 e 2018 da Requerente.         
  13. Dessa análise decorreram correções ao benefício fiscal obtido nesses exercícios no quadro do RFAI e, por isso, ao correspondente IRC de que resultou uma alteração para mais do IRC no período de 2017 no montante de € 168.839,84:

Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamentepags 11 a 13 do Relatório de Inspeção

  1. A AT efetuou a correspondente liquidação adicional de IRC com o n.º 2020..., que deu lugar ao acerto de contas de 09.12.2020, tendo sido emitida a Demonstração de Acerto de Contas e a Nota de Cobrança, referentes ao ano de 2017, no montante de € 182.519,66 já com os juros compensatórios incluídos. (cfr. Documento n.º 1)
  2. A Requerente não pagou o montante liquidado pela Requerida tendo sido prestada garantia bancária no montante fixado pela Requerida.

 

 

IV. 2 – Fundamentação da matéria de factos provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi  artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto não contestados pelas partes.

 

 

V – Do Mérito

 

Objeto dos autos

 

A questão essencial que é objeto do presente processo é a de saber se a atividade da Requerente no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas à base de carne de aves (produção de carne), correspondente ao Código 10120 da CAE Rev3 se enquadra no âmbito de aplicação do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), podendo beneficiar da dedução à coleta do exercício de 2017, (ou se este Regime não deve ser aplicado por se tratar de atividade excluída do âmbito setorial de aplicação das OAR.)

 

 

 VI - Do Direito

 

VI.1 - Violação do dever de fundamentação

 

 

É hoje doutrinal e jurisprudencialmente aceite que um ato está devidamente fundamentado quando, pela motivação aduzida, se mostra apto a revelar a um destinatário normal as razões de facto e de direito que determinam a decisão, habilitando-o a reagir eficazmente pelas vias legais contra a respetiva lesividade[1].

 

Sobre a fundamentação dos actos tributários tem o Supremo Tribunal Administrativo entendido que[2]: “É sabido que a falta ou insuficiência de fundamentação do acto, vício de natureza formal (e não substancial), se verifica quando o respectivo acto não exterioriza de modo claro, suficiente e congruente, as razões por que apresenta determinado conteúdo decisório. Sendo que a falta ou insuficiência de fundamentação não se confunde com o vício decorrente de erro sobre os pressupostos (este ocorre quando, apesar de o autor do acto ter dado a conhecer as razões em que suporta a decisão, tais razões não são, todavia, apropriadas ou suficientes ou demandavam diversa solução).

(…)

E dado que este dever legal de fundamentação tem, «a par de uma função exógena - dar conhecimento ao administrado das razões da decisão, permitindo-lhe optar pela aceitação do acto ou pela sua impugnação -, uma função endógena consistente na própria ponderação do ente administrador, de forma cuidada, séria e isenta.» (ac. deste STA, de 2/2/2006, rec. nº 1114/05), então, essa fundamentação deve ser contextual e integrada no próprio acto (ainda que o possa ser de forma remissiva), expressa e acessível (através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão), clara (de modo a permitir que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide), suficiente (permitindo ao destinatário do acto um conhecimento concreto da motivação deste) e congruente (a decisão deverá constituir a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação), equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.

 

Nas palavras de Vieira de Andrade[3] “Assim, utilizando a linguagem da jurisprudência, o acto só está fundamentado se um destinatário normalmente diligente ou razoável - uma pessoa normal - colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto acto administrativo (que determinará consoante a sua diversa natureza ou tipo uma maior ou menor exigência da densidade dos elementos de fundamentação) fica em condições de conhecer o itinerário funcional (não psicológico) cognoscitivo e valorativo do autor do acto, sendo, portanto, essencial que o discurso contextual lhe dê a conhecer todo o percurso da apreensão e valoração dos pressupostos de facto e de direito que suportam a decisão ou os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não em qualquer outro. Ela visa «esclarecer concretamente as razões que determinaram a decisão tomada e não encontrar a base substancial que porventura a legitime, já que o dever formal de fundamentação se cumpre “pela apresentação de pressupostos possíveis ou de motivos coerentes e credíveis, enquanto a fundamentação substancial exige a existência de pressupostos reais e de motivos correctos susceptíveis de suportarem uma decisão legítima quanto ao fundo”. O discurso fundamentador tem de ser capaz de esclarecer as razões determinantes do acto, para o que há-de ser um discurso claro e racional; mas, na medida em que a sua falta ou insuficiência acarreta um vício formal, não está em causa, para avaliar da correcção formal do acto, a valia substancial dos fundamentos aduzidos, mas só a sua existência, suficiência e coerência, em termos de dar a conhecer as razões da decisão.[4]»

 

E, na verdade, a Requerente entendeu o sentido e alcance da liquidação sobre o qual recai o pedido de pronúncia arbitral, e demonstra ter compreendido o quadro fáctico e legal em que assentou a decisão da Requerida, o que se deduz da leitura da Reclamação Graciosa e correspondente audição prévia à decisão de indeferimento da mesma, juntas aos autos pela Requerente, bem como do teor do pedido arbitral[ver artigo 138.º], razão pela qual se conclui pela inexistência do vício apontado.

 

 

VI.2. Enquadramento legal do benefício fiscal ao investimento

 

O Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) é um benefício fiscal, previsto no Decreto-Lei nº 162/2014 de 31 de Outubro, que permite às empresas deduzir à coleta apurada uma percentagem do investimento realizado em ativos não correntes (tangíveis e intangíveis).

 

O n.º do artigo 2.º do RFAI estatui o seguinte:

 

O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade inserida nos seguintes códigos da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE-Rev.3):

(…)

  1. Industrias extrativas e transformadoras - divisões 10 a 33
  2. (…)
  3. (…)
  4. Atividades agrícolas, aquícolas, piscícolas, agropecuárias e florestais:

(…)

 

O artigo 2.º do CFI[5] admitia a concessão de benefícios fiscais, em regime contratual, com um período de vigência até 10 anos a contar da conclusão do projeto de investimento de montante igual ou superior a 3 milhões de euros.

 

Para tanto, os projetos devem ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas atividades económicas elencadas nas alíneas do n.º 2, onde se incluem a atividade transformadora e a atividade agrícola, com respeito pelo âmbito setorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020 (OAR) e do RGIC.

 

E o n.º 3 dispõe que cabe aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia definir, por Portaria, os códigos de atividade económica referentes às atividades referidas no n.º 2.

 

Por seu turno o n.º 1 do artigo 22.º do CFI, determina que: O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.

 

O Governo português, através da portaria n.º 282/2014[6] determinou que não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores “da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, da silvicultura (…)

 

O Artigo 2.º da Portaria em análise define o âmbito setorial de aplicação do RFAI e determina que, sem prejuízo das restrições previstas no artigo anterior[7], as atividades económicas previstas no n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, correspondem aos seguintes códigos da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE-Rev.3), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro:

a) Indústrias extrativas - divisões 05 a 09;

b) Indústrias transformadoras - divisões 10 a 33;

(…)

 

Donde, a Portaria excluí do âmbito do RFAI as atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do TFUE, sem prejuízo de identificar os códigos CAE – Rev 3, divisões 10 a 33 para as indústrias transformadoras.

 

Não obstante, o regime definido através do diploma regulamentar encontra-se justificado, no respetivo preâmbulo, pela “necessidade de observar as normas e demais atos emanados das instituições, órgãos e organismos da União Europeia em matéria de auxílios estatais, nomeadamente as Orientações relativas aos  auxílios  estatais  com  finalidade  regional  para  2014-2020,  publicadas  no  Jornal  Oficial  da  União  Europeia  n.º  C  209/1,  de  27  de  julho  de  2013  e  o  Regulamento  (UE)  n.º  651/2014,  de  16  de  junho  de  2014, que aprovou o Regulamento Geral de Isenção por Categoria, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187/1, de 26 de junho de 2014, são também definidos na presente portaria os setores de atividade excluídos da concessão de benefícios fiscais.

 

Ainda a propósito desta matéria, refira-se que a Portaria n.º 297/2015, de 21 de setembro, estabelece que para efeitos da alínea b) do n.º 2 do artigo 22.º do RFAI, independentemente da forma que assuma o investimento inicial, apenas se consideram aplicações relevantes os ativos intangíveis que:

a) Sejam exclusivamente utilizados no estabelecimento objeto dos benefícios fiscais;

b) Sejam amortizáveis, nos termos das regras contabilísticas em vigor;

c) Sejam adquiridos em condições de mercado a terceiros não relacionados com o adquirente; e

d)  Permaneçam  associados  ao  investimento  a  favor  do  qual  o  auxílio  é  concedido  durante  pelo  menos  cinco  anos,  ou  três  anos  no  caso  de  micro,  pequenas  e  médias  empresas  tal  como  definidas  na  Recomendação 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003.

 

Assim, ao abrigo da regulamentação comunitária, mormente, o RGIC – Regulamento Geral de Isenção por Categorias – Regulamento n.º 652/2014, da Comissão de 16/6/2014, a atividade transformadora de produtos agrícolas em produtos agrícolas não está excluída do seu âmbito de aplicação, o que resulta dos considerandos (10) e (11), bem assim como dos artigos 1.º n.ºs 1 e 3, e 13.º, alínea b), cujo teor se transcreve de seguida:

 

Considerandos:

(…)

(10) O presente regulamento deve aplicar-se, em princípio, à maioria dos setores económicos. No entanto, em alguns setores, como a pesca e a aquicultura e a produção agrícola primária, o âmbito de aplicação deve ser limitado à luz das regras especiais aplicáveis. 

(11) O presente regulamento deve aplicar-se à transformação e comercialização de produtos agrícolas, desde que se encontrem reunidas determinadas condições. Para efeitos do presente regulamento, nem as atividades de preparação dos produtos para a primeira venda efetuadas nas explorações agrícolas, nem a primeira venda por um produtor primário a revendedores ou a transformadores, nem qualquer atividade que prepare um produto para uma primeira venda devem ser consideradas atividades de transformação ou  de comercialização. 

 

Artigo 1.º n.ºs 1 e 3 Âmbito de aplicação

 

O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios:

(…)

b)  Auxílios  concedidos  no  setor  da  produção  agrícola  primária,  com  exceção  da  compensação  de  custos  adicionais  que  não  custos  de  transporte  nas  regiões  ultraperiféricas,  tal  como  previsto  no  artigo  15.º,  n.º 2,  alínea  b),  dos  auxílios  em  matéria  de  consultoria  a  favor  das  PME,  dos  auxílios  ao  financiamento  de  risco,  dos  auxílios  à  investigação  e  desenvolvimento,  dos  auxílios  à  inovação  a  favor  das  PME,  dos  auxílios  à  proteção  do  ambiente,  dos  auxílios  a  trabalhadores  desfavorecidos  e  a  trabalhadores  com  deficiência; 

c) Auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas, nos seguintes casos: 

i) sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou 

ii) sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários;

 

Resulta do preceituado no RGIC que este diploma é aplicável aos auxílios com finalidade regional, como são os previstos no CFI face ao preceituado no artigo 2.º n.º 2 deste Código, sendo o afastamento da aplicação do RGIC estabelecido nos termos do artigo 1.º acima transcrito, depreende-se que este diploma é aplicável aos auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas em todos os casos em que não seja excluído por força do estatuído nos pontos (i) e (ii) da alínea c).

 

Consequentemente, não se verificando nenhuma das situações indicadas nas subalíneas (i) e (ii) no caso em apreço, tem de se concluir que a aplicação do benefício fiscal do RFAI também não é afastada pelo RGIC.

 

 

Artigo 13.º n.º 1 alínea b) do RGIC – Âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional:

 

A presente secção não é aplicável aos seguintes auxílios:

(…)

 

b)   Auxílios com finalidade regional sob a forma de regimes orientados para um número limitado de setores específicos de atividade económica; os regimes destinados a atividades turísticas, infraestruturas de banda larga ou comercialização e transformação de produtos agrícolas não são considerados orientados para setores específicos da atividade económica.

 

Ao excluir do âmbito de aplicação os “auxílios com finalidade regional sob a forma de regimes orientados para um número limitado de setores específicos da atividade económica”, mas esclarecendo que não é como tal considerada a “transformação de produtos agrícolas”, conclui-se que a atividade da Requerente se inclui no âmbito de aplicação do RGIC, pelo que a exceção que se prevê no final do artigo 22.º do RFAI não afasta a aplicação dos seus benefícios àquela atividade.

 

Analisando agora as OAR – Orientações para os auxílios Estatais o setor agrícola – a nota de rodapé (11) referente ao setor agrícola, esclarece que “Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola.

 

Por seu turno as OAR para 2014 -2010, referem no seu ponto 33:

Em virtude das especificidades do setor, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 (27). Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações.

 

Resulta do teor da segunda parte do ponto 33 que as OAR se aplicam à transformação de produtos agrícolas, dentro dos limites das Orientações.

 

E, na secção, 1.1.1.4, ponto (168) das mesmas «Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020» estabelece-se que:

(168) Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio:

  1. Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado;
  2. Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020;
  3. As condições estabelecidas na presente secção.

 

CONCLUSÕES:

 

Da análise da legislação comunitária conclui-se que, a atividade da Requerente, de transformação e comercialização de produtos agrícolas (à base de carne), não é uma das atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR’s a que se refere a parte final do artigo 22.º n.º 1 do CFI; pelo contrário, desde que satisfaçam as condições previstas no RGIC, ou nas OAR na secção em que se insere o ponto 168, são permitidos os auxílios estatais.

 

Resulta de todas estas disposições de direito europeu, interpretadas articuladamente, que a «transformação de produtos agrícolas» inclui a transformação de animais e carnes e miudezas, que se enquadram no conceito de «produto agrícola» a que se refere a alínea 11) do artigo 2.º do RGIC.

 

Por outro lado, por força do disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea c), do RGIC, acima transcrito, só se encontra vedada a concessão de auxílios à atividade de transformação e de comercialização de produtos agrícolas se se verificar qualquer das situações mencionadas nas suas subalíneas i) ou ii) desta disposição normativa, ou seja, “sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa; ou sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.”

 

Posto isto, como a Autoridade Tributária baseou a exclusão do benefício fiscal no disposto no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, impõe-se apurar se a Portaria é suficiente para afastar a subsunção da atividade da Requerente à aplicação dos benefícios previstos no RFAI, e de saber se a solução legislativa e regulamentar adotada no âmbito do RFAI é compatível com o princípio da legalidade tributária.   

 

Ora, não excluindo o Regulamento Comunitário[8], abreviadamente designado de RGIC, do seu âmbito de aplicação as atividades de agricultura, nem tão pouco de transformação de produtos agrícolas, não pode a Portaria[9] de execução excluir a atividade de transformação de produtos agrícolas, uma vez que aquele se sobrepõe a esta.

 

Em bom rigor, a Portaria de execução, o CFI e demais legislação regulamentar, têm de ser entendidos como instrumentos de execução, efetivação e aplicação das normas e dos princípios comunitários, não podendo derrogar nem prevalecer sobre estas.

 

Ou seja, não se verificando nenhuma das exclusões de auxílios às atividades económicas da transformação e comercialização de produtos agrícolas, descritos nas subalíneas i) ou ii), da alínea c) do n.º 3 do artigo 3.º, nem resultando demonstrado que se verificava algum desses requisitos, não é possível afastar a atribuição do benefício fiscal.

 

Conforme já decidido nos processos 463/2019-T, 434/2020-T e 333/2021-T, não há motivo para fazer prevalecer a regra que consta do artigo 1º da Portaria sobre a alínea c) do n.º 3 do artigo 3.º do RGIC.

 

Tendo sido este o único argumento da AT, para desconsiderar o benefício fiscal e proceder à correção, argumento que face a tudo quanto acima se disse este Tribunal repudia, a liquidação adicional de IRC relativa aos exercícios de 2017 é ilegal.

 

            Conclui-se, assim, pela ilegalidade da liquidação impugnada que enferma de vício por erro sobre os pressupostos de direito, por a AT ter pressuposto o entendimento que a atividade da Requerente não era elegível para efeitos de RFAI.

 

            Isto porque enquadrando-se a indústria transformadora no n.º 2 do artigo 2.º do CFI não estamos perante uma atividade excluída do âmbito de aplicação das OAR e do RGIC, para efeitos do artigo 22.º n.º 2 do CFI, e ademais a Portaria não pode afastar, validamente, benefícios prevenidos na lei.

 

VI.3. Reenvio prejudicial

      

            A AT solicitou o reenvio prejudicial para o TJUE por considerar que a questão de direito europeu não é clara

 

Cabe exclusivamente a este Tribunal decidir se é necessária uma decisão prejudicial para poder proferir decisão.

 

            Nos termos dos artigos 19º, n.º 3 alínea b) e 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), prevê-se o reenvio prejudicial para o TJUE, obrigatório, quando uma questão sobre a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União seja suscitada em processo em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno.

 

É entendimento jurisprudencial e doutrinal comummente aceite que o reenvio prejudicial para o TJUE só se justifica quando o julgador tenha dúvidas quanto ao sentido e alcance de alguma disposição do direito da União Europeia. Quando tal dúvida não exista, deve o tribunal arbitral limitar-se a aplicar o direito da União Europeia, mesmo que alguma disposição de direito interno com ele se mostre desconforme.

 

            Acolhendo-se as conclusões da decisão prolatada no processo n.º 771/2019-T: “(…) para recorrer ao processo de reenvio de uma ou mais questões a título prejudicial, para interpretação de uma ou mais normas jurídicas de direito comunitário, originário ou derivado, é necessário que subsistam dúvidas sobre a interpretação do texto em causa. Pelo contrário, se o texto é perfeitamente claro, não se trata de interpretar, mas sim de o aplicar, o que é da competência do Tribunal/Juiz/Árbitro incumbido da competência de julgar o caso concreto aplicando a lei, a nacional e/ou a comunitária se for esse o caso. Este entendimento é amplamente conhecido e defendido pela doutrina e pela jurisprudência como a “teoria do acto claro”.”

 

Ora, no caso vertente não subsiste qualquer dúvida quanto à interpretação do disposto nas disposições conjugadas de direito comunitário e direito interno a propósito da aplicação do RFAI à atividade da Requerente, havendo vasta jurisprudência a suportar que a indústria transformadora não está excluída do âmbito setorial de aplicação das OAT e do RGIC e que não pode uma Portaria afastar diplomas de natureza legislativa, posição também sufragada por este tribunal arbitral.

 

Assim, rejeita-se o pedido de reenvio prejudicial.

 

VI.3. Inconstitucionalidade

 

A Requerente suscita a questão da inconstitucionalidade formal da limitação da aplicação do RFAI através de Portaria ou, pelo menos, da aplicação e interpretação que dela faz a AT, por ser contrária aos princípios da legalidade e igualdade, pugnando por uma interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa.

 

            No tocante ao princípio da legalidade tributária, o artigo 103.º n.º 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP) dispõe sobre a exigência formal de reserva de lei parlamentar em matéria fiscal, segundo o qual o estabelecimento de tributos está sujeito a reserva de lei, quer no âmbito formal quer no âmbito substancial; e neste último caso, por ter de ser a lei a estabelecer a incidência e a taxa (pelo menos o núcleo essencial desses elementos) de modo a que se verifique a suscetibilidade de previsão e definição objetiva da obrigação tributária, sem que ocorra a necessidade de os órgãos de aplicação do direito introduzirem critérios ou elementos subjetivos - próprios ou de terceiros - na determinação do tributo devido.

 

Ou seja, o princípio da legalidade tributária materializa-se, para além da reserva de lei, também na tipicidade e determinação[10], abrangendo os elementos essenciais dos impostos como os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.

 

Ora, o benefício fiscal RFAI encontra-se a coberto pela reserva de lei e o CFI, que o contempla, foi aprovado por Decreto-Lei no uso de autorização legislativa, encontrando-se satisfeitos os requisitos de reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República.

 

O legislador definiu o leque dos setores de atividade a que se dirigem os incentivos do RFAI e optou por remeter, através do n.º 3 do artigo 2.º do CFI, a concretização dos códigos de atividade (CAE) aos quais o benefício será aplicável para portaria, o que veio a ser concretizado através da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro.

 

À Portaria incumbiu fixar as disposições regulamentares necessária à boa execução dos incentivos fiscais, respondendo à necessidade de conformar o direito nacional com o direito comunitário, não podendo ser assacado o vício de inconstitucionalidade formal às normas que regem os incentivos RFAI.

 

No sentido da inexistência de inconstitucionalidade formal da acima aludida Portaria, entendimento sufragado por este Tribunal Arbitral, transcreve-se o excerto do sumário da decisão arbitral prolatada no processo n.º 89/2021-T:

“II - A Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que, em execução daquela disposição legal, definiu, no seu artigo 2.º, os códigos de classificação de atividades económicas a que se aplicam os benefícios fiscais, não derrogou o regime jurídico estatuído pelo artigo 2.º, n.º 2, do CFI quanto ao âmbito objetivo de aplicação desses benefícios, nem viola o princípio da reserva legislativa da Assembleia da República em matéria de impostos ou o princípio da proibição de atos não legislativos de interpretação e integração das leis;”

(…)

 

No demais, parece a Requerente confundir os princípios constitucionais da igualdade e legalidade com o princípio da precedência e da prevalência da lei, constante no artigo 262.º da CRP, que se traduz na subordinação da administração à lei.

 

A questão da inconstitucionalidade suscitada é, pois, manifestamente improcedente.

 

VII – Vícios de conhecimento prejudicado

 

Face à solução a que se chega, fica prejudicado o conhecimento de outros vícios que tenham sido invocados.

 

VII – Restituição de encargo suportado com a prestação indevida de garantia

 

A Requerente formulou, acessoriamente, pedido de pagamento dos encargos suportados com a prestação de garantia bancária, ou seja, o direito a indemnização por garantia indevida.

 

 A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais tributários restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito, conforme resulta expressamente da alínea b) do art.º 24.º do RJAT.

 

            No mesmo preceito “o legislador deixou claro que os efeitos aí previstos são “sem prejuízo dos demais efeitos previstos no Código do Procedimento e do Processo Tributário”. Considera-se a este propósito que o legislador aqui se está a referir a todos os efeitos que decorram do CPPT, para o sujeito passivo, e que são aplicáveis após a consolidação na ordem jurídica de uma determinada situação jurídico-fiscal, decorrente de uma decisão definitiva seja ela graciosa ou judicial.”

 

            Não obstante o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação, pode nele ser proferida condenação da Administração Tributária no pagamento de indemnização por garantia indevida, conforme resulta do art.º 171.º do CPPT.

 

Como se referiu na decisão proferida no Processo nº 28/2013-T  “é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação. O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido art. 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.”

 

Conclui-se, assim, que este tribunal é competente para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevidamente prestada.

 

            O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

 

1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.

2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.”

4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.”

 

No caso em apreço, verifica-se que o erro que padece o ato de liquidação anulado é imputável à Entidade Requerida pois a liquidação foi da sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esse erro fosse praticado.

 

No caso, verifica-se que a Requerente prestou garantia bancária, suportando os custos óbvios inerentes e que serão eventualmente objeto de liquidação em sede de execução de jugado conforme se decidirá infra.

 

VIII - Decisão

 

Nestes termos, em conformidade com o acima exposto, decide-se, julgar procedente o pedido e, em consequência:

  1. Julga-se totalmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de tributação adicional de IRC relativo ao exercício de 2017 e da respetiva liquidação de juros compensatórios, com a consequente anulação das mesmas;
  2. Condena-se a Requerida no reembolso dos encargos suportados com a prestação de garantia e a liquidar em sede de execução do julgado e
  3. Condena-se a Requerida nas custas do processo, atento o seu total decaimento.

 

 

IX - Valor do processo:

 

Fixa-se ao processo o valor de € 182.519,66 (cento e oitenta e dois mil quinhentos e dezanove euros e sessenta e seis cêntimos), indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 306.º do CPC, artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT bem assim como do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

X - Custas

 

Nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.672,00.

 

Notifique-se.

 

 Lisboa, 21 de abril de 2022

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

Juiz José Poças Facão

(Presidente)

 

 

Fernando Miranda Ferreira

(Árbitro Vogal)

 

 

Cristina Coisinha

(Relatora)



[1] Acórdão do STA, de 13-04-2000, Processo n.º 31616

[2] Acórdão proferido no recurso n.º 01173/14, de 09-09-2015

[3] Cf. “O Dever de Fundamentação Expressa dos Actos Administrativos”, 1990, pag. 239

[4] Cfr. Vieira de Andrade – ob. cit. pag. 239, na citação do ac. do STA, de 11/12/2002, rec. 01486/02

[5] Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31/10

[6] Artigo 1.º da Portaria 282/2014, de 30 de dezembro

[7] Artigo 1.º da Portaria 282/2014, de 30 de dezembro

[8] Regulamento Comunitário (UE) n.º 651/2014, da Comissão de 16 de junho de 2014

[9] Portaria n. 282/2914, de 30 de setembro

[10] sobre a questão cf. Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, pg 328, ss