Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 740/2020-T
Data da decisão: 2022-04-19   
Valor do pedido: € 151.854,01
Tema: IVA – Direito à dedução – Requisitos formais e substantivos. Arts. 19.º, 20.º e 36.º do CIVA.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Jorge Carita e António Pragal Colaço (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 3 de maio de 2021, acordam no seguinte:

 

 

  1. Relatório

 

A..., Lda., sociedade adiante designada por “Requerente”, com o número de identificação de pessoa coletiva ... e sede no ..., ...-...,  ..., apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 10.º, n.º 1 alínea a), todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e, bem assim, dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (“Portaria de Vinculação”), na redação vigente.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante identificada por “AT” ou Requerida.

A Requerente pretende a declaração de ilegalidade das decisões de indeferimento do recurso hierárquico e da reclamação graciosa deduzidos contra as liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) referentes aos períodos trimestrais de junho de 2017, dezembro de 2017 e mensal de fevereiro 2018, no valor global de € 151.854,01.

Em consequência, pretende ainda a anulação dos referidos atos de liquidação de IVA e a condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios. A título subsidiário, no caso de o Tribunal entender estar subjacente uma questão de direito da União Europeia, requer o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 9 de dezembro de 2020 e notificado à AT.

 

Nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As Partes, notificadas dessa designação em 29 de janeiro de 2021, não manifestaram vontade de a recusar, atento o preceituado nos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Com a aprovação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, foram suspensos os prazos procedimentais e processuais, no âmbito das medidas da pandemia Covid 19. Esta suspensão cessou com a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, prosseguindo a tramitação processual a partir de 6 de abril de 2021.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 3 de maio de 2021.

 

Em 7 de junho de 2021, a Requerida apresentou a sua Resposta, na qual se defendeu por exceção e por impugnação. Protestou juntar o processo administrativo, não o tendo feito, o que  é livremente apreciado pelo Tribunal (v. artigo 110.º do CPPT[1], ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT).

 

A Requerente foi notificada para exercer o contraditório sobre a matéria de exceção constante da Resposta, o que fez em 29 de junho de 2021. 

 

Em 15 de setembro de 2021, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, com inquirição das duas testemunhas arroladas pela Requerente, tendo o Tribunal relegado o conhecimento da matéria de exceção e o eventual reenvio prejudicial para a decisão a proferir a final. As Partes foram notificadas para apresentarem alegações e fixou-se o prazo para prolação da decisão, com advertência da necessidade de pagamento da taxa arbitral subsequente por parte da Requerente até essa data (v. ata que se dá por reproduzida e gravação áudio disponível no SGP do CAAD).

 

Em 4 de outubro de 2021, Requerente e Requerida apresentaram as suas alegações, reafirmando, no essencial, as posições assumidas nos articulados iniciais.

 

Por despachos de 25 de outubro e 28 de dezembro de 2021 e de 28 de fevereiro de 2022, foi prorrogado o prazo para prolação da decisão, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, derivado da tramitação processual, da interposição de períodos de férias judiciais e da situação pandémica.

 

Posição da Requerente

 

A Requerente contesta as correções promovidas pela Requerida à dedução do IVA incorrido em relação a redébitos que lhe foram efetuados pela sociedade B..., S.A., entendendo estarem cumpridos os pressupostos para o exercício desse direito. Considera não ter ocorrido qualquer violação dos requisitos formais do direito à dedução do IVA e, mesmo que assim não se entendesse, afirma ter demonstrado a satisfação dos requisitos substantivos, i.e., a especificação dos serviços adquiridos e a respetiva conexão com as suas operações tributadas que realiza.

 

Salienta que o direito à dedução visa libertar inteiramente o sujeito passivo do “peso” do IVA incorrido e que o sistema comum do IVA garante a neutralidade da carga fiscal de todas as atividades económicas. Assim, mesmo quando os requisitos formais não estejam satisfeitos e a fatura não indique de forma suficientemente detalhada a natureza dos serviços em causa (no que a Requerente não concede), a AT deve verificar se a documentação apresentada pelo sujeito passivo é suscetível de complementar a descrição constante da fatura, não podendo recusar o direito à dedução pelo simples facto de a fatura não preencher esses requisitos, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça e da parametria dos princípios da efetividade e da proporcionalidade.

 

Sustenta que a Requerida ignorou os elementos apresentados quando da ação inspetiva, que lhe permitiriam aferir da verificação dos requisitos substantivos, i.e., da conexão com as operações tributadas, nos termos do artigo 20.º do Código do IVA e do artigo 168.º da Diretiva IVA (2006/112/CE, do Conselho, de 28 de novembro), e controlar o pagamento do imposto devido e os riscos de perda de receita fiscal. Deste modo, afirma ter satisfeito o ónus da prova à luz do disposto no artigo 74.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

 

Por outro lado, assinala que a Diretiva IVA não prevê a discriminação detalhada dos serviços prestados, nem tão-pouco no Código do IVA, referindo-se este último à quantidade e denominação usual dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável – v. artigo 36.º, n.º 5, alínea c) do Código do IVA. Deste modo, não é legítimo condicionar o direito à dedução a requisitos das faturas que não estão expressamente previstos na Diretiva IVA, nomeadamente no seu artigo 226.º.

 

No caso concreto, estamos perante serviços jurídicos e de consultoria prestados com caráter continuado ao longo do tempo, cuja descrição detalhada nas faturas se revelaria impraticável e excessivamente onerosa para os sujeitos passivos prestadores. A sociedade B..., S.A. atua como central de compras das demais entidades do grupo, tendo adquirido os referidos serviços no âmbito da sua atividade e refaturado os mesmos à Requerente, que, em parte, os refaturou posteriormente a outras sociedades do grupo, na medida em que lhes eram imputáveis, concluindo pelo preenchimento dos requisitos legais constitutivos do direito à dedução do IVA.

Posição da Requerida

 

Segundo a Requerida, foi sindicado o ato de deferimento parcial do reembolso de IVA que não se subsume à definição de ato de liquidação. Assim, o meio contencioso próprio seria a ação administrativa especial e não a ação arbitral[2], nos termos da regra taxativa conformadora da competência prevista no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, que contempla somente a sindicabilidade, nos Tribunais Arbitrais, dos atos de liquidação, autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta[3].

 

Assinala a AT que no campo “Reembolso Autorizado” das apelidadas liquidações não se indica o montante das correções (de IVA) efetuadas através dos procedimentos inspetivos à Requerente, nem esta foi notificada de atos de liquidação expressando valores em dívida.

 

Acrescenta que a interpretação normativa acerca do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, no sentido de considerar a jurisdição arbitral competente in casu é inconstitucional, por violação do artigo 212.º, n.º 3 da Constituição, uma vez que a lei não lhe atribuiu competência para apreciar pedidos de reembolso. Por outro lado, as reações recursórias às decisões arbitrais são limitadas, pelo que apenas podem versar sobre as matérias previstas no artigo 2.º do RJAT, sob pena de violação do princípio do livre acesso aos tribunais, na vertente do duplo grau de jurisdição, decorrentes dos artigos 20.º e 268.º da Constituição.

 

Nestes termos, conclui estarmos perante a exceção dilatória de incompetência absoluta do foro arbitral com a consequente absolvição da Requerida da instância.

 

À cautela e por impugnação, a Requerida alega verificarem-se desconformidades entre as descrições das faturas, os elementos dos contratos e as explicações fornecidas, subsistindo três dúvidas acerca das operações tituladas: (i) no que consistiram efetivamente os serviços titulados; (ii) qual a medida em que tais operações contribuíram para as operações tributáveis da Requerente; e (iii) qual a extensão dos serviços titulados pelas faturas.

 

Assim, a não aceitação do direito à dedução do IVA em relação às faturas em causa, não se fundou apenas no incumprimento de exigências formais, mas no facto de não se ter comprovado, em concreto, a relação dos serviços com a atividade da Requerente, ou seja, na falta de prova dos requisitos substantivos do direito à dedução do IVA, ónus que sobre aquela impendia, de acordo com o disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT.

 

Na perspetiva da Requerida, apesar de o descritivo das faturas não ter de ser exaustivo, tem de ser suficiente para, quando complementado com informação adicional, permitir uma adequada gestão do imposto, contendo a quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, o que não se verificou.  O entendimento do Tribunal de Justiça é no sentido de o incumprimento formal ser superável pela comprovação complementar à fatura, a qual, no entender da Requerida, deve ser documental e contemporânea daquela, sendo insuscetível de suprimento pela prova testemunhal.

 

Defende, em simultâneo, que mesmo que as condições objetivas, subjetivas e temporais se encontrassem reunidas, a inobservância das condições formais, dada a atribuição de um “carácter quase sacramental à fatura”, é suficiente para impedir o direito à dedução do IVA, pois trata-se de formalidade “ad substantiam”, sem a qual sucumbe a faculdade de exercício do referido direito (v. artigo 19.º, n.º 2 do Código do IVA). Permitir a dedução à Requerente ao arrepio destes requisitos constituiria uma violação do princípio da neutralidade.

 

Conclui pela procedência da exceção e, a título subsidiário, pela improcedência da ação arbitral. 

* * *

            Tendo sido suscitada pela Requerida a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, cujo conhecimento tem caráter prioritário, a mesma é de seguida apreciada, logo após a fixação da matéria de facto.

 

 

  1. Fundamentação de Facto

 

  1. Factos Provados

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:

 

  1. A A..., Lda., aqui Requerente, é uma sociedade por quotas, cujo objeto social consiste na exploração agrícola de olival para produção de azeite e azeitona de mesa, atividades relacionadas com caça e repovoamento cinegético e, bem assim, agricultura e produção animal combinadas, encontrando-se registada para o exercício da sua atividade com o CAE (principal) 01261 – Olivicultura – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”).
  2. Em 2017, a Requerente estava enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral, para efeitos de IVA, tendo passado, a partir de 1 de janeiro de 2018, para o regime de periodicidade mensal, e realiza operações que conferem o direito à dedução deste imposto – cf. RIT.
  3. A Requerente é detida direta e indiretamente pelo Fundo C... Fundo Capital Risco (“Fundo C...”), do qual a sociedade D...– Sociedade de Capital de Risco, S.A. (“D...”), é a sociedade gestora – cf. RIT e depoimento da primeira testemunha.
  4. A Requerente explora diversos olivais implantados em prédios rústicos, localizados na freguesia de ..., numa área designada por “...”, situada na Herdade da..., procedendo à recolha de azeitonas e subsequente transformação e comercialização de azeite e azeitonas de mesa, em especial, para os mercados italiano e espanhol – cf. RIT.
  5. Para tal, a Requerente, recorre maioritariamente aos serviços de um terceiro, a sociedade B..., S.A. (“B...”), entidade que integra o grupo empresarial em que se insere a Requerente e que atua como central de compras do grupo – cf. RIT e documento 4.
  6. Em 26 de junho de 2016, a Requerente celebrou com a B... um contrato de prestação de serviços relacionado com gestão e mão-de-obra e aquisição de produtos e serviços associados à Herdade da ..., a título de exemplo, serviços agrícolas de transporte, jurídicos e de consultoria. Neste âmbito, a B... refatura à Requerente os encargos incorridos numa base de custo acrescido de uma margem de 5% – cf. RIT e documento 4.
  7. Em 10 de setembro de 2016, a Requerente celebrou um contrato com a D... tendo em vista a prestação por esta última entidade de “serviços técnicos de estruturação, monitorização e de acompanhamento”, no âmbito de operações de investimento, operações de recuperação de créditos, controlo de gestão, análise e desenvolvimento de negócio e estrutura financeira – cf. documento 11.
  8. Nos meses de janeiro e dezembro de 2017, bem como no mês de fevereiro de 2018, no âmbito do mencionado contrato de prestação de serviços celebrado com a B..., esta redebitou à Requerente a título de serviços jurídicos e de consultoria, os valores indicados no Quadro II infra, que se referiam a serviços adquiridos pela B... aos prestadores E..., RL (“E...”) e D..., nos termos discriminados nos quadros infra – cf. RIT e documentos 5 e 6:

Quadro I - Serviços adquiridos pela B...

Entidade emitente

N.º da fatura

Base tributável

D...

FV/1700078

€ 190.680,00

E...

FT 90074510

€ 393.353,13

E...

FT 90084312

€ 44.761,92

 

Quadro II - Serviços redebitados à Requerente

N.º da fatura

Base tributável

IVA liquidado

FA 2018/120

€ 200.214,00

€ 46.049,22

FA 2017/10

€ 413.020,79

€ 94.994,78

FT 2017/224

€ 47.000,02

€ 10.810,02

 

  1. O descritivo constante das faturas de redébito à Requerente acima mencionadas é o seguinte – cf. documento 6:
  • FA 2018/120 – Redébito de despesas, Trabalhos especializados consultoria 23%;
  • FA 2017/10 – Redébito de despesas, Honorários – mercado nacional;
  • FA 2017/224 – Redébito de despesas, Honorários – mercado nacional.
  1. O prestador de serviços jurídicos E... elaborou um documento autónomo denominado “Relação de serviços prestados” no qual enumera com detalhe as diversas tarefas inerentes aos serviços prestados sob a epígrafe “Assunto: Grupo ... Transação”, sem contudo, atribuir o respetivo valor segregado e mencionando diversas entidades beneficiárias desses serviços – cf. RIT e documento 10. 
  2. Sendo a maioria das operações ativas realizadas pela Requerente transmissões intracomunitárias de bens, esta encontra-se recorrentemente em situação de crédito de imposto – cf. RIT.
  3. Com referência ao período de abril de 2018, constava da declaração de IVA da Requerente o crédito de imposto na importância de € 687.935,24, tendo aquela solicitado o respetivo reembolso nessa declaração (pedido de reembolso de IVA n.º...) – cf. RIT.
  4. A Requerente foi objeto de um procedimento inspetivo externo de âmbito parcial - IVA, ao abrigo das ordens de serviço OI2018... e OI2018..., para os anos 2018 e 2017, respetivamente. Acresce que tendo sido detetadas irregularidades no decurso do procedimento em relação ao ano 2017, foi aberta a OI2018..., de âmbito interno – cf. RIT.
  5. Em 20 de novembro de 2018, a Requerente foi notificada do projeto de relatório de inspeção, através do Ofício n.º..., de 15 de novembro de 2018, que propunha correções de IVA no valor global de € 163.408,80, tendo optado por não exercer o direito de audição – cf. documento 7.
  6. O projeto de relatório converteu-se em Relatório de Inspeção Tributária (final), com despacho de concordância do Chefe de Divisão da Inspeção Tributária da Direção de Finanças de ..., de 10 de dezembro de 2018, do qual consta a fundamentação dos atos tributários impugnados, de que se retiram os seguintes excertos com relevância para a matéria dos autos – cf. documento 8:

2.3.6. – Outros elementos relevantes

O sujeito passivo recorre maioritariamente aos serviços de um terceiro – empresa B..., SA (doravante também designada por "B...") […] – empresa com a qual celebrou um contrato de prestação de serviços relacionados com a gestão e mão-de-obra, bem como as aquisições de bens e serviços necessários à atividade do sujeito passivo, e que lhe redebita o custo dessas aquisições, acrescida de uma margem de 5% sobre o valor desse custo. Nestas aquisições destaca-se a subcontratação de empresas de serviços agrícolas, o custo com electricidade, o transporte de mercadorias, a aquisição de produtos fito-sanitários, os honorários relativos aos serviços jurídicos prestados pela E..., RL e a prestação de serviços de consultoria efectuada pela D..., S.A. (doravante também designada por D...). O crédito acumulado desde o início da atividade tem origem fundamentalmente em IVA dedutível, respeitante a aquisições de bens e serviços redebitadas pela referida empresa B..., SA.

No que respeita aos valores declarados no campo 20 das declarações periódicas de IVA – Iva dedutível relativo a ativos fixos - destacam-se as aquisições de tractores e alfaias agrícolas, quadriciclos (sem matrícula atribuídas) e de um sistema de rega (ao qual foi aplicada a regra da inversão do sujeito passivo prevista no al. j) do n.º 1 do art. 2º do CIVA).

[…]

CAPÍTULO III – DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA COLETÁVEL

  1. Imposto sobre o Valor Acrescentado

[…]

  1. Dedução indevida nos termos da alínea c) do n.º1 do artigo 20º do CIVA

Para apuramento do imposto devido, dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 19º do CIVA, que os sujeitos passivos têm direito à dedução do imposto incidente sobre as aquisições de bens e serviços efectuadas a outros sujeitos passivos, sendo que, só confere esse direito, o imposto suportado com operações que contribuem para as transmissões de bens e serviços sujeitas e não isentas, nos termos da alínea a) do n.º1 do artigo 20º do CIVA.

Na sequência da análise ao documento anteriormente mencionado, a fatura n.º FA2017/224, emitida pela B..., em 31/12/2017 (com IVA deduzido no valor da 10.810,00€, contabilizado na conta SNC 24323132311 em 31/12/2017), e que respeita ao redébito da fatura nº 90084312 emitida pela E..., RL, constatou-se que juntamente com a referida fatura n.º 90084312, constam 10 páginas com as datas e as descrições dos serviços prestados pela sociedade de advogados, constando no topo de cada página a seguinte menção "Assunto: Grupo ... Transação". Refira-se que o primeiro descritivo tem a data de "26.10.2016" e o último de "08.09.2017". Às referidas descrições não se encontra associado qualquer valor, sendo que, da sua leitura é possível associar serviços prestados a entidades diversas, nomeadamente à D..., ao Fundo C..., à F..., Lda, à B..., Lda, à G..., Lda, à H..., Lda, à I... e também à A..., Lda. No entanto, a B... redebitou a totalidade do documento (acrescido da margem de 5%) ao sujeito passivo, que desta forma suportou e deduziu imposto relativo a encargos que não lhe respeitam, por se tratar de serviços prestados a outras entidades, pelo que, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19º conjugado com a alínea a) do n.º 1 do artigo 20º, ambos do CIVA, não lhe assiste o direito à dedução do referido imposto. Dado que, nas descrições dos serviços prestados pela sociedade de advogados não se encontra associado qualquer valor, não é possível aferir qual o valor que respeita ao encargo suportado pelo sujeito passivo, não lhe conferindo assim o direito à dedução do imposto suportado neste documento.

Do facto, resulta uma correção ao imposto deduzido, no valor de 10.810.00€, no período 201712T.

  1.      Dedução indevida nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19º do CIVA conjugada com alínea a) do n.º1 do artigo 20º do CIVA

Tal como anteriormente já referido, para apuramento do imposto devido, dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 19º do CIVA, que os sujeitos passivos têm direito à dedução do imposto incidente sobre as aquisições de bens e serviços efectuadas a outros sujeitos passivos, sendo que só confere esse direito, o imposto suportado com operações que contribuem para as transmissões de bens e serviços sujeitas e não isentas, nos termos da alínea a) do n.º1 do artigo 20º do CIVA e cujo imposto se encontre mencionado nos documentos referidos no n.º 2 do artigo 19º do CIVA, em faturas passadas na forma legal.

Ao nível das formalidades na emissão das referidas faturas há que ter presente o artigo 36º do CIVA, sendo que o n.º 5 deste artigo estipula que as faturas devem ser datadas, numeradas sequencialmente e conter determinados elementos, entre os quais os referidos na alínea b) – A quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação das elementos necessários à determinação da taxa aplicável…»

Importa assim, que nas faturas, se descreva o bem ou serviço prestado de uma forma clara e inequívoca, tendo em vista não só a correta aplicação da taxa de imposto mas também, determinar a necessidade e de que forma aquele bem ou serviço contribuiu para a realização das operações tributáveis.

Neste âmbito, constatou-se a dedução de IVA relativamente aos seguintes documentos:

 

Fatura

Contabilidade

 

Data

Número

Valor Líquido

IVA

Conta

Data lançam.

Diário

N.º Diário

Valor deduzido

a)

01-06-2017

FA 2017/10

413.020,79

94.994,78

24323132311

30-06-2017

41

10

94.994,78

b)

23-02-2018

FA2018/120

200.214,00

46.049,22

24323132311

23-02-2018

41

20149

46.049,22

 

a) No que respeita à fatura FA 2017/10 emitida pela B... e contabilizada como acima mencionado, na qual o sujeito passivo exerceu o direito à dedução de IVA, consta na descrição da mesma o redébito de "Honorários - mercado nacional", quantidade "1", com o valor unitário de 413.020,79€", sujeito à taxa de IVA de 23%. Junto a esta fatura, encontra-se o documento a que respeita o redébito - a fatura n.º 90074510, emitida pela E..., RL […], à B..., com a menção "Assunto: 23984.0001 — Grupo ... Transação" com o valor total de 393.535,13€ acrescido de IVA à taxa de 23% e com as seguintes descrições:

  • "Honorários por serviços jurídicos prestados" no valor de 388.954,00€;
  • Várias despesas efectuadas - fotócópias, correio, telefone, telefax, deslocações" no valor de 4.399,13€.

Em nenhum dos referidos documentos consta uma descrição detalhada dos serviços efetivamente prestados e as datas em que foram efectuados os mesmos, recorrendo-se a descrições genéricas que não permitem pôr em evidência a extensão dos serviços prestados, tendo presente que o conceito de serviços jurídicos abrange um vasto conjunto de serviços, como aliás se verificou no documento analisado no ponto anterior, no qual constava efectivamente uma descrição detalhada e datada dos serviços prestados.

b) Relativamente à fatura n.º FA2018/120, emitida pela B..., Lda […], na qual consta a descrição "Redébito de despesas - Trabalhos especializados consultoria 23%" com a quantidade "1" e o preço unitário de "200.214,00€", sem que se faça qualquer referência ao documento a que respeita aquele redébito. Junto a esta fatura consta unicamente a fatura n.º FV/1700078, emitida pela D..., S.A. […], cujo adquirente do serviço é a B..., Lda […], e na qual consta a descrição "Prestação de serviços de consultoria", quantidade "1" e o valor unitário de "190.680,00€".

O sujeito passivo apresentou, no decurso da acção, o contrato de prestação de serviços celebrado em Setembro de 2016, entre a D... e a A..., no qual a primeira se obriga a prestar à segunda "serviços técnicos de estruturação, monitorização e de acompanhamento elencados no Anexo I, que dele faz parte integrante" - conforme ponto 1.1 do referido contrato. No mencionado Anexo I ao contrato de prestação de serviços consta uma lista de serviços a prestar pela D... à A..., no âmbito de operações de investimento, operações de recuperação de créditos, controlo de gestão, análise e desenvolvimento de negócio e de estrutura financeira.

No entanto, pese embora a existência de um contrato de prestação de um vasto conjunto de serviços, directamente entre a D... e a A..., a situação em apreço é distinta, dado que, se prende com urna prestação de serviços de consultoria da D... à B... e que esta, por sua vez, redebitou à A..., também como prestação de serviços de consultoria, sem que em nenhuma das faturas conste a descrição detalhada dos serviços efetivamente prestados e as datas em que faram efectuados os mesmos.

Da análise aos documentos acima referidos, constata-se que foram utilizadas descrições genéricas, não se discriminando detalhadamente os serviços prestados, nomeadamente, o âmbito e a extensão desses serviços e o momento em que foram efectuados. Desta forma, não é possível aferir se efectivamente estes serviços contribuíram para a realização de operações sujeitas e não isentas, tal como dispõe a alínea a) do n.º1 do artigo 20º do CIVA. Acresce ainda que, nos termos da a. a) n.º 2 do artigo 19º do CIVA, o direito à dedução do imposto se encontra subordinado à posse de uma fatura emitida na forma legal, tal como previsto no artigo 36º do CIVA, facto que não se verifica, uma vez que, os documentos não respeitam o disposto na al. b) do n.º 5 do artigo 36º do CIVA - falta de especificação dos elementos na descrição do serviço, motivos que fundamentam a exclusão do direito à dedução do imposto.

Dos factos. resultam correções ao imposto deduzido, no valor de 94.894.79€ no período 201706T e no valor de 46.049.22 no período de 201802.

[…]”.

  1. Na sequência do procedimento inspetivo, a Requerida emitiu, em 14 de dezembro de 2018, os atos tributários de IVA de seguida enumerados, todos com a indicação de “Liquidação Adicional feita com base em correção efetuada pelos Serviços de Inspeção Tributária”, no valor total de € 151.854,01 – cf. documentos de liquidação juntos pela Requerente (documento 3):
    1. Liquidação n.º ..., no montante de € 46.049,22, por dedução indevida de IVA na declaração periódica de fevereiro de 2018, relativa ao redébito pela B..., de serviços de consultoria prestados pela D...;
    2. Liquidação n.º..., no montante de € 10.810,22, por dedução indevida de IVA na declaração periódica do quarto trimestre de 2017, relativa ao redébito pela B..., de serviços jurídicos prestados pela E...;
    3. Liquidação n.º ..., no montante de € 94.994,79, por dedução indevida de IVA na declaração periódica do segundo trimestre de 2017, relativa ao redébito pela B..., de serviços jurídicos prestados pela E... .
  2. O pedido de reembolso solicitado pela Requerente na declaração de abril de 2018 foi parcialmente deferido, não tendo sido aceite a dedução de IVA acabada de referir, na quantia de € 151.854,01, acrescida do valor de € 11.554,79 que não foi contestado pela Requerente e que não constitui objeto da presente ação – cf. Documentos 1 e 2.
  3. Inconformada, a Requerente apresentou, em 18 de abril de 2019, Reclamação Graciosa contra os atos tributários acima identificados com fundamento na inexistência de qualquer violação dos requisitos formais do direito à dedução do IVA – cf. documento 2.
  4. A Reclamação Graciosa foi indeferida, considerando a Requerida que não tinham sido apresentados elementos novos aos carreados para o procedimento inspetivo – cf. documentos 2 e 9.
  5. Em 16 de outubro de 2019, a Requerente interpôs Recurso Hierárquico da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, o qual também foi indeferido, tendo a Requerente sido notificada por ofício datado de 7 de setembro de 2020 – cf. documento 1.
  6. Em discordância com as liquidações adicionais de IVA acima identificadas e com indeferimento da Reclamação e Recurso Hierárquico contra as mesmas deduzidos, a Requerente apresentou junto do CAAD, em 9 de dezembro de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.

 

  1. Fundamentação da Matéria de Facto e Factos não Provados

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Começa por salientar-se que a Requerente, em fase de alegações escritas, procedeu à  junção de um documento datado de 2016, que este Tribunal considera sem efeito, por se encontrar precludida tal possibilidade, dado o encerramento da instrução, uma vez que não estamos perante um documento superveniente, nem o mesmo se afigura curial para a descoberta da verdade.

 

Efetivamente o artigo 10.º, n.º 2, alínea d) do RJAT prescreve que devem constar do pedido de pronúncia arbitral as questões de facto e os meios de prova produzidos e a produzir, em linha com o previsto nos artigos 552.º, n.º 2 e 423.º do Código de Processo Civil (“CPC”), que expressamente fixam como momento de apresentação dos documentos o da apresentação dos articulados em que se aleguem os factos correspondentes, ou, no limite (mediante pagamento de multa), até 20 dias antes da audiência final. Após este limite temporal, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior, circunstâncias que não se constatam na situação vertente.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se essencialmente na análise crítica da prova documental junta aos autos. O depoimento da primeira testemunha, J..., contabilista certificado da Requerente relevou apenas para esclarecer as relações de participação indireta do Fundo C... no capital social da Requerente, nada acrescentando, no mais, aos documentos já juntos pela Requerente. 

 

Em relação à segunda testemunha inquirida, K..., atual Diretor Financeiro da Requerente, manifestou não ter qualquer conhecimento direto dos factos, reportados aos anos 2017 e 2018, pois somente em outubro de 2019 iniciou a relação laboral com a Requerente. 

 

Não se provou que o redébito da B... à Requerente relativo à D... respeitasse a serviços prestados por esta à Requerente, nos termos estabelecidos pelo contrato celebrado entre D... e a Requerente, o qual prevê uma relação direta entre estas duas entidades sem envolver a B..., nem se demonstrou, em concreto, que serviços de consultoria estariam aí em causa (artigos 90.º e 98.º do ppa).

 

Paralelamente, também não se demonstrou que os serviços prestados pela E... à B... e, após, redebitados à Requerente tenham sido consumidos pelas entidades identificadas no artigo 109.º do ppa e/ou nas percentagens aí mencionadas (v. também os artigos 107.º a 111.º e 123.º a 127.º do ppa), nem que o consumo desses serviços jurídicos tenha sido efetuado na proporção dos ativos “imobiliários” das entidades em causa.

No tocante ao redébito parcial, pela Requerente a outras entidades do Grupo, em 2019 (v. artigos 112.º e 113.º do ppa), já após o encerramento da ação inspetiva e da emissão das liquidações, ficou por demonstrar que o mesmo estivesse previsto à data dos factos e que não represente tão-só uma tentativa a posteriori de eliminar ou minimizar os efeitos das correções realizadas pela AT. Aliás, nem os documentos, nem o depoimento da primeira testemunha explicam a razão pela qual não sendo os serviços, pelo menos em parte, destinados à Requerente, foi esta debitada integralmente pelos mesmos.

 

Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

Com relevo para a decisão não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

 

  1. Pressupostos Processuais

 

  1. Sobre a (In)competência Material

 

Para resolver esta questão prévia, importa ter presente, quer o âmbito de competência dos tribunais arbitrais, quer a natureza dos atos contestados.

 

A competência dos tribunais arbitrais fiscais é delimitada pelo disposto no artigo 2.º do RJAT e pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e, em conformidade com o disposto no n.º 1 do indicado artigo 2.º do RJAT, compreende a apreciação das pretensões relacionadas com a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; e, bem assim, a apreciação de pretensões relacionadas com a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável que não deem origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

Acrescenta o artigo 4.º do RJAT que a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais depende de Portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça. E aqueles serviços e organismos vincularam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais nos casos que tenham por objeto a apreciação das acima identificadas pretensões, de valor não superior a € 10 000 000, relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida[4].

 

Atendendo ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, em conjugação com o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, conclui-se que a jurisdição arbitral é inequivocamente competente para apreciar a legalidade de atos de liquidação de IVA.

 

Impõe-se, de seguida, determinar se os atos contestados são suscetíveis de ser qualificados como atos de liquidação.

 

Relembra-se que a Requerida invocou a exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral, por considerar que a Requerente sindicou, nos presentes autos, o ato de deferimento parcial do pedido de reembolso de IVA que submeteu na declaração periódica de abril de 2018 e não atos de liquidação, assinalando que a mesma não foi sequer notificada de atos de liquidação expressando valores em dívida.

 

Porém, a alegada exceção não tem fundamento.

 

Desde logo, porque a Requerente é explícita na conformação do objeto do processo, que identifica, de forma cristalina, como dirigido à anulação dos atos de liquidação de IVA (referenciando os respetivos números) e dos atos de segundo e terceiro grau que os confirmaram. Não é impugnado, como alega a AT, um ato de deferimento parcial de reembolso.

 

Por outro lado, os atos impugnados configuram verdadeiros e próprios atos tributários (de liquidação, portanto), e que foram como tal designados pela própria Requerida, que os notificou à Requerente a título de “Liquidação Adicional feita com base em correção efetuada pelos Serviços de Inspeção Tributária”, mencionando no ponto 3 da notificação “Valor da correção (1+1-2)”, com a indicação dos montantes das correções de IVA em discussão.

 

Na tese da Requerida, o deferimento parcial do reembolso de IVA dispensaria qualquer ato de liquidação de IVA, afirmando inclusivamente que em caso de indeferimento total do reembolso esses atos de liquidação teriam valor nulo e seriam insuscetíveis de impugnação. Tais asserções são, no caso concreto, contrariadas pela emissão de atos de liquidação de valor positivo pela AT, que, paradoxalmente, em sede de Resposta, os nega, apesar de estarem juntos aos autos.

 

Acresce que a conceção plasmada pela Requerida na Resposta é errónea e sem qualquer correspondência com o sistema jurídico tributário vigente, no qual, para que sejam alterados os valores declarados pelos contribuintes[5], é necessário um ato de autoridade: o ato tributário de liquidação de imposto. Deste modo, o pedido de reembolso de IVA suportado nas declarações de IVA da Requerente para ser parcialmente (in)deferido teve de ser precedido pela correção do imposto (auto)declarado por aquela, via liquidações adicionais, tal como foi.

 

Importa, pois, não confundir o plano financeiro, de compensação do valor das liquidações com o crédito de IVA solicitado pela Requerente, que justificou o deferimento apenas parcial do pedido de reembolso, com a precedente e essencial definição jurídica (corretiva) da prestação tributária efetuada pelos atos de liquidação[6].

 

Dito de outro modo, a decisão de deferimento parcial do pedido de reembolso, que não foi sindicada pela Requerente, é consequência de atos de liquidação adicional de IVA que esta submeteu à apreciação deste Tribunal.

 

Não obsta à posição sufragada, o facto de, no caso de ser determinada a anulação (total ou parcial) dos atos de liquidação contestados, e na medida dessa anulação, caber à Autoridade Tributária (e não ao Tribunal Arbitral, que não dispõe de competências executivas[7]), em execução dessa mesma anulação, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito” e “rever os atos tributários que se encontrem numa relação de prejudicialidade ou de dependência com os atos tributários objeto da decisão arbitral“, conforme dispõe o artigo 24.º, n.º 1, alíneas b) e c) do RJAT.

 

Em síntese, é à Autoridade Tributária que cabe apurar o valor a reembolsar, mas tal não impede que caiba inequivocamente na competência material deste Tribunal Arbitral a apreciação da legalidade dos atos de liquidação subjacentes – aos quais se dirige de forma expressa o pedido anulatório principal – que materializam a correção ao IVA deduzido em excesso, reduzindo o crédito declarado pela Requerente a seu favor (neste sentido v. decisões dos processos arbitrais n.º 660/2017-T, de 15 de setembro de 2020, e n.º 543/2018-T, de 6 de junho de 2019).

 

Como é abordado, de forma clara, na decisão arbitral proferida no processo 660/2017-T, a liquidação em sede de IVA é um ato complexo que deve ser considerado em sentido amplo, abrangendo quer as deduções e as regularizações de imposto, quer as liquidações administrativas decorrentes de atos de fiscalização e determinação oficiosa do imposto[8].

 

Acrescentando-se na indicada decisão que éo caso das liquidações adicionais reguladas pelo art.º 87.º do CIVA, relativo ao "momento e modalidades do exercício do direito à dedução". No n.º 1 deste artigo, estipula-se que, sem prejuízo do caso das liquidações com base em presunções e métodos indiretos, a efetuar nos termos da LGT, a AT "procede à retificação das declarações dos sujeitos passivos, quando fundamentadamente considere que nelas figure um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, liquidando adicionalmente a diferença".

 

Assim, estando em causa atos de liquidação de IVA proprio sensu, a pretensão anulatória deduzida pela Requerente contra os mesmos é abrangida pela jurisdição arbitral, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, esta última expressão da vinculação da Requerida aos Tribunais Arbitrais, pelo que é de julgar improcedente a exceção de incompetência material invocada.

 

À face do exposto, considera-se este Tribunal Arbitral competente em razão da matéria para conhecer dos vícios imputados aos atos de liquidação de IVA (artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT) e, no caso de a ação ser julgada procedente, no todo ou em parte, anulá-los em conformidade.

 

Esta interpretação não comporta a violação do princípio do livre acesso aos tribunais, na vertente do duplo grau de decisão, decorrente dos artigos 20.º e 268.º da Constituição, nem o disposto no artigo 212.º, n.º 3 da Lei Fundamental, porquanto:

  1. Os Tribunais Arbitrais fazem parte da categoria de Tribunais prevista no artigo 209.º da Constituição (v. n.º 2);
  2. A AT se vinculou à jurisdição arbitral nos termos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março; e
  3. Foi submetida à apreciação deste Tribunal uma pretensão de declaração de ilegalidade e anulação de atos de liquidação de IVA que corrigiram o imposto deduzido pela Requerente, alterando a sua situação jurídico-tributária, nomeadamente o crédito de imposto reportado, enquadrável no artigo 2.º do RJAT, e não uma pretensão relativa à decisão de deferimento parcial do reembolso de IVA solicitado pela Requerente.

 

            2.    Outros Pressupostos Processuais

 

O Tribunal foi regularmente constituído (v. artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT) e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado da notificação do despacho de indeferimento do recurso hierárquico, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) (aplicando-se, neste caso, a respetiva alínea e)).

 

            Não foram identificadas outras questões prévias e o processo não enferma de nulidades.

 

 

  1. Do Direito

 

  1. Direito à Dedução: Incumprimento dos Requisitos Formais das Faturas

            Segundo a Requerente, os descritivos das faturas cujo IVA deduzido foi corrigido pela Requerida são suficientes, pelo que não se verifica o incumprimento de requisitos formais. Para tanto, invoca que a Diretiva IVA e, bem assim, o Código do IVA não preveem a discriminação detalhada dos serviços prestados e que não pode ser condicionado o direito à dedução em relação a requisitos das faturas que não estão expressamente previstos na Diretiva.

 

É pacífico o entendimento de que o direito à dedução constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA instituído pela União Europeia, que garante o princípio da neutralidade da carga fiscal de todas as atividades económicas sujeitas a IVA, e que não pode, em princípio, ser limitado, exceção feita aos casos expressamente previstos pela Diretiva IVA. Contudo, o nascimento desse direito depende da reunião de um conjunto de pressupostos, nomeadamente formais e substantivos, estabelecidos pelo direito da União Europeia e transpostos pelo legislador nacional.

 

            Dispõe sobre a matéria dos requisitos das faturas o artigo 226.º da Diretiva IVA, estabelecendo que “as únicas menções que devem obrigatoriamente figurar, para efeitos do IVA, nas faturas emitidas” são as contempladas nas suas diversas alíneas, incluindo, com relevância para o caso dos autos, a “quantidade e natureza dos bens entregues ou a extensão e natureza dos serviços prestados” (v. alínea 6)).

 

            Na legislação interna, o artigo 36.º, n.º 5, alínea b) do Código do IVA, em transposição do citado artigo 226.º da Diretiva, estipula que as faturas devem conter, entre outros elementos, a “quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável”. Acresce sublinhar que, nos termos do disposto no artigo 19.º, n.º 2, alínea a) do Código do IVA, só confere direito à dedução o imposto mencionado em faturas passadas na forma legal, considerando-se como tais aquelas “que contenham os elementos previstos nos artigos 36.º ou 40.º [referente às faturas simplificadas], consoante os casos”.

 

            Não obstante, em linha com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, de que faz eco a jurisprudência mais recente dos nossos tribunais superiores e também arbitral, o incumprimento de algumas formalidades das faturas não torna inevitável o afastamento do direito à dedução, como consequência de uma violação do artigo 226.º, alínea 6) da Diretiva IVA.

 

A este respeito, declara o paradigmático acórdão Barlis, C-516/14, de 15 de setembro de 2016, que “a finalidade das menções que devem obrigatoriamente constar da fatura consiste em permitir às Administrações Fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito a dedução do IVA” e é à luz desta finalidade que importa analisar se as faturas respeitam as exigências do artigo 226.º, n.º 6, da Diretiva IVA – cf. n.ºs 26, 27 e 28. De notar que estas exigências podem ser supridas através de documentos conexos com as faturas, que a estas possam ser equiparados, nos termos do artigo 219.º da referida Diretiva, na qualidade de documentos que alteram a fatura inicial e a ela façam referência específica e inequívoca (v. acórdão Barlis, n.º 34).

 

Descritivos genéricos como “serviços jurídicos prestados” abrangem um vasto acervo de prestações e não são suficientemente e detalhados para permitir aquilatar da natureza dos serviços em causa e da respetiva extensão (v. acórdão Barlis, n.º 28). Não pode, portanto, acolher-se a posição da Requerente no sentido de que a Diretiva e o Código do IVA não reclamam a descrição detalhada dos serviços, uma vez que esse detalhe é pressuposto da determinação da extensão/volume e da natureza/denominação dos serviços prestados (v. artigos 226.º, alínea 6) da Diretiva e 36.º, n.º 5, alínea b) do Código do IVA). Deste modo, a Requerida não exigiu mais requisitos do que aqueles demandados pela legislação do IVA. 

 

Porém, a apontada imperfeição formal não implica necessariamente a indedutibilidade. Para o Tribunal Europeu, “o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, EU:C:2010:627, n.º 42; de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C-280/10, EU:C:2012:107, n.º 43; e de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C-183/14, EU:C:2015:454, n.ºs 58, 59 e jurisprudência aí referida).” – cf. acórdão Barlis, n.º 42.

 

            No mesmo sentido, veja-se a síntese da posição do Tribunal de Justiça e da doutrina que consta da decisão do CAAD no processo n.º 96/2018-T, de 30 de outubro de 2018, infra transcrita:

                        “[…] o TJ conclui que o artigo 178.º, alínea a) da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito à dedução do IVA pelo simples facto de o sujeito passivo possuir uma fatura que não cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 226.º, n.º 6 desta diretiva, quando essas autoridades dispõem de todas as informações necessárias para verificar se os requisitos substantivos relativos ao exercício desse direito se encontram satisfeitos – cf. acórdão Barlis, n.º 43 e dispositivo.

 

                     Esta posição já tinha sido anteriormente sufragada nos acórdãos de 30 de setembro de 2010, Uszodaépito kft, C-392/09; de 21 de outubro de 2010, Nidera, C-385/09; de 1 de março de 2012, Kopalnia (ou Polsky Trawertyn), C-280/10; de 27 de setembro de 2012, VSTR, C-587/10; de 8 de maio de 2013, Petroma, C-271/12; de 18 de julho de 2013, Evita-K EOOD, C-78/12; de 6 de fevereiro de 2014, SC Fatorie, C-424/12 e de 11 de dezembro de 2013, Idexx Laboratories, C-590/13. Esta jurisprudência constante do TJ afirma que, sem prejuízo da importante função documental da fatura, na medida em que pode conter dados controláveis, conquanto estejam cumpridos e demonstrados os requisitos substantivos, a não observância das formalidades não pode, em princípio, levar à supressão do direito à dedução do IVA, reforçando que este “garante a neutralidade na aplicação do IVA, pelo que não poderá ser recusado somente porque os sujeitos passivos negligenciaram certos requisitos formais, quando os requisitos substantivos tenham sido cumpridos” – cf. acórdão Uszodaépito kft, n.º 38).

 

                     Na interpretação do TJ, a exigência de dispor de fatura em todos os pontos conforme com as disposições da Diretiva IVA teria uma consequência inaceitável: a de pôr em causa o direito à dedução do sujeito passivo, quando os dados podem ser validamente comprovados através de outros meios que não sejam uma fatura – cf. n.º 48 do acórdão Kopalnia.

 

                     Acresce, neste ponto, e conforme referido na decisão arbitral n.º 3/2014-T, de 6 de dezembro de 2016, convocar o acórdão de 12 de julho de 2012, EMS Bulgaria, C-284/11, “que coloca a questão dos efeitos associados ao incumprimento de formalidades no domínio sancionatório e não no plano (bem distinto) dos efeitos impeditivos ou extintivos do exercício do direito (substantivo) à dedução”. 

 

                     O referido entendimento tem sido reforçado em jurisprudência posterior, designadamente no acórdão de 15 de novembro de 2017, Rochus Geissel, C-374/16, que recorda que o direito à dedução do IVA não pode, em princípio, ser limitado, e que o regime de deduções visa libertar completamente o empresário do peso do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas, pelo que a dedução do IVA pago a montante deve ser concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais (n.ºs 40 a 46 do acórdão Rochus Geissel).

 

                     De igual forma, o Acórdão de 15 de setembro de 2016, Senatex, C-518/14, reitera a anterior posição antiformalista e perfilha o entendimento de que, caso ocorra a retificação de faturas que contenham erros (ou omissões), a mesma produz efeitos (retroativos) à data em que as faturas foram inicialmente elaboradas – acórdão Senatex, n.ºs 35 a 43 e dispositivo. 

           

                     […]

 

                     A doutrina nacional é parametrizada pela jurisprudência europeia. Segundo Sérgio Vasques, «[a] complexidade que reveste o regime das faturas e a margem de liberdade que ainda é deixada aos estados-membros nesta matéria têm levado à multiplicação de litígios junto do TJUE relativos aos requisitos formais para o exercício do direito à dedução do IVA. Nas suas decisões o tribunal, reiterando embora a função da fatura como suporte do direito à dedução, em correspondência com o artigo 178.º da Diretiva, tem permitido que sobre este requisito de forma prevaleça a substância das operações, sempre que isso se mostre necessário para garantir a neutralidade do IVA e não coloque risco demasiado» – cf. O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, 2015, pp. 340-345 (excerto de p. 341).

 

Miguel Durham Agrellos e Paulo Pichel, também com apoio na jurisprudência comunitária, consideram que os vícios formais apenas são passíveis de impedir o direito à dedução se puserem «razoavelmente em causa a capacidade de cobrança correta do imposto e de fiscalização pelas autoridades tributárias, de tal modo que esta não está em condições de conhecer a realidade material subjacente, em face dos elementos apresentados pelo sujeito passivo» – cf. “Jurisprudência do TJUE sobre Exigências de Forma das Faturas e Direito à Dedução do IVA”, Cadernos IVA 2015, Coord. Sérgio Vasques, Almedina, 2015, pp. 191-211 (o excerto de p. 194).

 

                     No mesmo sentido Cidália Lança refere que «de acordo com a jurisprudência daquele Tribunal [TJ], o princípio da neutralidade exige que a dedução do IVA seja concedida se os requisitos substantivos tenham sido cumpridos, mesmo se os sujeitos passivos tiverem negligenciado certos requisitos formais» – cf. Anotação ao artigo 36.º do Código do IVA: Código do IVA e RITI Notas e Comentários, Coord. e Organização Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos, Almedina, 2014, p. 340.

 

            Resulta do exposto que, sem prejuízo de se deverem considerar insuficientes descritivos genéricos dos serviços prestados, e de, em consequência, esse circunstancialismo configurar um vício formal, essa insuficiência é passível de suprimento, ónus que impende sobre o sujeito passivo, em conformidade com o artigo 74.º, n.º 1 da LGT. Assim, a Requerente poderia fornecer meios de prova complementares que permitissem alcançar o objetivo de determinação concreta da natureza e extensão das operações realizadas que as exigências formais visam tutelar.

 

  1. Análise Concreta

 

Na situação sob escrutínio, as faturas cujo direito à dedução foi negado à Requerente apresentam descritivos genéricos, a saber: “Redébito de despesas, Trabalhos especializados consultoria 23%” e “Redébito de despesas, Honorários – mercado nacional”. Seguindo o critério interpretativo da jurisprudência Barlis, estes descritivos não permitem aferir a específica natureza dos serviços prestados, nem a respetiva extensão.

 

Nestes termos, contrariamente ao sustentado pela Requerente, verifica-se um efetivo incumprimento formal relativamente às faturas cujo IVA foi desconsiderado, gerador da indedutibilidade do imposto nelas mencionado, de acordo com o disposto no artigo 19.º, n.º 2 do Código do IVA. Isto, a menos que o sujeito passivo demonstre detalhadamente, através de prova complementar, de que serviços se trata e de qual a sua extensão, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça. Com efeito, só assim são servidos os propósitos subjacentes aos requisitos formais legalmente exigidos, como sejam a possibilidade de controlo, por parte da Autoridade Tributária, e o estabelecimento da necessária conexão entre os serviços adquiridos e a atividade exercida que confere o direito à dedução.

 

            Por outro lado, não se pode concordar com a afirmação de que a descrição detalhada nas faturas seria impraticável e excessivamente onerosa para os sujeitos passivos prestadores. A identificação precisa das operações praticadas constitui um requisito incontornável das obrigações acessórias, sem o qual resultaria inviabilizada a sua monitorização pela AT e pelos próprios adquirentes. Ainda que o descritivo não contenha todos os pormenores dos serviços prestados, pode ir muito além da referência lacónica a “despesas”, “consultoria” e “honorários”. Acresce que, no que por extensão seja incomportável caber no descritivo, deve ser assegurada a sua menção em repositório documental complementar. Não se alcança de que forma a observância destes ditames possa prefigurar-se desproporcionada ou inexequível e sob que critérios.

 

            Constatada a desconformidade formal, interessa, de seguida, apurar se a Requerente logrou demonstrar a natureza e extensão dos serviços adquiridos e a sua relação com a atividade tributável por si desenvolvida.

 

            Quanto ao redébito de serviços da D..., constata-se que não foi junta documentação que permita esclarecer os serviços concretos de consultoria que foram prestados, nem do adquirido processual se extrai que os mesmos tivessem ligação com, e beneficiassem, a atividade da Requerente, condição essencial do exercício do direito à dedução, nos termos e para os efeitos dos artigos 20.º do Código do IVA e 168.º da Diretiva. Aliás, em setembro de 2016 (apenas um ano antes do redébito em causa), a Requerente havia celebrado diretamente com a D... um contrato de prestação de serviços, de acordo com o qual esta faturaria diretamente à Requerente a contrapartida devida pela prestação dos serviços, não prevendo qualquer intermediação ou interposição da B... . Isto, apesar de esta sociedade se assumir como tendo a função de central de compras do Grupo.

 

            Conclui-se, assim, que em relação aos serviços da D... redebitados à Requerente, esta não fez prova da natureza dos serviços e da indispensável conexão à sua atividade, pelo que improcede a pretensão deduzida.

 

            Relativamente aos serviços jurídicos prestados pela E..., foi junta documentação (“Relação de Serviços Prestados”) que comprova detalhadamente a respetiva natureza e tarefas envolvidas. Contudo, do descritivo desses serviços não se perceciona, em geral, que o destinatário e/ou beneficiário dos serviços seja a Requerente. Só num par de casos é que a Requerente é identificada como tal [destinatária dos serviços] e, ainda assim, sem qualquer indicação do correspondente valor ou das horas despendidas, continuando sem se perceber que parte dos serviços lhe cabe (em que extensão e medida contribuíram para a prática de operações tributáveis). Sendo que em diversas situações o documento complementar espelha claramente que foram beneficiárias dos serviços outras entidades, apesar de estes terem sido totalmente (re)faturados à Requerente.

 

            Numa tentativa de colmatar a falta de uma chave de medição dos serviços prestados pela E... em benefício da Requerente, esta vem apelar ao critério do valor dos ativos imobiliários detidos no âmbito do Grupo, com referência aos quais apura a respetiva proporção, que, depois, aplica ao preço dos serviços jurídicos que lhe foram redebitados pela B... . Só que este exercício aritmético de imputação não reflete o consumo dos ditos serviços jurídicos adquiridos, pois o critério da percentagem de ativos detidos não se afigura, a priori, idóneo para revelar o “volume” de serviços jurídicos prestados à Requerente, cuja relação com a dimensão desses ativos ficou por demonstrar.

 

            Por fim, o redébito parcial a outras sociedades do Grupo, pela Requerente, em 2019, dos serviços da D... e da E... aqui em discussão, referentes a 2017 e 2018, consubstancia um facto posterior à ação inspetiva e à emissão dos atos de liquidação controvertidos, que devem ser avaliados e considerados tendo em conta as circunstâncias contemporâneas à data, ou que ocorreram até essa data, e não a eventos subsequentes, ex post facto, em particular quando estes tenham sido, como provavelmente foram, influenciados pela materialização de correções efetivadas pela AT, numa tentativa de as minimizar. 

 

            Resulta do exposto que não foi a Requerida que ignorou elementos de prova, antes a Requerente que não demonstrou, como se lhe impunha, os requisitos materiais do direito à dedução em relação ao IVA contido nas faturas acima identificadas, que lhe foi corrigido.

 

Tal posição não encerra a violação dos princípios da efetividade e da proporcionalidade, atenta a circunstância de que não foi o simples facto de as faturas não preencherem os requisitos formais que determinou a recusa do direito à dedução, mas a concomitante falta de comprovação, através de elementos complementares, da natureza dos serviços e/ou da sua extensão e conexão com a atividade da Requerente. É, nestes moldes, improcedente a pretensão anulatória deduzida na presente ação.

 

  1. Desnecessidade de Reenvio Prejudicial

                          

As questões de interpretação do direito europeu discutidas nos autos foram especificamente clarificadas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça a propósito do caso Barlis, C-516/14, e demais jurisprudência acima referenciada.

 

Neste contexto, de acordo com o entendimento do Tribunal de Justiça, a partir do acórdão Cilfit[9], a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada quando:

  1. A questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal; ou
  2. O Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; ou
  3. O juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente.  

 

No caso sub judice, verifica-se o preenchimento dos requisitos previstos na alínea b), podendo afirmar-se que o “ato” em questão está devidamente aclarado pela jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça que já se pronunciou “de forma firme”, pelo que não há fundamento para suscitar o reenvio prejudicial.

 

Questão distinta e que efetivamente constitui a ratio decidendi da presente ação é a que se prende com a comprovação factual do preenchimento dos pressupostos do direito à dedução, que a Requerente não conseguiu lograr. Questão esta de facto e não de direito, pelo que relativamente à mesma não cabe acionar o mecanismo de colaboração com o Tribunal de Justiça, pertencendo ao órgão jurisdicional nacional decidir.

 

  1. Juros indemnizatórios

 

A Requerente, peticiona, como decorrência da invocada anulabilidade dos atos de liquidação de IVA, a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante.

 

Dispõe, neste âmbito, o artigo 43.º da LGT que os juros indemnizatórios são devidos “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, circunstância que, na presente situação, não se verificou, uma vez que se concluiu pela validade e manutenção dos atos tributários, improcedendo, em consequência, os pedidos dependentes de restituição do imposto pago e de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

 

  1. Decisão

 

            À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar improcedente a exceção de incompetência material suscitada pela Requerida;
  2. Julgar improcedente a ação arbitral, incluindo o pedido de juros indemnizatórios, com a consequente manutenção dos atos tributários de IVA impugnados, referentes aos trimestres de junho de 2017, dezembro de 2017 e ao mês de fevereiro de 2018, no valor total de € 151.854,01, e dos atos de segundo e de terceiro grau que sobre aqueles recaíram.

 

 

  1. Valor do Processo

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 151.854,01, indicado pela Requerente, respeitante ao montante das liquidações de IVA cuja anulação pretende, e não impugnado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

  1. Custas

           

            Custas no montante de € 3.672,00, a suportar pela Requerente, por decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Lisboa, 19 de abril de 2022

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins

 

 

Jorge Carita

 

 

 

António Pragal Colaço

 



[1] Código de Procedimento e de Processo Tributário.

[2] Ou a impugnação judicial, de que a ação arbitral constitui alternativa.

[3] Não estão aqui em discussão correções à base de incidência, pelo que não tem aplicação ao caso a alínea b) do artigo 2.º do RJAT que também prevê a competência dos Tribunais Arbitrais para conhecer de atos de fixação da matéria tributável (quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo), de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

[4] Com exceção das pretensões expressamente identificadas nas alíneas a) a d) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, sem cabimento na situação dos autos.

[5] In casu, nas declarações periódicas de IVA.

[6] O valor a ajustar em sede de reembolso de IVA envolve a apreciação da legalidade do ato de liquidação, constituindo per se um facto jurídico que determina uma alteração, também jurídica, da situação tributária da Requerente, na medida em que daí derivou uma nova obrigação, donde resulta a competência da jurisdição arbitral.

[7] Jorge Lopes de Sousa esclarece que “os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD não têm competências executivas, como resulta do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT” (cf. Jorge Lopes de Sousa – Guia da Arbitragem Tributária – Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Coimbra, 2003, pág. 224), cabendo à Autoridade Tributária dar cumprimento ao dever de executar a decisão arbitral. Com efeito, o processo arbitral, à semelhança do processo de impugnação judicial de que constitui alternativa, nos termos da autorização legislativa que antecedeu o RJAT, é essencialmente um contencioso de anulação, o que significa que a consequência regra para a declaração de ilegalidade do ato de liquidação é, tão-só, a anulação desse mesmo ato.

[8] Com base neste entendimento, sustenta-se, ainda, naquela decisão arbitral, que é neste contexto que se deve interpretar a afirmação de que “um reembolso contestado pela administração fiscal em tudo equivale a uma liquidação de imposto e os meios de reagir contra esse ato da administração, que nega ou revoga um reembolso, são idênticos aos que a lei põe à disposição dos contribuintes para anular, no todo ou em parte, a liquidação do imposto.” (cf. JOSÉ XAVIER DE BASTO e GONÇALO AVELÃS NUNES in «O que é a “garantia adequada” para efeitos do reembolso do IVA?», - Estudos em Memória do Prof. Doutor J. L. SALDANHA SANCHES, volume IV, pp. 276-277).

[9] Acórdão de 06.10.82, processo 283/81.