Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 554/2021-T
Data da decisão: 2022-03-15  IRC  
Valor do pedido: € 85.247,00
Tema: IRC - Derrama Municipal - tributação dos rendimentos obtidos fora de Portugal
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Sumário:

1. Não existe litispendência entre um processo arbitral e um recurso hierárquico.

2. A derrama municipal é um imposto municipal que incide sobre os rendimentos tributáveis e não isentos de IRC, que corresponda à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município por sujeitos passivos residentes e que aí exerçam atividade comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.

3. Os rendimentos gerados fora do território nacional, designadamente os relativos a dividendos auferidos por via de participação social detida por entidade residente junto de uma sociedade participada não residente, devem ser excluídos, para efeitos deste imposto, do lucro tributável e como tal, não podem contribuir para a base do cálculo da derrama municipal lançada pelo município.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. RELATÓRIO

 

A A..., SGPS, S.A., (doravante A..., Grupo A... ou Requerente), com número único de pessoa colectiva e registo na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa..., com sede na  ... ... -..., ...-... Lisboa, abrangida territorialmente pela competência do Serviço de Finanças de Lisboa ..., sociedade dominante de grupo submetido ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (adiante “RETGS”) do qual a sociedade a seguir identificada era participante no período de tributação em causa

E

A B... S.A., (doravante Requerente ou B...) com número único de pessoa colectiva e registo na Conservatória do Registo Comercial de ... ..., sociedade detida pela A..., com sede no ..., ..., ...-..., ..., abrangida territorialmente pela competência do Serviço de Finanças de ... .

Conjuntamente as Requerentes apresentaram nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º , n.º 1, a) , n.º 1; 5.º n.º 3 b); 6.º, n.º 2 b) , n.º 1; art e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), um pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação do ato de liquidação de IRC n.º 2021..., valor relativo à derrama municipal no montante de € 85.247,00 respeitante ao exercício de 2018, liquidação adicional que foi notificado à Requerente A... na qualidade de sociedade dominante do Grupo sujeito ao RETGS, e requer a condenação da Administração Tributária e Aduaneira (AT) ao reembolso do imposto indevidamente pago e à liquidação e pagamento de juros indemnizatórios nos termos do art.º 43.º da LGT.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

 

  1.  O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 06-09-2021.
  2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros adjuntos os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável
  3.  Em 28-10-2021 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
  4.  Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 17-11-2021.
  5.  A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou Resposta em 04-01-2022, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
  6. A Autoridade Tributária e Aduaneira juntou em 14-01-2022 aos autos o Processo Administrativo
  7.  Por despacho de 14-01-2022 foi indeferido o pedido de inquirição das testemunhas indicadas pela Requerente, atendendo a que o Tribunal considera estar habilitado a decidir a matéria de facto com os elementos que já constam dos autos e, consequentemente, sem necessidade de produção de prova testemunhal, uma vez que se afigura inútil ou sem objeto, o ato de inquirição de testemunhas e, como tal, proibido à luz do artigo 130.º, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, do RJAT.
  8.  Pelo mesmo despacho e ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do artigo 16.º, e do n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT, e quanto às alegações finais e “determina- se que o processo prossiga com alegações escritas facultativas e simultâneas por um período de 20 dias, iniciando-se a contagem do prazo com a notificação do presente despacho”.
  9. Foi ainda neste despacho fixado o dia 15-03-2022 como data para a prolação da decisão final.
  10. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas facultativas, a Requerente apresentou as suas alegações em 08-02-2022, pronunciando-se sobre a prova produzida, sobre a alegada exceção e reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas.
  11. A AT apresentou alegações em 23-02-2022 em que remete e dá integralmente reproduzido o aduzido em sede de Resposta.

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

 

Nos termos do art.º 3.º, n.º 1, do RJAT, a coligação de Autores é admissível uma vez que o pedido arbitral tem por objeto atos de liquidação do mesmo imposto, existe identidade da matéria de facto e a procedência do pedido depende da interpretação dos mesmos princípios e regras de direito.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

II. MATÉRIA DE FACTO

1. Factos Provados

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental e a cópia do processo administrativo junta aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

A. A Requerente A... é a sociedade dominante do Grupo A..., enquadrado no Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS).

B. O Grupo A... detinha no exercício de 2018, a Requerente B..., sociedade que tem como actividade principal a fabricação de cimento (CAE 23510).

C. A B... iniciou o investimento no Lı́bano, em 2002, com a aquisição de uma participação na empresa C... S.a.l., que é considerada a terceira maior produtora libanesa de cimento e clı́nquer.

D. Em 1 de março de 2007, a B... reforçou a sua participação na C..., passando a deter um total de 50,5% do respectivo capital.

E. As participações referidas são detidas, sensivelmente nas mesmas percentagens, desde 2007, sendo 28,64% do capital detido directamente, e 22,41% detido indiretamente.

F. A C... iniciou a sua actividade no Lı́bano na década de 70 do Século XX.

G. A C... desenvolve projetos em vários setores, incluindo transporte, residencial, comercial, viagens e turismo, saúde, educação e outros, que são implementados em todo o território libanês e não é residente em Portugal e sem estabelecimento estável e que desenvolve a sua atividade em exclusivo no estrangeiro.

H. Por sua vez, a D... S.a.l, uma empresa subsidiária da C..., produz betão pronto com uma capacidade anual de 200.000 m3, o qual é fornecido a clientes no Líbano.

I. Na sua declaração Modelo 22 individual, a B... em 2018 declarou um prejuízo fiscal de € 38.558.839,48 (cfr. Declaração Modelo 22 de IRC individual que se junta como doc. n.º 3 junto ao PPA).

J. O valor da Derrama Municipal relativo a 2018 liquidada individualmente pela B... foi de € 00, 00.

L. A Requerente B... procedeu à submissão de declaração de substituição de IRC destinada tão-somente à correção da dotação do período quanto ao benefício fiscal do SIFIDE (cfr. Declaração Modelo 22 de IRC do Grupo de substituição que se junta como doc. n.º 5 em anexo ao PPA).

M. A Requerente A..., na qualidade de sociedade dominante do Grupo, procedeu igualmente à submissão de declaração de substituição de IRC, mediante a qual procedeu à correção da dotação do período quanto ao benefício fiscal do SIFIDE, sem qualquer impacto no resultado do Grupo (cfr. Declaração Modelo 22 de IRC do Grupo de substituição que se junta como doc. n.º 6 em anexo à PPA).

N. A Requerente B... foi sujeita a um procedimento de inspeção externa, de âmbito geral, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2020..., que incidiu sobre a última declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC do exercício de 2018, submetida e validada centralmente em 15.07.2020 (n.º...).

O. Esta liquidação decorreu do procedimento de inspeção em que a AT, corrigiu a matéria da Requerente B... em € 44.241.972,92.

P. Valor corresponde, em parte, aos dividendos recebidos pela B... da sua participada C... S.a.l. e que avultaram a € 5.720.347,96.

Q. A C... é membro de várias organizações libanesas e internacionais (relacionadas com o mundo árabe) relevantes no âmbito do sector em que opera:

A Associação dos Industriais Libaneses.

A União Árabe para o Cimento e Materiais de Construção, que é uma organização internacional inter-árabe ligada ao Secretariado Geral da Liga Árabe e ao Conselho da Unidade Económica Árabe.

R. O montante total das correções ao lucro tributável da sociedade B... ascendeu a € 44.241.972,96, tendo os SIT apurado um lucro tributável de € 5.683.133,48 e concluído (cfr. pág. 51, ponto VIII. do RIT individual) que a declaração do “Grupo A...” deve refletir o reajustamento do cálculo da Derrama Estadual e da Derrama Municipal, no valor de € 125.494,00 e € 85.247,00, respetivamente.

S. Tal liquidação foi concretizada e refletida na demonstração de liquidação de IRC n.º 2021 ... subjacente ao presente pedido e objeto de impugnação pelas Requerentes (cfr. doc. n.º 1 em anexo ao PPA).

T. A liquidação que foi notificada à A... em 21 de junho de 2021, cfr. o envelope digital incluído no doc. n.º 1 em anexo ao PPA e não contestado pela AT.

U. O pagamento deste valor ocorreu mediante compensação com o valor do reembolso da Tributação Autónoma do Grupo A... que, por ter passado de uma situação de prejuízo fiscal, para uma situação de lucro tributável.

V. O reembolso da Tributação Autónoma que devia ascender a € 751.703,58, nos termos referidos no RIT do Grupo A..., foi reduzido em € 85.247,00 para o valor de € 666.456,57

W. Como a liquidação da derrama municipal é efetuada sobre o Lucro Tributável individual, e levou ao cálculo deste imposto local, à taxa de 1,5% (85.247,00 Euros).

X. A Administração Tributária no RIT fundamentou esta correção nos seguintes termos:

             “A B... incluiu no resultado tributável do período o montante de 5.720.347,96 Euros correspondente a dividendos, atribuídos e pagos pela sua participada com sede no Líbano em 2018, que constituem rendimento tributável da B... nos termos do n.º 8 do artigo 18.º do CIRC, tendo também procedido à sua dedução integral, invocando indevidamente a aplicação do artigo 51.º do Código do IRC, uma vez que não está cumprido o disposto na alínea e) do n.º 1 do referido artigo em razão de o Líbano ser um país com regime de tributação privilegiada, claramente mais favorável, previsto na Portaria n.º 345-A/2016” (cf. p. 5 do Relatório Final de Inspeção)”.

Y. A diferença entre o valor da Derrama Municipal incluído na autoliquidação do Grupo A... e aquele que foi liquidado pela AT é de €85.247,00, o qual corresponde, justamente, à aplicação da taxa de 1,5% ao lucro tributável da B... estabelecido pela AT, ou seja 1,5% * € 5.683.133,48 (cfr. doc. n.º 1 em anexo ao PPA).

 Z. A Requerente A... apresentou uma reclamação graciosa relativa à liquidação de IRC 2018, que foi indeferida e que apresentou recurso hierárquico em 31-01-2022 que tem como objeto a liquidação n.º 2021 ... e juntou com as alegações como Doc. 1, cópia da primeira página com o carimbo aposto pela AT, do referido recurso hierárquico.

 

 

2. Factos não provados

 

Não existem outros factos com relevância para a apreciação do pedido, que devam ser considerados provados ou não provados.

 

3. Fundamentação da matéria de facto

 

O juiz (ou o árbitro) não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria de facto alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa à decisão, tendo em conta a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo autor, e decidir se a considera provada ou não provada (art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT).

Por outro lado, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal deve basear a sua decisão em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas e da envolvência.

No caso, o Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica dos documentos apresentados pelas partes, e que não foram impugnados e na cópia do processo administrativo, apresentado pela AT e junto com o PPA como Doc. 2.

Assim, e tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, o que prevê o artigo 110.º do CPPT, a prova documental produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III. DO DIREITO

A questão central a decidir nos presentes autos arbitrais consiste em determinar se a derrama municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC que foi gerado fora do território nacional.

 

1.Questão prévia – litispendência

 

1.1. A AT na sua resposta vem arguir com exceção dilatória com base na afirmação da Requerente no art. 16.º do PPA: “A presente delimitação do objecto da presente acção não significa – de todo em todo – que se prescinda de, em qualquer outra sede, se vir a contestar as correcções efectuadas à matéria colectável da B... ou outras reflectidas na liquidação sub judice, independentemente das suas consequências no que toca à liquidação da Derrama Municipal”.

E mais acrescenta a AT: “que a liquidação da derrama pode estar a ser contestada por duas vias - a utilizada neste processo, com fundamento na Lei n.º 73/2013) e por via da contestação das correcções ao LT à luz do CIRC, eventualmente mediante a dedução de acção de impugnação judicial, o que poderá consubstanciar uma situação de litispendência, que, desde já, se invoca”.

A AT considera que existe litispendência, apenas com base nesta afirmação constante do PPA, e apesar de a A... afirmar nas alegações que apresentou uma reclamação graciosa relativa à liquidação de IRC 2018, que foi indeferida e que apresentou recurso hierárquico em 31-01-2022 que tem como objeto a liquidação n.º 2021 ..., de que juntou aos autos apenas a 1.ª pág. com o carimbo comprovando a sua entrega.

Nas suas alegações a AT nada diz quanto a este recurso hierárquico iniciado em 31-01-2022. E, com base neste processo arbitral e no recurso hierárquico, a AT parece alegar a existência de uma situação de litispendência

 

Assim e apesar de a A... ter apresentado junto dos órgãos da AT uma reclamação graciosa e um recurso hierárquico, e nada afirmando de entre das várias correções de que as sociedades do Grupo A... foram objeto no RIT, quais é que são objeto do recurso hierárquico impõe-se, desde logo, afirmar que não estamos perante um caso de litispendência, considerando que o art.º 580.º do CPC apenas diz respeito a ações propostas em tribunais.

 

A litispendência, assim como o caso julgado, nos termos do art.º 580.º, n.º 2 do CPC, pressupõe a repetição de uma causa e tem por objetivo “evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior”, pelo que o cerne da questão a decidir consiste em saber se se pode considerar que existe litispendência entre uma ação jurisdicional que corra os seus termos num tribunal arbitral e um recurso hierárquico, com natureza administrativa, interposto perante os órgãos da AT, logo, sem ter caráter jurisdicional, face ao disposto no art.º 580.º do CPC.

 

Assim, comecemos por nos referirmos à natureza dos tribunais arbitrais, e como é mencionado no Processo n.º 42/2018-T: “Os tribunais arbitrais são uma das categorias de tribunais expressamente consagrada na Constituição (artigo 209.º, n.º 2), e, como tem sido reconhecido pela jurisprudência constitucional, ainda que não sejam órgãos estaduais nem se enquadrem na definição de órgãos de soberania, “nem por isso podem deixar de ser qualificados como tribunais para outros efeitos constitucionais” (acórdãos n.ºs 230/86, 52/92 e 250/96). E enquanto categoria de tribunais constitucionalmente consagrada, eles estão sujeitos aos mesmos limites que impendem sobre os tribunais estaduais, as suas decisões têm natureza jurisdicional, e os árbitros estão submetidos a um estatuto similar ao dos tribunais judiciais, sendo-lhes aplicáveis as exigências constitucionais de independência e imparcialidade como forma de assegurar a confiança na jurisdição arbitral. Deste modo, o tribunal arbitral, quando define o direito aplicável para apreciar um litígio que lhe é submetido, está a exercer a sua função jurisdicional”.

 

Os recursos hierárquicos constituem um procedimento administrativo, cuja natureza é exclusivamente administrativa e que pode ser impugnada judicialmente, pois, como dispõe o art.º 66.º, n.º 2 do Código do Procedimento e Processo Tributário, “são dirigidos ao mais elevado superior hierárquico do autor do acto e interpostos, no prazo de 30 dias a contar da notificação do acto respectivo, perante o autor do acto recorrido”.

Face ao exposto, mesmo que abstratamente estivessem em causa as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, um procedimento tem natureza administrativa e o outro tem natureza judicial pelo que não se encontra preenchido o conceito de litispendência. O instituto da litispendência tem como objetivo evitar que o tribunal se pronuncie duas vezes sobre a mesma matéria.

E, dispõe o art.º 580.º do CPC:

“1. As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.

2. Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
3. É irrelevante a pendência da causa perante jurisdição estrangeira, salvo se outra for a solução estabelecida em convenções internacionais”.

 

O n.º 1 do artigo 580.º CPC menciona apenas “repetição de uma causa” e não repetição de uma causa em tribunal.

 

Porém, o n.º 2 do mesmo artigo menciona que a exceção da litispendência tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, parece deixar claro que a exceção de litispendência só pode ocorrer entre processos a decorrer em tribunais.

No entanto, importa atender também ao disposto no art.º 581.º CPC na medida em que dispõe: “1. Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.

Como refere o Acórdão do tribunal da Relação de Évora de 25-03-2021, proferido no processo n.º 253/19.0T8SNT.E1: “Em face da noção de litispendência fornecida pelo art.º 580.º do CPC, temos de concluir que esta apenas pode ocorrer entre processos a seguir termos nos tribunais e não entre tribunais e autoridades administrativas

Atendendo ao disposto no art.º 582.º do CPC, a litispendência deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar.

Em face da noção de litispendência fornecida pelo art.º 580.º do CPC, temos de concluir que esta apenas pode ocorrer entre processos a seguir termos nos tribunais e não entre tribunais e autoridades administrativas pelo que improcede, pois, a invocada exceção de litispendência.

 

1.2. Derrama municipal

 

Na análise da questão principal suscitada pela Requerente impõe-se começar por proceder ao enquadramento legal e analisar a figura da derrama municipal.

 

A derrama municipal prevista no art.º 18.º, da Lei das Finanças Locais / Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais, aprovada pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro (cfr. anterior art.º 14, da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, deve configurar-se como um verdadeiro imposto, o qual incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de I.R.C. dos sujeitos passivos desta cédula tributária, na proporção do rendimento gerado na área geográfica do município em causa, mais acrescendo ao imposto principal de cuja existência prévia depende.

No Acórdão do STA de 10-11-2021, proferido no Proc. n.º 0255/17.1BESNT, sobre a derrama municipal é afirmado o seguinte:

“II - Actualmente prevista no artº.18, da Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei 73/2013, de 3/9 (CFR. Anterior artº.14, da Lei 2/2007, de 15/01), a derrama municipal deve configurar-se como um verdadeiro imposto, o qual incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de I.R.C. dos sujeitos passivos desta cédula tributária, na proporção do rendimento gerado na área geográfica do município em causa, mais acrescendo ao imposto principal de cuja existência prévia depende”.

I - Se determinado sujeito passivo residente em território nacional obtém rendimentos no estrangeiro que aí foram sujeitos a tributação, em face da regra da universalidade poderá ocorrer uma situação de dupla tributação em território nacional. Sucede, assim, uma dupla tributação jurídica internacional quando o mesmo rendimento, na esfera do mesmo sujeito passivo, é tributado no mesmo período em diferentes Estados, podendo o Estado de residência do beneficiário do rendimento permitir a sua eliminação. O mecanismo do crédito de imposto consiste em deduzir à colecta do I.R.C. determinada quantia de imposto já paga no outro país com o limite daquela que seria liquidada em território nacional. Estamos perante a consagração unilateral do método de imputação ordinária. O imposto pago no estrangeiro constitui um crédito relativamente ao tributo devido no Estado de residência (Portugal), mas tal crédito não excederá o valor de I.R.C. que seria devido no caso de tais rendimentos terem sido originados no nosso país. O mesmo é dizer que a dupla tributação é totalmente eliminada quando o imposto pago no estrangeiro for igual ou inferior ao liquidado no estado de residência e será, apenas, atenuada caso seja superior (cfr. artº. 91.º, do C.I.R.C.)”.

 

 

1.3. A liquidação da derrama sobre lucros obtidos fora de Portugal

 

As Requerentes alegam em síntese a ilegalidade da liquidação adicional de derrama municipal incidente sobre o lucro tributável da B..., que na sequência da inspeção externa mencionada, que corrigiu o lucro tributável da Requerente B..., mediante o acréscimo ao seu lucro tributável do valor dos dividendos que recebeu da sua participada C... com sede no Líbano.

A derrama municipal prevista no art.º 18.º, do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais (ou Lei das Finanças Locais), aprovada pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro (anterior art.º 14º, da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro), deve ser considerada como um imposto que incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de I.R.C. dos sujeitos passivos. O valor da derrama municipal tem por base a proporção do rendimento gerado na área geográfica do município em causa, e acresce ao IRC de cuja existência prévia está dependente.

Anteriormente, a derrama estava prevista na Lei n.º 42/98, de 6 de agosto, que dispunha no art.º 18.º “Os municípios podem lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 10% sobre a colecta do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que proporcionalmente corresponda ao rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola”.

Em 2007, este diploma foi revogado pelo art.º 64.º, n.º 1, da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro, Lei que foi revogada pela já referida Lei n.º 73/2013 de 3 de setembro, e o art.º 18.º n.º 1 passou a ter a seguinte redação:

“Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5 %, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.”

Nos termos da al. b) do art.º 14.º da mesma Lei, constituem receitas dos municípios “O produto da cobrança de derramas lançadas nos termos do artigo 18.º”.

Nos termos do n.º 2 do mencionado art.º 18.º “2 - Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional”. 

A doutrina e a jurisprudência consideram que a derrama municipal é um imposto municipal que incide sobre o lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC. É um imposto cobrado pela AT e transferida para o Município titular, i.é. o município em cujo território se gerou o rendimento.

Nos casos em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a 50 000 euros, o lucro imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo tenha no território de um município e a totalidade dos gastos com a massa salarial (art.º 18.º, n.º 2 da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro), sendo que o conceito de massa salarial engloba todas as despesas com o pessoal e contabilizadas no exercício a título de remunerações, ordenados ou salários, de acordo com o disposto no n.º 12 do mencionado artigo 18.º.

 

O acórdão do STA de 13-01-2021, proferido no Proc. n.º 3652/15.3BESNT considera que:

“O lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do território nacional (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela)”.

(...)

“Neste momento, dirigindo, já, atenções para a situação julganda, podemos afirmar, com segurança, que a rte, no exercício de 2010, estando coletada pelo exercício de atividade sujeita e não isenta de IRC, possuindo sede (Nada se provou (ou consta dos autos), quanto a, eventual, direção efetiva noutro local.) no município de Oeiras (………… - Edifício …….., ……….), com um lucro tributável de € 65.181.876,87, tinha, em princípio, de apurar e pagar (o que, efetivamente, fez), derrama municipal, na importância de € 938.619,03 (€ 65.181.876,87 x 1,44%). Assim, legitimava e impunha, o art. 14.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro ao dispor que “Os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola …”. A dúvida reside, apenas, em saber se o lucro tributável, a operar como base de incidência da derrama, é o montante mencionado ou, perante a comprovação de que esse valor integra, comporta, a importância (global) de € 52.079.027,80, obtida fora do território português (no estrangeiro), deve ser o de € 13.102.849,07 e, consequentemente, a derrama, devida, fixar-se em € 188.681,03 (€ 13.102.849,07 x 1,44%), portanto, num montante inferior ao autoliquidado (-749.938,00)”.

Antecipando o resultado, entendemos que a razão está do lado da rte.
Como emana do antes exposto e, destacadamente, das premissas acima expressas, o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar “o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município” envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se “o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede …

Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da a derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.

Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais. Na verdade, embora o legislador não o haja assumido explicitamente, por exemplo, num preâmbulo à Lei n.º 2/2007 (aplicável, neste caso) (No âmbito da Lei n.º 42/98 de 6 de agosto a derrama podia ser lançada “para reforçar a capacidade financeira ou no âmbito da celebração de contratos de reequilíbrio financeiro. A, precedente, Lei n.º 1/87 de 6 de janeiro (art. 5.º n.º 6) só admitia o lançamento de derrama “para acorrer ao financiamento de investimento ou no quadro de contratos de reequilíbrio financeiro”.), certos de que os tributos e em especial os impostos, visam, desde logo, “a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas” e devem respeitar “os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material” (Artigo 5.º da Lei Geral Tributária (LGT).), presente, ainda, a condição de impostos autónomos (do IRC), só podemos assumir que as derramas municipais se têm, para legitimação, de ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo…

Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a “massa salarial”, ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.)”.

Como a Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, nada refere quanto à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora de Portugal, mas faz depender a incidência sobre rendimentos tributáveis e não isentos em IRC gerados no território dos municípios que os decidem lançar e cobrar, consideramos que os rendimentos obtidos fora do território nacional devem ser excluídos do lucro tributável da B..., e como tal não contribuindo para o cálculo da derrama municipal lançada pelo Município de ... .

Assim, consideramos coerente e acertado o entendimento decorrente do acórdão de 10-11-2021 proferido no Proc. n.º 0255/17.1BESNT:

“I - Se determinado sujeito passivo residente em território nacional obtém rendimentos no estrangeiro que aí foram sujeitos a tributação, em face da regra da universalidade poderá ocorrer uma situação de dupla tributação em território nacional. Sucede, assim, uma dupla tributação jurídica internacional quando o mesmo rendimento, na esfera do mesmo sujeito passivo, é tributado no mesmo período em diferentes Estados, podendo o Estado de residência do beneficiário do rendimento permitir a sua eliminação. O mecanismo do crédito de imposto consiste em deduzir à colecta do I.R.C. determinada quantia de imposto já paga no outro país com o limite daquela que seria liquidada em território nacional. Estamos perante a consagração unilateral do método de imputação ordinária. O imposto pago no estrangeiro constitui um crédito relativamente ao tributo devido no Estado de residência (Portugal), mas tal crédito não excederá o valor de I.R.C. que seria devido no caso de tais rendimentos terem sido originados no nosso país. O mesmo é dizer que a dupla tributação é totalmente eliminada quando o imposto pago no estrangeiro for igual ou inferior ao liquidado no estado de residência e será, apenas, atenuada caso seja superior (cfr. artº.91, do C.I.R.C.)”.

E, este Acórdão menciona ainda, referindo-se à derrama e a rendimentos obtidos no estrangeiro:

“III - O artº. 91, nº.1, al. b), do C.I.R.C., na redacção em vigor no ano de 2013, não distingue as situações em que existe ou não CDT, sob pena de se postergar o princípio da igualdade tributária, na correcção ao cálculo do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, pelo que a derrama municipal, à semelhança da derrama estadual, integra o cálculo da "fracção do IRC" aí prevista”.

Estando de acordo com o defendido no Acórdão do STA citado, o qual aprecia a mesma questão relativa a determinar se os rendimentos provenientes de dividendos obtidos no estrangeiro por uma sociedade portuguesa devem ser integradas ou não no lucro tributável de IRC, para cálculo da derrama municipal lançada pelo município onde a B... tem a sua sede, pelo que, aderindo ao decidido neste Acórdão do STA, cujo trecho transcrevemos:

“Antes de mais, se dirá que é hoje pacífico que as leis fiscais se interpretam como quaisquer outras, havendo que determinar o seu verdadeiro sentido de acordo com as técnicas e elementos interpretativos geralmente aceites pela doutrina (cfr. artº.9, do C. Civil; artº.11, da L.G.Tributária).

Se determinado sujeito passivo residente em território nacional obtém rendimentos no estrangeiro que aí foram sujeitos a tributação, em face da regra da universalidade poderá ocorrer uma situação de dupla tributação em território nacional. Sucede, assim, uma dupla tributação jurídica internacional quando o mesmo rendimento, na esfera do mesmo sujeito passivo, é tributado no mesmo período em diferentes Estados, podendo o Estado de residência do beneficiário do rendimento permitir a sua eliminação. O mecanismo do crédito de imposto consiste em deduzir à colecta do I.R.C. determinada quantia de imposto já paga no outro país com o limite daquela que seria liquidada em território nacional. Estamos perante a consagração unilateral do método de imputação ordinária. O imposto pago no estrangeiro constitui um crédito relativamente ao tributo devido no Estado de residência (Portugal), mas tal crédito não excederá o valor de I.R.C. que seria devido no caso de tais rendimentos terem sido originados no nosso país. O mesmo é dizer que a dupla tributação é totalmente eliminada quando o imposto pago no estrangeiro for igual ou inferior ao liquidado no estado de residência e será, apenas, atenuada caso seja superior (cfr. artº.91, do C.I.R.C.; Rui Marques, Código do IRC anotado e comentado, Almedina, 2019, pág.761 e seg.; Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, Almedina, 2009, pág.205 e seg.; Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, 2ª. Edição Actualizada, Almedina, 2007, pág.748 e seg.)”.

O elemento teleológico da interpretação também aponta no mesmo sentido. A decisão de Portugal passar a conceder, unilateralmente (i. e., na ausência de uma CDT que o imponha), aos seus residentes com rendimentos oriundos do estrangeiro, um crédito em razão do imposto pago nos países da fonte dá expressão ao chamado princípio da neutralidade na exportação: "os sujeitos passivos que obtenham rendimentos noutros estados devem ficar abrangidos por um tratamento fiscal similar ao aplicável àqueles cujos rendimentos sejam obtidos exclusivamente no estado de residência". Está, pois, em causa uma igualdade entre residentes, que não deve resultar limitada por interpretações restritivas da lei, ou seja, por interpretações que restrinjam a possibilidade efectiva, ainda que parcial, de dedução de um tal crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional.

Ainda como elemento racional ou teleológico de interpretação, se deve chamar à colação as obrigações assumidas por Portugal, nomeadamente, no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC), as quais vão no sentido da eliminação de restrições à livre concorrência internacional em matéria de investimento, as quais resultarão mais cabalmente cumpridas se, no plano fiscal, se evitarem diferenciações entre os residentes que invistam no exterior, consoante o país onde tais investimentos aconteçam. Por outras palavras, mesmo que se possa entender que tais compromissos internacionais não vinculam directamente o legislador fiscal, o intérprete não poderá deixar de os ter presentes, em nome da unidade do sistema jurídico, considerado no seu todo. A interpretação que assegura a coerência do sistema jurídico é, certamente, a que corresponde "à solução legal mais acertada" que é suposto ter sido acolhida pelo legislador (cfr artº.9, nº.3, do C.Civil - "ratio legis"). Com estes pressupostos, deve concluir-se, com o Tribunal "a quo", que o artº.91, nº.1, al.b), do C.I.R.C., na redacção em vigor no ano de 2013, não distingue as situações em que existe ou não CDT, sob pena de se postergar o princípio da igualdade tributária, na correcção ao cálculo do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, pelo que a derrama municipal, à semelhança da derrama estadual, integra o cálculo da "fracção do IRC" aí prevista, mais se devendo mencionar em defesa desta perspectiva hermenêutica da norma a jurisprudência do Tribunal Constitucional e a doutrina (cfr. ac.Tribunal Constitucional 603/2020, 11/11/2020, proc.172/20; Rui Marques, Código do IRC anotado e comentado, Almedina, 2019, pág.762, em anotação ao artº.91, do C.I.R.C.)”.

Ora, tendo presente que estão em causa nos presentes autos dividendos recebidos pela Requerente B... da sua participada C... com sede no Líbano e ante a clareza e exaustividade com que o aresto aborda e conclui similar questão a decidir, não cremos subsistirem razões para de tal entendimento nos afastarmos.

Decorre assim do que se vem supra sufragando, na esteira, de aresto, da jurisprudência dos tribunais superiores a que supra aludimos, a conclusão segundo a qual o ato tributário de derrama municipal em apreço viola o disposto no artigo 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais, na redação em vigor à data dos factos tributários, porquanto os rendimentos gerados fora do território nacional, designadamente os lucros auferidos por via de participação social numa sociedade participada não residente, devem ser excluídos do lucro tributável e, como tal, não podem contribuir para o cálculo da derrama municipal lançada pelo município (de ...).

 

Atento o exposto, enferma o ato tributário objeto da presente ação arbitral de erro de direito, gerador da sua anulabilidade, a qual se declara, procedendo dessa forma o pedido arbitral.

 

IV. JUROS INDEMNIZATÓRIOS:

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

No caso, os vícios que afetam os atos tributários ora arbitralmente sindicados são imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, que os praticou, indevidamente, por sua iniciativa, incorrendo nos vícios supra acima assinalados.

Tem, pois, a Requerente direito a ser reembolsada da quantia que pagou, por via de compensação operada pela AT (cfr. Ponto U, dos Factos Provados), indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força dos atos anulados e, ainda, a ser indemnizada pelo pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT, desde a data do pagamento indevido até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

V. DECISÃO

 

Termos em que o presente Tribunal Arbitral decide:

  1. julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, condenar a Requerida a restituir às Requerentes a quantia de € 85.247,00.
  2. condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios
  3. condenar a Requerida nas custas do processo.

 

 

V. VALOR DO PROCESSO

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em de € 85.247,00 ( oitenta e cinco mil duzentos e quarenta e sete euros) que foi o valor atribuído pela Requerente e que a AT não impugnou.

 

VI.  CUSTAS

Custas a cargo da Requerida no montante de € 2.754,00, nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT.

 

Lisboa, 15 de março de 2022

 

A Árbitro Presidente

 

 

(Regina de Almeida Monteiro)

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Luís R. F. Sequeira)

 

O Árbitro Vogal,

 

 

(Jesuíno Alcântara Martins)